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Febre amarela e vacinação

EDITORIAL

Febre amarela e vacinação

Oswaldo Paulo Forattini

Departamento de Epidemiologia Faculdade de Saúde Pública/ USP

Parece consensual a opinião de que a febre amarela representa séria ameaça à população do nosso país. É o que se depreende pela grande repercussão causada, tanto nos meios técnicos como "profanos", ao serem divulgadas, em passado recente, as notícias que davam conta da presença do mosquito Aedes aegypti em várias partes do território nacional. O noticiário leigo referiu-se à existência desse díptero simplesmente confundindo-a com a da própria infecção.

Se bem que nenhum caso urbano, cuja origem pudesse ser imputada à ação daquele vetor, tivesse ocorrido, não há dúvidas de que a possibilidade sempre existe. E isso porque não pode ser ignorado o fato da existência do Flavivirus amarílico no Brasil, embora até agora confinado ao meio florestal. Em vista disso, a ocorrência de casos humanos em zonas urbanas infectadas pelo Aedes aegypti, em que pese sua origem silvestre, passou a ser encarada como verdadeiro risco, dada a possibilidade de desencadearem surtos nesse meio. Os serviços públicos, tanto federais como estaduais, ao lado do combate ao vetor urbano, procederam a ampla campanha de vacinação nas áreas consideradas como de risco, ou seja, aquelas adjacentes às grandes regiões silvestres norte e centro-brasileiras, passíveis de receberem e abrigarem os casos que ali aportassem com o agente viral no sangue circulante.

Dentre as reflexões que tais fatos provocam, está aquela referente à imunização da população exposta mediante a aplicação em massa de vacina disponível e sabidamente eficaz. E esses pensamentos, ao abordarem assunto que não deixa de ser polêmico, se reavivam quando se adventa a possibilidade de incluir essa vacinação como prática de rotina. Deixando de lado os estados de emergência, que recomendariam essa prática em massa, há que se pesar vários aspectos. Em recente publicação, a Organização Mundial da Saúde (WHO, 1986), ao tratar da prevenção e controle da febre amarela na África, enfatiza princípios básicos os quais, "mutatis mutandi", poderão trazer subsídios aplicáveis às Américas em geral, e ao Brasil em particular.

Para a formulação da estratégia destinada à prevenção, a médio e a longo prazo, há que se estabelecer objetivos bem definidos. Estes incluem a delimitação das zonas endêmicas, a implantação de sistema de vigilância epidemiológica, o pré-estabelecimento de planos para situações de emergência, a implementação da imunização preventiva em massa para os grupos de risco e o controle dos mosquitos vetores quando possível. Claro está que é inerente, a essa estratégia, a utilização prática de todas as condições favoráveis e a identificação de todos os obstáculos a serem obviados. E é mais claro ainda a necessidade da existência de compromisso na política de saúde, a nível nacional, que, a longo prazo, assegure os recursos para essas atividades.

Dentro desse contexto insere-se, com relevância, a atitude a ser seguida na política da imunização a nível populacional. Até recentemente, a vacinação em massa contra a febre amarela tinha a sua indicação limitada à medida de emergência em situações epidêmicas. Tal restrição, porém, está sendo posta de lado e, cada vez mais, observa-se mudanças de orientação no sentido de vários países iniciarem programas de imunização de rotina com a expectativa fundada no fato de que uma única vacinação possa resultar em duradoura proteção. Assim, de maneira ideal, toda a população poderia ser protegida e esse estado de imunidade seria mantido mediante a vacinação rotineira do contingente infantil e de imigrantes. Dessa maneira, somente a inexistência de recursos poderia justificar ou restringir a imunização à população de risco e por ocasião de surtos de virose, ou na probabilidade alta de que tal pudesse ocorrer. Não há dúvidas pois, a julgar pelas ponderações dos peritos que subscrevem a citada publicação, que as tendências da vacinação contra a febre amarela são a de incluí-la na rotina da imunização infantil, a partir dos 9 meses de idade e coincidindo com a mesma prática contra o sarampo que é atualmente seguida.

Diante dessas recentes atitudes na prática de saúde pública, embora ao que parece ainda limitadas ao Continente Africano, não há como deixar de ponderar sobre qual seria a melhor para um país como o Brasil. Por ocasião do sensacionalismo que coloriu o noticiário leigo sobre a presença de Aedes aegypti, alguns técnicos emitiram opiniões críticas desaconselhando a vacinação em massa. Todavia, deixando de lado esses episódios, é chegada a hora de pensar nas razões que poderiam levar à vacinação antiamarílica de rotina em território nacional. A primeira delas, sem dúvida, é a existência do agente viral circulante. Em que pese estar restrito ao meio florestal primitivo, não há como negar que existe a possibilidade de seu deslocamento para áreas alteradas onde a presença de matas residuais sugere a possibilidade de albergar os elementos envolvidos no ciclo enzoótico, tal como a ocorrência de mosquitos Haemagogus. A segunda é, incontestavelmente, a presença do Aedes aegypti no ambiente urbano, mesmo de grandes cidades como São Paulo. Permito-me duvidar da possibilidade prática de sua erradicação, a exemplo do que se admite tenha ocorrido há alguns decênios atrás. O grau atual de urbanização, os hábitos de vida, a densidade populacional, a variedade de recipientes atualmente utilizados, os meios de transporte, além de outros aspectos, são incomparavelmente distintos dos que se observava até aquela época. Finalmente, não faltam espécies de mosquitos, com possibilidade vetora, e que possam estar em processo de adaptação ao ambiente artificial. Esses culicídeos, como o Aedes scapularis, por exemplo, poderiam estabelecer ponte de ligação entre o meio silvestre e o domiciliar, talvez de maneira tão ou mais eficaz do que a circulação de casos humanos com viremia.

Eis aí pois algo que mereceria a atenção de nossas autoridades sanitárias, ou seja, o estudo da possibilidade de adoção rotineira da vacinação contra a febre amarela. Pelo menos como medida de estímulo para encarar a solução do problema de maneira global, e não centrada apenas em alguns aspectos atualmente conhecidos de seu controle.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

WORLD HEALTH ORGANIZATION. Prevention and control of yellow fever in Africa. Geneva, 1986.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1986
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