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UM DIÁLOGO SOBRE OS JOGOS DA LIBERDADE

Graeber, David. . (2020). Anarchy: In a manner of speaking . Zurique: Diaphanes, 204 p.

Na última década, o antropólogo nova-iorquino David Graeber (1961-2020) fez contribuições de destaque nas ciências humanas, investigando desde o charme das burocracias até conceitos como dívida e trabalho. Anarchy: In a manner of speaking (2020Graeber, David et al. (2020). Anarchy: In a manner of speaking. Zurique: Diaphanes.) (“Anarquia - em um certo modo de falar”, em tradução livre) foi publicado, simultaneamente em inglês, francês e alemão, um mês após seu abrupto falecimento. O título é um trocadilho com seu formato, um diálogo aparentemente ininterrupto entre Graeber, o filósofo franco-tunisiano Mehdi Belhaj Kacem, a escritora e atriz francesa Assia Turquier-Zauberman e a artista soviética Nika Dubrovsky, esposa de Graeber.

Tapeçaria espontânea de argumentos e perspectivas, o livro resiste a resumos. Alguns de seus elementos não são inéditos. Esse é o caso, por exemplo, da leitura tripartite do Estado moderno (Graeber, 2015Graeber, David. (2015). The Utopia of Rules: On Technology, Stupidity, and the Secret Joys of Bureaucracy. Brooklyn: Melville House.), da ontologia realista crítica (Graeber, 2001Graeber, David. (2001). Toward An Anthropological Theory of Value: The False Coin of Our Own Dreams. Nova Iorque: Palgrave.; 2014Graeber, David. (2014). What’s the Point If We Can’t Have Fun? The Baffler, 24. Disponível em: Disponível em: https://thebaffler.com/salvos/whats-the-point-if-we-cant-have-fun . Acesso em: 27 jun. 2021.
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) e da aplicação de regras de engajamento militar às dinâmicas de movimentos sociais (Graeber, 2009Graeber, David. (2009). Direct Action: An Ethnography. Oakland: AK Press.). Já outras partes representam novas contribuições para as ciências humanas. A mais destacada - tanto por ocupar mais espaço quanto por efetivamente contextualizar as demais - é o aprofundamento de suas reflexões sobre a ideia de liberdade, cujas bases já haviam sido lançadas em The Utopia of Rules e em Bullshit Jobs: A Theory (Graeber, 2015Graeber, David. (2015). The Utopia of Rules: On Technology, Stupidity, and the Secret Joys of Bureaucracy. Brooklyn: Melville House.; 2018Graeber, David. (2018). Bullshit Jobs: A Theory. Nova Iorque: Simon & Schuster.).

A liberdade é concebida em termos de brincadeira (play) em oposição a jogos (games). Brincadeiras são imanentes; seu propósito é o próprio brincar. Jogos são estruturados, e neles alguém sempre vence. Brincadeiras acabam se tornando jogos eventualmente, pois jogar é mais divertido que brincar. Por outro lado, jogos dependem (lógica e cronologicamente) desse impulso criativo básico que é o brincar. A liberdade estaria na tensão entre os dois.

Jogos e brincadeiras, é claro, são apenas o ponto de partida metafórico. Em outros termos, interações interpessoais autônomas e espontâneas tendem a gerar padrões que passam a restringir a espontaneidade e autonomia das interações. Formais ou não, eles simplificam, ao mesmo tempo que potencializam, ao estruturá-la, a complexidade da vida. Mais que isso, jogos são tentativas de realizar utopias, isto é, situações em que todos(as) são iguais, conhecem as regras e podem vencer. No âmbito macroscópico, no entanto, o princípio da brincadeira é visto como aterrorizante. O paradigma da divindade jocosa, que mata por prazer quando brinca com a humanidade, evolui ao longo do tempo para o terror quanto às “balbúrdias” da multidão no momento em que a soberania não é mais divina, e sim do povo. A “utopia das regras”, assim - as burocracias, o Estado contemporâneo -, é a ideia de que seremos livres quando as regras abarcarem todos os âmbitos da ação humana, tornando tudo previsível e controlável (eliminando a “arbitrariedade”). Trata-se da vitória dos jogos - não importa quão daninhos sejam - contra a possibilidade de que suas regras sejam modificadas de fora de sua própria lógica, por experimentações e brincadeiras que constituem novas realidades. A liberdade, para Graeber, está na tensão com as regras, mas ela sempre tem por horizonte formar novas regras. Nunca há um (utópico) ponto final. Sempre estaremos inseridos em “jogos” sociais, e a liberdade significa a possibilidade contínua de reformular as regras desses jogos. De fato, a relação entre brincar e jogar é corrompida precisamente quando os vencedores se recusam a começar do zero de novo, quantificando e registrando derrotas na forma de dívidas.

Além de recuperar a narrativa acima, Graeber desenvolve, nesse diálogo, as liberdades específicas (no formato de “direitos”) que efetivariam na prática esse ideal de liberdade. Três são citadas: i) a liberdade de “sair”, de ir embora - de deixar de participar de um jogo; ii) a liberdade de ignorar ordens; e iii) a liberdade de reformular diretamente as regras do jogo. Por outro lado, também observa como esses direitos precisam ser construídos por padrões que funcionam, inclusive, como restrições. A liberdade de ir embora só existe se houver para onde ir. Daí a regra de hospitalidade que, em muitas sociedades não ocidentais, obriga a recepcionar.

Importa também como Graeber chega a essas conclusões. Ele narra a história esquecida de como inicialmente povos indígenas norte-americanos não criticavam a “desigualdade” europeia, mas sim sua falta de liberdade. Sociedades indígenas eram organizadas para impedir que alguém pudesse mandar uma pessoa fazer algo contra sua vontade; não lhes ocorria que ter mais riquezas que outra pessoa significava ter poder sobre ela. Graeber recupera a figura de Kondiaronk, da sociedade Wendat, cuja retórica era admirada por colonizadores europeus. Um de seus argumentos, o primeiro em defesa da igualdade social a partir de uma perspectiva racionalista, era de que leis repressivas seriam necessárias somente por causa de outras instituições (como o dinheiro) que encorajavam o comportamento que as mesmas leis foram feitas para reprimir: se o dinheiro fosse eliminado, leis repressivas não seriam necessárias. Das reverberações dessa crítica (que podemos ver nas personagens estrangeiras das obras de Voltaire e Diderot, cujo papel é ridicularizar a Europa), emerge a ideia de “estágios de desenvolvimento”, segundo a qual o “sucesso” da civilização europeia está em desistir de igualdade e liberdade. Assim, recuperar a narrativa indígena sobre a liberdade é crucial: o dilema entre igualdade e liberdade, tão profundamente estruturante de séculos de filosofia política, torna-se basicamente negligenciável a partir desse ponto de vista.

Esta discussão é estruturante em relação a Anarchy: In a manner of speaking porque conecta muitos dos demais temas, inclusive alguns que são apresentados pela primeira vez. Graeber introduz, por exemplo, a ideia de “espelhos feios”, processos a partir dos quais as pessoas se convencem de que deveriam ter medo de sua própria agência. De competições circenses na Roma antiga a filmes de terror contemporâneos, a ideia é constantemente reforçar a desejabilidade das regras atuais, especialmente quando constrangem a criatividade popular. Graeber também questiona teorias ocidentais do desejo, relevante aqui porquanto explicaria a origem da negatividade de impulsos criativos na população, justificando, assim, a supressão do princípio de play. Em ambos os casos, uma estrutura social desigual e violenta produz filosofias que legitimam sua origem e sua continuidade, ainda que isso não seja feito conscientemente. O desejo enquanto consumo, por exemplo, é apresentado como uma metáfora perfeitamente razoável de se derivar da teoria romana de propriedade.

Também lemos sobre como relações de dominação podem surgir como perversões de relações de cuidado (enquanto assistência ou care). Vários tipos de relações de dominação teriam advindo da (contingente) perversão de certas relações de cuidado. Porém, os exemplos do autor dependem de certas estruturas de dominação preexistentes. Uma dessas perversões, inclusive, trata da questão da hospitalidade, mas não fica claro até que ponto hospitalidade e cuidado são a mesma coisa. O autor define, de modo intencional, cuidado como algo que aumenta a liberdade da pessoa que o recebe. Mas não sabemos se ele pretende que sua definição seja descritiva ou prescritiva.

A obra constitui momento importante da trajetória do pensamento Graeberiano e, assim como outras, fornece elementos interessantes para repensar narrativas corriqueiras da teoria política, exemplos frutíferos sobre como coligar o conhecimento etnográfico a problemas atuais e instrumentos críticos para uma sociologia não etnocêntrica. A obra é bem-sucedida em ser, como se quer, uma eclética (porém definitivamente não exaustiva) conversa sobre a noção de anarquia na esfera política. Ainda assim, não é exatamente um tratado teórico (sequer possui referências bibliográficas) e não é satisfatória no que tange à sistematização de seus argumentos. De qualquer modo, para a maior parte do público acadêmico, iniciado no anarquismo ou não, será positivamente provocativa, certamente.

REFERÊNCIAS

  • Graeber, David. (2001). Toward An Anthropological Theory of Value: The False Coin of Our Own Dreams Nova Iorque: Palgrave.
  • Graeber, David. (2009). Direct Action: An Ethnography Oakland: AK Press.
  • Graeber, David. (2014). What’s the Point If We Can’t Have Fun? The Baffler, 24. Disponível em: Disponível em: https://thebaffler.com/salvos/whats-the-point-if-we-cant-have-fun Acesso em: 27 jun. 2021.
    » https://thebaffler.com/salvos/whats-the-point-if-we-cant-have-fun
  • Graeber, David. (2015). The Utopia of Rules: On Technology, Stupidity, and the Secret Joys of Bureaucracy Brooklyn: Melville House.
  • Graeber, David. (2018). Bullshit Jobs: A Theory Nova Iorque: Simon & Schuster.
  • Graeber, David et al. (2020). Anarchy: In a manner of speaking Zurique: Diaphanes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2021
  • Aceito
    18 Jan 2023
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