RESUMO
OBJECTIVO Quantificar, para ambos os sexos, a correlação entre a taxa de incidência de depressão e a taxa de desemprego, em Portugal, entre 1995 e 2013.
MÉTODOS Foi desenvolvido um estudo ecológico no qual se correlacionou a evolução das taxas de incidência de depressão estimadas pela Rede Médicos Sentinela e as taxas de desemprego anuais disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Estatística em publicações oficiais.
RESULTADOS Observou-se uma correlação positiva entre taxa de incidência de depressão e taxa de desemprego em Portugal, sendo esta significativa apenas para o sexo masculino (R2 = 0,83; p = 0,04). Estimou-se, para este sexo, um aumento de 37 novos casos de depressão por 100.000 habitantes a cada 1% de aumento da taxa de desemprego entre 1995 e 2013.
CONCLUSÕES Embora o desenho do estudo não permita o estabelecimento de uma relação causal entre desemprego e depressão, os resultados obtidos sugerem que a evolução do desemprego em Portugal poderá ter tido um impacto não desprezável no nível de saúde mental dos portugueses, em especial no sexo masculino.
Depressão, epidemiologia; Desemprego; Fatores Socioeconómicos; Estudos Ecológicos
ABSTRACT
OBJECTIVE Quantify, for both genders, the correlation between the depression incidence rate and the unemployment rate in Portugal between 1995 and 2013.
METHODS An ecological study was developed to correlate the evolution of the depression incidence rates estimated by the General Practitioner Sentinel Network and the annual unemployment rates provided by the National Statistical Institute in official publications.
RESULTS There was a positive correlation between the depression incidence rate and the unemployment rate in Portugal, which was significant only for males (R2 = 0.83, p = 0.04). For this gender, an increase of 37 new cases of depression per 100,000 inhabitants was estimated for each 1% increase in the unemployment rate between 1995 and 2013.
CONCLUSIONS Although the study design does not allow the establishment of a causal association between unemployment and depression, the results suggest that the evolution of unemployment in Portugal may have had a significant impact on the level of mental health of the Portuguese, especially among men.
Depression, epidemiology; Unemployment; Socioeconomic Factors; Ecological Studies
INTRODUÇÃO
O contexto internacional de crise económica e financeira implicou para a Região Europeia mudanças políticas em um reduzido período de tempo17. Em Portugal, o contexto internacional e a assinatura de um memorando de entendimento sobre as condicionalidades de política económica entre Portugal e a designada Troika em Maio de 2011 impuseram, à semelhança do que ocorreu em outros países da Região Europeia, em especial do sul da Europa, a adoção de um conjunto de medidas de austeridade transversais a todas as áreas de governação.
A redução dos encargos financeiros com a proteção do emprego, o sector social e a saúde, são as medidas que apresentam um maior impacto negativo sobre os determinantes sociais da saúde, dos quais se destaca o desemprego4. Em Portugal, a taxa de desemprego em todos os grupos etários e classes sociais atingiu o seu máximo no primeiro trimestre de 2013 (17,5% em ambos os sexos e 17,7% no sexo masculino)a.
O desemprego, em especial o prolongado, tem sido associado a uma alteração do estado de saúde dos indivíduos e à adoção de estilos de vida menos saudáveis, a par de um menor acesso aos cuidados de saúde, como referem McKee M et al.21 Isso pode contribuir para o aumento de depressão, suicídios, comportamentos aditivos, e alteração do padrão de sono21,b.
A hipótese de que o desemprego possa ter um efeito negativo na saúde mental (depressão, ansiedade, sintomas psicossomáticos, bem-estar subjetivo e auto-estima) não é nova, tendo sido amplamente estudada6,24,25 em contextos de crise anteriores, e é hoje um dos principais assuntos em estudo na Região Europeia9,13,14. O efeito negativo do desemprego na saúde mental apresentou-se ainda maior nos países com menor nível de desenvolvimento económico; distribuição desigual de riqueza; baixo investimento em políticas sociais; ou com níveis de desemprego elevados nos períodos imediatamente anteriores à época de crise5,10,16,25.
Considerado que os países apresentam diferentes características e padrões de adaptação e resiliência, a Organização Mundial de Saúde (OMS)29 refere que o desafio atual passa por conhecer e monitorizar o impacto que a crise económica e social poderá ter na saúde das populações, em cada país em particular, de modo a identificar os grupos mais suscetíveis durante os períodos de crise e assim contribuir para a implementação de estratégias protetoras dirigidas a esses grupos29.
De acordo com essas recomendações da OMS29, estudos realizados na população grega revelaram uma alteração dos fatores de risco de depressão durante a crise. Em 2008, ser do sexo feminino, ser divorciado ou viúvo e estar desempregado eram os principais fatores de risco para a depressão19; no entanto, em 2011, foi identificado um risco acrescido de depressão em indivíduos jovens, casados e desempregados8.
Também em Espanha, a recessão económica pareceu aumentar significativamente os problemas de saúde mental nos utentes dos cuidados de saúde primários, particularmente, em famílias atingidas pelo desemprego e com dificuldade no cumprimento do pagamento de empréstimos12. Em Portugal, o conhecimento dos efeitos da atual crise na saúde da população é ainda escasso2.
Dados da Rede Médicos Sentinela portuguesa mostram aumento da taxa de incidência de depressão em 2012, especialmente nos indivíduos do sexo masculino, com 55–64 anos de idade (277,3/100.000 em 2004 e 859,8/100.000 em 2012)27. Tais resultados são a favor da hipótese de um aumento do risco de desenvolvimento de depressão no sexo masculino em alturas de crise económica e social, como já descrito em outros países do sul da europa1,25. De facto, em países com elevadas taxas de desemprego, os homens, independentemente da sua condição laboral, apresentam um pior nível de saúde mental (e maior procura de cuidados de saúde), possivelmente associados ao estigma do desemprego masculino e à insegurança quanto ao posto trabalho5. No entanto, no sexo feminino esse efeito apenas foi observado nas mulheres empregadas5. Apesar de essas diferenças poderem ser em parte explicadas pelas diferenças de género observadas no binómio emprego e saúde, nos últimos anos tem-se observado, em ambos os sexos, um aumento das desigualdades de emprego entre pessoas com e sem limitações de longa duração20.
Partindo do pressuposto da existência de uma associação entre desemprego e depressão5–7, este estudo pretendeu quantificar, para cada sexo, a correlação entre a taxa de incidência de depressão e a taxa de desemprego em Portugal nas últimas décadas, tendo como hipótese que essa correlação possa ser mais forte no sexo masculino, dado o seu maior risco de desenvolvimento de doenças mentais em períodos de crise económica e social5. A escolha da taxa de desemprego prendeu-se com o facto de ser um indicador sensível às mudanças ocorridas nos períodos de crise, usado também em outros estudos nesse âmbito5,26,28.
MÉTODOS
No presente trabalho, desenvolveu-se um estudo ecológico de correlação, no qual foram utilizados os valores das taxas de incidência de depressão provenientes da Rede Médicos Sentinela e das taxas de desemprego anuais disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Estatística em publicações oficiais entre 1995–1997, 2004 e 2012–2013a.
A Rede Médicos Sentinela é um sistema de observação em saúde constituído por médicos de família do Serviço Nacional de Saúde que notificam voluntariamente, de modo contínuo e sistemático, uma série de eventos de saúde ocorridos nos seus utentes. A população sob observação efetiva na Rede Médicos Sentinela, usada no cálculo das taxas de incidência, resulta do somatório das listas de utentes dos médicos ativos em cada semana, isto é, dos médicos que notificaram casos em cada semana. Nos anos em estudo, a população sob observação na Rede variou entre um mínimo de 28.184 indivíduos em 2013 e um máximo de 164.676 indivíduos em 1995.
Foram usadas as taxas de incidência de depressão observadas na população sob observação da Rede Médicos Sentinela nos anos 1995, 1996, 1997, 2004, 2012 e 2013.
Os eventos em notificação variam em cada ano; assim, a depressão apenas esteve em estudo em 1995–1997, 2004, 2012 e 2013, razão pela qual só se encontram disponíveis as taxas de incidência para esses anos. No triénio 1995–1997, os eventos em notificação foram todos os novos casos de depressão (primeiro episódio na vida do utente ou episódios seguintes); em 2004, 2012 e 2013, estiveram em notificação todas as consultas por depressão com identificação do motivo da consulta para cada caso (primeiro episódio na vida do utente, episódios seguintes, consulta de seguimento ou consulta para renovação da medicação). Em todos os anos em estudo, a definição de caso de depressão usada foi baseada no melhor conhecimento clínico, isto é, seguindo os mesmos critérios usados na abordagem diagnóstica e terapêutica do doente, existindo ainda um manual de procedimentos para uniformizar o modo como era feita a notificação dos casos. Considerando apenas o primeiro episódio na vida do utente ou os episódios seguintes, foi possível calcular a taxa de incidência de depressão de forma semelhante para todos os anos em estudo.
Procedeu-se à padronização das taxas de depressão pelo método direto usando a população padrão europeia de 1976. Foi estimada a razão de taxas de incidência entre ambos os sexos para os anos em análise. Por meio de um modelo de regressão linear, estimou-se, para cada sexo, a correlação entre a taxa de desemprego e a taxa de incidência de depressão. Foi verificada a normalidade dos dados (pressuposto para a aplicação do modelo linear) usando o teste de Shapiro-Wilk. Considerou-se um nível de significância estatística de 5%.
RESULTADOS
Verificou-se um aumento da taxa de incidência de depressão a partir de 2004, em ambos os sexos. O sexo feminino apresentou em todos os anos taxas de incidência mais elevadas; no entanto, a razão entre sexos sofreu uma redução em 2012 e 2013 (Tabela).
Observou-se maior correlação entre desemprego e depressão no sexo masculino (R2 = 0,83; p = 0,04) (Figura 1), na qual cerca de 83% da variabilidade da taxa de incidência de depressão se encontrou relacionada com o valor da taxa de desemprego. No sexo feminino, a correlação estimada não foi estatisticamente significativa (R2 = 0,71, p = 0,11) (Figura 2).
Correlação entre desemprego e taxa de incidência padronizada de depressão em Portugal, para o sexo masculino.
Correlação entre desemprego e taxa de incidência padronizada de depressão em Portugal, para o sexo feminino.
Atendendo à equação da reta que traduz a relação entre a taxa de incidência de depressão e a taxa de desemprego (taxa de incidência de depressão = 3.706,5 × taxa de desemprego + 10,38), pode-se estimar um aumento de 37 novos casos de depressão por 100.000 habitantes a cada 1% de aumento da taxa de desemprego, no sexo masculino.
DISCUSSÃO
Neste estudo, observou-se uma correlação positiva entre a taxa de incidência de depressão e a taxa de desemprego em Portugal entre 1995 e 2013, apenas significativa para o sexo masculino, nos anos em que o país se encontrou em situação de crise económica, financeira e social. Esses resultados encontram-se concordantes com aqueles obtidos por outros autores7,24, e observados também em outros países em situação de crise e consequente austeridade1,12,13,23. Dadas as semelhanças metodológicas, salienta-se um estudo grego que observou uma correlação positiva entre desemprego e suicídio em homens, mas não em mulheres26.
Também o estudo de Buffel et al.5 mostrou que, em países com elevadas taxas de desemprego, os homens, independentemente da sua condição laboral, apresentam um pior nível de saúde mental (e maior procura de cuidados de saúde).
Tais resultados têm sido atribuídos ao papel social e responsabilidades familiares historicamente associados aos homens. Por essa razão, os homens podem sentir-se mais ameaçados e com maior dificuldade em lidar com o estigma social do desemprego relativamente às mulheres, o que os coloca em maior risco de desenvolvimento de doenças mentais18,20,25.
Dado que, atualmente, a maioria dos indivíduos com problemas de saúde mental recorre ao médico de família22, considera-se que a utilização da taxa de incidência de depressão em cuidados de saúde primários é um indicador sensível para a análise desse problema de saúde. A utilização de dados primários colhidos de modo voluntário por médicos-sentinela obviou a limitação apontada aos atuais registos clínicos no que se refere à necessidade de maior adesão ao registo informático desses problemas de saúde ao nível dos cuidados de saúde primários22. Embora os casos que por diversos fatores (sociais, culturais ou acessibilidade aos cuidados de saúde) não recorrem aos serviços de saúde sejam excluídos, considerando que este efeito ocorreu em todos os anos em estudo, o indicador escolhido pode ser entendido como uma proxy do aumento do risco de depressão na comunidade. Apesar disso, reconhece-se que ao estar dependente da procura de cuidados médicos possa ser influenciado por eventuais mudanças no padrão de utilização dos serviços de saúde ocorridas em Portugal. Também a definição de caso utilizada (novos casos de depressão, que recorrem a uma consulta em cuidados de saúde primários, definidos de acordo com o melhor conhecimento clínico) não permite distinguir diferentes níveis de gravidade na apresentação dessa patologia, mas reflete o conjunto de situações que justificam procura de cuidados médicos.
A alteração da definição de caso de depressão, ocorrida na Rede Médicos Sentinela em 2004 (consultas por depressão em vez de novos casos de depressão), aliada ao facto de os médicos poderem encontrar-se mais atentos a esse problema de saúde, pode ter contribuído para a notificação de casos prevalentes como incidentes, conduzindo assim à sobrestimativa da incidência a partir desse ano e consequente redução da correlação observada entre desemprego e depressão. Note-se, no entanto, que os nossos resultados corroboram o aumento da proporção de utentes com registo de problemas mentais em cuidados de saúde primários entre 2011 e 2013 observado pela Direcção Geral de Saúde22 e o aumento do consumo de antidepressivos em Portugal observado entre 2000 e 201211.
Também um estudo belga3, realizado por uma rede de médicos-sentinela, estimou uma taxa de incidência de depressão em 2008 de 719/100.000 no sexo masculino e 1.440/100.000 no sexo feminino. Esses valores, ainda que distintos dos observados em Portugal em 2012 (sexo masculino 571,5/100.000; sexo feminino 2.136,0/100.000), encontram-se dentro da mesma ordem de grandeza, o que indica uma adequação da metodologia usada.
Assume-se, no entanto, que o desenho do estudo (estudo ecológico) não permite estabelecer relações causais entre a variável de exposição (desemprego) e a variável resultado (depressão), pelo que se reconhece a necessidade de desenvolvimento de estudos com desenhos mais robustos, que permitam confirmar a hipótese agora apontada. No entanto, e apesar das limitações referidas, este é um dos primeiros trabalhos cujos resultados indicam que, em Portugal, o aumento do desemprego pode ter tido um impacto não desprezável no nível de saúde mental dos portugueses e, consequentemente, na procura de cuidados de saúde. Realça ainda que a magnitude dessa associação foi diferente entre os dois sexos, sugerindo que, no período em estudo, a crise económica e social pode ter tido um impacto mais negativo no sexo masculino.
Apesar de algumas teorias sugerirem o aumento da depressão nas sociedades modernas, fruto das alterações ambientais e do contexto social15, os resultados obtidos no presente estudo, em concordância com trabalhos similares realizados em anos anteriores, e no atual contexto de crise económica, sugerem a necessidade de reforço da monitorização desse problema de saúde mental, em particular, no sexo masculino. Essa monitorização poderá contribuir para a efetiva implementação de estratégias de prevenção de doença mental, dirigidas em especial a grupos mais vulneráveis, identificados no atual contexto português.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
2017
Histórico
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Recebido
8 Set 2015 -
Aceito
14 Ago 2016