Open-access Arendt, Jung e Humanismo: um olhar interdisciplinar sobre a violência

Arendt, Jung and Humanism: an interdisciplinary approach to violence

Resumos

O presente trabalho é um ensaio de natureza teórica que tece reflexões sobre o fenômeno da violência no mundo contemporâneo a partir da perspectiva dada pela filosofia política de Hannah Arendt. Partindo de sua interpretação de Kant, conectamos a teoria original sobre a violência de Arendt com sua base filosófica, o humanismo. À compreensão mais filosófica e social dada por Arendt, buscamos acrescentar, em uma abordagem interdisciplinar quiçá inédita para o tema, as contribuições dadas pela psicologia profunda de Jung, sendo discutida e sublinhada a relevância dos seus conceitos de indivíduo singular e inconsciente e da sua crítica da cultura. A origem comum de ambas as teorias leva a interpretações diferentes, mas complementares do fenômeno da violência, visto a partir das perspectivas social e individual, e conduz à afirmação da importância da retomada do humanismo como idéia central ao pensarmos a violência e o mundo contemporâneo.

Violência; Filosofia política; Psicologia


This article is a theoretical essay that reflects on the phenomenon of violence in the contemporary world, grounded on the perspective furnished by Hannah Arendt's political philosophy. Starting from her interpretation of Kant, we have connected Arendt's original theory on violence with its philosophical basis, Humanism. To the more philosophical and social understanding provided by Arendt, we have tried to add, through an interdisciplinary approach, the contributions given by Jung's depth psychology, discussing and underlining the relevance of his concepts of singular individual and unconscious and his critique of culture. The common origin of both theories leads to different yet complementary interpretations of the phenomenon of violence, and eventually to asserting the importance of recovering Humanism as a central idea in the way we understand violence and the contemporary world.

Violence; Political Philosophy; Psychology


ARTIGOS

Arendt, Jung e Humanismo: um olhar interdisciplinar sobre a violência

Arendt, Jung and Humanism: an interdisciplinary approach to violence

Marlon Xavier

Psicólogo. Mestre em Psicologia Social. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da USP. Professor de Psicologia da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Av. Dr. Arnaldo, 715 - CEP 01246-904, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: marlonx@usp.br

RESUMO

O presente trabalho é um ensaio de natureza teórica que tece reflexões sobre o fenômeno da violência no mundo contemporâneo a partir da perspectiva dada pela filosofia política de Hannah Arendt. Partindo de sua interpretação de Kant, conectamos a teoria original sobre a violência de Arendt com sua base filosófica, o humanismo. À compreensão mais filosófica e social dada por Arendt, buscamos acrescentar, em uma abordagem interdisciplinar quiçá inédita para o tema, as contribuições dadas pela psicologia profunda de Jung, sendo discutida e sublinhada a relevância dos seus conceitos de indivíduo singular e inconsciente e da sua crítica da cultura. A origem comum de ambas as teorias leva a interpretações diferentes, mas complementares do fenômeno da violência, visto a partir das perspectivas social e individual, e conduz à afirmação da importância da retomada do humanismo como idéia central ao pensarmos a violência e o mundo contemporâneo.

Palavras-chave: Violência; Filosofia política; Psicologia.

ABSTRACT

This article is a theoretical essay that reflects on the phenomenon of violence in the contemporary world, grounded on the perspective furnished by Hannah Arendt's political philosophy. Starting from her interpretation of Kant, we have connected Arendt's original theory on violence with its philosophical basis, Humanism. To the more philosophical and social understanding provided by Arendt, we have tried to add, through an interdisciplinary approach, the contributions given by Jung's depth psychology, discussing and underlining the relevance of his concepts of singular individual and unconscious and his critique of culture. The common origin of both theories leads to different yet complementary interpretations of the phenomenon of violence, and eventually to asserting the importance of recovering Humanism as a central idea in the way we understand violence and the contemporary world.

Keywords: Violence; Political Philosophy; Psychology.

Compreender [...] significa antes examinar e suportar conscientemente o fardo que nosso século colocou sobre nós - sem negar sua existência, nem vergar humildemente ao seu peso, como se tudo o que de fato acontecesse não pudesse ter acontecido de outra forma. Compreender significa, em suma, encarar a realidade, espontânea e atentamente, e resistir a ela - qualquer que seja, venha a ser ou possa ter sido. (Arendt, 1989, p. 21).

Pois paz sem voz/ não é paz é medo. (O Rappa, "Minha Alma", 1999).

Introdução

Vivemos em uma época marcada por uma radical conspicuidade da violência, tanto em nível internacional, com conflitos armados, terrorismo e indústria bélica sempre crescentes, como em nível nacional e comunitário, com a mortalidade por causas externas aumentando enormemente e atingindo principalmente jovens do sexo masculino. Para a Organização Mundial de Saúde - OMS (2002), a violência é hoje um dos principais problemas de saúde pública do mundo. No Brasil a situação é ainda mais alarmante e complexa, com a criminalidade violenta e os homicídios crescendo exponencialmente, sendo a maioria das vítimas jovens negros residentes em áreas de grande vulnerabilidade social (Souza, 2006). Junte-se a esse cenário o assustador número de armas (legais e ilegais) disponível no país (Fernandes, 2005), e temos um cenário não apenas violento, mas apocalíptico. Porém, à violência da mortalidade (incluindo os suicídios) teríamos de unir ainda as formas de violência que não causam morte: abusos físicos, sociais, raciais, psicológicos, sexuais etc. Assim, podemos ver que o impacto da violência na área da saúde pública no Brasil, especialmente entre os jovens, representa um problema imenso e uma realidade chocante, que devemos procurar compreender.

É, portanto, necessária uma compreensão mais profunda do problema da violência. Para construirmos essa compreensão, que porventura nos conduzirá a novas práticas e oportunidades sociais, são indispensáveis estudos e debates interdisciplinares, enfoques multidimensionais sobre o tema e fatores e populações a ele relacionados (Abramovay e col., 2002). Porém, ao que saibamos, não há estudos que conectem um olhar mais social e político (neste trabalho, a teoria de Hannah Arendt), que contemplem também as macrodinâmicas sociais, com uma visão que confere importância à psicologia individual e profunda (a teoria de C. G. Jung). Este trabalho representa, pois, uma tentativa modesta de analisar teoricamente o fenômeno da violência, utilizando-se de um olhar interdisciplinar provavelmente inédito para este tema, dado pelas teorias de Arendt e Jung (e autores afins)1, que se entrelaçam, como veremos, numa origem comum que conduz a interpretações complementares: o humanismo.

Concepções sobre Violência

A violência é um conceito extremamente difícil de definir. Arblaster (apud Abramovay e col., 2002) menciona que "o termo é potente demais para que [um consenso sobre sua definição] seja possível" (p. 19). Comecemos pela etimologia: violência provém do latim violentia, relacionado a vis e violare, e porta os significados de força em ação, força física, potência, essência, mas também de algo que viola, profana, transgride ou destrói. Assim, violentia parece denotar um vigor ou força que se direciona à transgressão ou destruição de uma ordem dada ou "natural". O limite representado por essa ordem, e sua perturbação (pela violência), é percebido de forma variável cultural e historicamente (Zaluar, 1999).

Evidente que a conceituação de violência comporta outras formas, como aquelas dadas pelo direito, ou de acordo com a participação dos atores. Para os propósitos deste trabalho, no entanto, cremos ser mais profícuo estudar o conceito de violência que antecede nossa principal autora, Arendt, e seus significados na língua alemã. Gewalt é uma palavra que carrega mais significados do que violentia: significa violência e força, mas também poder, autoridade. É significativo que Walter Benjamin (1986), que tanto influenciou Arendt, não diferencie esses significados em sua Zur Kritik der Gewalt. No entanto, em Benjamin aparece uma antiga tradição filosófica e política que Arendt retomará: a de conceber a violência em relação à questão moral e aos meios e fins, ou seja, a violência como instrumental. Essa tradição vem desde Aristóteles, passando por Kant e Engels (Hanssen, 2000). Arendt (1973), no entanto, sublinhará a importância de uma conceituação precisa de "violência" e "poder", diferenciando e mesmo antagonizando esses conceitos o que representa talvez sua maior contribuição para a compreensão do problema da violência.

Arendt

As originais formulações teóricas de Hannah Arendt sobre o tema da violência devem ser entendidas em relação ao conjunto de sua obra, possibilitando um olhar que abarca o fenômeno em sua complexidade. É importante salientar que seu principal trabalho sobre o tema, Da Violência (in Arendt, 1973), foi escrito tendo como incentivador o aparecimento crescente da violência da juventude nos campi dos EUA e do globo; ou seja, além de sua preocupação com o tema em si, e a relação deste com a totalidade de sua obra, Arendt queria falar especificamente da juventude e dos estudantes, e a eles.

Apoiada em Kant e Engels, Arendt afirma que a violência é sempre instrumental, ou seja, necessita de implementos; portanto não é um fim em si mesma, somente um meio. Essa afirmação traz enormes conseqüências para o entendimento do pensamento de Arendt, a começar pelo fato de retirar da violência a possibilidade de ser tomada como parte da essência humana. Além disso, a violência passa então a sempre necessitar de "orientação e justificação pelos fins que persegue" (Arendt, 1973, p. 128). Arendt diferencia justificação de legitimação, afirmando que a violência pode ser justificada (dependendo de seu fim), mas nunca é legítima, pois não pode ser considerada um fim em si mesma; e, junto a essa posição, propõe uma conceituação precisa dos diferentes significados de Gewalt e de conceitos afins, como poder e fortaleza. O poder seria legítimo (ou seja, faz parte mesmo da essência do que é humano), na medida em que nasce da disposição dos homens de se unirem e agirem em conjunto e de comum acordo. Essa definição de poder e sua diferença em relação à "violência" portam duas características essenciais inter-relacionadas. A primeira é que introduz no pensamento político uma idéia de mundo humano não necessariamente regido por relações de domínio de cima para baixo (a idéia clássica de poder Herrschaft, de Max Weber), mas movido por relações horizontais, de seres humanos que têm uma origem comum que afirma sua igualdade, ao mesmo tempo em que contempla suas diferenças, advindas de suas singularidades. A própria diferenciação entre poder e violência, tão fundamental na obra de Arendt e para o mundo atual, emerge daí: da necessidade de não reduzir o mundo político às relações de domínio. A segunda característica é inerente ao mundo político arendtiano: os homens têm a liberdade de escolher agir em conjunto (ou seja, não são "determinados" nem a ser violentos, nem políticos) e dessa forma recriar a si próprios e ao seu mundo. Mais do que isso, essa liberdade e esse agir em conjunto são considerados como naturais a eles, partes de sua essência. Arendt (1982) é profundamente kantiana nesse sentido: o impulso à sociabilidade é natural ao homem, tanto a própria origem do que é ser humano, quanto sua mais alta finalidade (p. 73).

Portanto, "estar entre os homens" (ser sociável, a condição da "pluralidade") representa parte da condição humana tanto para Kant como para Arendt. Nesse mundo político compartilhado pelos homens, as atividades específicas da condição humana são o discurso e a ação, ambos claramente vinculados à questão da violência. O discurso constitui-se em grandeza humana, que se contrapõe à violência, possibilitando a vida na polis: "O ser político, o viver numa polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência" (Arendt, 1999, p. 35). Há uma oposição entre violência e logos (palavra, fala, razão); onde não ocorre o segundo, abre-se espaço para o aparecimento da primeira (da mesma forma que há uma espécie de oposição entre poder e violência: onde um reina absoluto, o outro está ausente). Vinculando o pensamento grego, que Arendt resgata, ao de Kant, podemos ver que uma das faculdades mentais inerentes ao homem, a do julgar, pressupõe não só estar entre outros, mas comunicar seus julgamentos (e todas as atividades do "aparato da alma") à comunidade (Arendt, 1982, p. 74). A possibilidade e a liberdade de comunicar são para ele um dos significados de Humanität, como veremos mais tarde.

A ação, da mesma forma que o discurso, corresponde à pluralidade, pois que deve ser consensual e em concerto; mais ainda, todos esses elementos aparecem relacionados em Arendt, pois a ação deve ser pública e comunicativa, não podendo prescindir do discurso; ou seja, é o próprio elemento fundante da vida política. "Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o ator, o agente do ato, só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada através de palavras; e, embora o ato possa ser percebido em sua manifestação física bruta, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada, na qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer" (Arendt, 1999, p. 191). A ação é a expressão máxima do fator que alicerça o pensamento de Arendt sobre a política: a liberdade. Liberdade de reger o próprio destino, fazer escolhas, construir o senso comum (sensus communis) e de começar algo novo, ou seja, ser criativo e original - ser singular ou único. O homem arendtiano é ontologicamente criador pelo fato único de seu nascimento; pela ação e pelo seu discurso livre, ele efetua um segundo nascimento - realizando o potencial criador da ação humana "entre os homens". Assim, a ação representa a "forma única da expressão da singularidade individual" e "fonte de significado da vida humana" (Lafer, 1999, p. 345). O mundo da polis não apenas permitia que o homem demonstrasse sua unicidade (e assim refletisse a liberdade de todos os cidadãos da polis de fazer o mesmo, ou seja, refletisse sua pertença à humanidade), mas colocava isso como obrigação: na polis "cada homem tinha constantemente que se distinguir de todos os outros, demonstrar, através de feitos ou realizações singulares, que era o melhor de todos" (Arendt, 1999, p. 51). Pela ação transfigurada em realizações únicas, imortais, o homem imprime a marca de sua singularidade e o "milagre de sua liberdade" (Arendt, 1982, p. 154) no mundo, demonstrando sua natureza "divina" (Arendt, 1999, p. 28). Esse ethos da criatividade significa que em cada momento do presente é dada ao homem a possibilidade de iniciar algo novo (o significado mais essencial de agir), ou seja, de ser um iniciador, de afirmar a liberdade.

Na medida em que tem de se haver (e escolhe a responsabilidade de fazê-lo) com suas ações e as de seus semelhantes, e com a realidade em si, tentando compreendê-las, o homem cria significado significa suas ações e sua vida, e também o espaço público em que atua. Em outras palavras, em cada homem que nasce e em cada possibilidade de ação, de realização da liberdade e da singularidade humanas, há a esperança latente de transformação de si e do mundo, que representa um novo nascimento. Esse entrelaçamento entre vontade, escolha e responsabilidade, ação consensual e pública, significação e transformação do mundo pela singularidade e liberdade, e comunicação desses atos pelo discurso, representa a dignidade humana, nas palavras de Kant, e ilustra o "ethos da singularidade, da ação e da responsabilidade" (Assy, 2002, p. 12) que forma o ser humano arendtiano.

Ser humano é assim ser sociável, na acepção de Kant, mas, mais além, é ser político (o bios politikos de Aristóteles), que é a dimensão da vida que Arendt tanto enfatiza. A faculdade da ação é o que faz do homem um ser político (Arendt, 1973). Na realização dessa faculdade está a possibilidade de ocorrer o entrelaçamento mencionado acima. Mas o que guia essa realização? Arendt (1982) interpreta Kant nessa questão fundamental: o assim chamado "imperativo categórico para a ação" é a realização da idéia de humanidade (Humanität) (p. 75) como um fim em si mesma.

Podemos, portanto, dizer que todos os elementos-chave da filosofia de Arendt, inclusive sua teorização sobre a violência, relacionam-se com essa idéia central, o humanismo. Em outras palavras, sua Weltanschauung (visão de mundo, filosofia de vida) e sua visão de ser humano têm por fundamento o humanismo. A própria Arendt (1973) coloca-se como herdeira dessa tradição humanista, exatamente ao criticar as teorias sobre a violência de Sorel e Sartre pelo desacordo de ambas com a idéia do "homem criando-se a si mesmo" (p. 101) através de formas não-violentas, presente na tradição do pensamento de Hegel e Marx. Entretanto, enquanto em Hegel o homem produz a si mesmo através do pensamento, e em Marx através do trabalho, em Arendt essa criação ocorre através da ação (que envolve todo o entrelaçamento com os outros fatores humanos mencionados acima). A ação, como vimos, pressupõe a pluralidade e relaciona-se com as três atividades mentais (pensamento, vontade, juízo). Ultrapassa os objetivos deste trabalho analisar mais profundamente essa relação, mas gostaríamos de chamar a atenção para um elemento fundamental do humanismo de Arendt: o fator ético, a atividade moral e o julgar (que ela chama de "a mais política das capacidades espirituais humanas"). Interpretando Kant, Arendt (1982) diz que o pensamento crítico é possível (e ocorre mesmo naturalmente) na solidão, mas deve mover-se, através da faculdade da imaginação, num espaço que leva em consideração as mentalidades, ou os possíveis julgamentos, dos outros (que são imaginados), para julgar e assim formar uma opinião. Assim, colocar-se no lugar dos outros, através de uma imaginação "que visita" (p. 43) - uma imaginação cidadã do mundo, que cria uma pluralidade como idéia - possibilita a formação do sensus communis, e através deste da mentalidade alargada, que é conditio sine qua non do juízo correto (p. 73). Portanto, é especialmente "no julgar e na opinião que abrimos espaço para a pluralidade" (Assy, 2004, p. 23). Dessa forma, a idéia de humanidade torna-se o princípio inspirador tanto da ação quanto dos juízos: "É em virtude dessa idéia de humanidade, presente em cada homem, que os homens são humanos, e podem ser chamados civilizados ou humanos na medida em que essa idéia se torna o princípio não somente de seus julgamentos, mas também de suas ações" (Arendt, 1982, p. 75)2.

Quando a idéia de humanidade se realiza na ação, impulsionada pelo juízo correto e construída sobre a base da mentalidade alargada, não pode haver violência. O humanismo arendtiano representa, assim, a afirmação da dignidade humana, como singularidade individual e possibilidade de escolha ética. Essa afirmação é de suma importância para a questão da violência, pois representa o alicerce da comunidade e da ação políticas que se contrapõem à violência e conduz à possibilidade de uma comunidade humana radicalmente democrática, em que o homem tem participação real a partir da isonomia, e criativa a partir de sua singularidade. A humanidade deve ser continuamente criada, em cada ato e cada palavra, em cada indivíduo que escolhe fomentar não a violência ou o domínio, mas a ação conjunta e expressa que nos torna autores e humanos, e que tece a comunidade política. Aí está nossa dignidade; ela provém da capacidade de ação, da liberdade de escolher e transformar (cuja raiz foi expressa por Pico della Mirandola como a natureza autotransformadora do homem; ou seja, o contrário de um determinismo). Para que sejamos dignos, é preciso resgatar a possibilidade de uma escolha ética, resgatar (benjaminiamente) o conceito de humanidade - que se conecta à questão essencial que resume todas as outras: a questão antropológica kantiana3. "A dignidade humana precisa de nova garantia" (Arendt, 1989, p. 11), e ela só pode ser dada pela idéia de humanidade - a resposta à questão é a afirmação da dignidade humana.

No entanto, o que temos atualmente é a hegemonia da naturalização da violência (Arendt, 1973, p. 146). Analisemos brevemente a origem dessa idéia e suas conexões com a noção de ser humano e sociedade (e Estado) que a embasam. Arendt (1989) coloca Hobbes, o filósofo da burguesia, como grande precursor dessa idéia. Hobbes parte de um homem violento, egoísta e imoral por natureza, que, deixado livre, cometeria as maiores atrocidades (a chamada bellum omnium contra omnes); o homem hobbesiano abdica de sua natureza, de sua capacidade natural de agir (isso porque a liberdade e a sociabilidade seriam sempre algo exterior a ele, não fazendo parte de sua natureza), para que possa haver existência em sociedade. Livre, o homem mataria seu semelhante. Ou seja, em Hobbes, a liberdade de o homem poder criar a si mesmo (afirmada por Pico e os humanistas), transforma-se em poder matar o outro - é uma filosofia erigida sobre o medo e a destruição (semelhante à de Descartes, erigida sobre a ansiedade) e não sobre a criatividade. É por isso que Arendt diz que Hobbes representa a "exclusão da idéia de humanidade" (p. 187). Não é à toa que essa filosofia do poder (no mau sentido) sustenta um sistema que tende inevitavelmente à destruição (pois, como apontou Arendt, a sede por possuir riqueza anda junto com a sede por poder sem limites, e "só possuímos para sempre e com certeza o que destruímos" - p. 174). A seqüência imperialismo, progressismo, ditadura e totalitarismo parte dessa exclusão do princípio da humanidade. Ao ser excluído esse princípio, só pode haver coerção guiando as relações entre os homens, ou seja, só uma idéia de poder Herrschaft.

Essa naturalização da violência segue com Darwin, como apontado por Benjamin (1986), e continua em Freud. Como apontou Freitas (1991), a concepção de ser humano de Freud é hobbesiana: se deixado entregue à sua natureza (instintos), o homem é amoral e violento; precisa da introjeção da moral coletiva, do status quo, através do superego, para que haja civilização - i.e., precisa sempre reprimir sua natureza; o conceito de poder Herrschaft é o mesmo. Daí a afirmar uma "pulsão de morte" não demorou muito. Sua concepção do nascimento da civilização (descrita em Totem e Tabu: Freud, 1999) é coerente: a civilização nasce não como uma criação humana, mas a partir de um assassinato, um parricídio. É, pois, surpreendente que pesquisadores e scholars ditos "humanistas" tomem Freud como um de seus teóricos, pois que sua Weltanschauung determinista, repressiva e "naturalizante" da violência deveria ser obviamente considerada, se não como anátema, ao menos como essencialmente oposta, ou antitética, ao ideal e à visão de ser humano e de mundo humanistas.

O problema maior dessas teorias é que "constituam as melhores conceituações possíveis de certas tendências óbvias da sociedade moderna" (Arendt, 1999, p. 335). Acreditamos que isso já aconteceu; a cultura tornou-se hobbesiana e behaviorista, a guerra de todos contra todos, como ratos enlouquecidos numa caixa de Skinner sem ar, está aí para quem quiser ver e consumir, banalizada e espetacularizada. Isso não significa, no entanto, que esse seja um fim inevitável devido a uma essência humana violenta, e que os homens sejam como ratos. Há outro entendimento possível desses fenômenos, dado por Arendt. Toda sua visão de ser humano e de mundo vai entender a violência por meio de sua teoria política, pela possibilidade da ação humana e do poder como ação consensual. Cada diminuição do poder de agir (e num determinismo ele simplesmente inexiste) porta um convite à violência, "[...] mesmo porque aqueles que detêm o poder e o sentem escapar de suas mãos, sejam eles os governantes ou os governados, têm sempre achado difícil resistir à tentação de substituí-lo pela violência" (Arendt, 1973, p. 156). Ou ainda, "[estou] inclinada a pensar que a maior parte da atual glorificação da violência seja causada por uma profunda frustração da faculdade de agir no mundo moderno" (p. 153).

Quando todos os valores políticos e a possibilidade de ação e discurso que afirma que os homens são singulares (e não apenas átomos na massa social) são obliterados; em outras palavras, quando não há mais possibilidade de dizer "sim" ou "não", de escolha, então não pode haver sociabilidade. Como a sociabilidade é a origem da humanidade do homem, essa própria humanidade é destruída - e o homem torna-se, então, não um animal, mas pior do que isso, pois há a perversão dos dois pólos que o constituem: o animal e o "divino", da consciência e da razão ("a dádiva adicional da 'razão' faz do homem a mais perigosa das feras", Arendt, 1973, 135). De certa forma, o que ocorre então é a expropriação da própria possibilidade de ser humano. É essa expropriação que leva a uma violência sem limites, e não uma hipotética natureza humana violenta. No entanto, quanto maior for essa expropriação e a falta de compreensão acerca dela, maior será o exterminismo desesperado dos homens e da cultura. Arendt já apontava, em 1973, que "a convicção de que tudo merece ser destruído, que todo mundo merece ir para o inferno tal espécie de desespero pode ser encontrada em toda parte" (p. 178). Parece que algo de humano se perdeu, nas palavras do cineasta Pier Paolo Pasolini. Expropriadas da possibilidade de ação real e de expressar suas idéias, de dialogar (ou seja, alienadas da possibilidade mesma de serem políticas, de "estar entre os homens"), as pessoas podem sentir um ímpeto de utilizar-se da disrupção de todas as ordens, da violência mais destrutiva, talvez no sentido de fazer algo, e de tentar dizer algo nem que seja ser responsável por sua própria destruição, numa forma muda de discurso radical.

Portanto, a visão de mundo e de ser humano hobbesiana é uma das respostas (possíveis) à questão antropológica e ao problema da violência. Há outra resposta, que Jung também pronuncia, como veremos a seguir.

Jung

Em Arendt temos a consideração da violência e o contraponto dado por seu humanismo no âmbito político. Em Jung, procuraremos abordar brevemente alguns aspectos relacionados a esses dois tópicos no âmbito da psicologia, procurando pontos de contato com o pensamento arendtiano4. Por ser essa uma tarefa deveras complexa, limitaremos nossa discussão a algumas questões que possam ser mais tarde aprofundadas. Começaremos por uma breve discussão sobre a teoria junguiana da personalidade, em seus aspectos principais, para, a seguir, tecer relações com as questões da violência e juventude e o mundo político.

Há duas esferas psíquicas na teoria de Jung: a consciência e o inconsciente. O ego (Ich, eu) representa o centro da consciência, ou da personalidade consciente, e assim a possibilidade de ação pela vontade, na medida em que consciência implica em livre-arbítrio.

A teoria de Jung sobre o inconsciente representa o grande diferencial de sua psicologia. Nela, a psique inconsciente porta algumas características: é autônoma, ou relativamente autônoma, em relação ao ego; tem finalidade (telos), como todo processo psíquico; é criativa e auto-reguladora; e se expressa em uma linguagem simbólica própria. O inconsciente tem dois lados, o pessoal e o coletivo. O inconsciente pessoal é formado pelos conteúdos que decorrem da história e experiência pessoais do sujeito, e, portanto, poderiam muito bem ser conscientes ou seja, fatores individuais incompatíveis ou infantis que o ego reprime ou simplesmente nunca conscientizou. Já o inconsciente coletivo é formado pelos instintos e arquétipos, elementos psíquicos coletivos ou transpessoais, comuns a todos os seres humanos. Os arquétipos são possibilidades de formação de imagens (e posteriormente idéias) que ordenam as experiências mais universais (por exemplo, a maternidade, ou ainda a relação do filho com a mãe) de uma forma especificamente humana e histórica, por meio de um significado. Em outras palavras, é como se nascêssemos com a história das experiências humanas de milênios em nossas psiques, mas não de forma atualizada, e sim como possibilidades. Dessa maneira, o homem é humano não só por pertencer à espécie e viver na comunidade humana, mas por portar a essência da história humana em si. O arquétipo pode ser visto ainda como a forma psíquica (ou seja, a imagem) do instinto, tendo a capacidade de transformar a energia portada por um instinto para uma forma cultural, através de um símbolo e o sentido que este carrega5. Resumindo, os arquétipos são estruturas psíquicas apriorísticas e formais que organizam a apercepção6 da realidade, criando representações (que formarão os conteúdos da psique); são formas típicas e especificamente humanas de fantasiar (Jung, 1959, 1984a).

Os instintos, por sua vez, são padrões de comportamento dotados de carga libidinal específica, que agem como uma compulsão. Por ora, tomemos só os dois instintos mais básicos: conservação da espécie e autopreservação, que correspondem à sexualidade e à vontade de poder (ou seja, às teorias de Freud e Nietzsche); e a transgressão de seus limites (ou sua perversão) corresponde aos pecados capitais da concupiscentia e da superbia (Agostinho), respectivamente (Jung, 2002). Podemos assim entender o instinto como vis inconsciente, cega e compulsiva, e o arquétipo como aquilo que ordena e dá sentido ao impulso instintivo; assim, os dois fatores correspondem respectivamente à compulsão ou impulso, e à intenção ou sentido, em relação ao comportamento.

Há ainda outra esfera coletiva no modelo de psique de Jung: a consciência coletiva. O conceito é tomado de Durkheim e designa os padrões culturais conscientes (valores, moralidade, comportamentos etc.), ou o que podemos chamar de mundo social. O indivíduo, como ser social, tem de se haver com a consciência coletiva, e Jung sublinha a importância da adaptação a ela; essa adaptação dá-se através da formação da persona, ou seja, o papel ou papéis típicos (e coletivos) que servem como função de relacionamento com os outros e com o mundo. Nesse sentido, a persona é necessária; só se torna negativa quando o indivíduo se identifica com ela, i.e., acha que realmente é aquela máscara, tornando-se assim proporcionalmente mais coletivo (abdicando de suas peculiaridades individuais). Aí está uma raiz do fenômeno da massificação contemporânea, em que temos pessoas cada vez mais homogeneamente coletivas, que negligenciam ou reprimem violentamente seus aspectos individuais, relegando-os à inconsciência, para se conformarem ao que a sociedade delas espera. Essa individualidade inconsciente vai constituir o que Jung chama de sombra, que aparece de forma compensatória à persona: quanto mais a persona for artificialmente superficial e extrovertida, por exemplo, mais a sombra aparecerá (em comportamentos, sonhos e fantasias, sintomas) ctônica, como algo vindo das profundezas que força a pessoa à solidão e à introversão (por exemplo, através de uma agorafobia). O inconsciente, dessa forma, força o ego a reconhecer os elementos individuais por trás da persona, e assim restabelecer o equilíbrio psíquico. Logo, quanto mais massificado for o homem, mais vulnerável estará ao inconsciente.

Tal busca pelo equilíbrio significa um impulso, a partir do inconsciente, para a conscientização pelo ego dos elementos da personalidade que são inconscientes. Há uma dialética entre ego e inconsciente, que pode ser vista de duas formas: na confrontação pelo ego do discurso inconsciente7 na própria pessoa; e, por serem os conteúdos inconscientes por definição projetados no meio, e em outras pessoas, na confrontação dessas projeções pelo ego (e pela consideração das opiniões dos outros, que muitas vezes mostram os pontos inconscientes - e nevrálgicos - da personalidade). Só o reconhecimento das projeções a compreensão de si e do outro - é que permite individualidade e, portanto, ação real (consciente); assim, a consciência se transforma num processo que dura toda a vida, e cria um sentido a cada vez que consegue atingir uma harmonia (um equilíbrio) com o inconsciente.

O centro responsável por esse equilíbrio ou auto-regulação é o si-mesmo8. Esse conceito representa ao mesmo tempo a totalidade virtual da personalidade e seu centro, abrangendo tanto a consciência quanto o inconsciente, e assim é visto como um postulado, no sentido kantiano. Por visar ao equilíbrio, o si-mesmo porta logicamente um direcionamento, ou telos, que é a realização dessa totalidade (a soma de individualidade única e essência coletiva do que é humano). Esse processo, que é a meta da vida, Jung (2002) chamou de individuação, a realização "legítima da enteléquia individual" (p. 191). Assim, o si-mesmo aparece como um Outro desde o inconsciente, indo muitas vezes contra o ego, na medida em que este se desvia unilateralmente dessa totalidade (por exemplo, ao se massificar). Nesse sentido, o si-mesmo é um centro ético. Miriam Freitas (1991) resume essa proposição: "Se no próprio inconsciente, espaço dos instintos, for concebido um centro ético que mobilize um processo de totalização a partir das contradições com a sociedade, numa mediação com o ego - não se trata de um Kant estático, pois esse centro ético não é uma categoria imutável, mas algo que se forma historicamente na dialética que se estabelece entre a sociedade e o indivíduo [...] ou, espinoseanamente, uma ação gerada pela necessidade de sua própria essência" (p. 39) - teremos uma visão de homem em que a ordem que garante a liberdade (e a cultura) faz parte da essência do que é humano, "uma causa eficiente imanente" (ibid.), na linguagem de Spinoza, e não algo sempre exterior ao homem, que tenha de ser trazido de fora (como "causa transitiva"), via repressão da natureza humana (pelo Estado, em Hobbes, e pelo superego, em Freud). Em outras palavras, teremos a afirmação e o reconhecimento de um humanismo radical, afim a Arendt, em que a essência criativa do homem é vista como dirigida à realização de sua totalidade.

Essa totalidade aparece empiricamente de várias formas (imagéticas) na psique, entre elas como imagem da divindade, o que levou Jung a dizer que o si-mesmo poderia ser chamado de "Deus em nós"9 (Jung, 1984b, par. 399), e a afirmar um instinto religioso no homem, ou uma função religiosa natural do si-mesmo. Essa afirmação conecta-se com o conceito de religio10: "ponderar bem, levar em consideração, observar [...]. Por religião entendo, pois, uma espécie de atitude que considera cuidadosa e conscienciosamente certos sentimentos, idéias e eventos e reflete sobre eles" (Jung, 2003, p. 192). Tal atitude vincula-se à questão ética, pois implica em considerar os dados irracionais - que visam ao equilíbrio, inclusive dos instintos - da personalidade e assim agir como uma totalidade (note-se que aqui há a possibilidade de construção de uma outra ética, não baseada apenas na razão); vincula-se também ao autoconhecimento e à compreensão da realidade; e, assim, ao processo de individuação11.

A individuação significa tornar-se um in-dividuum, i.e., um ser único, indiviso, não-atomizável. Nesse sentido, não deve ser confundida com individualismo. "Indivíduo" não é somente aquilo que pensamos ser (o ego, a personalidade consciente), mas sim a indivisível totalidade psíquica. Em Jung, a individualidade é a própria antítese do "individualismo" moderno, que é na verdade um simulacro de "indivíduo" - pois apenas aparenta ser individual, representando só valores coletivos (entre eles o egoísmo mais anti-social) reificados em signos do consumo: a grife, o estrelato, o sucesso midiático. Assim, só o indivíduo pode salvar-se da atomização da massa, pela liberdade de escolha, pela possibilidade de colocar sua marca na história, de ser autor. No humanismo de Jung (1991a), o indivíduo é a medida de todas as coisas; é portador do valor, da possibilidade de transformação, e apenas ele pode compreender, tomar uma decisão e agir eticamente (e assim criar a si próprio e ao mundo). É claro que essa ação envolve inter homines esse: "Só podemos encorajar o indivíduo a tomar decisões éticas, esperando um consenso geral. O que uma nação toda faz é sempre o resultado daquilo que muitos indivíduos fizeram. [...] Só é possível ensinar ou mudar o coração do indivíduo. É verdade que uma nação pode ser convertida em coisas boas ou más, mas neste caso o indivíduo está agindo meramente sob uma sugestão ou sob a influência de uma imitação e, por isso, seus atos não têm valor ético. Se não se muda o indivíduo, nada é mudado" (Jung, 2003, p. 173).

Abordemos a questão social na psicologia de Jung. Da mesma forma que em Arendt e Kant, o homem é visto como ser social, mas o portador da realidade é sempre o indivíduo, e isso (juntamente com o fenômeno da massificação) fará com que ele veja a política de forma peculiar. Para Jung (1991a), quanto maior o grupo, menos consciente e mais coletivo se torna o indivíduo, menos responsável e mais "indigno". O indivíduo deve adaptar-se ao coletivo, mas sempre resguardando sua individualidade (vide o fenômeno da persona), sem com ele identificar-se. No entanto, numa sociedade caracterizada por massificação, racionalismo e consumo, o indivíduo torna-se "uma espécie em extinção" (par. 502). Como unidade da massa, não há mais responsabilidade ética, pois esta foi deixada a cargo do Estado, nem valor para a vida individual, pois seu sentido foi perdido. Isso representa um crime contra a natureza humana, visto que seu telos visa à realização da individualidade; esse crime a natureza pune como um pecado (o nemesis dos gregos representa bem esse fato, de forma mitológica). A seguinte citação resume a opinião de Jung: "Há um telos em cada comunidade [...] mas este telos é a soma de todos os tela individuais. Toda pessoa tem o seu telos e, na medida em que procura realizá-lo, é um autêntico cidadão" (2002, p. 70), pois é a partir do indivíduo que a comunidade progride moral e espiritualmente12.

Há, portanto, uma tensão entre o imperativo do autoconhecimento (introversão) e a vivência no mundo político13. Porém, esse imperativo envolve exatamente viver no mundo, entre as pessoas, e, por meio do reconhecimento das projeções, relacionar-se de forma objetiva e real com ele14; a realização da individualidade (ao contrário de sua supressão) não exclui o mundo, mas leva a relações mais verdadeiras, intensas e amplas. Para tanto, tem de haver algo que se contraponha à força do coletivo: "O indivíduo só pode encontrar a verdadeira justificação para sua existência e sua própria autonomia moral e espiritual num princípio extramundano capaz de relativizar a influência dominadora dos fatores externos [...]. Para tanto, ele precisa da evidência da experiência interior e transcendente, que é a única proteção contra a de outra forma inevitável submersão na massa [...]. A resistência à massa organizada só pode ser efetuada pelo homem que é tão bem organizado em sua individualidade quanto a própria massa" (Jung, 1991a, p. 511-540, grifo do autor).

Essa experiência transcendente dá-se através de religio. Assim, a ênfase para a questão social está no indivíduo e no fator religio. Jung considera a massificação como o oposto de uma vida política, no sentido arendtiano; só o indivíduo pode resistir à massificação, a uma cultura exterminista e desumanizadora; só religio pode ser atitude eficiente para autoconhecimento e conhecimento do mundo. Ambos são necessários para a afirmação da liberdade do homem. Quando a função religiosa é soterrada pelo racionalismo (e a vitória do animal laborans), "ressurge na pior das distorções - o endeusamento do Estado e do ditador". O Estado rouba assim "o próprio fundamento metafísico" da existência do indivíduo. "Não há mais lugar para a decisão ética do homem singular, apenas para a comoção cega de uma massa obnubilada, onde a mentira passa a constituir o princípio próprio das ações políticas"15 (Jung, 1991a, p. 514, grifo nosso).

Voltemos à questão dos instintos, para enfim discutirmos a questão da violência em Jung. Talvez o instinto mais importante para a nossa discussão seja o de poder16. Como já visto, Jung considera a vontade de poder como um dos instintos fundamentais; sua caracterização como instinto já o torna muito diferente do conceito de Arendt. Como a literatura sobre esse instinto é vasta (vide, por exemplo, as teorias de Adler), optamos por discutir apenas alguns pontos teóricos que são especificamente junguianos. Em Jung, a dicotomia fundamental na vida humana não é entre Eros e Tanatos, como em Freud, mas entre Eros e Poder (Eros visto como amor, como princípio de relação, e não somente como sexualidade). Essa polaridade é muito mais profunda do que parece e tem conseqüências enormes na psicologia de Jung. Dessa forma, onde há poder, não há amor, e vice-versa. Note-se a enorme diferença em relação ao conceito arendtiano de poder. Essa diferença deve-se provavelmente ao fato de que Jung define poder principalmente em relação ao que chama de "complexo de poder": um complexo de representações e aspirações relativamente inconscientes relacionadas a uma atitude que busca subordinar todas as influências e experiências à supremacia do ego (Jung, 1991b). Note-se que isso é exatamente o contrário do que representa religio (e a subordinação do ego àquilo que o transcende, o si-mesmo, atitude fundamental para a individuação); aqui Jung aproxima-se dos gregos, pois o complexo do poder pode ser entendido como hybris, que em sua teoria ele chama de inflação do ego. Quanto mais influente e inconsciente for o complexo de poder, mais o ego ficará inflado, e mais os meios parecerão justificar os fins (inclusive pela violência!); e menos o indivíduo será religioso no sentido que Jung dá ao termo.

Cremos que Jung sumariza seu ponto de vista assim: "Não se deve asseverar o próprio poder enquanto a situação não for tão perigosa que precise de violência. O poder que é asseverado continuamente atua contra ele próprio e é afirmado quando alguém teme perdê-lo. Não se deve ter medo de perdê-lo. Ganha-se mais através da perda do poder" (2003, p. 174).

Essa é a compreensão do fenômeno no seu aspecto mais individual ou pessoal (que não está muito longe do senso comum: o poder corrompe, vira violência etc.). O indivíduo em Jung não é necessariamente violento; ele tem centro ético no inconsciente e liberdade de escolha que possibilitam lidar com seus instintos, inclusive o de poder, e com a sua realidade, sem ser violento. Mas, por alguns fatores, o mundo do instinto pode degenerar: vis torna-se violência (a "alma animal" - o instinto - vira bestialidade e brutalidade), ou seja, o inconsciente torna-se extremamente primitivo. Neste trabalho, o aspecto mais social ou cultural desses fatores tem mais relevância. Um dos fatores históricos mais importantes é a superbia da razão (e da técnica e seus produtos), que, numa espécie de enantiodromia, leva à irracionalidade brutal, como compensação inconsciente: "a cultura racional dirige-se necessariamente para o seu contrário, ou seja, para o aniquilamento irracional da cultura17" (Jung, 1984a, par. 111).

Além de ser um dos impulsos fundamentais do ser humano, o impulso para o poder pode ser visto muitas vezes como compensação por uma inferioridade pessoal (num sentido semelhante ao que Adler afirmou). Essa inferioridade pode ser causada por inúmeros motivos, inclusive sociais e econômicos; mas, à medida que ocorre a perda de sentido da vida e esse sentido vira um simulacro dado pela acumulação de signos de consumo, a tendência é a inferiorização de todos os indivíduos, especialmente os que não conseguem consumir esses signos. A compensação então é brutal, e todos os meios são vistos como legítimos para a conquista e manutenção do poder, inclusive a violência mais desumana. A banalização da violência corresponde ao antípoda de uma cultura que possui uma vivência rica do que é transcendente e irracional.

Deixando de lado as questões pessoais, podemos dizer que o mecanismo da violência consiste principalmente na submissão acrítica à cultura violenta e seus valores, facilitada pela repressão e sufocamento de alguns instintos e principalmente da possibilidade de ser individual. Quanto mais massificado, mais bestializado fica o indivíduo (e as massas), e aí emergem o que Jung (1991a) chama de epidemias psíquicas: "Uma argumentação racional é apenas possível e profícua quando as emoções provocadas por alguma situação não ultrapassam determinado ponto crítico. Pois quando a temperatura afetiva se eleva para além desse nível, a razão perde sua possibilidade efetiva, surgindo em seu lugar slogans e desejos quiméricos, i.e., uma espécie de possessão coletiva que, progressivamente, conduz a uma epidemia psíquica. Nestas condições, prevalecem todos os elementos da população que levam uma existência anti-social, tolerada pela ordem da razão" (par. 490). Podemos aplicar essa análise (muito próxima da de Arendt) tanto ao totalitarismo quanto ao tráfico de drogas hiperviolento dos dias atuais.

Podemos assim afirmar que a teoria de Jung representa a afirmação de um humanismo radical, ao vislumbrar (empiricamente) no âmago da psique uma ética "natural", que impulsiona uma ação que realiza a própria essência humana. O "criar a si mesmo" dá-se (principalmente) através de religio. O fato de esse centro ético aparecer como imagens da divindade vincula a psicologia de Jung à afirmação do humanismo de que o homem porta uma semelhança com a divindade em sua natureza, que é base de sua liberdade. Isso é o contrário de introjetar acriticamente a coerção e a moral do status quo (não apenas o lobo está dentro do homem, mas também seu algoz), por mais destrutivo e anti-humano que ele seja - e em nossa pós-modernidade ele é exterminista. Se as hipóteses de Jung estão corretas, a decorrência lógica dessa introjeção é que a reação do inconsciente será inevitavelmente violenta.

Para finalizar esta parte do trabalho, acreditamos ser importante salientar que um ponto fundamental de contato entre Arendt e Jung ocorre no âmbito do amor: o amor mundi de Arendt e o amor pelo inconsciente e pela compreensão de Jung são muito semelhantes, e ambos opostos à violência. Jung (1991a) conecta esse amor com os fundamentos da sociedade e do que é humano: "O mais alto interesse da sociedade livre deveria ser a questão das relações humanas, do ponto de vista da compreensão psicológica, uma vez que sua conexão própria e sua força nela repousam. Onde acaba o amor, têm início o poder, a violência e o terror" (par. 580). Arendt (1982) relaciona-o ao mundo e ao lugar do homem nele: "'The love of the world consitutes the world for me, fits me into it', no sentido de que ele determina 'to whom and to what I belong'" (p. 173, nota 149).

Proposições

Normal e compreensivelmente, as maiores instituições, como a Unesco (Abramovay e col., 2002), propõem transformações em nível macrossocial, principalmente a partir de políticas públicas, para tentar minimizar ou resolver o problema da violência, especialmente em relação à juventude, considerada o grupo de atores sociais mais relacionado com a questão, pois "as maiores vítimas mas também a maior proporção de autores de atos violentos estão entre os homens jovens" (Tavares dos Santos, 2002, p. 20). Essas transformações, além de envolverem propostas de modificação de estruturas e instituições (em relação a temas como a cidadania, fortalecimento de identidade, relações laborais e outros) concentram-se no fortalecimento do capital social e cultural do jovem e na "internalização de valores". Essas idéias-guia também são aplicadas a outros grupos de atores sociais. Com base no que discutimos acima, poderíamos propor algumas idéias para a discussão dessas transformações. Os elementos fundamentais para o resgate da possibilidade de ser cidadão, transformar e fazer parte da comunidade humana (e assim não ser violento) são o discurso (expressão) e a ação, que já são bastante discutidos; ou seja, trata-se de dar voz e possibilidade de ação aos sujeitos, e isso pode ser feito (e algumas vezes é) de muitas formas. No entanto, tomando a contribuição de Jung, podemos pensar que tornar possível só a expressão e construção das "subjetividades" talvez não seja o suficiente - pois subjetividade não implica necessariamente em individualidade, nem em religio. Assim, é necessário tornar possível a expressão e a construção de subjetividades preferencialmente conectadas à individualidade singular da pessoa. Ela precisa ter (e escolher!) a oportunidade de ação que a tire do redemoinho da repetição dos simulacros de ação dados pelos imperativos do consumo. Essa é uma tarefa contra a cultura, de certa forma, e, portanto, muito difícil. Compreender o fenômeno é essencial para iniciar essa possibilidade, a de o sujeito ser autor e não apenas ator - e assim ser livre e digno, e não violento.

Conclusão

Lafer (1999) resume a questão essencial de nossa época no pensamento de Arendt: "A liberdade [...] só pode ser exercida mediante a recuperação e a reafirmação do mundo público, que permite a identidade individual através da palavra viva e da ação vivida, no contexto de uma comunidade criativa e criadora" (p. 342). Como apontamos, somente o resgate do humanismo e de tudo que a idéia implica em termos de praxis pode recuperar esse mundo público. Miriam Freitas, autora junguiana, chega a afirmar que "humanidade" é a única idéia que pode salvar o planeta nesse estágio de globalização: "Para sobreviver a essa cultura exterminista, é urgente criar uma outra, cujo fito seja a própria humanidade, e não um mercado erigido sobre a miséria humana" (1991a, p. 214). Essa é a tarefa, colossal e dificílima, pois implica em reconstruir o mundo e o próprio indivíduo. No entanto, o humanismo afirma que o homem é capaz dessa ação - que é um milagre, segundo Arendt e também Pico della Mirandola (1486), que diz, através de Hermes, em seu Discurso sobre a dignidade do homem, "Que grande milagre é o homem, Asclepius!".

Para compreender essa tarefa, é necessário resgatar as possibilidades de ser e agir que ficaram no passado - para que possamos dizer com Kant, resgatando um sopro (ruach) de seu espírito, "Das Gefühl für Humanität, hat mich noch nicht verlassen" ("O senso de humanidade ainda não me deixou") (Panofsky, 1966). Esse pode ser não um sussurro, mas um "[...] grito misterioso que nos chega em rajadas, como se viesse do fundo do tempo, ou de um dia futuro [...]" (Pasolini apud Freitas, 1991, p. 177). Quem grita na imagem de Pasolini é o anjo da história de Walter Benjamin, entre o passado e o futuro; esse grito contém a "frágil força messiânica", transformadora e redentora, de que nos fala Benjamin (apud Freitas, 1991, p. 20). Nossa tarefa é ouvir esse grito, resgatá-lo das brumas do tempo, compreendê-lo, e agir.

Agradecimentos

Este trabalho é dedicado a Miriam Gomes de Freitas e a Edgar de Andrade Xavier.

Recebido em: 31/08/2007

Reapresentado em: 02/06/2008

Aprovado em: 14/07/2008

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  • 1
    Esse diálogo entre as teorias de Arendt e Jung foi desenvolvido pela Escola Junguiana de Porto Alegre (Vieira, 2003, 2006), mais especificamente nos trabalhos de Miriam Gomes de Freitas (1988, 1991).
  • 2
    Tradução do autor.
  • 3
    "O que é o Homem?" (Arendt, 1982, p. 12).
  • 4
    Resumindo os pontos de vista: Arendt foca a
    res publica; Jung foca a
    res individualis. O interesse e a filosofia de Arendt são extrovertidos; a psicologia de Jung é introvertida. Em última análise, Jung busca resgatar a relação com o Outro
    interno, ou seja, em cada um de nós (o inconsciente, e por fim o si-mesmo).
  • 5
    Por exemplo, transformar uma função instintiva sexual em atividade voltada à agricultura, através de um rito de plantio ver Jung, 1997, para uma discussão mais detalhada.
  • 6
    Note-se aqui a influência kantiana em Jung.
  • 7
    Discurso que aparece de várias maneiras: através de sonhos, fantasias, parapraxias, acontecimentos simbólicos.
  • 8
    O uso do termo em alemão,
    Selbst, antecede historicamente o uso do conceito de
    self na filosofia e na psicologia (
    self tornou-se, na prática, o equivalente a
    ego, perdendo o significado original de grandeza objetiva, que transcende o ego, do termo alemão).
  • 9
    É importante ressaltar que Jung abstém-se de afirmações metafísicas; o fato empírico e demonstrável de esse centro psíquico aparecer como divindade não prova (ou demonstra) a existência ou não-existência de uma divindade apenas que a psique humana produz essas representações e sempre as produziu.
  • 10
    Jung toma o étimo antigo de religião,
    religio (que ocorre em Cícero, por exemplo), e não o mais tardio,
    religare (que ocorre em Agostinho); uma conseqüência importante disso é que deriva a religiosidade original do exercício
    individual da função religiosa, e não necessariamente confessional (como em
    religare).
  • 11
    Podemos notar a semelhança entre
    religio em Jung e a necessidade de compreender e encarar a realidade em Arendt (conforme a epígrafe deste trabalho). A diferença, se é que há, é que Jung enfatiza a compreensão da realidade
    interior, e não primariamente da realidade política.
  • 12
    "Espiritual", na obra de Jung, porta a especificidade dos sentidos do termo
    Geist (espírito) em alemão.
  • 13
    Semelhante à que Arendt aponta, da antiguidade grega até o pensamento medieval, entre
    bios theoretikos (
    vita contemplativa) e
    bios politikos (
    vita activa). Em Jung, podemos dizer que ambas devem convergir no
    bios individualis.
  • 14
    As projeções tornam o mundo e as pessoas irreais, pois o indivíduo não se relaciona propriamente com uma outra pessoa, por exemplo, mas sim com seu próprio conteúdo inconsciente nela projetado.
  • 15
    Compare-se com a análise de Arendt
    A Mentira na Política (in Arendt, 1973).
  • 16
    Essa é uma questão de extrema complexidade: na verdade todo o mundo instintivo tem importância na questão da violência, não só o instinto de poder; mas, devido aos limites deste trabalho, e para tentar comparar com a teoria de Arendt, tivemos que eleger um dos tópicos possíveis para consideração.
  • 17
    Jung escreveu isso em 1917.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Set 2008

    Histórico

    • Recebido
      31 Ago 2007
    • Revisado
      02 Jun 2008
    • Aceito
      14 Jul 2008
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