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FREYRE À FRANCESA

Barbosa, Cibele. . (2023). Escrita histórica e geopolítica da raça: a recepção de Gilberto Freyre na França . São Paulo: Global; Fundação Gilberto Freyre. 280 p.

Se as intenções de um autor não esgotam as possibilidades de leitura de sua obra, o caso de Gilberto Freyre e seu livro inaugural, Casa Grande & Senzala (1933), é, nesse sentido, paradigmático. Lembremo-nos, por exemplo, da distância entre o relato memorialístico de Antonio Candido, para quem a narrativa do pernambucano, nos momentos subsequentes ao seu lançamento, tivera “impacto libertador” (Candido, 1995Candido, Antonio. (1995), O significado de ‘Raízes do Brasil’. In: Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 9-21.: 10), e as apreciações desabonadoras de Carlos Guilherme Mota, que inscreve o livro em um conjunto de “esforços de compreensão da realidade brasileira realizados por uma elite aristocratizante que vinha perdendo o poder” (Mota, 1977Mota, Carlos Guilherme de. (1977). Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). São Paulo: Ática.: 58).

O caso em tela ilustra variações em torno da recepção de Casa Grande & Senzala entre o público leitor brasileiro, tema já explorado no âmbito da fortuna crítica do autor (Gahyva & Diana, 2020Gahyva, Helga & Diana, Marcelo. (2020). Three times of “The Masters and the Slaves”. The American Sociologist, 51/3, p. 330-346.), e retomado por Cibele Barbosa no primeiro capítulo de Escrita histórica e Geopolítica da raça. Mas, aqui, a discussão sobre as múltiplas interpretações motivadas pelo livro de Freyre, em seu país natal, funciona como preâmbulo para o desenvolvimento do tema central da tese de doutorado da historiadora Cibele Barbosa - vencedora do I Concurso Internacional de Ensaios Prêmio Gilberto Freyre 2020/2021 e, em boa hora, transformada em livro: investigar como, por que e por quem foram acolhidos os trabalhos de Freyre - sobretudo, mas não exclusivamente - na França, entre as décadas de 1930 e 1950, marco temporal iniciado com a publicação do seu livro de estreia e concluído com sua tradução e posterior repercussão em francês.

Orientada por instrumentos conceituais elaborados, por um lado, por Hans Jauss e Wolfgang Iser e, por outro, Pierre Bourdieu, a autora investe em uma análise que alia a perspectiva internalista, voltada às particularidades da escrita do brasileiro, à abordagem externalista, por meio da qual ela investiga “[…] o campo de recepção da obra freyreana publicada na França à luz do contexto social e político no qual estavam imersos seus principais interlocutores” (2023: 31), produzindo, assim, uma instigante “[…] história do horizonte de expectativa francês do pós-Segunda Guerra” (2023: 32).

Barbosa resgata o “fio transnacional” (2023: 25), por meio do qual Peter Burke (1997Burke, Peter. (1997). Gilberto Freyre e a nova história. Tempo Social, 9/2, p. 1-12.) uniu a antropologia histórica mobilizada pelo brasileiro à Escola dos Annales: em ambos os lados do Atlântico, o questionamento a um padrão investigativo marcadamente político, voltado sobremaneira à identificação de grandes homens e efemérides - associado, no Brasil, com o modelo historiográfico de Francisco Adolfo de Varnhagen e, na França, com as diretrizes da Escola Metódica -, conformou nova sensibilidade multidisciplinar cuja ampliação do universo documental possibilitou iluminar comportamentos coletivos em uma perspectiva de longa duração. Essa convergência de preocupações é explorada no segundo capítulo do livro, no qual a autora resgata a estadia de Fernand Braudel em terras brasileiras (1935-1937), na qualidade de professor da Universidade de São Paulo (USP), quando ele não apenas testemunhou o influxo do livro de 1933 no país, mas também o lançamento do novo volume da trilogia de Freyre sobre a formação da sociedade brasileira, Sobrados e Mucambos (1936). Porém, nota a historiadora, se foi o autor de O Mediterrâneo o primeiro a publicar, na França, um artigo dedicado à obra do pernambucano - Mélanges d’Histoire Sociale (1943) -, deve-se a seu mestre, Lucien Febvre, o protagonismo na divulgação de Casa-Grande & Senzala entre a intelectualidade francesa dos anos ulteriores ao fim do segundo grande conflito bélico mundial.

A atuação do parceiro de Marc Bloch, entretanto, dependeu do empenho de outro conterrâneo seu, Roger Bastide, responsável pela tradução da obra inaugural do autor brasileiro. São as redes de sociabilidade por ele articuladas e seus impactos na recepção das ideias de Freyre o tema do terceiro capítulo de Escrita histórica e geopolítica da raça. Assim como Braudel, viera Bastide, na segunda metade dos anos 1930, lecionar na USP. Seu interesse por estudos ligados ao universo afro-brasileiro foi o mote principal para o estabelecimento de uma conexão afetiva e intelectual que o tornou “[…] epicentro da teia de relações em torno da publicação e recepção de Casa-Grande & Senzala” (2023: 110).

Se o surgimento de Maîtres et Esclaves (1952), prefaciado por Febvre, constitui um momento chave da apresentação da obra de Freyre ao público francês, o colóquio de Cérisy, quatro anos depois, representa, talvez, o ponto culminante de seu processo de consagração no país. Organizado pelos três personagens aqui já citados - Braudel, Febvre e Bastide - e Georges Gurvitch, o evento, intitulado Gilberto Freyre, um maître de la sociologie brésilienne, dedicava-se, pela primeira vez, exclusivamente a um autor. A ocasião proporcionou a valorização de um conjunto de questões que permitiu aos presentes mobilizar, por um lado, o pluralismo metodológico praticado pelo brasileiro contra o empirismo excessivo da sociologia estadunidense, crescentemente em voga à época; e, por outro, seu elogio à mestiçagem, possível antídoto à persistência de práticas segregacionistas e eugênicas que afligiam parte expressiva da intelectualidade europeia, às voltas com a memória recente dos horrores nazistas.

O acolhimento positivo da obra de Freyre em território francês coincide, paradoxalmente, com o agravamento das críticas às suas ideias em solo brasileiro. Na esteira do processo de rotinização do ensino universitário, institucionalizado na primeira metade dos anos 1930, ele se tornava alvo de cientistas sociais vinculados à USP, para os quais os seus métodos de pesquisa careciam dos necessários critérios de cientificidade. À censura metodológica, somaram-se, cada vez com mais intensidade, reprovações às suas posições políticas, tanto em função do viés ideológico subjacente à noção de “democracia racial” quanto por seu apoio às práticas colonialistas caras ao Estado Novo português, ainda nos anos 1950, e à ditadura civil-militar instalada no Brasil a partir de 1964.

Essas avaliações críticas não invalidaram a decisão da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) de sediar, no Brasil, uma série de pesquisas cujo objetivo consistia em testar a hipótese de Freyre quanto à existência de um padrão de relações raciais relativamente harmônico no país. A despeito da suposta obsolescência metodológica do autor, “sua interpretação histórica permanecia como referência e ponto de partida ideológico para a realização do projeto” (2023: 165).

Os desdobramentos do Projeto Unesco ocupam boa parte do quarto capítulo do livro de Barbosa, no qual ela mostra o empenho do órgão vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU) no sentido de compreender e, se possível, universalizar a suposta excepcionalidade brasileira (Maio, 1999Maio, Marcos Chor. (1999). O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14/41, p. 141-158.). Nesse esforço, ela ressalta que, mesmo com aquelas pesquisas revelando a existência, ainda que muitas vezes velada e regionalmente distinta, de preconceito racial no país, o caso brasileiro permanecia na contramão das políticas segregacionistas então em voga, especialmente nos Estados Unidos e na África do Sul.

Apesar da presença de Bastide, as discussões suscitadas pelo Projeto Unesco ecoaram, sobretudo, entre investigadores norte-americanos. Sob o ponto de vista da intelectualidade francesa, permaneceu a convicção quanto ao caráter pontual do racismo no Brasil. Para eles, era menos importante denunciar as limitações dos argumentos freyreanos do que incorporar sua valorização da mestiçagem à agenda reformista e assimilacionista do colonialismo tardio. É essa leitura específica da obra do autor brasileiro que ocupa o quinto capítulo de Escrita histórica e Geopolítica da raça.

Colonialismo esclarecido é o feliz conceito cunhado por Barbosa para mostrar como a apologia da mistura racial, traço distintivo do ideal antirracista forjado após a Segunda Guerra Mundial, serviu, paradoxalmente, para atribuir viés “humanista” aos derradeiros esforços de preservação do poder colonial francês. Nessa chave, os defensores das prerrogativas metropolitanas recorreram não apenas às teses centrais do livro de 1933, mas também às reflexões sobre o lusotropicalismo, elaboradas por Freyre a partir dos anos 1940.

No último capítulo, a autora articula a recepção de sua obra na França a um movimento mais amplo de interesse pelas manifestações da cultura brasileira, sobretudo aquelas que, em um contexto de modernização, corresponderiam à sobrevivência de “arcaísmos” - daí a preferência pelas paisagens nordestinas, como atestam as traduções de livros de Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz. Mas, no que diz respeito ao entusiasmo pelo universo freyreano, Barbosa identifica franco arrefecimento a partir dos anos 1960: o esfacelamento dos impérios coloniais português - cerne da sua concepção lusotropical - e francês foi um fator decisivo, mas não único, para o encerramento daquilo que ela chama de “‘período áureo’ da recepção francesa da obra de Freyre.” (2023: 246).

A título de conclusão, uma ressalva à afirmação da autora segundo a qual “[…] Freyre fez um caminho diverso da cartilha eurocêntrica difusionista” (p. 29). Trata-se de assertiva que não faz jus à pesquisa de Barbosa, reveladora, na verdade, de facetas de determinado processo de circulação cuja fluidez, ao oferecer “um forte contraponto à unidirecionalidade de ‘difusão’” (Raj, 2015Raj, Kapil. (2015). Além do pós-colonialismo… E pós-positivismo: circulação e a História Global da Ciência. Revista Maracanan, 13, p. 164-175.: 171), possibilita atribuição de agência ao conjunto de sujeitos implicados nos movimentos de formação de conhecimento - é esse, efetivamente, o caso narrado em Escrita histórica e Geopolítica da raça.

REFERÊNCIAS

  • Burke, Peter. (1997). Gilberto Freyre e a nova história. Tempo Social, 9/2, p. 1-12.
  • Candido, Antonio. (1995), O significado de ‘Raízes do Brasil’. In: Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 9-21.
  • Gahyva, Helga & Diana, Marcelo. (2020). Three times of “The Masters and the Slaves”. The American Sociologist, 51/3, p. 330-346.
  • Maio, Marcos Chor. (1999). O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14/41, p. 141-158.
  • Mota, Carlos Guilherme de. (1977). Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). São Paulo: Ática.
  • Raj, Kapil. (2015). Além do pós-colonialismo… E pós-positivismo: circulação e a História Global da Ciência. Revista Maracanan, 13, p. 164-175.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Mar 2024
  • Aceito
    22 Abr 2024
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