Resumo
Este artigo trata das noções de magia e de sagrado na obra do antropólogo Michael Taussig. Para tanto, discuto como esses termos são mobilizados pelo autor no escopo de seis textos de sua autoria, publicados entre as décadas de 1980 e 2010. Na primeira seção, demonstro a grande familiaridade de Taussig com o debate sobre o sagrado proposto pelo Collége de Sociologie. Na segunda seção, apresento a relevância que a transgressão tem nas discussões do autor sobre o sagrado. Na última seção, acompanho os argumentos de Taussig sobre as possíveis articulações entre o sagrado e o Estado. por fim, nas considerações finais, procuro depreender alguns comentários mais gerais a partir do percurso de leitura proposto por este artigo sobre as formas pelas quais Michael Taussig usa as noções de magia e de sagrado.
Palavras-chave: Sagrado; Magia; Religião; Michael Taussig; Collége de Sociologie
Abstract
This study addresses the notions of magic and the sacred in the work of anthropologist Michael Taussig. To do so, I discuss how the author mobilized these terms in the scope of six texts of his authorship published from the 1980s to 2010s. In the first section, I show Taussig’s great familiarity with the debate on the sacred by the Collége de Sociologie. In the second section, I describe the relevance transgression has in the author’s discussions about the sacred. In the last section, I follow Taussig’s arguments on the possible articulations between the sacred and the State. Finally, in the final remarks, I try to deduce some more general comments from the reading path this study proposed on the ways in which Michael Taussig uses the notions of magic and the sacred.
Keywords: Sacred; Magic; Religion; Michael Taussig; Collége de Sociologie
Neste ensaio bibliográfico, apresentarei um dos percursos possíveis de leitura da extensa e profícua obra do antropólogo Michael Taussig. Definitivamente não há qualquer pretensão de análise da totalidade de seu trabalho, tampouco de sistematização esquemática de suas formulações. Antes disso, o objetivo deste artigo é traçar conexões e distanciamentos entre seis textos do autor que mobilizam as noções de sagrado e de magia. Tomo essas duas noções como guias simplesmente por reconhecer que, para o campo dos estudos de religião, esses termos importam. Na própria obra de Taussig essas noções nem sempre são apresentadas como familiares entre si, e também é possível reconhecer variações na forma de conceber cada uma delas ao longo de seu percurso intelectual. Por isso, reconheço de antemão que este artigo apresenta um modo de leitura particular da obra de um autor que jamais se propôs a estabelecer as conexões que aqui sugiro. Trata-se de propor uma leitura a contrapelo, na medida em que a proposta de criar qualquer sistematização da obra de Taussig parece ser um ato “antitaussiguiano”. Ainda assim, como espero demonstrar, é possível reconhecer aproximações entre alguns textos de Taussig e o tema da religião, depreendendo, ora com mais ora com menos intensidade, traços mais gerais no seu modo de tratar o sagrado e a magia. Vale ainda destacar que, de modo geral, o próprio estilo textual do autor é errático, pautado por associações de materiais de naturezas distintas, depreendendo desse percurso os seus insights. Por isso, não me proponho neste artigo a apresentar linearidades que não existem nos próprios textos do autor aqui analisado1.
Michael Taussig nasceu em 1940, na Austrália, onde se graduou em medicina (1964/65). Sua formação como antropólogo ocorreu na Inglaterra. Desde o início de sua trajetória nas ciências sociais o autor carrega a herança crítica do marxismo da Escola de Frankfurt, especialmente dos trabalhos de Walter Benjamin, da sociologia do sagrado francesa, sobretudo a partir do diálogo com George Bataille e Michel Leiris, e da filosofia de Friedrich Nietzsche (Tota, 2023). Sua obra é um marco incontornável da antropologia contemporânea, não sendo restrita a temas específicos; ao contrário, é marcada pela heterogeneidade temática e empírica. Apesar disso, Taussig permanece sendo um autor pouco traduzido no Brasil, tendo apenas dois de seus livros publicados em português. O primeiro deles, Shamanism, colonialism, and the wild man: a study in terror and healing, originalmente publicado nos Estados Unidos em 1987 e, no Brasil, editado uma única vez, em 1993, com o título Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura; e o livro The devil and commodity fetishism in South America, publicado em 1980 nos Estados Unidos e apenas em 2010, no Brasil, com o título O diabo e o fetichismo da mercadoria. A dificuldade de acesso às obras do autor em português é também parte das justificativas para a elaboração deste artigo2.
Este texto está organizado do seguinte modo. Na primeira seção, me deterei no livro What Color is the Sacred? (Taussig, 2009) e demonstrarei sua estreita familiaridade com o debate sobre o sagrado levado a cabo no Collége de Sociologie durante a primeira metade do século XX. Na segunda parte do artigo articularei os capítulos “Viscerality, faith, and skepticism: Another theory of magic” (Taussig, 1998), “Transgression” (Taussig, 1997b) e o livro Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative (Taussig, 1999). Dialogando com esses textos explicitarei como, para seu autor, as situações que colocam o sagrado à prova são justamente aquelas nas quais ele adquire contornos, formas e cores mais vívidas. por fim, na última seção, apresentarei os livros The Devil and Commodity Fetishism in South America (Taussig, 1980) e The Magic of the State (1997a) para demonstrar como, para Taussig, a magia opera tanto no campo religioso quanto serve como princípio de ativação do Estado. Pode-se ainda considerar que as seções que segmentam este artigo estão acompanhadas por três digressões: na primeira, para tratar do sagrado em Taussig, mobilizo um texto de Michel Leiris; na segunda, apresento um resumo de uma pesquisa do próprio autor; e na terceira, sintetizo discussões sobre a “canonização” de Hugo Chávez, tema sobre o qual Taussig também dedicou algum interesse. Encerrarei o texto depreendendo alguns comentários mais gerais a partir do percurso de leitura proposto por este artigo sobre as formas pelas quais Michael Taussig usa as noções de magia e de sagrado.
A COR DO SAGRADO
Em 1938, Michel Leiris proferiu uma conferência intitulada O sagrado na vida cotidiana, no Collège de Sociologie. O Collège foi uma experiência efêmera, que durou apenas três anos, entre 1937 e 1939. Formado a partir da reunião de Georges Bataille (1897-1962), Roger Caillois (1913-1978), o próprio Leiris (1901-1990), entre outros, esse grupo tinha como objeto refletir sobre a noção de sagrado. Longe de serem sistemáticos ou conclusivos, os textos e materiais produzidos pelo grupo buscavam antes de tudo explorar as possibilidades analíticas de pensar sobre o sagrado fora de rígidas fronteiras disciplinares, recorrendo a formulações que tomavam como ponto de partida exercícios de memória e de invenção, aliados a uma forma de escrita que reivindicava ser poética e política. A conferência de Leiris estava imbuída desses princípios e apelava à forma proustiana de recherche, no sentido de pesquisa e de busca por materiais mnemônicos, recriada no presente da narração (Peixoto, 2017). É o próprio Leiris quem indica o tom de seu projeto: “Espécie de romance policial: uma caça de recordações. O acento será colocado, não sobre as lembranças elas mesmas, mas sobre a sua busca. O que deve passar ao primeiro plano não é a antiga emoção que eu procuro reconstituir, mas a emoção presente que eu experimento me lançando a essa recherche [...]. Posso, inclusive, me abandonar de modo livre a um tipo de recomposição imaginativa, de reinvenção do fato” (Leiris, 1994: 33).
A caça de recordações para Leiris deveria ser feita recorrendo, sobretudo, às memórias de um momento específico da vida: a infância. A influência de Freud nesse procedimento é inconteste. É assim que o tempo passado, não na qualidade de etapa anterior da linha cronológica e mais como a memória que dá sentido e orienta o que se experimenta no presente, se torna um poderoso guia em seus textos. Partindo dos mecanismos da memória delineados por Proust e Freud, Leiris acrescenta outra camada que é fundamental neste artigo, a do caráter sagrado que as recordações têm. “Todas essas lembranças infantis que eu rumino não têm nenhum interesse nelas mesmas, nem mesmo para dotar de conteúdo a forma vazia que é noção de sagrado. Elas não têm nenhum interesse senão o interesse que eu confiro a elas, atitude emotiva que adoto logo que as evoco, experimentando assim um comportamento marcado pelo sagrado” (Leiris, 1994: 106).
Memória é, desse modo, exercício criador, que assume caráter sagrado em função da experiência emotiva que acompanha o ato de lembrar, encantando lugares e objetos. Como bem sintetizou Fernanda Peixoto, “Em Freud é o inconsciente que deflagra as criações oníricas, mais próximas da ficção do que da verdade histórica. Em Proust são os sentidos que disparam as criações mnemônicas (e artísticas). Para Leiris, o cotidiano é o solo das fabulações mnemônicas; cotidiano afetado e transfigurado pela atitude do narrador-rememorador” (Peixoto, 2017: 32).
Certamente, não se trata de criar um terreno de indistinção entre o sagrado e o cotidiano, mas de conceber a vida ordinária como espaço por excelência de criação do sagrado. Ao cotidianizar o sagrado ou sacralizar o cotidiano, o que está em jogo é uma oposição latente às perspectivas analíticas que tomam como ponto de partida a noção do sagrado como algo extraordinário. É por essa razão e nenhuma outra que, logo na abertura de sua conferência, Michel Leiris descreve nos seguintes termos o que seria o seu sagrado:
Reportando-me mentalmente à minha infância, encontro em primeiro lugar alguns ídolos, alguns templos e, de uma maneira mais geral, alguns lugares sagrados. Em primeiro lugar, alguns objetos pertencentes a meu pai, símbolos de sua força e de sua autoridade. Seu chapéu alto de abas retas, que à noite ele pendurava no cabide, ao chegar do escritório. Seu revólver, um Smith & Wesson de tambor, perigoso, como todas as armas de fogo, e ao mesmo tempo tão atraente por ser de metal niquelado, instrumento que ele costumava guardar na gaveta de uma escrivaninha ou na mesa de cabeceira e que era o atributo por excelência de quem estava incumbido, entre outras tarefas, de manter a casa e protegê-la dos ladrões. Sua niqueleira, onde guardava luíses, mistura de cofre forte e joia, que durante muito tempo foi privilégio exclusivo do mantenedor da casa e que nos parecia, a meus irmãos e a mim, até o momento em que ganhamos uma parecida como presente de primeira comunhão, a marca da idade viril (Leiris, 2017: 15-16).
No encerramento de sua conferência, Michel Leiris explicita, ainda que de modo telegráfico, a agenda derivada desse tipo de investigação do sagrado cotidiano: “Mesmo que um dos objetivos mais ‘sagrados’ a que um homem possa se propor seja o de adquirir um conhecimento de si tão preciso e intenso quanto possível, revela-se desejável que cada um, perscrutando suas lembranças com o máximo de honestidade, examine se não pode descobrir algum indício que lhe permita discernir nisso que cor tem para si mesmo a própria noção de sagrado” (Leiris, 2017: 25).
Qual seria a possibilidade de estabelecer uma sociologia do sagrado se, nos termos desse autor, os elementos sagrados são de natureza tão atrelada aos cotidianos individuais? Como as provocações de Leiris poderiam subsidiar exercícios investigativos que extrapolam a autoanálise?
Retomar as formulações de Michel Leiris, assim como os princípios que as fundamentam, é um esforço necessário para enfrentar o desafio de apresentar como Michael Taussig concebe e propõe investigar o sagrado. Afinal, é precisamente a pergunta “what color is the sacred?” que intitula um de seus livros, publicado em 20093.
Assim como no caso da conferência de Leiris, o referido livro de Taussig não oferece aos seus leitores qualquer modelo esquemático para o estudo do sagrado. Antes, tal como sugeriam os participantes do College de Sociologie, o que Taussig estimula é um convite para a busca do sagrado, busca que, em si mesma e também nos seus achados, está carregada por cores com tons políticos, poéticos e mnemônicos. A tarefa que o autor se propõe, no melhor estilo à la Leiris, é a de proceder uma recherche, a partir de reflexões pessoais, dados etnográficos, história da antropologia e literatura, sobre a sacralidade da cor. Assim, nesse livro, Taussig dobra a aposta de Leiris e não apenas endossa a pergunta “qual é a cor do sagrado?”, como também se propõe a pensar sobre o que poderia haver de sagrado nas cores.
É da obra de Michel Leiris, portanto, que deriva a pergunta que intitula o livro de Taussig. Como já afirmei, no entanto, não se trata apenas de uma adesão à pergunta inaugural, mas de uma filiação ao modo de produzir reflexões, construindo associações livres e misturando “fontes” de naturezas bastante diversas. O trecho a seguir exemplifica as formulações sobre as cores e o sagrado ao longo de todo o livro e, ao que me parece, é o mais explícito quanto às duas cadeias de conexão que Taussig elabora, a saber: (i) colorido-vivo-encantado-sagrado; e (ii) preto e branco/desbotado-morto-desencantado-não-sagrado:
Conversando com Primo Levi, famoso por suas memórias de Auschwitz, o romancista americano Philip Roth sugeriu que sua prisão foi, de certa forma, um presente. Levi respondeu: “Um amigo meu, um excelente médico, disse-me isso há muitos anos: ‘Suas lembranças de antes e depois estão em preto e branco; as de Auschwitz e de sua viagem para casa estão em Technicolor’. Ele estava certo. Família, casa, fábrica, são coisas boas em si mesmas, mas me privaram de algo que ainda sinto falta: a aventura.”
Engenheiro químico, Levi sobreviveu porque trabalhou como escravo no Chemical Komando na fábrica montada em Auschwitz pela IG Farben, a maior corporação química do mundo, fabricando desde escovas de dentes até o gás venenoso usado para a solução final. Farben significa cores, e foi a busca por cores deslumbrantes e padronizadas que, em meados do século XIX, levou à nova ciência da química orgânica, da qual emergiu um mundo de mercadorias além até mesmo dos sonhos de Fausto, assim como foram essas mesmas cores deslumbrantes, cores padronizadas que davam o cuspe e o polimento final ao que Karl Marx via como o caráter espiritual da mercadoria. O admirável mundo novo do artifício criado pela magia química foi para a Alemanha o que o império foi para a Grã-Bretanha e a França e por fim, quando a natureza deu lugar à segunda natureza, superou em muito aquele sentido antiquado e apreensível de destinos imperiais que Proust e Van Gogh tanto admiravam com os zuavos. Perguntar: De que cor é o sagrado? é perguntar sobre essas conexões e se perdemos a linguagem que poderia fazer essa conexão para nós: a maneira como as florestas e pântanos primitivos se transformaram em carvão e petróleo, a maneira como o gás de carvão veio iluminar as cidades do século XIX e excretar um produto residual a partir do qual as primeiras cores e depois quase todo o resto poderiam ser feitas em uma poderosa imitação da natureza. Não podemos ver isso como sagrado ou encantado porque substituímos a linguagem da alquimia pela dos químicos. Não confundimos cor com calor.
Igualar o calor à cor, como fez Isidoro de Sevilha, nos distancia de uma abordagem puramente visual da visão e faz da cor o fio condutor dessa mudança. A visão colorida torna-se menos uma atividade retiniana e mais uma atividade corporal total, na medida do conto de fadas que, ao olhar para algo, podemos até passar para a imagem. Três dos meus autores favoritos apreciam esse poder da cor: Walter Benjamin, William Burroughs e Marcel Proust. Eles veem a cor como algo vivo, como um animal, e todos os três despendem considerável talento verbal para transmitir isso: Benjamin concentrando-se na visão infantil da cor e das ilustrações coloridas nos primeiros livros infantis; Burroughs sobre drogas, sexo e jogos com a linguagem; Proust sobre a plenitude da memória involuntária transportando o próprio corpo para o evento lembrado por acaso. Tudo isso para dizer que a cor aparece aqui mais como uma presença do que um sinal, mais uma força do que um código e mais como calor, e é por isso que, acredito, John Ruskin declarou em seu livro Modern Painters que “a cor é o elemento mais sagrado de todas as coisas visíveis” (Taussig, 2009: 5-6).
O livro tem uma estrutura quaternária. A primeira parte, que é a mais relevante para os fins deste texto, concentra as reflexões sobre o sagrado. Nela, Taussig enfatiza a desconfiança e a falta de apetite do ocidente-colonizador pelas cores. A negação estética diante de tudo aquilo que seria excessivamente colorido e, por outro lado, o apreço por cores vibrantes e pelo colorido, iluminariam dois grupos que sustentam atitudes distintas: o dos cromofóbicos e o dos cromofílicos. Os trajes típicos dos colonizadores em tons pastéis ou branco seriam, nesse caso, mais do que um efeito de moda, um reflexo da atitude cromofóbica daqueles que as vestiam.
Vale sublinhar que, com essa distinção a partir da atitude diante das cores, Taussig não estabelece um jogo de dualidade simples. Afinal, haveria na modernidade cromofóbica uma obsessão desconfiada, uma mistura de medo e repulsa, de desejo e proibição com relação às cores vibrantes e ao colorido dos cromofílicos. A pergunta “qual é a cor do sagrado?” é, antes de qualquer coisa, uma afirmação: há cor no sagrado. nesse caso, a constituição da modernidade em oposição às cores seria uma versão ou uma outra maneira de contar a história de uma porção do mundo que, a partir de um determinado período, optou pelo desencantamento desbotado. A outra porção, dos cromofílicos, que viveria em um mundo mais colorido, também estaria submetida a uma realidade mais cheia de sagrado.
A pergunta “qual é a cor do sagrado?” feita por Taussig no título de seu livro não culmina com uma resposta sistemática, mas serve para o autor estabelecer alguns jogos de relação que, para seus leitores mais obstinados, permitem vislumbrar traços de um esquema analítico mais geral. Destaco sinteticamente as pistas que esse livro pode oferecer para aqueles que buscam descobrir o que é o sagrado para Taussig.
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A existência de referências explícitas no seu livro às contribuições dos autores vinculados ao Collège de Sociologie, particularmente a Michel Leiris, mas também com destaque para George Bataille, apontam para um ponto de ancoragem do pensamento de Taussig no que se refere às suas reflexões sobre o sagrado. Com isso, também fica explícito que Taussig está muitíssimo mais interessado em produzir uma sociologia do sagrado do que uma sociologia da religião;
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O método delineado por Leiris, uma caça de recordações, cujo efeito textual é a mistura de materiais distintos (memória, literatura, etnografia, arquivos etc.), é o princípio que guia o estilo de escrita e a forma textual dos livros de Taussig;
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Perguntar-se sobre a cor do sagrado é, para Taussig, uma maneira de voltar a refletir sobre os termos a partir dos quais o Ocidente moderno produziu a si mesmo e aos seus Outros - tema de outras publicações do autor (Taussig, 1993). “Produziu os Outros” porque a cor do sagrado estaria encarnada nos Outros do Ocidente, os cromofílicos, que habitam um mundo colorido, cheio de sagrado, mas que assim o é menos por uma realidade em si mesma e mais por conta de um efeito ótico daqueles que, a partir de um mundo supostamente sem cores, olham para além de si - estaríamos diante de uma espécie de orientalismo das cores. Ao mesmo tempo, a pergunta herdada de Leiris também se refere às formas como o Ocidente produziu a si mesmo porque, como Leiris descreve em sua conferência e Taussig em seu livro, se olharmos para o nosso cotidiano, veremos o quão colorido ele é. Portanto, se projetamos o nosso mundo, moderno ocidental, como desencantado, talvez o problema também esteja em onde e como estamos procurando o nosso sagrado.
A partir disso, vale avançar em uma variação da pergunta que intitula o livro de Taussig e questionar: onde está o sagrado?
TRANSGREDIR E DESFIGURAR
A pergunta com a qual a seção anterior é encerrada mobiliza um advérbio de lugar, “onde está o sagrado?”. No entanto, para Taussig, o sagrado não é uma questão de localização. O sagrado não se faz evidente pelo lugar que ocupa em um mapa, mas ele emerge com toda sua força em situações e eventos de transgressão. Trata-se de um modo de elaborar sobre o sagrado que se reconhece na própria obra durkheimiana quando essa destaca a proibição e o interdito como índices da presença do sagrado, isto é, como um princípio de demarcação da fronteira do que seja sagrado: “Quando uma crença é unanimemente partilhada por um povo [...] ela é proibida de ser tocada, isto é, não pode ser contestada. Ora, o interdito da crítica é um interdito como todos os outros e prova que estamos em face de algo sagrado” (Durkheim, 1968: 305).
Taussig (1999) toma o reconhecimento do interdito e do proibido como constituintes fundamentais da aura do sagrado para fazer uma sugestão de traço metodológico, algo como: para reconhecer o sagrado, mirem nos eventos em que a transgressão, os ataques a objetos, coisas, pessoas e lugares são sucedidos por reações significativas e reveladoras. “Quando um corpo humano, uma bandeira nacional, o dinheiro, ou uma estátua pública, é desfigurado (defaced), é como se uma estranha sobrecarga de energia negativa emergisse da própria coisa desfigurada. Está agora num estado de dessagração (desecration), que é o mais próximo que muitos de nós irá chegar do sagrado neste mundo moderno. De fato esse estado negativo pode insurgir como mais sagrado que o ‘sagrado’” (Taussig, 1999: 37).
A ideia de que a negação do sagrado seria elemento constituinte do próprio sagrado é um verdadeiro traço das formas modernas de definição do termo. Além do já citado Durkheim, Freud com o conceito de tabu seria outro autor que converge com formulações que apelam para o negativo como forma de identificar o inefável. Os trabalhos de Mary Douglas (2010) seriam outro exemplo de mobilização do impuro, do sujo, do caótico, do proibido como elemento central de definição de seus avessos. Contudo, e é neste ponto que Taussig marca sua diferenciação dessas tradições teóricas, a potência do negativo para ele não é uma simples linha fronteiriça que aparta coisas de naturezas distintas (sagrado e profano, puro e impuro, sujo e limpo): “a potência do negativo, não pode ser entendida como uma simples barreira, pois ao ser separado, algo tanto se conecta quanto se desloca daquilo de que está separado, e é na curiosa tensão de negações incorporadas nesta relação que precisamos focar a atenção” (Taussig, 1999: 39).
Com isso, Taussig está chamando atenção para dois aspectos fundamentais em seu modo de conceber a transgressão em situações em que ela ativa o sagrado. Em primeiro lugar, a linha demarcatória que o ato transgressivo ultrapassa não existe em si, mas emerge apenas quando o ato ocorre. Em segundo lugar, a transgressão evoca, a um só tempo, medo e atração, desejo e proibição; de modo que “a negação deve ser compreendida como um circuito infinitamente descarregador de tabus e transgressões, como se barreiras medonhas fossem erguidas justamente para serem transpostas” (Taussig, 1999: 40). Seria justamente no espaço aberto pela transgressão que o próprio ritual sagrado ocorreria e se fortaleceria. Não há ritual positivo do sagrado que, no fundo, não constitua um verdadeiro sacrilégio4.
Transgressão e tabu não são mobilizados como termos sinônimos para Taussig. No entanto, há um vínculo entre o tabu e a transgressão que ocupa lugar importante nas reflexões do autor sobre o sagrado - trata-se do segredo. O segredo está marcado pelo princípio de uma verdade que publicamente se sabe que não pode ser pública. Assim, o segredo está entrelaçado com o tabu de sua transgressão; com isso, cria uma presença poderosa, mas invisível: a de que há algo a ser desvelado. Desvelar a verdade, nesse caso, seria um ato de transgressão, mas é justamente a possibilidade dessa transgressão que potencializa a verdade do segredo ou a sacralidade do sacro.
O conjunto de exemplos aos quais Taussig recorre para descrever atos de transgressão é variado e aponta para direções pouco óbvias. Em vários deles, o corpo é tomado como objeto potencialmente transgressor, não enquanto símbolo ou reflexo da transgressão, mas como veículo para que ela ocorra. Diversos exemplos utilizados por Taussig para descrever as relações entre corpo e transgressão envolvem atitudes violentas, mutilações e automutilações, tais como: remoção do clitóris; circuncisão; corte na parte inferior do pênis; deformação craniana; achatamento da testa; limar os dentes; esculpir os dentes; escarificar o corpo, braços e pernas; sacrifício humano; comer o corpo do outro (Taussig, 1999).
Há uma razão para que esse tipo de exemplo tenha força nas formulações de Taussig e ela decorre da importância que o pensamento de George Bataille tem para a sua obra. É também às mutilações que Bataille recorre para conectar sagrado e sacrifício. Em seu texto A mutilação sacrificial e a orelha cortada de Vincent Van Gogh (1994), Bataille descreve a automutilação de Van Gogh e também outros dois casos de procedimentos de mesma natureza. Emerson Giumbelli (2017) já havia chamado a atenção para a importância desse texto de Bataille. É nele que o pensador francês conclui: o sacrifício se define pela “projeção para fora de si de uma parte de si próprio” (Bataille, 1994: 82). Para Bataille, o sacrifício “se torna evidente não tanto na morte, que anularia o sujeito, e sim na mutilação, que o preserva e ao mesmo tempo o deforma e o despossui” (Giumbelli, 2017: 73).
Pelo facto de tudo que o ciclo humano rejeita ser alterado de forma realmente impressionante é que as coisas sagradas intervêm no final da operação: a vítima estatelada num charco de sangue, o dedo, o olho ou a orelha arrancados não diferem sensivelmente dos alimentos vomitados. A repugnância só é uma das formas do estupor causado por uma horrorizante erupção, pelo derrame de uma força que pode submergir. O sacrificante é livre - livre de chegar até esse derrame e, ao identificar-se continuamente com a vítima, livre de vomitar o seu ser como vomitou um pedaço de si próprio [...] (Bataille, 1994: 87 apudGiumbelli, 2017).
O que é preciso reter dessas formulações é a importância mais geral que a obra de Bataille tem para a produção de Taussig e a profunda inspiração do debate sobre sacrifício, mutilação e morte daquele autor para a afirmação do antropólogo australiano de que o corpo humano é um território privilegiado da atividade transgressora, sacrifical e, portanto, sagrada. Com isso, a cadeia de associação segredo-sagrado-sacrifício-transgressão adquire contornos cada vez mais explícitos na obra de Taussig.
As elaborações sobre os vínculos entre transgressão, desfiguração, segredo e sagrado nas obras de Taussig estão substantivamente concentradas em dois textos. O primeiro, publicado em 1998, é o capítulo intitulado “Transgressão”, que compõe o livro Critical terms for Religious Studies, organizado por Mark Taylor. Apenas um ano mais tarde, Taussig publicou seu livro Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative (1999), no qual parte das ideias apresentadas na primeira publicação é extensivamente desdobrada. Sugiro que, para completar uma tríade, esses dois textos publicados no final da década de 1990 se conectem com um capítulo do mesmo período intitulado “Viscerality, faith, and skepticism. Another theory of magic” (Taussig, 1998), que integra o livro In near ruins: Cultural theory at the end of the century, editado por Nicholas B. Dirks. Essa aproximação entre os textos é possível porque o mesmo jogo entre o sigilo das coisas sagradas e a transgressão controlada de sua revelação é o recurso ao qual Taussig apela em “Viscerality, faith, and skepticism” para discorrer sobre as práticas de curandeiros e xamãs.
Por mais que se suspeite amplamente que a magia do xamanismo seja fraudulenta, acredita-se, no entanto, que ela seja eficaz ou potencialmente eficaz (Taussig, 1998: 352). Inclusive o próprio debate antropológico também toma essa ambiguidade como seu ponto de partida para discutir o xamanismo.
‘É perfeitamente conhecido por todos os envolvidos’, escreveu Franz Boas no final de sua longa carreira, ‘que grande parte do procedimento xamânico [entre os Kwakiutl] é baseado em fraude; por mais que as fraudes possam ser reconhecidas pelos próprios xamãs, bem como pelos seus pacientes e amigos, isso não enfraquece a crença no “verdadeiro” poder do xamanismo. Devido a esse peculiar estado de espírito, o próprio xamã duvida de seus poderes e está sempre pronto a fortalecê-los por meio de fraudes’. O que Boas chama de “estado de espírito peculiar” é essa forma em que a “fraude” e a “crença” na “magia” são expressões não de ocultações habilidosas, mas de uma revelação habilidosa de ocultadores habilidosos - isso em climas de expectativa adensados pelas contradições oscilantes construídas no labirinto que é o segredo público de saber o que não “saber” sobre as práticas em questão. ‘De fato, o ceticismo está incluído no padrão de crença dos adivinhos. A fé e o ceticismo são igualmente tradicionais’, escreveu Evans-Pritchard em seu livro de 1937 sobre os curandeiros Azande (Taussig, 1998: 356-357)
Assim, as palavras-chaves do vocabulário das reflexões sobre o sagrado em Taussig se avolumam e passam a incluir magia, crença e ceticismo. Mais do que isso, suas análises sobre o sagrado abrem a oportunidade para que ele faça um giro e as transforme no mote para constituir percursos heterodoxos da história do próprio pensamento antropológico, aos quais alquimistas, religiosos, xamãs, historiadores e literatos contribuem ativamente.
Apesar de suas colaborações importantes para o campo de estudos da religião, os textos de Taussig parecem ser menos mobilizados do que poderiam ser entre os pesquisadores da área. Ainda assim, é possível reconhecer usos criativos e muito rentáveis de seus trabalhos no Brasil. Cito como exemplo os textos de Emerson Giumbelli (2019) sobre atos de transgressão envolvendo o monumento do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. A referência são os episódios de pichação do monumento, cujos desdobramentos não apenas ativam a dimensão sagrada da imagem, como também explicitam as disputas envolvendo os sentidos do monumento, que não apenas é sagrado porque encarna um símbolo religioso, mas também porque é um símbolo sacro-cívico da cidade do Rio de Janeiro e do próprio Brasil5.
Além da cor do sagrado e da transgressão como evento mais sagrado que o sagrado, noutros textos Taussig também explora o tema a partir de suas relações com o Estado e com grandes corporações capitalistas.
O DIABO, O CAPITALISMO E O ESTADO
Em 1980, Michael Taussig publicou o livro The Devil and Commodity Fetishism in South America, traduzido para o português apenas três décadas depois, em 2010. Embora esse livro não seja dedicado ao tema do sagrado, nele é a figura do diabo que ganha protagonismo, apontando para outro conjunto de reflexões de Taussig relativo ao que podemos aproximar do campo de estudos da religião. Nessa obra, Taussig (2010) descreve o pacto com o diabo realizado por trabalhadores colombianos do manejo de cana-de-açúcar e trabalhadores bolivianos de minas. Fundamentado em quatro anos de trabalho de campo, o autor sustenta o argumento de que o diabo ocupava naqueles contextos um papel mediador, capaz de acomodar o processo histórico de transição de um modo de vida camponês daquela população para a condição de proletários de empresas de mineração e de produção de cana-de-açúcar. Trata-se de uma passagem entre modos de produção econômica, cuja mediação seria encarnada pelo próprio diabo.
O diabo não é uma entidade autóctone da América do Sul. Foi trazido pelos colonizadores espanhóis em seus navios, tornando-se ele mesmo, o diabo, uma poderosa síntese estrangeira para que os nativos colombianos e bolivianos descrevessem a própria exploração a qual passaram a ser submetidos com a chegada dos espanhóis. desde que chegou, afirma Taussig, o diabo era um mediador de mundos. com a transformação produtiva da região, essa posição não apenas foi mantida como também foi reforçada, trazendo para o centro da necessidade de mediação a ambiguidade de um sistema que impunha uma dinâmica de destruição e produção.
No caso dos trabalhadores colombianos da cana-de-açúcar, que recebiam de acordo com o volume de sua produção, a percepção de que quanto mais trabalhassem, mais receberiam por seu esforço não escondia o fato de que, ao mesmo tempo, quanto mais ganhavam, menos poderiam gozar da vida. Isso os levou a apelar para uma linguagem e um recurso mágico. Pactuavam com o diabo por meio de um feiticeiro, que os ajudava a construir um boneco, com traços dos donos da terra, e deixavam-no escondido no canavial. Sabendo do feitiço, os capatazes e os administradores temiam os efeitos do pacto com o diabo materializado pelo boneco: quanto mais a terra produzisse lucro, mais o diabo a tornaria estéril.
Os mineiros bolivianos, por sua vez, descreve Taussig, também recorriam aos modos de magia materializada em bonecos humanoides, chamados de Diabo ou de Tio. Essa entidade representava o próprio dono das minas, o que fazia com que tivessem uma relação ambígua com a imagem. Elas eram alvo de pedidos para que pudessem continuar trabalhando, mas também eram reconhecidas como os algozes responsáveis caso algo não saísse como o esperado. Com o Diabo/Tio se negociava. No entanto, essa relação mudou quando a empresa capitalista ampliou suas demandas e alterou a relação com aqueles trabalhadores. A partir daquele momento, não se podia mais esperar nada de bom vindo do Diabo, por mais que se negociasse com ele.
Taussig trata desses dois casos extensivamente, com os meandros de uma etnografia detalhada e característica de seus trabalhos até a década de 1990. Marcado por uma leitura marxista, em O diabo e o fetichismo da mercadoria na América do Sul, Taussig inovou ao descrever as ambiguidades das relações de trabalho em um contexto de transformação dos modos de produção. Nesse novo cenário, o diabo era mediador entre os trabalhadores nativos, o capitalismo emergente e os Estados nacionais.
Quase duas décadas depois dessa obra, em 1997, Taussig publicou The magic of the State e se voltou para o tema da magia na relação com o colonialismo, com o Estado e a modernidade a partir da análise dos espíritos de possessão na Venezuela (Taussig, 1997a). Ou melhor, o tema inaugural desse livro parte de uma constatação que aproxima Deus e o Estado: ambos são entidades abstratas, que adquirem status de seres totais, transcendentes e com forças vitais próprias. Daí a síntese apresentada pelo próprio Taussig quanto à natureza de seu empreendimento: refletir sobre os atos mágicos que convocam os mortos para usá-los em favor da invenção fetichizada do Estado. Os mortos aos quais o autor se refere são as entidades do universo da devoção popular venezuelana, que compõem a própria narrativa sobre o Estado-nação. Trata-se daquelas entidades que ocupam a curiosa posição de serem objetos de culto sem serem consagrados por instituições religiosas, mas que são mobilizados oficialmente para a produção do Estado como uma entidade real.
A literatura das ciências sociais dedicada ao tema da religião há décadas trata da relevância que “mortos extraordinários” (Hernández, 2023) considerados poderosos - como os heróis da pátria, alguns médicos e políticos - ocupam no panteão popular venezuelano (Carrera Damas, 1973; Ferrándiz, 2004; Franco, 2009, 2011; Pollak-Eltz, 1987; Salas, 2005). A esses mortos extraordinários é atribuída a realização de milagres cotidianos, que resultam de promessas e pedidos feitos por venezuelanos a despeito de sua identidade religiosa. A figura de destaque desse panteão é Maria Lionza, usualmente descrita como uma rainha indígena, sempre próxima do povo e cuja invocação e presença em cultos de possessão não raramente está acompanhada pela manifestação de outros mortos extraordinários, como o Cacique Guaicaipuro, o Negro Primeiro e Simón Bolívar. Não cabe aqui construir a hagiografia popular desses santos, mas apenas destacar que o Negro, o Cacique, Bolívar e María Lionza compõem um quarteto reiteradamente mobilizado para apresentar, em termos espirituais, a constituição do povo venezuelano como resultante da mestiçagem dos povos6.
Maria Lionza, em particular, passou efetivamente por um processo de assunção como ícone cívico. Desde a década de 1950, durante o governo ditatorial de Marcos Pérez Jiménez, suas imagens são usadas oficialmente pelo Estado, estátuas dedicadas a ela são construídas e ruas são batizadas com o seu nome.
Ao descrever esses mortos extraordinários e sua relação com a produção do Estado, Michael Taussig identificou, ainda na década de 1990, a emergência do próprio Hugo Chávez, ainda em vida naquele momento, como um ser extraordinário capaz de atuar para a magia do Estado. O que Taussig apenas prenunciou sobre Hugo Chávez em seu livro, publicado 16 anos antes da morte do político, adquiriu contornos muito concretos quando, de fato, Chávez ingressou no panteão dos mortos extraordinários.
No início dos anos 1990, durante o período em que Chávez estava preso, Taussig registrou que alguns grupos rezavam pela libertação do militar com a seguinte oração: “Chávez nuestro que estás en la cárcel, santificado sea tu nombre, venga a nosotros tu pueblo, hágase tu voluntad, la de nuestro país, la de tu Ejército, danos hoy la confianza ya perdida y no perdones a los traidores, así como tampoco perdonaremos a los que nos traicionan, no nos dejes caer en la corrupción y líbranos del presidente. Amén”.
Apenas vinte dias após a morte de Chávez, em março de 2013, ergueu-se uma capela dedicada ao “Santo Hugo Chávez”. A capela fica próxima ao Quartel da Montanha, onde está enterrado o ex-presidente e de onde, em 1992, ele comandou uma tentativa de golpe que terminou com sua prisão.
O culto a Chávez ampliou ainda mais sua polissemia política. Oficioso para a Igreja, mas muitas vezes oficial para o Estado, a aproximação do líder com Cristo foi tema de uma das primeiras notas emitidas pela empresa estatal PDVSA (Petróleos de Venezuela), uma semana após sua morte, intitulada “Un grano de maíz. Chávez crucificado”, cujo conteúdo parcial reproduzo abaixo:
Chávez es un Cristo, padeció por su pueblo, se consumió a su servicio, padeció su propio calvario, fue asesinado por un imperio, murió joven... Reúne todas las características, llena todos los requisitos para ser un Cristo, además, hizo milagros en vida. [...] No importa, por sobre todas las cadenas, las censuras, por sobre las convenciones, el imaginario popular lo colocará en lugar de honor, en sus altares, junto a Jesús Cristo, al Libertador, al Negro Primero, al Che... y a todos los hombres santos que el pueblo reconoce.
Naquele mesmo período, a invocação ao “Chávez-Cristo” continuou com a aproximação de um pleito presidencial. A eleição, que terminaria com a vitória de Nicolás Maduro, encenaria, como manda a tradição cristã, um rito de ressurreição. “- El domingo 14 de abril va a ser domingo de resurrección, domingo de victoria popular, domingo de Cristo redentor de los pobres de América”, disse o então candidato em um programa televisionado para todo o país. A Vive Tv, uma cadeia de comunicação que é parte do Sistema Nacional de Meios Públicos da Venezuela, contribuiu para o adensamento imagético da ascensão de Chávez aos céus produzindo um vídeo, utilizado na campanha de Maduro, em que Maria Lionza, Cacique Guaicaipuro, o Negro Primeiro, Simón Bolívar, Che Guevara e Eva Perón o recebem calorosamente7.
Todas essas disputas compõem o complexo de relações entre o regime chavista e a religião. A devoção ao Santo Chávez, após sua morte, tem sido elaborada pela literatura especializada das ciências sociais da religião como mais um caso de morto extraordinário tão comum das devoções populares latino-americanas. A contribuição de Taussig ao lidar com o tema desses mortos extraordinários é a de inverter o vetor, pensando-os não como entidades mágico-religiosas usadas por políticos habilidosos, mas sim como entidades cuja força é parte da magia do Estado. Ou seja, Taussig nos convida a considerar a participação da força das entidades mágico-religiosas, tais como Chávez, na própria magia do Estado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso deste artigo sobre o sagrado e a magia na obra de Taussig deixa claro, em primeiro lugar, que não há, na obra desse autor, um objeto que encarne aprioristicamente o sagrado ou o mágico. Em segundo lugar, tampouco há uma definição para cada um desses termos que sirva como ponto de partida de suas reflexões. O que podemos reconhecer como pontos de ancoragem em sua forma de analisar e conceber o sagrado e a magia são questões mais gerais que parecem acompanhar toda sua obra.
Como descrevi na primeira seção, a memória, as lembranças, os atos mnemônicos individuais podem produzir o sagrado. O efeito desse princípio, tão familiar às recomendações do College de Sociologie, é que tudo pode ser sagrado e nada é, em si, sagrado. Essa perspectiva se contrapõe de maneira substantiva às leituras do sagrado que o localizam em determinados espaços, pessoas e situações. Assim como se afasta de formulações que tratam o sagrado como domínio excepcional, extraordinário da vida. O sagrado para Taussig é sempre o sagrado vivido, da ordem cotidiana, que pode surgir onde menos se espera. Por isso, também escrever sobre o sagrado é, para Taussig, um exercício de composição de fontes muitos variadas: memória, literatura, documentos, cartas, relatos, monografias etnográficas. Característica que inviabiliza qualquer transposição simples das análises feitas por Taussig para outros contextos de pesquisa e de reflexão.
Conforme destaquei na segunda seção deste artigo, as formulações de Taussig sobre o sagrado e a transgressão são aquelas que parecem melhor oferecer indicações metodológicas sobre como fazer uma análise do sagrado. Nesse caso, trata-se de apostar no território da transgressão, do segredo e do sacrifício como estratégia metodológica para a análise do sagrado.
Na terceira seção deste artigo, apresentei os textos de Taussig que abordam a magia e o sagrado a partir de sua relação com o Estado e da produção capitalista. Nesses casos, Taussig explora um complexo jogo de mão dupla, no qual o Estado produz entidades mágicas, mas também em que essas entidades mágicas produzem a magia do Estado. A magia do Estado, nesse caso, é também aquela que propriamente sustenta a sua poética, que faz dele uma entidade animado.
Para Taussig, o sagrado e o mágico não estão, de maneira alguma, restritos aos universos religiosos. Abre-se, assim, uma ampla agenda de pesquisa e reflexão sobre esses temas que implodem com as fronteiras de subdisciplinas como a antropologia ou sociologia da religião. É possível - e necessário - identificar e descrever o sagrado e a magia também quando se propõe a analisar objetos aparentemente desencantados, como o trabalho rural, o Estado, a luta por terras, o colonialismo, atos de transgressores e o capitalismo.
REFERÊNCIAS
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1
Destaco dois comentadores de Taussig no Brasil cujos textos podem contribuir para compreender as tensões implicadas em suas proposições antropológicas: Tota (2023) e Fausto, (1988).
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2
Uma apresentação mais sistemática da produção de Taussig pode ser encontrada na apresentação do dossiê sobre o autor, que este artigo integra.
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3
A associação entre George Bataille e Michel Leiris foi substantivamente explorada nos trabalhos de Julia Goyatá (2014, 2016). Quanto às associações entre Michel Leiris e Michael Taussig, devo reconhecer a relevância do trabalho e do diálogo estabelecidos com Emerson Giumbelli (2017).
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4
Como bem destacou Giumbelli (2013), essa é uma formulação durkheimiana (Durkheim, 1968: 363-364).
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5
Remeto-me ainda ao projeto de pesquisa que tenho desenvolvido em parceria com Marcella Araujo relativo ao processo de destruição de igrejas coloniais da região central do Rio de Janeiro para a construção da Avenida Presidente Vargas.
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6
Essa forma de apresentação do Estado-nacional venezuelano se repetiu em diferentes países latino-americanos; ver Segato (2007) e Grimson (2012, 2014).
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7
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=GsxgG42GEDE>. Acesso em 21 jul. 2023.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
10 Maio 2023 -
Revisado
14 Jun 2023 -
Aceito
24 Jun 2023