EDITORIAL ESPECIAL
A longa batalha pelo financiamento do SUS
Áquilas Mendes
Professor Doutor Livre-Docente de Economia da Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP e do Departamento de Economia da PUC-SP
A história do Sistema Único de Saúde (SUS) é marcada pelos problemas de financiamento. Os recursos públicos envolvidos sempre foram insuficientes para garantir uma saúde pública, universal, integral e de qualidade. Em 2011, o gasto público brasileiro em saúde (União, Estados e municípios) foi de 3,84% do Produto Interno Bruto, enquanto a média dos países europeus com sistemas universais foi de 8,3% do PIB, o que evidencia a dificuldade de recursos do SUS para realizar suas ações e serviços.
O Projeto de Iniciativa Popular, conhecido como Movimento Saúde+10, que tramita no Congresso Nacional, assinado por mais de 2 milhões de brasileiros, contempla defesa histórica na área da saúde por ampliação dos recursos públicos, especialmente por parte da União, indicando que esse nível de governo aplique 10%, no mínimo, da sua Receita Corrente Bruta (RCB). Se aprovado, o projeto garantirá ao SUS um acréscimo ao orçamento do Ministério da Saúde, em 2013, em torno de R$ 40 bilhões, sendo 0,8% do PIB.
Esse projeto é importante para a sobrevivência do SUS, mas temos consciência de que não resolve por completo o subfinanciamento histórico da saúde pública no Brasil. Esse foi problemático desde a criação do orçamento da Seguridade Social na Constituição de 1988, que indicava 30% dos recursos desse orçamento (impostos e contribuições sobre a folha de salários, lucro e faturamento às áreas da saúde, previdência e assistência social) ao gasto federal do SUS para 1989, estabelecido no art. 198 da CF e nas suas disposições transitórias. Para os outros anos, a definição desse percentual ficaria a cargo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Na prática, a saúde nunca contou com esses recursos.
Para se ter uma ideia da perda de recursos desde então, em 2012 o orçamento da área da seguridade social foi de R$ 590,5 bilhões. Desse total, se destinados 30% à saúde, considerando os gastos do governo federal, o setor receberia R$ 177,2 bilhões, bem superiores aos gastos dos três níveis de governo (incluindo Estados e municípios) que em 2011 registraram R$ 154 bilhões.
Na realidade, ao longo dos 25 anos de existência do SUS, vários foram os constrangimentos sofridos no âmbito do financiamento. Na perspectiva de Mendes (2012), destacamos alguns dos aspectos desse quadro, de forma resumida:
a) a partir de 1993, a previdência deixou de repassar recursos para o SUS (regulamentado na reforma previdenciária do governo Fernando Henrique Cardoso);
b) a criação do Fundo Social de Emergência, em 1994, que posteriormente denominou-se Fundo de Estabilização Fiscal e, a partir de 2000, intitulou-se Desvinculação das Receitas da União (DRU) – denominação até o momento mantida, definiu, entre outros aspectos, que 20% da arrecadação das contribuições sociais seriam desvinculadas de sua finalidade e estariam disponíveis para uso do governo federal, longe de seu objeto de vinculação: a seguridade social. Esse mecanismo vem provocando perdas de recursos para a seguridade social;
c) aprovação da CPMF, em 1997, como fonte exclusiva para a saúde, mas a retirada de parte das outras fontes desse setor, não contribuindo assim para o acréscimo de recursos que se esperava;
d) aprovação da Emenda Constitucional -29 (EC-29), em 2000, vinculando recursos para a saúde, porém com indefinições sobre quais despesas deveriam ser consideradas como ações e serviços de saúde e o que não poderia ser enquadrado nesse âmbito, além de dispor de método conflitante de cálculo para aplicação dos recursos da União – isto é, o valor apurado no ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB – e, ainda, não esclarecer a origem dos recursos no tocante à seguridade social, ignorando o intenso embate por seus recursos;
e) investidas da equipe econômica do governo federal em introduzir itens de despesa não considerados gastos em saúde no orçamento do Ministério da Saúde, como o pagamento de juros e aposentadoria de ex-funcionários desse órgão, entre outros;
f) pendência da regulamentação da EC-29 durante oito anos no Congresso (entre 2003 a 2011), provocando perdas de recursos para o SUS e o enfraquecimento do consenso obtido quando de sua aprovação;
g) permanência da insuficiência de recursos para o financiamento do SUS na regulamentação da EC-29 (Lei Complementar nº 141/2012), que manteve o método de cálculo da participação do governo federal – o valor apurado no ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB –, rejeitando o projeto de regulamentação que se encontrava no Senado (PLS 127/2007), o qual definia uma aplicação da União de 10%, no mínimo, da Receita Corrente Bruta (RCB).
Assim, iniciamos a década de 2010 sem resolver os grandes conflitos do financiamento, à medida que a Lei 141/2012 (regulamentação da EC-29), indicando a participação das três esferas de governo no SUS, manteve o cálculo anterior da participação da União (valor apurado no ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB), não tendo sido aprovada a introdução de um percentual de 10% sobre a RCB, conforme defendido há anos pelas entidades associadas à luta por uma saúde universal e pelo Movimento Saúde+10, mais recentemente. Em 1995, o governo federal gastou com ações e serviços de saúde o equivalente a 1,75% do PIB; passados 17 anos (2012), essa proporção praticamente se manteve. Os gastos federais com ações e serviços públicos de saúde diminuíram em relação à Receita Corrente Bruta da União. Em 1995, representavam 11,7% dessa receita, em 2011, registravam apenas 7,5% da mesma base. O montante de recursos perdidos durante os anos 2000 registrou aproximadamente R$ 180 bilhões, quando comparado com a indexação à receita corrente bruta e à variação do PIB nominal.
Sabe-se que o governo federal fez de tudo para que a base de cálculo de 10% da RCB não fosse aprovada. Tudo em nome de que não possui uma fonte específica para sustentar tal montante, embora há anos o Orçamento da Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social) evidencie superávits. Contudo, grande parte é direcionada ao pagamento de juros da dívida, a fim de manter superávit primário – uma política econômica restritiva em termos de cortes dos gastos sociais. Esse direcionamento tem nome: Desvinculação das Receitas da União (DRU), em que 20% das receitas da seguridade social são dirigidas a outras finalidades. Esse mecanismo vem provocando perdas de recursos para a seguridade social da ordem de R$ 578 bilhões, entre 1995 a 2012, tendo sua continuidade assegurada até 2015 (ANFIP, 2013).
Apesar dessas evidências sobre fontes de recursos disponíveis, o governo federal retorna com os mesmos argumentos para o Movimento Saúde+10. Primeiro, afirma que vem aumentando o investimento em saúde entre 2003 a 2011, passando de um gasto per capita de R$ 244,80 para R$ 407,00, correspondendo a um acréscimo de 66%. Contudo, não esclarece que no primeiro ano do Governo Lula, em 2003, o gasto per capita com saúde foi o menor entre os anos de 1995 e 2011. Segundo, o governo federal insiste em comentar o seu quadro de rigidez orçamentária. Do total do seu orçamento para 2013 (R$ 2,2 trilhões), 46% estão comprometidos com as despesas financeiras (pagamento de amortização e juros da dívida). Interessante é que aqui não fica explicitado que se trata de uma escolha prioritária há anos. Os demais 54% do orçamento estão comprometidos com as despesas primárias, incluindo as despesas obrigatórias e despesas discricionárias (com áreas protegidas – educação, saúde, "Brasil sem miséria", PAC e inovação –, com as outras obrigatórias – benefícios dos servidores –, com cortes efetuados e todas as demais áreas). Diante desse quadro, o governo afirma que o correspondente aos 10% da RCB da União para a saúde em 2013 (R$ 40 bilhões) ultrapassaria o total das áreas não protegidas, R$ 36 bilhões. Bem, todos esses números servem ao seu argumento de rigidez orçamentária, reforçando a sua defesa de que para ampliar recursos para a saúde é preciso conseguir nova fonte de financiamento. Em nenhum momento o governo questiona as suas prioridades de gasto que, como vimos, distanciam-se dos gritos das ruas.
Além disso, o argumento do governo federal é pela inviabilidade da Receita Corrente Bruta enquanto base de cálculo para aplicação na saúde. Diz o governo que a União tem de descontar dos recursos da RCB aqueles que já estão predefinidos, como as transferências constitucionais para Estados e municípios (FPM, FPE), o Fundeb, os royalties, o salário-educação, as contribuições previdenciárias e outros. Porém, não está definido no Projeto de Iniciativa Popular que os 10% devem ser retirados de cada uma das fontes, mas sim o correspondente ao "montante igual ou superior a 10% da RCB". A base dessa receita busca distanciar-se, de forma mais direta, das variações cíclicas da economia, mensuradas pelo PIB, que não vem crescendo no mesmo patamar do esforço de arrecadação da União (impostos e contribuições). Trata-se de valorizar o investimento da saúde correspondente à capacidade de arrecadação do governo federal (RCB), que cresceu 65,5% entre 2000 a 2012, enquanto o PIB aumentou apenas 5,9% (valores deflacionados pela média anual a preços de dezembro de 2012, conforme o IGP-DI/FGV). Por sua vez, a Receita Corrente Líquida da União –, base de cálculo defendida pelo governo – teve um incremento inferior ao da RCB, 56,6%, nesse mesmo período.
Sabe-se que o Movimento Saúde+10 está ciente de que a RCB constitui base de cálculo que contribui para a busca de uma sustentabilidade financeira para o SUS, recuperando em parte os recursos perdidos ao longo dos seus 25 anos de existência (ABRASCO e col., 2013). Entende o movimento, também, que a metodologia de aplicação da União deve ficar compatível com as bases de cálculo de aplicação dos Estados e municípios, à medida que essas últimas correspondem ao total das receitas de impostos, compreendidas as transferências constitucionais, o que significa o esforço próprio de arrecadação. Assim, a utilização de percentual da RCB da União visa assegurar a isonomia no trato do financiamento da saúde nas três esferas de governo.
Ainda, cabe lembrar que a defesa pelo valor correspondente à RCB decorre de sua visibilidade nas contas públicas federais e de difícil manipulação, como seria o caso da Receita Corrente Líquida – com diferentes conceitos. Além disso, trata-se de dado de menor possibilidade de interpretação, o que levaria a menores questionamentos jurídicos. Após quase dez anos da EC-29, é conhecida a celeuma em torno do que deveria ou não ser considerado como despesas com ações e serviços e saúde. Por fim, a defesa da RCB tem o apoio de 2 milhões de assinaturas dos brasileiros, o que justifica a sua não alteração por todos os que desejam ouvir as manifestações das ruas.
Esse contexto da problemática do financiamento do SUS torna-se importante para o pano de fundo mais geral a respeito das discussões apresentadas neste número da Saúde e Sociedade. De certa forma, os artigos apresentados não poderiam ser mais atuais, à medida que ressaltam o compromisso dos municípios com o financiamento do sistema público de saúde e o papel de fiscalização e controle dos recursos aplicados nesse setor.
Ribeiro e Bezerra, em "O protagonismo dos gestores locais de saúde diante da Emenda Constitucional no 29: algumas reflexões", apresentam reflexões sobre a importância dos municípios no comprometimento com o financiamento do SUS. Já Sobrinho e Espírito Santo, em "Participação dos entes federados no financiamento da saúde bucal de atenção básica: estudo no município da Vitória de Santo Antão, Pernambuco", mensuram o percentual de participação da União, do Estado e do município no financiamento das ações e serviços de saúde bucal na atenção básica em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, estimando aindo o custeio por absorção desses serviços por nível de esfera de governo. Gonçalves e colaboradores, em "Conselhos de Saúde e controle social: um estudo comparativo dos relatórios de prestação de contas das Secretarias Estaduais de Saúde", tratam de explicitar o acompanhamento das contas da área da saúde pelos conselhos em cinco Estados, evidenciando os problemas na execução dessa importante tarefa constitucional.
Entendemos que a leitura desses artigos contribuiu para a problematização do financiamento e da gestão dos recursos do SUS, discussão fundamental para assegurar o direito à saúde universal em nosso país.
- ABRASCO - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA. et al. Universalidade, igualdade e integralidade da saúde: um projeto possível. Belo Horizonte: Abres, 2013. Disponível em: <http://abresbrasil.org.br/universalidade-igualdade-e-integralidade-da-saude-um-projeto-possivel.html>. Acesso em: 27 out. 2013.
- ANFIP - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Análise da Seguridade Social em 2012 13. ed. Brasília, DF: ANFIP, Fundação ANFIP de Estudos da Seguridade Social, 2013. Disponível em: < http://www.anfip.org.br/publicacoes/20130619071325_Analise-da-Seguridade-Social-2012_19-06-2013_Anlise-Seguridade-2012-20130613-16h.pdf> . Acesso em: 27 out. 2013.
- MENDES, Á. Tempos turbulentos na saúde pública brasileira: impasses do financiamento no capitalismo financeirizado. São Paulo: Hucitec, 2012.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
31 Jan 2014 -
Data do Fascículo
Dez 2013