Resumo
O dissenso interno às ciências é importante para mudanças e correções de rumo no desenvolvimento sociotécnico do cuidado à saúde-doença. Este trabalho discute a recomendação do rastreamento do câncer de mama como um caso de dissenso interno à biomedicina e à saúde pública, o qual merece aplicação de prevenção quaternária (P4), ou seja, a ação de proteger pessoas de danos iatrogênicos e da medicalização desnecessária. A partir de uma revisão crítica-narrativa dos principais aspectos envolvidos na polêmica científica sobre esse rastreamento, argumentamos que há evidências crescentes tornando no mínimo duvidoso - senão negativo - o seu balanço benefícios-danos, devido à dimensão dos maiores danos (sobrediagnósticos e sobretratamentos) e à redução dos benefícios estimados até sua nulidade. Tal dissenso tem sido ofuscado por recomendações oficiais, informes tendenciosos, interesses econômicos e corporativos, crenças ilusórias, expectativas fictícias e pelo paradoxo da popularidade. Argumentamos que a P4 nesse caso significa suspender ou inverter a recomendação positiva da mamografia periódica. Isso constitui um grande desafio institucional, social e político no contexto atual de preventivismo e de apelos morais/emocionais associados. Este tema é um exemplo da necessidade de exploração do dissenso interno às ciências, como via de melhoria crítica de práticas biomédicas preventivas disseminadas e redução de iniquidades em saúde.
Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde; Prevenção Quaternária; Prevenção de Doenças; Ecologia de saberes
Abstract
Internal dissent within the sciences is important for changes and course corrections in the sociotechnical development of health-disease care. This work discusses the recommendation of breast cancer screening as a case of internal dissent in biomedicine, which deserves the application of quaternary prevention (P4): action to protect people from iatrogenic damage and overmedicalization. Based on a critical narrative review of the main aspects involved in the scientific controversy over this screening, we argue that there is growing evidence making its benefit-harm balance at least doubtful, if not negative, due to the dimension of the greatest damage (overdiagnosis and overtreatment) and the reduction of the estimated benefits, until its nullity. Such dissent has been clouded by official recommendations, biased reports, economic and corporate interests, illusory beliefs, fictitious expectations, and the popularity paradox. We argue that P4 in this case means suspending or reversing the positive recommendation for periodic mammography. This means a great institutional, social and political challenge, in the current context of preventivism and moral/emotional appeal associated. This theme is an example of the need to explore the internal dissent in the sciences as a means of critically improving disseminated preventive biomedical practices and reducing inequalities in health.
Keywords: Primary Health Care; Quaternary Prevention; Disease Prevention; Ecology of Knowledge
Introdução
A construção da ecologia de saberes (Santos; Meneses, 2010) no cuidado à saúde-doença geralmente é pensada envolvendo a abordagem não colonialista de saberes/práticas não biomédicos, agrupados na etiqueta “medicinas tradicionais, complementares e integrativas (MTCI)” (OMS, 2013). A relação da biomedicina com as MTCI tem sido de apropriação e violência colonizadoras (Guimarães et al., 2020), mas uma descolonização dos saberes/práticas em saúde implica também em descolonizar as ciências, valorizando a pluralidade de métodos e valores e os dissensos no seu interior, por vezes, pouco visíveis.
Certos saberes científicos permanecem limitados e suprimidos no seu desenvolvimento epistêmico-técnico, bem como no seu desdobramento social, por não se adequarem às estratégias de pesquisas e saberes/práticas hegemônicos (Lacey, 2014). Isso é comum no campo dos problemas sociais, sanitários e ecológicos, originados na aplicação disseminada de tecnologias derivadas de saberes científicos dominantes. Um exemplo são as pesquisas agroecológicas, as quais revalorizam os saberes/práticas agrícolas tradicionais (Lacey, 2015) e também desenvolvem a ciência. Porém, essas pesquisas são marginalizadas pela agricultura industrializada convencional e pelo agronegócio, fortes forças científicas, econômicas e políticas (Mendonça, 2015). A exploração do dissenso interno às ciências é importante para facilitar mudanças nos rumos do desenvolvimento científico e sua aplicação em redes sociotécnicas (Latour, 1994). Trata-se de garimpar análises críticas de saberes/práticas hegemônicos, visando corrigir/evitar suas consequências danosas.
A prevenção quaternária (P4) é uma prática e um conceito desenvolvido por médicos da atenção primária à saúde (APS) para proteger seus usuários de danos iatrogênicos e da medicalização desnecessária. Ela foi definida como uma ação para identificar o paciente em risco de sobremedicalização, além de protegê-lo de uma nova invasão médica e sugerir intervenções eticamente aceitáveis (Bentzen, 2003).
Doutra parte, o rastreamento (realização de testes diagnósticos em pessoas assintomáticas) com mamografia para a prevenção do câncer de mama se tornou um dissenso científico acirrado, envolvendo a pequenez dos seus benefícios e o reconhecimento de maior magnitude, gravidade e irreversibilidade dos seus danos iatrogênicos. Tal dissenso é pouco discutido no Brasil pela saúde pública e pelos médicos (da APS, ginecologistas, mastologistas, oncologistas) com a sociedade e as usuárias, e menos ainda pelas mídias.
Nosso objetivo é discutir a aplicação da P4 ao rastreamento mamográfico. Metodologicamente, oferecemos uma revisão crítica da literatura selecionada intencionalmente para dar visibilidade e articular a P4 com a polêmica científica sobre a recomendação desse rastreamento. Ambos são pouco conhecidos e analisados pela comunidade sanitária e das ciências sociais em saúde brasileira.
O texto se inicia apresentando sinteticamente a P4, abordando os problemas do rastreamento mamográfico. Em seguida, é sintetizado um esboço de compreensão da persistência da sua recomendação positiva às mulheres, vigente em quase todos os países ocidentais de alta renda. Segue com a sugestão de um resultado da aplicação da P4 ao tema e, finalmente, com a indicação de desafios para a sua concretização.
Devido à vasta literatura científica reafirmando avaliações positivas desse rastreamento e ao disseminado estado de opinião douta e leiga sobre seu alto valor, focamos a discussão na linha provavelmente minoritária sobre o tema, a fim de fortalecer a argumentação. Não se trata, portanto, de uma revisão abrangente da literatura relacionada, mas uma revisão crítica especificamente voltada para um problema: a existência da polêmica na avaliação e recomendação desse rastreamento, crescente há duas décadas (Schneider, 2018). Aceitamos a significativa relevância/volume de estudos divergentes dos aqui abordados, mas ficará claro ao longo do texto que uma revisão geral ou sistemática é desnecessária para nosso objetivo.
Prevenção quaternária: conter o intervencionismo biomédico e reduzir seus danos
O antigo lema hipocrático primum no nocere sempre foi remetido à intimidade dos profissionais (Smith, 2005). A P4 tem a originalidade de conclamar profissionais e gestores, individual e coletivamente, a uma maior qualificação da atividade clínico-sanitária, que é um risco para a saúde (Makary, 2016).
A P4 é importante na prevenção (Tesser, 2017). Armstrong (1995) destacou o deslocamento do foco da biomedicina do corpo e das doenças para o futuro, além do monitoramento e controle dos fatores de risco, tornando-se uma “medicina de vigilância”. Com isso, tem-se expandido o número de indivíduos saudáveis convertidos em doentes crônicos, usuários de cuidados preventivos, o que está associado com interesses econômicos (Norman et al., 2017; Hofmann, 2018a).
Enquanto os benefícios das ações preventivas se limitarão a um grupo pequeno de pessoas no futuro, via cálculos probabilísticos, os danos são uma potencialidade no presente, com consequências vitalícias não raras (Raffle et al., 2007). A virada preventiva da medicina fez com que lideranças internacionais da APS tenham questionado a proeminência das práticas preventivas, as quais passaram da saúde pública e das políticas sociais para a clínica, os rastreamentos e os riscos individuais (Heath, 2005; Gervas et al., 2008; Starfield et al., 2008).
Dois conceitos associados à P4 se destacam para nosso objetivo: sobrediagnóstico e “disease mongering”. O primeiro é definido como o diagnóstico corretamente realizado de uma doença que, no entanto, não se manifestaria na vida da pessoa (Welch et al., 2011a). O sobrediagnóstico decorrente dos rastreamentos - sobretudo de cânceres - é um achado empírico epidemiológico (Welch; Fisher, 2017).
Observa-se, retrospectivamente, uma maior incidência da doença nos grupos rastreados, sem uma proporcional redução da morbimortalidade nesses grupos. Essa redução deveria ocorrer se as doenças identificadas em fase assintomática pelo rastreamento fossem se manifestar. A explicação é que parte dessas doenças diagnosticadas pelos rastreamentos não apareceriam ou desapareceriam (Welch et al., 2011a). Não é possível identificar individualmente as pessoas sobrediagnosticadas, portanto, todas recebem tratamento, chamado sobretratamento (Tesser; D’Ávila, 2016).
Os sobrediagnósticos ocorrem também com o desenvolvimento de maior resolução e sensibilidade das tecnologias diagnósticas e o seu maior uso nas investigações clínicas dos adoecidos (Hofmann, 2018a). Outra fonte de sobrediagnósticos são mudanças nos critérios diagnósticos das doenças e de situações de alto risco, que ampliam o espectro do patológico (Tesser, 2017).
A observação de grandes proporções de sobrediagnósticos em cânceres como os de próstata, mama e tireoide, por exemplo, tornou o sobrediagnóstico uma realidade problemática para a saúde pública (Bulliard; Chiolero, 2015; Moynihan et al., 2012) e para a APS (Kale; Korenstein, 2018; Singh et al., 2018; Adami, et al., 2019; Treadwell e McCartney, 2016; Dickinson et al., 2018). Os sobrediagnósticos geram desvio de atenção dos profissionais e de recursos dos doentes para pessoas sadias, parte das quais não se beneficiam das intervenções e são prejudicadas, com desperdícios e iniquidades, sob nobres intenções de agir preventivamente (Heath, 2013).
Há fatores extracientíficos e interesses escusos dirigindo o desenvolvimento tecnológico e do saber médico em direções intervencionistas, o que se tornou declarado no conceito de ‘disease mongering’ (tráfico ou comércio de doenças), que denuncia essa manipulação sob várias formas: criação de doenças ou pseudodoenças para posterior venda de tecnologias diagnósticas e terapêuticas; redução dos pontos de corte diagnóstico ou de estratificações de risco (para hipertensão, diabetes, osteopenia etc.), englobando grandes parcelas populacionais como doentes; incorporação de situações de alto risco (assintomáticas) em patologias (Tesser; Norman, 2016); manejo progressivamente agressivo e medicamentoso de fatores de risco como se fossem doenças; conversão de eventos banais em sintomas a serem tratados; manuseio de estatísticas e definições de doenças para que sejam detectadas em grandes contingentes de pessoas etc. (Heath, 2006; Miguelote, Camargo Jr., 2010).
Em 2006 ocorreu o primeiro congresso internacional sobre “disease mongering” (Moynihan; Henry, 2006), reforçando denúncias anteriores das manipulações da indústria farmacêutica (Moynihan et al., 2002). O problema da influência dos conflitos de interesse e dos interesses econômicos na produção do saber médico não é resolvido declarando-os. Eles são uma força poderosa a prejudicar o desenvolvimento científico e a prática clínica (Robertson et al., 2012), que precisa ser contida.
A P4 significa uma resistência ao domínio do mercado sobre a prática médica e seu saber, mas o seu discurso é ainda genérico, pouco difundido e precisa ser desdobrado em maior aplicação institucional e clínica, o que está em lento desenvolvimento (Depallens et al., 2020). Conceitos inovadores, embora pouco praticados, vem sendo desenvolvidos para proteção, evitação e desmonte do excesso de intervenções, tais como: desdiagnóstico (Marshal, 2019; Lea; Hofmann, 2021), desprescrição (Sawan et al., 2020; Gómez-Santana et al., 2015), revisão de diagnóstico (Moynihan et al., 2019), desimplementação (Wolf et al., 2021), desativação (Williams et al., 2017). Para dar concretude e exemplificar essa temática, abordamos o caso do rastreamento mamográfico.
Os problemas do rastreamento mamográfico do câncer de mama
Questionado desde 1995 (Wright; Muller, 1995), o rastreamento mamográfico prometia reduzir significativamente a mortalidade por câncer de mama. Nas últimas décadas, ensaios clínicos e estudos observacionais nas populações rastreadas indicaram progressivamente menor impacto estimado: pequena ou nula redução na mortalidade específica por câncer de mama, sem redução da mortalidade geral ou por todos os cânceres nas mulheres (Gøtzsche et al., 2013); marginal e desproporcional redução de incidência das formas avançadas desse câncer, com grande ampliação da incidência de formas iniciais; além de ampliação de mastectomias totais nas mulheres. Vários estudos observacionais mostram ausência de redução de mortalidade específica atribuível ao rastreamento (Autier, 2018). A significativa redução da mortalidade por esse câncer ao longo do tempo deveu-se à melhoria no tratamento, que quanto mais avança e se aperfeiçoa mais reduz o marginal benefício do rastreamento (Welch; Passow, 2014; Christiansen et al., 2022).
Danos significativos foram registrados, mensuráveis e imensuráveis (Harris et al., 2014): falsos positivos abundantes - a grande maioria dos rastreamentos positivos (Raffle et al., 2007); dor derivada da realização dos exames; ansiedade e danos psicossociais derivados dos falsos-positivos; cascatas de intervenção; e o maior dos danos: os sobrediagnósticos.
Se o rastreamento reduz a mortalidade por esse câncer em 15% e o sobrediagnóstico é de 30%, para cada morte evitada, 10 mulheres serão sobrediagnosticadas (Gøtzsche et al., 2013). Outros estudos, considerando 20% de redução da mortalidade atribuível ao rastreamento, estimam haver três sobrediagnosticadas para cada morte reduzida, como informam os folhetos governamentais de orientação às mulheres do Brasil, Inglaterra e Canadá (Tesser 2023). Uma revisão recente estimou em 1:4 essa proporção (Canelo-Aybar et al., 2021), ou seja, um diagnóstico via rastreamento tem 80% de chance de ser prejudicial (sobrediagnóstico) e 20% de beneficiar. Kim e Lannin (2022) estimaram essa relação em 1:5 - chance de 17% de beneficiar e 83% de prejudicar.
Gøtzsche et al. (2013) mencionaram outro dano: há um excesso de mortalidade de 27% por doenças cardíacas e de 78% por câncer de pulmão associados à radioterapia usada em grande parte dos tratamentos de câncer de mama, o que é importante quando mulheres são sobrediagnosticadas. Isso levou Baum (2013) a estimar que aproximadamente uma a três mortes adicionais podem ser esperadas por outras causas para cada morte evitada pelo rastreamento, o que torna negativo o balanço benefícios-danos em relação estritamente às mortes.
Note-se que essas estimativas vêm de ensaios clínicos, que superestimaram a redução da mortalidade, devido a problemas metodológicos (Gøtzsche et al., 2013; Autier, 2018), cuja discussão não cabe neste espaço. Embora os ensaios clínicos sejam considerados o padrão-ouro metodológico para pesquisa sobre eficácia de intervenções em saúde, como há quatro décadas esse rastreamento se disseminou em vários países, os seus resultados nas populações não podem ser desconsiderados; eles são importantes, pois é ali que deve ocorrer o efeito benéfico. O resultado na realidade das populações interessa mais que as boas intenções preventivistas, a teoria ou os experimentos (ensaios clínicos). Estudos observacionais comparando a redução da mortalidade específica por câncer em regiões com datas de início do rastreamento distintas, com taxa de adesão diferentes e entre populações rastreadas e não rastreadas indicam uma redução atribuível ao rastreamento nula (Autier, 2018); enquanto outros apontam reduções marginais (Tesser, 2023).
Para complicar, novas tecnologias de rastreamento têm sido propostas com base em melhorias apenas nas taxas de detecção. Como são acrescentadas às atuais, a sua maior sensibilidade produz novos sobrediagnósticos (Jatoi; Pinsky, 2021) para além dos já atualmente produzidos (Welch, 2019).
O rastreamento mamográfico gera ainda uma ‘vulnerabilidade patogênica’: dano decorrente de ação visando melhorar uma situação que exacerba vulnerabilidades existentes ou cria novas, nas quais a agência de indivíduos é limitada ou prejudicada. Os rastreamentos mamográficos visam minimizar padecimentos derivados da vulnerabilidade ao câncer, mas criam vulnerabilidade patogênica ao sobrediagnóstico, prejudicando a agência das mulheres pelas fortes pressões para rastrear; pelas controvérsias que, se acessadas, dificultam uma decisão informada; pelas barreiras várias para decisão informada; tornando-a uma opção eticamente inaceitável (Rogers, 2018). As sobrediagnosticadas se sentiam bem e sua confiança é abalada pelo diagnóstico, com consequências duradouras (Walker; Rogers, 2017).
Pesquisadores afirmam que os sobrediagnósticos, associados aos outros danos, frente aos pequenos ou nulos benefícios, sugerem revisão ou uma moratória desse rastreamento (Schneider, 2018; Heath, 2009; Rogers, 2018; Rogers et al., 2019; Adami et al., 2019) ou ao menos parar de oferecê-lo às mulheres (Dickinson et al., 2018). Todavia, as instituições médicas e de saúde pública nacionais mantém a recomendação positiva para mulheres, na maioria após os 50 anos, realçando a necessidade de informação sobre danos e benefícios, incluindo o Brasil (Migowski et al., 2018), com exceção da Suíça (Biller-Andorno; Jüni, 2014).
Compreendendo a manutenção da recomendação positiva
Como entender a persistência da recomendação positiva após mais de uma década de dissenso? Para além da ampla literatura científica defendendo a recomendação, há fatores complexos: o paradoxo da popularidade, a manipulação da linguagem explorando valores morais, os conflitos de interesse (sobretudo econômicos) e o pano de fundo do preventivismo disseminado nas sociedades pela saúde pública e a biomedicina.
Armstrong (1995) identificou a transição para uma ‘medicina de vigilância’, caracterizada pelo monitoramento de populações normais, obscurecimento das distinções entre saúde e doença e foco nos ‘fatores de risco’. Os rastreamentos são coerentes com tal vigilância, e a participação neles pode ser vivida como uma obrigação moral e social (Armstrong, 2019).
Para Carter (2021), essa persistência deriva também de uma ressonância cultural, na qual os futuros imaginários têm grande importância; são abertos e incertos e as decisões se dão em profunda incerteza. Sob a incerteza, precisamos de algo para guiar a ação e ‘expectativas fictícias’ fornecem essa orientação. Tais expectativas ficam entre o fato e a imaginação, podem ser compartilhadas e coordenar a ação, são sérias - não são inventadas - e enfatizam exageros comumente envolvidos em expectativas ficcionais: enfatizam os potenciais benefícios e obscurecem os danos, vindo com a legitimidade da biomedicina e da saúde pública; além de que os processos de formação de diretrizes e arranjos financeiros tecnológicos envolvidos são importantes fatores estruturais pró-rastreamento (Collyer et al., 2016).
O paradoxo da popularidade (Welch et al., 2011a) se refere ao fato de que as mulheres mais prejudicadas pelo rastreamento (sobrediagnosticadas) se sentem beneficiadas. Como não se consegue identificar individualmente quem foi sobrediagnosticada (Welch et al., 2011a), todas as sobretratadas sentem-se salvas, embora tenham sido mutiladas cirurgicamente e prejudicadas com quimio/radioterapia desnecessárias. Há um círculo vicioso: quanto mais rastreamentos, mais sobrediagnósticos haverá e mais o rastreamento parecerá erroneamente salvar vidas, dada a cura e ótima evolução das sobrediagnosticadas (Brodersen et al., 2018), tornando-se mais popular. Além disso, o entorno institucional e sociocultural só fornece feedback positivo para profissionais e pacientes que rastreiam (Ransohoff et al., 2002).
Tal paradoxo afeta também provavelmente os profissionais que tratam dessas mulheres. O aumento na incidência de câncer de mama pós-rastreamento (aproximadamente 30% em outros países) faz parecer que ele ficou mais comum, mas o grosso disso é artificialmente produzido pelo rastreamento via sobrediagnósticos (Welch et al., 2016). Pode haver a percepção nos profissionais de que os prognósticos melhoraram após os rastreamentos, mas isso derivou mais de melhorias no tratamento e da inclusão no cuidado clínico de casos rastreados que não adoeceriam (sobrediagnosticados), diluindo nesse conjunto inflado os casos avançados/graves e aumentando o número de mulheres de ótimo prognóstico tratadas, que absorvem grande parte do tempo e do cuidado clínico e cirúrgico. Os casos avançados são assim percebidos como mais raros, porque diluídos nos cânceres iniciais rastreados. A diluição mencionada torna o cuidado profissional mais confortável e recompensador de atender, mais leve emocionalmente, satisfatório e resolutivo, ao curar maiores proporções de pacientes devido ao ótimo prognóstico das sobrediagnosticadas (Tesser, 2023). A experiência clínica ensina e influencia fortemente os profissionais. Por serem os sobrediagnósticos imperceptíveis para pacientes e médicos - Carter (2021) chama isso de inacessibilidade epistêmica - não é possível contabilizá-los no saber dessa experiência, que é enganoso e mostra sempre muito mais benefícios que danos.
O aumento da clientela oncológica amplia os ganhos econômicos no setor privado. Os produtores dos insumos e biotecnologias para diagnose e tratamento, bem como as especialidades profissionais que os usam (Keen; Massat, 2017) têm evidentes interesses econômicos na manutenção da recomendação positiva. O maior ganho financeiro não existe para os profissionais do SUS, em que há geração de iniquidades sistêmicas, pois são desviados recursos das sensivelmente doentes para as sobrediagnosticadas, com gastos adicionais e acentuação da lei dos cuidados inversos no tratamento desse câncer: as mais necessitadas de cuidados clínicos são as que menos têm acesso, tanto mais quanto mais os serviços estiverem sob a ação das forças do mercado (Hart, 1971). Entretanto, nos serviços públicos existe o mesmo ganho emocional para os profissionais.
Uma inversão da recomendação poderia gerar sofrimento em mulheres diagnosticadas por rastreamento, ao se conscientizarem de que a maior chance é que tenham sido prejudicadas - sobrediagnosticadas -, e isso poderá significar novas demandas por cuidado e compensação. Por exemplo, Welch (2011b) estimou que, supondo uma redução da mortalidade específica de 5% a 25% pelo rastreamento, a probabilidade de uma mulher ter evitado sua morte por causa do rastreamento vai de 3% a 17%, respectivamente, o que significa muitas prejudicadas.
Por fim, na manutenção da recomendação positiva provavelmente há o medo de acusações de ‘abandonar’ as mulheres à própria sorte, em caso de inversão da recomendação (Brown; Barra, 2023), dada a crença disseminada de que o rastreamento salva-vidas, equivocada, segundo Prasad et al. (2016). Tais acusações apareceram na Suíça em 2014, quando o Swiss Medical Board recomendou contra a mamografia periódica (Biller-Andorno; Jüni, 2014).
Aplicando a prevenção quaternária ao rastreamento mamográfico
Os gestores e profissionais de saúde podem se confrontar com acusações de que mantiveram recomendações positivas para o rastreamento mamográfico, sem divulgar o seu duvidoso ou desfavorável balanço benefícios-danos. A maioria das mulheres acreditam que “se protegem” significativamente ao rastrear. Enquanto algumas poucas desconhecidas usufruem de algum benefício, que provavelmente não significa sua vida salva, outras em bem maior número são prejudicadas gravemente sem perceber (Baum, 2015), marcadas na sua identidade para toda a vida (Walker; Rogers, 2017).
O que está em jogo é manter ou não a recomendação positiva. É importante salientar que a decisão sobre a manutenção ou suspensão da recomendação não necessita de uma conclusão ou consenso sobre a grandeza precisa dos benefícios e dos danos. Os aspectos éticos envolvidos nos rastreamentos exigem grande valorização da não-maleficência, o que é consensual na teoria (Cochrane; Holland, 1971; Marshal, 1996; Segura-Benedicto, 2006; Weingarten; Matalon, 2010; Rogers et al., 2019; Elton, 2021), mas pouco aplicado na prática. Somente com benefícios significativos e poucos danos se pode recomendar um rastreamento (Tesser; D’Ávila, 2016; Tesser; Norman, 2019).
A existência indiscutível da polêmica científica sobre o balanço benefícios-danos no rastreamento mamográfico é suficiente para a sua não recomendação; devido, também, ao princípio da precaução (Tesser; Norman, 2019), aplicável em situações de dúvida científica sobre danos extensos e graves, como o sobrediagnóstico nesse rastreamento (Tesser et al., 2019). Segundo esse princípio, em casos de incerteza sobre relevantes e extensos danos derivados de uma intervenção, os seus proponentes é que devem provar que a intervenção (rastreamento mamográfico) é segura (poucos/leves danos) e significativamente eficaz. A presença da dúvida no balanço benefícios-danos exige o reconhecimento de que não é justificável eticamente a manutenção de sua recomendação positiva (Tesser et al., 2019).
A aplicação da P4 nesse caso parece simples: pedindo ‘desculpas’ pela quase ilusória ou enganosa mensagem de que a mamografia periódica salva vidas (Baum, 2013), alimentada pelas campanhas e folhetos de sistemas de saúde, instituições médicas e ONGs, os gestores dos sistemas de saúde e os profissionais poderiam dizer que não é recomendado fazer mamografia sem suspeitas clínicas ou alto risco de câncer. Pois, a partir das evidências sobre os resultados desse rastreamento, há muitos danos envolvidos e pequenos ou nulos benefícios, motivo pelo qual a notícia é boa: esse exame dolorido pode ser abandonado como rotina de prevenção.
Ações redutoras dos riscos desse câncer (como amamentar bastante os filhos) e do risco cardiovascular, bem como ações de promoção da saúde das mulheres devem ser estimuladas: políticas de proteção da violência, pobreza, machismo etc. (Rogers, 2019). Adicionalmente, suspender a recomendação reduziria a iniquidade alocativa, o desperdício de recursos nos sobrediagnósticos/sobretratamentos.
Desafios
Mudar a recomendação é complexo: há ampla desinformação dentro e fora da medicina. A maioria dos profissionais informa mais sobre benefícios e menos sobre danos (Hoffmann et al., 2010; Monzon et al., 2022). Muitas campanhas e informativos de saúde pública também informam insuficientemente (Spagnoli, 2018; Hersch et al., 2016). Geralmente, os profissionais da APS não têm capacidade para apoiar a escolha informada sobre o rastreamento (Forbes et al., 2014). Não surpreende que mulheres e médicos - sem alfabetização estatística mínima para compreender a situação (Baldi; Utts, 2015) - tenham expectativas que superestimam os benefícios e subestimam os danos (Hoffmann; Del Mar, 2017).
Além do destaque unilateral para os benefícios, a linguagem e a forma de apresentação usadas pelas campanhas, profissionais, cartazes e folhetos informativos induzem reações morais e emocionais mais fortes do que avaliações utilitaristas e racionais. Há exploração da bem documentada e comum aceitação da troca de poucos benefícios valiosos (apresentados como “salvar vidas” ou “evitar mortes” - altamente valorizados) por muitos danos menores (falsos positivos e sobrediagnósticos) (Carter, 2017). Isso dificulta uma decisão utilitarista, reforçando a vulnerabilidade patogênica aos sobrediagnósticos. Tudo se passa como se vidas fossem salvas e falsos-positivos e sobrediagnósticos fossem menores. Porém, os falsos-positivos podem gerar prolongada ansiedade (Bolejko et al., 2015; Brodersen; Siersma, 2015), sobretudo nas que precisam novas imagens de vigilância ou biópsia para chegar a um diagnóstico benigno (Loving et al., 2021). Os sobrediagnósticos estão mais para ‘gravíssimos’ do que para ‘menores’, mesmo não sendo perceptíveis por profissionais e pacientes. Já as “vidas salvas”, ou não são percebidas nas estatísticas populacionais (Jørgensen et al., 2010; Zahl et al., 2019), ou, quando são, a redução é mínima e se refere apenas à mortalidade por esse câncer, não à mortalidade geral nem por todos os cânceres (Jatoi; Pinsky, 2021).
É importante reconhecer a gravidade do dissenso científico em que o rastreamento mamográfico está envolvido: ele é intenso e persistente. Hofman (2018) classificou essa área de pesquisa científica como ‘polarizada’. Pesquisadores perseveram em interpretações antagônicas produzindo dados e conclusões discordantes, sem chegar a um consenso. Um exemplo é a grande variação na estimativa da proporção de sobrediagnósticos nos estudos - de 0 a 50% (Bulliard et al., 2021). Outros exemplos vêm de artigos que negam os problemas, defendem o rastreamento e afirmam haver ‘notícias negativas’ mal fundamentadas, como em Schattner (2020), cujo título é “Corrigindo uma década de notícias negativas sobre mamografia”.
No Brasil, outro complicante é a possibilidade de judicialização irracional. Havia a Lei 11.664, de 29/04/2008, que garantia às mulheres a realização de mamografias periódicas após os 40 anos, contrária às diretrizes nacionais. Agora, sem qualquer razoabilidade técnica e ética, expondo mais as mulheres aos danos, a Lei 14.335, de 10/05/2022 estendeu esse direito para desde a puberdade. Essa lei, a falta de discussão pública sobre danos e benefícios e a propaganda pró-benefícios, como no ‘outubro rosa’ (Assis et al., 2020), aumentam o desafio de suspender a recomendação positiva.
A recente ampliação do negacionismo no Brasil certamente aumentou a dificuldade de explorar publicamente dissensos científicos. Isso foi intensificado pela atuação do governo federal na pandemia (Giovanella et al., 2020) e multiplicado pelas influências e manipulações nas subjetividades individuais e coletivas via redes sociais digitais e seus algoritmos (Corrêa; Macías, 2021). A falta de discussão na Saúde Coletiva desse rastreamento também aumenta essa dificuldade, devido à pouca investigação e experimentação acadêmicas de estratégias informativas e comunicativas a respeito.
A dificuldade é acirrada ainda pela posição de defesa pura do rastreamento de associações médicas especializadas brasileiras: “mulheres […] devem fazer mamografia de rotina a partir dos 40 anos, uma vez ao ano, segundo a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM), a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e o Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CBR)” (SBM, 2023). Não se menciona danos, decisão informada ou evidências.
A formação médica é uma frente possível e estratégica para a melhoria da formação crítica e ética dos profissionais (Depallens et al., 2022). Todavia, a pouca penetração da P4 na educação médica brasileira, na prevenção do câncer de mama, geralmente monopolizada pelos ginecologistas, dificulta a exploração dessa estratégia, tornando-a um desafio.
Considerações finais
A P4 no rastreamento mamográfico, dado o dissenso científico existente sobre o seu balanço benefícios-danos e a aplicação do princípio da precaução ao problema, deveria gerar a suspensão da sua recomendação positiva, o que demanda produzir visibilidade para esse tema e sua discussão - para que, pelo mínimo, decisões mais autônomas e informadas possam ser tomadas pelas mulheres. Porém, a força do moralismo e da manipulação emocional, do preventivismo, das expectativas fictícias, do paradoxo da popularidade, dos interesses econômicos e corporativos e da propaganda viciosa têm invisibilizado esse tema na sociedade. Mesmo dentro da Saúde Coletiva ele é raramente abordado, apesar de seu grande impacto e relevância sanitária.
Explorar os dissensos internos à biomedicina e à saúde pública é necessário, especialmente na prevenção em assintomáticos, seara de grandes lucros, sobremedicalização e danos iatrogênicos. A partir da investigação e discussão científica e pública desses dissensos e dos princípios éticos inerentes à medicina e à saúde pública, poder-se-ia agregar clínicos, especialmente da APS, gestores, pesquisadores e entidades da Saúde Coletiva e movimentos sociais comprometidos com a equidade e a solidariedade para avolumar força política e colocar limites aos interesses mercadológicos/corporativos, reduzindo danos e sobremedicalização derivados desse rastreamento.
Referências bibliográficas
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Ago 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
19 Jun 2023 -
Revisado
15 Out 2023 -
Aceito
18 Nov 2023