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“ABRA-TE SÉSAMO”: A TEORIA CRÍTICA DE GABRIEL COHN

OPEN SESAME: THE CRITICAL THEORY OF GABRIEL COHN

Resumo

Seria Gabriel Cohn um weberiano? O presente texto tem como objetivo tecer comentários a respeito da crítica de Cohn a Max Weber em Crítica e resignação, tendo em vista o diálogo implícito desse livro com a tradição marxista da teoria crítica. Sem buscar esgotar o tema, a ideia é debater algumas questões referentes à separação entre ação e pensamento para Weber, bem como revisitar sua teoria da racionalização tendo em vista a maneira como a teoria crítica abordou esses mesmos problemas.

Palavras-chave:
Crítica e resignação; Gabriel Cohn; teoria crítica; Max Weber; Theodor W. Adorno

Abstract

Is Gabriel Cohn a Weberian? This text comments on Cohn’s critique of Max Weber in Crítica e Resignação, focusing on the book’s implicit dialogue with the Marxist tradition of critical theory. Without attempting to exhaust the topic, the idea is to debate various questions regarding the separation between action and thought for Weber, as well as to revisit his theory of rationalization, taking into account the way in which critical theory approached these same problems.

Keywords:
Crítica e Resignação; Gabriel Cohn; critical theory; Max Weber; Theodor W. Adorno

Uma verdadeira práxis revolucionária depende da intransigência da teoria em face da inconsciência com que a sociedade deixa que o pensamento se enrijeça.

Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento

O OBJETO E SUA SOMBRA

Nas ciências sociais, assim como nas paixões, a sombra do objeto por vezes recai sobre o eu. Enquanto nas paixões esses efeitos podem ser extremamente agradáveis e estão relacionados à submersão do eu no objeto (cf. Freud, 2011Freud, Sigmund. (2011). Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras.), no âmbito das ciências sociais, isso pode levar a mal-entendidos e às vezes ocorre a despeito do próprio eu. O grande intérprete de Max Weber no Brasil foi e é até hoje considerado weberiano por muitos de seus leitores e pares.1 1 A recepção da obra de Gabriel Cohn, nesse sentido, é bastante curiosa, ainda mais se considerarmos sua leitura no âmbito da esquerda marxista autodeclarada: “acusado” de ser weberiano na sua defesa de mestrado por Florestan Fernandes (Bastos et al., 2006: 116-117), Cohn também recebe essa caracterização de Francisco de Oliveira (2008: 45). Ridenti (2008: 35) reconhece sua filiação dialética, mas atribui ao nosso autor um “marxismo weberiano” à la Michael Löwy. A atribuição de “weberiano” (impossível do ponto de vista da análise que o próprio Cohn faz de Weber, cuja grande contribuição seria o método) não deixa de chamar a atenção para a identificação imediata entre o pesquisador e seu objeto, o que talvez seja testemunha do ainda escasso exercício da teoria social entre nós, apesar da grande potência do pensamento social brasileiro no âmbito das ciências sociais. Numa entrevista, Cohn destaca esse aspecto da pesquisa em teoria social: “Por que eu vou dedicar tempo e estudo a um autor? Porque de alguma maneira ele dialoga com as minhas referências e com o mundo de modo relevante, não porque seu pensamento me agrade - ou porque o estado do mundo me agrade” (Bastos et al., 2006: 123). O título Crítica e resignação, assim como as afirmações presentes no livro a respeito da sociologia heroica de Weber, sugere que ambos os substantivos designam a obra do sociólogo alemão. É possível,2 2 Conforme fica explícito na seguinte passagem: “é evidente que há um ponto comum entre as preocupações de Marx e Weber, e que não deve ser subestimado: a posição central atribuída aos problemas da sociedade capitalista na obra de ambos, ainda que com a diferença de que num caso isso conduz a uma crítica revolucionária e no outro a uma crítica marcada pela resignação”.(Cohn, 2003: 118). Aqui temos dois polos: crítica e revolução e crítica e resignação, mas ambos são igualmente inclusos no âmbito do exercício da crítica. mas, em todo caso, a combinação não deixa de intrigar, uma vez que “crítica” e “resignação” não parecem termos complementares. Quando decidiu se debruçar sobre a obra de Weber, Gabriel Cohn já era uma referência no âmbito da teoria crítica no Brasil. A escolha de Weber é, à primeira vista, curiosa. Pode ser que se tratasse de uma continuação dos estudos sobre a Petrobras (cf. Paniz, 2016Paniz, Flávia Xavier Merlotti. (2016). Gabriel Cohn e o sentido de pensar teoria “entre nós”. Dissertação de Mestrado. PPGS/Universidade Estadual de Campinas.: 13) realizados em sua dissertação de mestrado - que teria suscitado interesse pelo estudo das figuras do político e do burocrata. Numa entrevista recente, contudo, Cohn salienta que “minha ambição original, quando redigi a livre-docência, ia mais fundo e mais longe do que acabou saindo. O título trai isso, ao falar de crítica (leia-se Adorno) e resignação (leia-se Weber)” (Musse & Klein, 2018Musse, Ricardo & Klein, Stefan. (2018). Um olhar sobre a teoria crítica no Brasil: entrevista com Gabriel Cohn. Tempo Social, 30/3.: 291). A confissão ajuda a compreender o estranhamento produzido pelo título e faz mais: ela ilumina um problema importante do livro: a crítica a Weber a partir do diálogo com um adversário invisível, a teoria crítica, especialmente, Theodor W. Adorno.3 3 Não há nada que entregue mais um autor que suas epígrafes. A primeira edição (1979) de Crítica e resignação era aberta com Weber − “Faço ciência para saber quanto posso suportar” -, Nietzsche - “quanta verdade suporta, quanta verdade ousa um espírito?” - e Rilke - “Quem fala em vencer? Sobrelevar é tudo”. Na segunda edição do livro, em 2003, Cohn abandona Weber e Nietzsche e opta pela curiosa frase de García Lorca, tirada do poema “Canción de Jinete” - “Aunque sepa los caminos/Yo nunca llegaré a Córdoba” que só então é seguida pela frase de Rilke em diferente tradução - “Quem fala em vencer? Suportar é tudo”. O que antes estava em harmonia parece ser perturbado por uma dissonância na última edição. A frase de Rilke alude ao “heroísmo de Weber”, à posição existencialista, voluntarista de que fazer ciência é suportar a verdade. Traço que, como nota o próprio Cohn, opõe Weber à tradição freudiana de aceitarmos o que somos ou, poder-se-ia dizer, à tradição marxista, de transformarmos o que somos. O verso de Lorca, no entanto, aponta para outra ideia: saber os caminhos não necessariamente leva ao destino. De um lado, o trabalho de Sísifo do conhecimento, de outro, a pergunta: o que é preciso para chegar a Córdoba? Mas, se o projeto inicial da livre-docência que resultou no livro sobre Weber visava abarcar Weber e Adorno, por que a opção pelo primeiro e não pelo último? O título sugere um problema, que aparece enunciado no final do livro:

Weber procurou sempre fazer frente ao grande dilema a que seu pensamento o conduzia: aquele entre a crítica que se traduz na ação e a resignação que se traduz no conhecimento neutro nos seus resultados, vale dizer, disponível para quaisquer fins. Talvez se possa sustentar [...] que ele incorporava algo como o “máximo de consciência possível” no quadro do pensamento burguês de sua época. [...] Ocorre que essa época ainda não está superada, no essencial, e que, portanto, ele permanece atual, para quem se dispuser a assumir o desafio das consequências de seu estilo de pensamento. Estilo inseparável, nele, do “estilo de vida burguês”, ao qual adere ao seu modo, vale dizer, nos termos da luta entre a fatal divisão e a heroica busca da integridade (Cohn, 2003Cohn, Gabriel. (2003). Crítica e resignação. Max Weber e a teoria social. São Paulo: Martins Fontes.: 225).

O dilema entre crítica e resignação, aporia do pensamento burguês, cuja base é a oposição entre teoria e prática, é um dilema também de nossa época e continua marcando a teoria social. Duas questões, ligadas de forma profunda, saltam aos olhos na análise que Cohn faz de Weber em Crítica e resignação: a teoria da racionalização e o dilema entre ciência e política, conhecimento e ação, voluntarismo e fatalismo que, aliás, dá título ao livro. A resignação aparece como consequência do estilo de vida burguês, ainda que marcado pelo esforço heroico de não ignorar as contradições nas quais se desdobram os processos sociais. Conhecimento e renúncia caminham lado a lado nesse caso. Não é por outra razão que Cohn insiste o tempo todo na afirmação de que a força e a fraqueza do pensamento de Weber residem no mesmo elemento. Por isso, menos do que aderir a uma sociologia weberiana, talvez seja possível argumentar que Cohn busca redescobrir na crítica imanente que faz da obra de Weber um dilema que marca a sua própria época e, com isso, fazer uma crítica da teoria social assentada nesse tipo de aporia. Para desenvolver essa ideia é necessário também dizer algumas palavras sobre as teorias críticas de Marx e de Lukács lidas à luz de Adorno.

ANTINOMIA, CONTRADIÇÃO E O PROBLEMA DA RACIONALIZAÇÃO

Marx se debruçou criticamente sobre o pensamento burguês de sua época. Sua obra é tanto uma crítica do idealismo alemão quanto uma crítica da economia política na fase madura. Ambas compartilham um traço comum: Marx nunca pensou conceitos como ideias puras. Para usar uma expressão cara a Adorno, Marx sempre buscou nos conceitos o seu conteúdo histórico sedimentado. A partir, portanto, da crítica dos conceitos da economia política, Marx se volta para a análise das formas sociais no capitalismo. Estudar o pensamento avançado de uma época é também, nesse sentido, estudar a própria sociedade, contida nesses conceitos. De forma simplificada, seria possível afirmar que os conceitos, para Marx, não nascem da cabeça dos filósofos, mas da própria realidade. Por isso, é possível encontrar no trabalho abstrato as bases materialistas das abstrações do pensamento filosófico, de forma que o próprio universal filosófico está ligado aos processos de abstração predominantes na sociedade capitalista (cf. Sohn-Rethel, 1978Sohn-Rethel, Alfred. (1978). Intellectual and Manual Labour: a critique of epistemology. London: The Macmillan Press LTD.). Esse movimento não é uma tarefa menor no âmbito da crítica; ao contrário, faz parte da visada dialética no mundo. Conforme expôs Adorno (2008a: 147-148), “rigor e totalidade, os ideais de pensamento burguês de necessidade e universalidade, delineiam com efeito a fórmula na história; porém é por isso mesmo que nesses conceitos imóveis e engrandecidos pela dominação se sedimenta a constituição da sociedade, contra a qual se dirigem a crítica e a prática dialéticas”.

Inspirado em Marx, Lukács (2003)Lukács, Georg. (2003). História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes. se debruçou sobre a filosofia alemã, demonstrando que a crítica dos conceitos envolve igualmente a investigação das antinomias do pensamento burguês. Nesse sentido, o exercício da crítica envolve demonstrar que: 1) as antinomias do pensamento são reflexos de contradições reais; 2) o pensamento burguês apreende essas contradições como antinomias, que, por sua vez, são reflexos da realidade na consciência reificada, cujos limites interpretativos são impostos pelo pertencimento de classe; e 3) as contradições não são problema exclusivo do pensamento e, portanto, não podem ser resolvidas exclusivamente por meio de um debate categorial. A noção de crítica imanente diz respeito a esse movimento de compreensão das raízes sociais das antinomias teóricas, movimento no qual gostaria de sugerir que Gabriel Cohn envolve a sociologia weberiana, cujo “máximo possível de consciência” dentro de um quadro burguês de pensamento, a torna um objeto privilegiado para a crítica. Mas de onde viria, então, a aporia entre ação e conhecimento, política e ciência no pensamento de Weber?

Cohn assenta sua interpretação da obra de Max Weber em duas grandes disputas do pensamento alemão. Em primeiro lugar, retoma a controvérsia entre o historicismo e o naturalismo positivista na filosofia. Não é possível retomar todo o debate aqui, mas Cohn demonstra como Weber, embora consciente das duas vertentes em questão, não adere sem mais a um dos lados. Weber recusaria, nesse sentido, tanto uma visão sistêmica, absolutamente neutra e objetivista do mundo social, quanto uma concepção culturalista historicista da sociologia e da vida social, como se tudo não passasse de uma Weltanschauung. É assim que Gabriel Cohn mostra, na contramão de importantes comentadores de Weber, que este assume uma relação crítica com Dilthey, Windelband e Rickert, mas também com Nietzsche, de quem herdaria apenas o estilo, o impulso antissistêmico e a disposição heroica para “suportar a verdade”, mas não os pressupostos filosóficos. A riqueza do empreendimento weberiano, entretanto, não residiria apenas nesse diálogo crítico com a filosofia, mas igualmente na participação em uma outra controvérsia metodológica, desdobramento de certa forma dessa primeira no âmbito da economia: a controvérsia metodológica entre aqueles que defendiam a neutralidade da ciência econômica - com Carl Menger, o fundador da teoria da utilidade marginal, de um lado - e aqueles que defendiam uma ciência econômica normativa com a função de assessorar o Estado - com Gustav Schmoller e Adolph Wagner à frente da Associação para a Política Nacional - APN (1872-1932), entidade cuja função era pesquisar e apresentar soluções para os grandes problemas da sociedade alemã. Weber, conforme mostra Cohn, fez parte dessa associação junto com o sociólogo Werner Sombart (que foi aluno de Wagner) e ambos entraram em conflito com os associados mais antigos por defender o desenvolvimento da teoria econômica e social sem se restringir a problemas práticos e empíricos. É desse debate que nasceriam, por sua vez, a Sociedade Alemã de Sociologia (1909) e a querela em torno da neutralidade valorativa das ciências sociais, que marcou a obra de Weber e sobre a qual se debruçam suas palestras reunidas em Ciência e política: duas vocações. Cohn demostra como o grande mérito de Weber consiste em não ceder a nenhum dos polos dessa oposição em todos os casos: na filosofia, na economia, na sociologia. Não vem ao caso retomar todo o debate, mas valeria citar dois elementos importantes do mesmo no âmbito do tema aqui proposto.

Cohn demonstra como, nesse debate referente à economia, Weber, embora tenha participado da APN, sofreu grande influência de Carl Menger. Partidário de um liberalismo smithiano, Menger seria posteriormente a grande inspiração do neoliberal Friedrich Hayek. No cerne da teoria econômica de Menger estaria o argumento de que o valor seria independente da sociedade, tendo como principais determinantes a escassez e a oferta e procura (Cohn, 2003: 103). Esse argumento da escassez influenciaria profundamente o modo como Weber enxergaria a vida social e a política: como luta por recursos escassos. Também a sua teoria dos agentes carregaria a ideia do indivíduo maximizador de oportunidades segundo seus próprios interesses. A concepção de ação racional com relação a fins se orientaria, nesse sentido, em grande parte por esse debate. Do outro lado, também Schmoller e Wagner apresentariam traços utilitaristas e, embora tenham sido responsáveis pela retomada e difusão da obra de Marx naquele período, também insistiam no fato de que o valor não era socialmente determinado, mas teria como fonte a utilidade atribuída às mercadorias pelos indivíduos.4 4 Um membro não reconhecido dessa controvérsia é o próprio Marx. Embora sua crítica a Adolph Wagner não tenha sido publicada ao longo de sua vida, as “Glosas Marginais ao Tratado de economia política de Adolph Wagner” é de grande valia para uma leitura retrospectiva desse debate. Marx consegue demonstrar que o socialismo de cátedra de Wagner e sua perspectiva econômica, embora intervencionista e partidária do Estado social, resumem-se a uma revisão do argumento utilitarista que implicaria uma abordagem subjetivista do valor. Ao criticar Wagner, Marx explicita como não há uma teoria da sociedade como processo social objetivo também do outro lado da controvérsia. Nessas anotações, Marx faz uma afirmação cheia de consequências para o tema tratado aqui: “De prime abord, eu parto de “conceitos”, portanto, nem mesmo do “conceito de valor”, e, assim, de modo algum tenho também que o “dividir”. Parto da forma social mais simples na qual o produto do trabalho se apresenta dentro da sociedade atual e essa forma é a mercadoria” (Marx, 2020: 57-58). Vale notar que há aqui um elemento fundamental em ambos os lados e que Weber vai absorver completamente: a ausência de uma teoria da sociedade.5 5 Aqui está o primeiro ponto de força e de fraqueza de Weber, segundo Cohn. De um lado, trata-se de mostrar como, ao contrário da leitura de Parsons (2010), Weber e Durkheim não possuem esquemas analíticos aproximáveis, mas constituem opostos, pois o foco weberiano na conduta individual, no lado da ação social afasta-o da intenção totalizadora e sistêmica de Durkheim. Nesse ponto, a análise da ação social em “situação”, nos “campos” variados da vida social e de sua lógica interacional, faria de Bourdieu um intérprete mais acurado de Weber do que Parsons, com sua insistência nos sistemas sociais. De outro lado, a fraqueza de Weber - também sempre pensada em termos comparativos - consistiria na ausência de uma leitura do modo de produção, compreendido num sentido alargado e não economicista, e da análise das formas sociais empreendido por Marx. Tanto num caso como noutro, o agente é a célula principal da análise. Fundamental para entender o esquema weberiano, afirma Cohn (2003: 142), é a compreensão de que “o sujeito/agente é a única entidade na qual se podem efetivar relações entre sentidos diferentes de ações, nas suas múltiplas esferas de existência”.

Em linhas bastante gerais, conforme o argumento de Cohn, Weber demonstra que as ciências sociais se diferenciam das outras ciências pelo caráter significativo dos fenômenos com os quais trabalha. Nesse sentido, o único portador real de sentidos, na sociologia weberiana, é o agente individual. Weber está interessado em mostrar como se estabelecem os “nexos causais entre várias ações do mesmo agente (típico) ou entre as ações de vários sujeitos diversos num mesmo contexto” (Cohn, 2003: 123). O fato de os homens criarem valores e serem capazes de atribuir significado à sua conduta a partir dos mesmos criaria a possibilidade da racionalidade da ação, bem como de sua investigação científica. Weber trataria assim da formação e da persistência das linhas de ação - o que interessa aqui é a causalidade e a possibilidade de o indivíduo se orientar no mundo social com a máxima previsibilidade possível. Nesse sentido, Cohn chama a atenção para o modo como a noção de liberdade em Weber é fortemente conectada à racionalidade e previsibilidade uma vez que elas proporcionam a escolha entre linhas de ação alternativas. É aí que entra a ideia de situação, que vai se definir por um complexo de relações (elemento generalizador da teoria de Weber) na qual “cada ação individual orientada pelo sentido esperado da ação de outro compromete de alguma forma os agentes em presença; e esse compromisso é tanto mais forte quanto mais intensa for a presença da racionalidade” (Cohn, 2003: 142). Daí também a importância que o conceito de mercado teria na obra weberiana segundo Cohn, como “uma área de interação, na qual os agentes se defrontam em termos do sentido das suas ações. Trata-se de um caso típico de situação, em que os sentidos das ações se entrelaçam; sobretudo, constitui o caso mais extremo da situação marcada pela ação racional com referência a fins” (Cohn, 2003: 127). O processo de racionalização, isto é, de generalização da ação racional com relação a fins, é responsável pelo adensamento das teias de significados em meio às quais e a partir das quais os indivíduos se movem. Mas Weber não para aí, pois, partindo dos agentes, trabalha também com “individualidades históricas”, que se formam de modo singular com base nos processos de racionalização. Aqui Cohn (2003: 148) chama a atenção para um problema:

Definir o objeto primordial da análise em termos de uma “individualidade histórica”, cujo sentido nuclear e específico é o da racionalização, tem consequências que, associadas à ênfase posta na ação racional com referência a fins como a ação social por excelência (vale dizer, compreensível pelo seu sentido unívoco), comprometem as próprias premissas teóricas e também metateóricas de Weber.

Mais à frente, Cohn (2003: 210)Cohn, Gabriel. (2003). Crítica e resignação. Max Weber e a teoria social. São Paulo: Martins Fontes. aponta algumas das consequências das análises weberianas:

Weber associa a racionalidade da ação à liberdade. Por que, então, no final, a racionalização da ação acaba imprimindo rumos unívocos às linhas de conduta dos agentes, mesmo dentro do esquema weberiano? A resposta mais plausível é a de que isso resulta na sua concentração na ação racional de caráter instrumental, voltada para a eficácia de uma relação entre meios dados e fins não questionados; ou seja, da racionalidade formal.

Temos aqui problemas de ordens variadas. Weber pensa o mundo a partir de graus de racionalidade, como se evidencia na sua sociologia da música. Também pensa as linhas de conduta racionalizadas e a necessidade dessa racionalização para a liberdade. No entanto, como é nítido em momentos diversos de sua obra, como, por exemplo, em A ética protestante e o espírito do capitalismo, o processo de racionalização e o adensamento das teias de significado (que tornam as ações dos outros e as situações cada vez mais difíceis de se compreender, no sentido metodológico do termo) fazem com que os agentes sejam cada vez mais apenas portadores de sentidos e com que suas opções se definam de maneira cada vez mais unívoca e à revelia. Aqui trata-se do leve manto, que se torna um “habitáculo duro como o aço” [stahlhartes Gehäuse], na nova tradução de Michael Löwy (2014). Trata-se do “capitalismo vitorioso” como figura do destino, do aumento da opacidade do mundo (as linhas de ação são muitas e muito complexas) e de uma inversão entre sujeito e objeto.6 6 Conforme afirma Weber (2004: 165), “No que a ascese se pôs a transformar o mundo e a produzir no mundo os seus efeitos, os bens exteriores deste mundo ganharam poder crescente e por fim irresistível sobre os seres humanos como nunca antes na história”. Aproveito para notar a presença tímida da Ética protestante e o “espírito” do capitalismo em Crítica e resignação. Talvez com ela fosse possível extrair mais consequências ainda da leitura de Weber. De qualquer forma, é possível notar que as críticas de Cohn aos textos metodológicos de Weber, principalmente, também se estendem para o seu livro mais conhecido. Nesse caso, a racionalização como precondição da liberdade inverte-se no contrário, em não liberdade.

O segundo problema para o qual Cohn chama atenção também vem do mundo, mas é ao mesmo tempo um problema teórico com consequências importantes para a teoria de Weber. A dualidade racional/irracional com a qual trabalha Weber, ainda que de maneira heroica, e o conteúdo meramente formal dessa racionalidade levam a uma série de paradoxos. A racionalização das esferas da ação social - cada uma com a sua própria lógica intrínseca - estabelece com as outras esferas - por meio dos indivíduos - uma relação de luta e embate por domínio na vida social. Trata-se da conhecida noção de politeísmo dos valores. Chegamos, então, às aporias. Com uma definição formal da ação social e com as esferas autonomizadas, como exigir racionalidade do todo? O mundo plenamente racionalizado, conforme demonstra Weber, é enrijecido e sem liberdade. Aqui forço um pouco o argumento de Cohn, utilizando-me da desculpa fornecida por Adorno (2008a: 45)Adorno, Theodor W. (2008a). Minima moralia. São Paulo: Beco do Azougue. de que não há verdade a não ser nos exageros na teoria social, assim como na psicanálise. A questão é que Cohn aponta para um problema que é de certo modo tangenciado pelo antigo discípulo de Max Weber, Georg Lukács. Em História e consciência de classe (título que também brinca com a soma/oposição de termos, como o de Cohn), Lukács (2003: 223) retoma esse ponto: “a racionalização do mundo, aparentemente integral e penetrando até o ser físico e psíquico mais profundo do homem, encontra seu limite no caráter formal de sua própria racionalidade”. O paradoxo é que a racionalização das partes não leva à racionalidade do todo. E mais: como sustentar também um conceito de racionalização sem um conceito de razão? Daí Cohn ressaltar que não se sai impune ao introduzir o conceito de racionalização num esquema teórico que não se orienta por pretensões de tangenciar a totalidade.

Finalmente, a teoria de Weber exige que, para se construir como esfera autônoma, a ciência deve renunciar à política, e vice-versa. Não é fortuito que a figura do “destino” seja tão recorrente em Weber, que fala ora em destino [Schiksal], ora em “mais pleno de destino” [schiksalvollst]. Cohn narra um episódio no qual Weber combatia a perpetuação da empreitada submarina alemã na Primeira Guerra Mundial. Ao saber que a continuação era fato consumado, teria dito “Então, agora é o destino e com ele nos arranjamos” (Weber apud Cohn, 2003: 212). A resignação é a única posição possível diante do destino. Por isso, a antinomia entre ação e pensamento, crítica e resignação é o “paradoxo das consequências” do mundo weberiano - o que não isenta os indivíduos de sua responsabilidade, como bem salienta Cohn. Mas assenta a produção da teoria social na ideia de que ou se conhece o mundo ou se age nele. A recusa de uma teoria da sociedade em parte importante do pensamento alemão desse período cobra o seu preço, pois repõe o dilema entre “trabalhar com grandes estruturas e apanhar o social na sua minúcia” (Bastos et al., 2006Bastos, Elide Rugai et al. (2006). Entrevista com Gabriel Cohn. In: Conversas com sociólogos brasileiros. São Paulo: Editora 34.: 124). Weber é o representante mais importante dessa fase, pois não recusa as consequências de seu próprio pensamento. Mas ele tem um adversário de peso: a tradição dialética, cuja figura proeminente na leitura de Cohn é Adorno.

MARXISMO WEBERIANO?

Conforme procurei sugerir aqui, Cohn faz uma leitura imanente da obra de Weber, expondo-a em suas aporias e seus dualismos: ação/conhecimento, racionalidade/irracionalidade. Por isso, embora tenha aberto terreno para o estudo da teoria social no Brasil, Cohn não é simplesmente um “comentador”, é um crítico. O uso que faz do ensaio em Crítica e resignação, assim como em Sociologia da comunicação e no livro posterior, Weber, Frankfurt, teoria e pensamento social 1, dá pistas de como se trata, antes de qualquer coisa, de virar e revirar o objeto, de o expor à investigação imanente e ao exercício comparativo, de estudar a sociedade a partir do modo como essa se apresenta nos conceitos e nas teorias sociológicas - o que está longe de ser um exercício meramente exegético ou idealista. Isso significa que, por mais generoso com as antinomias de Weber e independente de filiações teórico-políticas que Cohn possa ser, sua crítica parte de algum lugar, lugar esse próximo da teoria crítica e de Marx.

Para contrastar Weber e a teoria dialética, no entanto, vale fazer um comentário inicial sobre a leitura corrente da relação entre ambos. Desde o livro As aventuras da dialética, publicado em 1955, a expressão “marxismo weberiano”, cunhada por seu autor, Merleau-Ponty, generalizou-se e tornou-se referência na interpretação da teoria crítica e deu frutos tão diferentes quanto as interpretações de Michael Löwy (2014)Löwy, Michael. (2014). A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano. São Paulo: Boitempo. e Jürgen Habermas (2000)Habermas, Jürgen. (2000). O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes..7 7 Löwy, sem dúvida, é bem diferente de Habermas e trabalha com a relação do marxismo com Weber a partir da dialética; opta, no entanto, por manter a expressão. O problema principal aqui foi Habermas que, ao mesmo tempo em que acusa Adorno e Horkheimer de não haver compreendido o politeísmo de valores weberiano e o incremento da capacidade normativa proporcionado pela especialização, autonomização e racionalização, assenta a análise de ambos os autores na sociologia weberiana: “Com isso, Horkheimer e Adorno variam o conhecido tema de Max Weber que, no mundo moderno, vê os antigos deuses, desmistificados por um processo de desencantamento, se levantarem de seus túmulos na forma de poderes anônimos, para renovar a luta irreconciliável dos demônios”. E, ainda, “A argumentação assume, portanto, a mesma forma no tocante à ciência, à moral e à arte: a própria separação dos domínios culturais, a decomposição da razão substancial, personificada ainda na religião e na metafísica, desvitaliza a tal ponto os momentos da razão, isolados e privados de sua coesão, que regridem a uma racionalidade a serviço da autoconservação tornada selvagem. [...] Quando se reduz a crítica da razão instrumental a esse núcleo, torna-se claro por que a Dialética do Esclarecimento tem de nivelar de modo espantoso a imagem da modernidade. A dignidade própria da modernidade cultural consiste naquilo que Max Weber denominou a diferenciação específica das esferas de valor” (Habermas, 2000: 162-167). Merleau-Ponty visava discutir a conjunção entre burocracia e reificação na obra de Lukács, mas essa análise acabou sendo transportada para a interpretação de Dialética do esclarecimento, lida a partir do conceito de “razão instrumental” de Weber. É lugar-comum atualmente, mesmo para autores marxistas, ressaltar a importância do conceito de razão instrumental em Dialética do esclarecimento.8 8 Essa leitura é muito disseminada pela recepção de Adorno orientada pela New Left norte-americana e britânica. Conforme defende Feenberg (2013: 113), “mas porque ele rejeita todas as perspectivas revolucionárias, a versão de Adorno da filosofia da práxis leva a um beco sem saída que se torna evidente no seu diálogo com Horkheimer, em 1956, sobre teoria e prática, bem como na incompreensão de Adorno em face da Nova Esquerda”. Embora Feenberg seja um intérprete de fôlego, sua participação na New Left repõe essa leitura. Vale lembrar que Adorno criticou a Nova Esquerda pela insuficiência da sua radicalidade, porque ela se pretendia o novo sujeito revolucionário e não porque recusava a práxis in toto. Essa corrente associa de maneira equivocada a dialética negativa a essa “rejeição” que Adorno teria da práxis. É essa proeminência dada ao conceito que levou Habermas a afirmar em sua opus magna, a Teoria do agir comunicativo, que a hipóstase da análise da generalização da ação instrumental no capitalismo teria levado Adorno e Horkheimer a dar um diagnóstico do fechamento do mundo social a tal ponto claustrofóbico, que teria lançado a possibilidade da crítica numa crise profunda (cf. Habermas, 2016Habermas, Jürgen. (2016). Teoria do agir comunicativo (v. I e II). São Paulo: Martins Fontes.). Crítica e resignação é anterior aos livros de Habermas, mas, ao rebater a leitura de Merleau-Ponty - a partir do adversário oculto de Weber - Cohn lança luz sobre esse debate, o que só conta a favor da atualidade crítica de sua análise ao demonstrar que Weber e a teoria crítica estão, em certo sentido, em lados opostos. Gostaria de destacar o traço cosmopolita dessa leitura. Domingues (2011)Domingues, José Maurício. (2011). Dominação e indiferença na teoria crítica de Gabriel Cohn. Dados, 54/3. já havia chamado a atenção para o exercício da teoria social em Gabriel Cohn, tendo em vista o enfrentamento das questões da teoria social sem a referência necessária ao nacional, marca do chamado pensamento social brasileiro. No entanto, ao enfrentar os comentadores de Weber e, mais ainda, a interpretação de Merleau-Ponty, Cohn adianta não só a leitura que Habermas faria sobre a relação de Weber com a teoria crítica, mas igualmente a crítica a essa leitura, que se tornaria hegemônica nas décadas seguintes. Vale lembrar que A teoria do agir comunicativo foi publicada em 1981 e O discurso filosófico da modernidade em 1985, ambos posteriores, portanto, ao livro de Cohn, de 1979. Por um lado, é certo que tanto Weber quanto a teoria crítica compartilham um diagnóstico do fechamento do mundo social. Weber a partir do diagnóstico de adensamento das teias de significado e da transformação dos agentes sociais em portadores de sentido, e a teoria crítica a partir da investigação da inversão entre razão e irracionalidade e dominação, do caráter totalitário do esclarecimento, dos diagnósticos sobre o capitalismo monopolizado, a indústria cultural e etc. Mas sua postura diante do fechamento é bastante diversa.

Dialética do esclarecimento tem como um de seus objetivos centrais compreender o modo como o desenvolvimento da razão - repensada de modo alargado, enquanto processo social que envolve igualmente a dimensão da experiência - levou à sua transmutação em barbárie, cujo ponto exemplar seria o nazismo, mas que de modo algum a ele se restringe. No prefácio, Adorno e Horkheimer (2006: 11)Adorno, Theodor W. & Horkheimer, Max. (2006). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. afirmam: “no colapso atual da civilização burguesa, o que se torna problemático não é apenas a atividade mas o sentido da ciência”. A aporia confrontada é o próprio processo de autodestruição do esclarecimento, processo que deve ser enfrentado tendo em vista o fato de que “assim como o esclarecimento exprime o movimento real da sociedade burguesa como um todo sob o aspecto da encarnação viva de sua Ideia em pessoas e instituições, assim também a verdade não significa meramente a consciência racional mas, do mesmo modo, a figura que esta assume na realidade efetiva” (Adorno & Horkheimer, 2006: 11).

Os autores afirmam ainda que a única saída possível é o esclarecimento tomar posse de si mesmo, tomar consciência de seus elementos regressivos, para que o atual estado de coisas não se perpetue. Aqui há uma série de questões que chamam a atenção, ainda que delas só possamos tratar brevemente: o esclarecimento é compreendido enquanto um processo social que exprime o movimento da sociedade burguesa; a irracionalidade é resultado do próprio desdobramento do esclarecimento, portanto, é racionalização que produz irracionalidade. Ou seja, a irracionalidade do todo não tem a ver apenas com a autonomização das esferas de ação, mas com o fato de que elas permanecem ligadas pelo mesmo processo social: a contradição capitalista. A racionalização do todo tem na sua raiz uma irracionalidade. O mercado, nesse sentido, não seria apenas a situação de predominância da razão instrumental, mas um processo que mantém os homens unidos a partir de seus interesses antagônicos.

Nesse sentido, Adorno é uma espécie de antiWeber e por isso pode servir como anteparo não porque não leva em consideração os problemas que Weber levantou, mas porque mergulha fundo na aporia, a ponto de a dissolver. Em Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer (2006: 78) discutem a passagem do esclarecimento à dominação:

Com o desenvolvimento do sistema econômico, no qual o domínio do aparelho econômico por grupos privados divide os homens, a autoconservação confirmada pela razão, que é o instinto objetualizado do indivíduo burguês, revelou-se como um poder destrutivo da natureza, inseparável da autodestruição. Esses dois poderes passaram a se confundir turvamente. A razão pura tornou-se irrazão, o procedimento sem erro e conteúdo.

Ou seja, trata-se de mostrar como a formalização da razão, sua concepção instrumental, fez parte do próprio processo de desenvolvimento da sociedade burguesa. O caráter formal ao qual a racionalidade foi reduzida não é só uma perspectiva teórica, mas uma realidade da sociedade burguesa - daí a importância do diagnóstico de Weber. Mas a teoria crítica não para por aí. A categoria de esclarecimento - compreendida como um alargamento da razão enquanto processo social, uma espécie de “espírito” hegeliano lido de maneira materialista e bem passado pelo crivo de Marx - garante a possibilidade de recusar fatos consumados, posto que o caráter contraditório da realidade nunca a apresenta como definitiva, mas como processo social − processo social que pode a qualquer momento ser revertido. Afirmar que a solução para a transformação do esclarecimento em barbárie está no próprio esclarecimento consciente de si mesmo e das forças regressivas que lhe são inerentes não é uma solução à la barão de Münchhausen, de sair do pântano puxando-se pela própria peruca; ao pensar a razão enquanto esclarecimento, enquanto uma forma social, Adorno e Horkheimer, nesse caso, são capazes de dar conta de um problema que Weber não dá: a Razão não é um mero anteparo idealista - sistêmico e totalizador - porque é figura social; por isso as saídas para as suas aporias estão dadas no próprio processo. A antinomia é estanque e dualista, a contradição é dinâmica. Uma teoria da sociedade deve lidar com este problema: compreender como o todo se forma a partir e, em algum nível, a despeito das partes sem fazer com que a teoria emule o movimento totalitário da formação desse próprio todo. Por isso, o exercício da crítica, menos que uma recomposição da totalidade mira, ao contrário, a decomposição do seu próprio objeto.

Não se trata, portanto, de uma oposição entre análises macrossociológicas e microssociológicas, mas da questão da relação entre universal e particular compreendida aqui como movimento da própria realidade e não como problema conceitual. Por isso, Adorno ressalta em diversos momentos que a busca da totalidade deve se dar como “ponto de fuga”. Recorrendo a uma imagem da pintura - o aparente encontro de duas ou mais retas que está na base da perspectiva -, Adorno (2008b)Adorno, Theodor W. (2008b). Philosophische Elemente einer Theorie der Gesselschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag. discute como o esforço do conhecimento envolve a compreensão de que o processo social capitalista tende à totalização - a sociedade se forma no desdobramento desse processo -, mas deve estar ao mesmo tempo ciente do que é suprimido por ele em todos os seus níveis. É essa consciência que permite a Adorno redescobrir a sociedade na maneira como vestimos os nossos chinelos ou fechamos a porta, como o faz em Minima moralia. Daí o estudo, de raiz marxiana, das formas sociais, das formas que as relações sociais assumem sob determinadas condições e em determinados períodos.

Por isso, não seria possível pensar nem a teoria crítica, nem a obra de Gabriel Cohn em termos de um “marxismo weberiano”. Cohn demonstra como a sociologia weberiana tem como um de seus pontos mais fortes ser ela própria um instrumento - um instrumento do qual podemos fazer uso, sem nos ater às suas premissas, que trazem com elas todas as aporias já mencionadas. Ao mesmo tempo, não se trata de pensar toda teoria como instrumento, pois a dialética, embora possa ser considerada um método (Lukács, 2003Lukács, Georg. (2003). História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes.), vai muito além disso, na direção da transformação social.

A resignação é a consequência lógica de um esquema teórico que opõe pensamento e ação de maneira estanque e uma espécie de figura subjetiva do destino. Para Adorno, a própria noção de destino, com a qual trabalha Weber, é uma figura da irracionalidade, que aparece como uma espécie de retorno do mito numa sociedade que se pensa desmitificada. Ainda que identifique uma tendência de fechamento para a possibilidade de ação social (e revolucionária) no mundo, o pensamento de Adorno, ao não opor ação e pensamento, apresenta uma força disruptiva ausente em Weber. Na conferência “Resignação”, proferida em 1969 pouco antes de sua morte, Adorno (2018: 114)Adorno, Theodor W. (2018). Resignação. Cadernos de filosofia alemã, 23. argumentava que “o pensamento aberto aponta para além de si mesmo. Sendo ele próprio um comportamento, uma figura [Gestalt] da práxis, ele tem mais afinidade com a práxis transformadora do que aquele que obedece em nome da práxis”. A figura da crítica na tradição de Marx é uma figura da práxis. Como no provérbio polonês, que Adorno cita em Minima moralia, diante do fechamento do todo, não há resignação, mas o desafio: “abra-te sésamo, eu quero sair”; sua teoria crítica, como a de Cohn, é aberta. Resignar-se significaria, nesses termos, aceitar a impotência do pensamento diante da realidade. No que se refere a Gabriel Cohn, ficamos com a crítica. A resignação fica para os weberianos.

NOTAS

  • 1
    A recepção da obra de Gabriel Cohn, nesse sentido, é bastante curiosa, ainda mais se considerarmos sua leitura no âmbito da esquerda marxista autodeclarada: “acusado” de ser weberiano na sua defesa de mestrado por Florestan Fernandes (Bastos et al., 2006: 116-117), Cohn também recebe essa caracterização de Francisco de Oliveira (2008: 45)Oliveira, Francisco de. (2008). A paixão tranquila. In: Waizbort, Leopoldo (org.). A ousadia crítica: ensaios para Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Azougue.. Ridenti (2008: 35)Ridenti, Marcelo. (2008). Para ler Gabriel Cohn. In: Waizbort, Leopoldo (org.). A ousadia crítica: ensaios para Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Azougue . reconhece sua filiação dialética, mas atribui ao nosso autor um “marxismo weberiano” à la Michael Löwy. A atribuição de “weberiano” (impossível do ponto de vista da análise que o próprio Cohn faz de Weber, cuja grande contribuição seria o método) não deixa de chamar a atenção para a identificação imediata entre o pesquisador e seu objeto, o que talvez seja testemunha do ainda escasso exercício da teoria social entre nós, apesar da grande potência do pensamento social brasileiro no âmbito das ciências sociais. Numa entrevista, Cohn destaca esse aspecto da pesquisa em teoria social: “Por que eu vou dedicar tempo e estudo a um autor? Porque de alguma maneira ele dialoga com as minhas referências e com o mundo de modo relevante, não porque seu pensamento me agrade - ou porque o estado do mundo me agrade” (Bastos et al., 2006Bastos, Elide Rugai et al. (2006). Entrevista com Gabriel Cohn. In: Conversas com sociólogos brasileiros. São Paulo: Editora 34.: 123).
  • 2
    Conforme fica explícito na seguinte passagem: “é evidente que há um ponto comum entre as preocupações de Marx e Weber, e que não deve ser subestimado: a posição central atribuída aos problemas da sociedade capitalista na obra de ambos, ainda que com a diferença de que num caso isso conduz a uma crítica revolucionária e no outro a uma crítica marcada pela resignação”.(Cohn, 2003Cohn, Gabriel. (2003). Crítica e resignação. Max Weber e a teoria social. São Paulo: Martins Fontes.: 118). Aqui temos dois polos: crítica e revolução e crítica e resignação, mas ambos são igualmente inclusos no âmbito do exercício da crítica.
  • 3
    Não há nada que entregue mais um autor que suas epígrafes. A primeira edição (1979) de Crítica e resignação era aberta com Weber − “Faço ciência para saber quanto posso suportar” -, Nietzsche - “quanta verdade suporta, quanta verdade ousa um espírito?” - e Rilke - “Quem fala em vencer? Sobrelevar é tudo”. Na segunda edição do livro, em 2003, Cohn abandona Weber e Nietzsche e opta pela curiosa frase de García Lorca, tirada do poema “Canción de Jinete” - “Aunque sepa los caminos/Yo nunca llegaré a Córdoba” que só então é seguida pela frase de Rilke em diferente tradução - “Quem fala em vencer? Suportar é tudo”. O que antes estava em harmonia parece ser perturbado por uma dissonância na última edição. A frase de Rilke alude ao “heroísmo de Weber”, à posição existencialista, voluntarista de que fazer ciência é suportar a verdade. Traço que, como nota o próprio Cohn, opõe Weber à tradição freudiana de aceitarmos o que somos ou, poder-se-ia dizer, à tradição marxista, de transformarmos o que somos. O verso de Lorca, no entanto, aponta para outra ideia: saber os caminhos não necessariamente leva ao destino. De um lado, o trabalho de Sísifo do conhecimento, de outro, a pergunta: o que é preciso para chegar a Córdoba?
  • 4
    Um membro não reconhecido dessa controvérsia é o próprio Marx. Embora sua crítica a Adolph Wagner não tenha sido publicada ao longo de sua vida, as “Glosas Marginais ao Tratado de economia política de Adolph Wagner” é de grande valia para uma leitura retrospectiva desse debate. Marx consegue demonstrar que o socialismo de cátedra de Wagner e sua perspectiva econômica, embora intervencionista e partidária do Estado social, resumem-se a uma revisão do argumento utilitarista que implicaria uma abordagem subjetivista do valor. Ao criticar Wagner, Marx explicita como não há uma teoria da sociedade como processo social objetivo também do outro lado da controvérsia. Nessas anotações, Marx faz uma afirmação cheia de consequências para o tema tratado aqui: “De prime abord, eu parto de “conceitos”, portanto, nem mesmo do “conceito de valor”, e, assim, de modo algum tenho também que o “dividir”. Parto da forma social mais simples na qual o produto do trabalho se apresenta dentro da sociedade atual e essa forma é a mercadoria” (Marx, 2020Marx, Karl. (2020). Últimos escritos econômicos. São Paulo: Boitempo.: 57-58).
  • 5
    Aqui está o primeiro ponto de força e de fraqueza de Weber, segundo Cohn. De um lado, trata-se de mostrar como, ao contrário da leitura de Parsons (2010)Parsons, Talcott. (2010). A estrutura da ação social: um estudo de teoria social com especial referência a um grupo de autores europeus. V. II. Weber. Petrópolis: Vozes., Weber e Durkheim não possuem esquemas analíticos aproximáveis, mas constituem opostos, pois o foco weberiano na conduta individual, no lado da ação social afasta-o da intenção totalizadora e sistêmica de Durkheim. Nesse ponto, a análise da ação social em “situação”, nos “campos” variados da vida social e de sua lógica interacional, faria de Bourdieu um intérprete mais acurado de Weber do que Parsons, com sua insistência nos sistemas sociais. De outro lado, a fraqueza de Weber - também sempre pensada em termos comparativos - consistiria na ausência de uma leitura do modo de produção, compreendido num sentido alargado e não economicista, e da análise das formas sociais empreendido por Marx.
  • 6
    Conforme afirma Weber (2004: 165), “No que a ascese se pôs a transformar o mundo e a produzir no mundo os seus efeitos, os bens exteriores deste mundo ganharam poder crescente e por fim irresistível sobre os seres humanos como nunca antes na história”. Aproveito para notar a presença tímida da Ética protestante e o “espírito” do capitalismo em Crítica e resignação. Talvez com ela fosse possível extrair mais consequências ainda da leitura de Weber. De qualquer forma, é possível notar que as críticas de Cohn aos textos metodológicos de Weber, principalmente, também se estendem para o seu livro mais conhecido.
  • 7
    Löwy, sem dúvida, é bem diferente de Habermas e trabalha com a relação do marxismo com Weber a partir da dialética; opta, no entanto, por manter a expressão. O problema principal aqui foi Habermas que, ao mesmo tempo em que acusa Adorno e Horkheimer de não haver compreendido o politeísmo de valores weberiano e o incremento da capacidade normativa proporcionado pela especialização, autonomização e racionalização, assenta a análise de ambos os autores na sociologia weberiana: “Com isso, Horkheimer e Adorno variam o conhecido tema de Max Weber que, no mundo moderno, vê os antigos deuses, desmistificados por um processo de desencantamento, se levantarem de seus túmulos na forma de poderes anônimos, para renovar a luta irreconciliável dos demônios”. E, ainda, “A argumentação assume, portanto, a mesma forma no tocante à ciência, à moral e à arte: a própria separação dos domínios culturais, a decomposição da razão substancial, personificada ainda na religião e na metafísica, desvitaliza a tal ponto os momentos da razão, isolados e privados de sua coesão, que regridem a uma racionalidade a serviço da autoconservação tornada selvagem. [...] Quando se reduz a crítica da razão instrumental a esse núcleo, torna-se claro por que a Dialética do Esclarecimento tem de nivelar de modo espantoso a imagem da modernidade. A dignidade própria da modernidade cultural consiste naquilo que Max Weber denominou a diferenciação específica das esferas de valor” (Habermas, 2000Habermas, Jürgen. (2000). O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes.: 162-167).
  • 8
    Essa leitura é muito disseminada pela recepção de Adorno orientada pela New Left norte-americana e britânica. Conforme defende Feenberg (2013: 113)Feenberg, Andrew. (2013). A realização da filosofia: Marx, Lukács e a Escola de Frankfurt. Verinotio revista on-line de filosofia e ciências humanas, 18., “mas porque ele rejeita todas as perspectivas revolucionárias, a versão de Adorno da filosofia da práxis leva a um beco sem saída que se torna evidente no seu diálogo com Horkheimer, em 1956, sobre teoria e prática, bem como na incompreensão de Adorno em face da Nova Esquerda”. Embora Feenberg seja um intérprete de fôlego, sua participação na New Left repõe essa leitura. Vale lembrar que Adorno criticou a Nova Esquerda pela insuficiência da sua radicalidade, porque ela se pretendia o novo sujeito revolucionário e não porque recusava a práxis in toto. Essa corrente associa de maneira equivocada a dialética negativa a essa “rejeição” que Adorno teria da práxis.

Referências bibliográficas

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  • Sohn-Rethel, Alfred. (1978). Intellectual and Manual Labour: a critique of epistemology London: The Macmillan Press LTD.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2020
  • Aceito
    22 Jun 2020
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