RESUMO
Este estudo tem como objetivo descrever a percepção dos pais acerca da trajetória do paciente cirúrgico pediátrico, desde o diagnóstico, indicação de cirurgia até sua realização, reconhecendo fatores que levaram ao atraso no atendimento. Trata-se de estudo qualitativo, descritivo, que inicialmente identificou, nos prontuários, as crianças encaminhadas em atraso para a idade para avaliação com o cirurgião. Identificaram-se 77/289 (26,6%) pacientes encaminhados em atraso. Após sorteio realizaram-se entrevistas, por telefone, com sete pais. Utilizou-se da análise de conteúdo na modalidade temática com a emergência de três categorias: dificuldades encontradas; atendimento na atenção primária; e da descoberta do problema à realização da cirurgia. Em referência à espera para atendimento pelos especialistas, observa-se excesso de demanda ante a menor oferta de consultas. A qualidade do atendimento recebido na atenção primária foi bem avaliada e a empatia das equipes foi elogiada. Os familiares reconheceram que a espera pelo atendimento era considerada normal e esteve dentro do esperado, e que, mesmo sendo longa, quando não se tratava de emergência, era considerada aceitável. Conclui-se que o atendimento recebido foi considerado como de qualidade. Em relação ao tempo de espera pela avaliação e cirurgia, a escassez de profissionais da especialidade e a falta de coordenação na rede de atenção primária podem ser considerados como pontos de dificuldade no itinerário percorrido.
PALAVRAS-CHAVES Acesso aos serviços de saúde; Criança; Encaminhamento e consulta; Necessidades e demandas de serviços de saúde; Percepção do tempo
ABSTRACT
This study aims to describe parents’ perception of pediatric surgical patient’s trajectory, from diagnosis and indication for surgery to its completion, and to recognize factors that led to delays in care. This is a qualitative, descriptive study, which first identified in medical records children who were late referred for evaluation by the surgeon, and those responsible were randomly selected to be interviewed via telephone call. Content data analysis was carried out, thematic modality. Furthermore, 77/289 (26.6%)patients referred late were identified. Three thematic categories were listed: difficulties encountered; care in primary care; and from discovering the problem to performing surgery. Regarding the wait for the expert assessment, there is an excess of demand against a lower availability of appointments. A positive aspect was the quality of care received in primary care; the empathy of the teams was praised. Regarding the perception of time, family members considered the wait for care as normal and within expectations. Even when long, if it was not an emergency, it was considered acceptable. In conclusion, regarding the waiting time for evaluation and surgery, the lack of specialists and coordination of primary care may be pointed as difficulties during the course of care.
KEYWORDS Health services accessibility; Child; Referral and consultation; Health services needs and demand; Time perception
Introdução
A cirurgia pediátrica é uma especialidade com importante demanda de avaliações e encaminhamentos – provenientes, em sua maioria, da atenção primária –, a fim de verificar a necessidade de tratamento cirúrgico para algumas patologias comuns na infância, como hérnia inguinal, hérnia umbilical, hidrocele, fimose e criptorquidia. No entanto, trata-se de uma especialidade com distribuição muito desigual nas diversas regiões do Brasil, principalmente nas pequenas cidades do interior1. Distribuição heterogênea, que também está presente em outros países do mundo quando observadas as características específicas dessa especialidade2, 3. Desta forma, o atendimento à população infantil fica prejudicado e muitas vezes pode sofrer atrasos, levando ao diagnóstico e tratamento definitivos tardios, o que pode provocar consequências indesejadas. Outro fator que sabidamente contribui para o encaminhamento em atraso pode ser o desconhecimento dos profissionais que estão prestando atendimento na atenção primária acerca das patologias pediátricas cirúrgicas e suas particularidades4.
Além das questões específicas sobre a especialidade, há também os aspectos relacionados à estruturação do sistema público de saúde no Brasil, em que a atenção primária funciona como porta de entrada do sistema, e tem também a missão de coordenar o cuidado, a fim de garantir que este ocorra de forma integral5. Sendo assim, casos que não podem ser solucionados pela atenção primária devem ser encaminhados para tratamento ambulatorial ou hospitalar especializado6.
A atenção especializada como parte do sistema de cuidados integrais tem o objetivo de garantir a retaguarda técnica, assumindo a responsabilidade pelos usuários, cujos processos de diagnóstico e tratamento fundamentam-se em um vínculo principal com a rede básica, que deve ser preservado. O acesso à assistência especializada é feito a partir do encaminhamento das equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) para as unidades gerenciais, municipais ou estaduais, que assumem o compromisso do agendamento dos serviços para a atenção secundária7.
Nesse contexto, o acesso à atenção especializada é uma das maiores dificuldades do Sistema Único de Saúde (SUS), tanto pela oferta insuficiente de ações diagnósticas e terapêuticas quanto pelos modos de organização e funcionamento desse nível de atenção, incluindo-se, por exemplo, a qualidade e a quantidade de encaminhamentos e solicitações, o que gera uma importante sobrecarga neste ponto de atenção. A partir desta questão, princípios e diretrizes como equidade, transparência, utilização adequada e tempo oportuno de acesso aos serviços, com base na necessidade de cada usuário, visando à integralidade do cuidado, devem ser considerados5.
No que diz respeito à avaliação de uma criança ante possível patologia que exige intervenção cirúrgica, tem-se também a questão da percepção dos pais da existência do problema e a busca por ajuda nos diversos subsistemas do cuidado em saúde. Neste sentido, entra em cena o conceito de itinerário terapêutico, definido como as práticas individuais e so-cioculturais dos caminhos percorridos pelos indivíduos na busca pela solução do problema. Trata-se, portanto, de um conjunto de múltiplas redes formais e informais de apoio8. Os fatores socioculturais sabidamente interferem na percepção sobre a saúde e a doença, e na decisão de buscar por atendimento especializado. Assim, são identificados três diferentes subsistemas envolvidos no grande sistema de cuidados: popular – especialistas não profissionais da cura; folk (sistema informal) – inclui a família e a comunidade; e profissional – medicina científica e tradicional.
Os processos pelos quais os indivíduos escolhem, avaliam e aderem a determinadas formas de tratamento são elementos constitutivos do itinerário terapêutico9. Este processo de escolha é complexo e envolve diversos aspectos socioculturais da família, bem como do acesso e da estruturação do sistema de saúde. O subsistema formal consiste na medicina científica. O acesso da população a este subsistema depende de muitos fatores, alguns inerentes ao sistema de saúde e outros inerentes ao próprio usuário, entre eles: qualidade e resolutividade do serviço prestado, especificidade para atendimentos em pediatria, facilidade no acesso e transporte, assim como as experiências anteriores da família com o serviço de saúde. Experiências negativas no passado e falta de acolhimento pelos profissionais são fatores que influenciam negativamente na escolha da família, de buscar novo atendimento nessa rede. Também não é incomum que usuários não se dirijam à rede básica de atendimento por já terem vivenciado situações em que não receberam os devidos cuidados neste ponto de atenção8. O reconhecimento do itinerário terapêutico proporciona melhor avaliação da população que está sendo atendida, sua situação cultural e inserção na comunidade e, ainda, a identificação de fatores que possam estar dificultando o acesso da população ao atendimento pelo sistema formal.
No que se refere à cirurgia pediátrica, os problemas sociais e familiares causados pela longa espera por procedimentos cirúrgicos eletivos são evidentes, e tema de grande relevância para a especialidade. Portanto, é importante descrever a percepção dos pais acerca da trajetória do paciente cirúrgico pediátrico, desde o diagnóstico, indicação de cirurgia até sua realização, reconhecendo fatores que levaram ao atraso no atendimento.
Material e métodos
Para responder ao questionamento desta investigação, optou-se pela realização de estudo qualitativo. Primeiramente, para identificar quem seriam os participantes desta pesquisa, realizou-se levantamento de dados quantitativo, identificando as crianças que passaram por procedimentos cirúrgico no período de setembro de 2018 a março de 2020, em três hospitais da região Oeste do Paraná. A escolha do início do período de coleta deveu-se ao fato de que não havia, até setembro de 2018, naquela regional de saúde, nenhum ambulatório para atendimento eletivo na especialidade de cirurgia pediátrica pelo SUS. Ademais, o término do período avaliado coincidiu com o início da pandemia da covid-19, ocasião em que os atendimentos eletivos foram paralisados.
A coleta de dados foi realizada pela análise de prontuários eletrônicos dos pacientes operados e atendidos em três ambulatórios de cirurgia pediátrica do SUS, na 10ª Regional de Saúde do Estado do Paraná. As variáveis coletadas foram relativas à patologia cirúrgica, informações sobre o encaminhamento pela atenção primária e avaliação inicial pelo cirurgião, além de informações sobre o procedimento cirúrgico e os achados operatórios. Desse modo, identificou-se a idade em que o procedimento foi realizado, possibilitando reconhecer se houve atraso nos encaminhamentos. Além disso, buscou-se identificar os motivos do possível atraso. Para tal, foi realizada entrevista direta com pais ou responsáveis pelos pacientes que foram submetidos à cirurgia fora da faixa etária esperada para a patologia, o que caracteriza procedimento cirúrgico tardio. Os pacientes enquadrados nesses critérios compuseram o grupo de procedimentos em atraso, os quais foram randomizados pelo uso do website sorteador para a seleção daqueles que seriam entrevistados. Realizaram-se três tentativas de ligação telefônica, em três diferentes dias da semana e em diferentes períodos do dia (manhã, tarde e noite). Após as tentativas, aqueles que não atenderam às ligações foram contatados por aplicativo de mensagem para agendarem data e horário das entrevistas, que foram realizadas por um único entrevistador, via ligação telefônica, tendo sido gravadas no aplicativo de celular (Call Recorder) e posteriormente transcritas para documentos em Word®. Os pacientes que não possuíam telefone para contato no cadastro foram excluídos do grupo e não participaram da randomização para comporem os participantes da etapa qualitativa.
A entrevista foi conduzida pela seguinte questão norteadora: ‘Inicialmente, gostaríamos de saber quanto tempo levou para que, depois de atendido no posto de saúde, seu filho fosse encaminhado para avaliação com o cirurgião pediátrico?’. Para auxiliar no aprofundamento dos dados, empregou-se, ainda, um roteiro semiestruturado, contendo questões acerca dos motivos que levaram à demora no diagnóstico, encaminhamento e na realização do procedimento cirúrgico, e o percurso dos pais ou responsáveis na busca de atenção ao problema de saúde da criança, até a realização da cirurgia. Os dados das entrevistas foram submetidos à análise de conteúdo na modalidade temática10, sendo o conjunto de dados obtidos a partir das respostas dos responsáveis que retornaram os contatos dos pesquisadores.
Após a familiarização inicial com os dados, mediante leitura flutuante e impregnação do autor com o conteúdo das falas, o pesquisador obteve visão de conjunto e apreendeu as especificidades do fenômeno em análise. Na sequência, realizou-se a pré-análise, momento em que foi empregado o critério de saturação teórica11 dos dados para decidir sobre o encerramento das entrevistas, visto que, naquele momento, era possível seguir analisando as entrevistas e identificando os códigos iniciais que levaram a constructo teórico possível para responder ao questionamento da pesquisa. A codificação inicial foi feita pelo pesquisador principal e pelo segundo pesquisador, de forma independente, o que constituiu uma das etapas de validação e confiabilidade dos dados12, 13. Os dois pesquisadores compararam suas codificações, gerando codificação única de forma sistemática em quadros. Na etapa seguinte, pela observação de padrões repetidos nas entrevistas, os códigos foram agrupados em potenciais temas, alocando-se todos os dados (fragmentos das falas dos entrevistados, representativas dos códigos) pertinentes àquele tema no mesmo quadro. Posteriormente, mediante a revisão das informações e conferência de todas as entrevistas, depois de dupla codificação, chegou-se ao modelo final do mapa da análise, com temas e subtemas refinados, para somente então realizar a confecção do relatório da análise qualitativa.
O estudo foi submetido à análise do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, e somente após sua aprovação pelo parecer 5.023.889 (CAAE: 50835621.1.0000.0107), deu-se início à coleta de dados. Para inclusão no estudo, todos os responsáveis consentiram verbalmente com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) da pesquisa, que foi lido para os entrevistados, pelo pesquisador, durante a ligação telefônica. Outrossim, cumpriram-se os princípios éticos em conformidade com as Resoluções n° 466/2012 n° 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde14, 15.
Resultados
No período analisado, 410 pacientes pediátricos foram operados em caráter eletivo, dos quais 121 foram excluídos da amostra, pois os prontuários clínicos não foram encontrados devido a inconsistências nos dados de identificação. Assim, 289 pacientes compuseram a etapa inicial do estudo, sendo (72,3%) do sexo masculino, com idade média de 57,9 meses, na avaliação pelo cirurgião, e de 59 meses, na data da cirurgia. A procedência dos pacientes foi em sua maioria da atenção primária (75%) e a patologia mais incidente foi a hérnia inguinal (39,1%). O intervalo de tempo médio entre o encaminhamento pela atenção primária até a realização da cirurgia foi de 4,98 meses, e entre a avaliação pelo cirurgião e a realização da cirurgia foi de 1,21 meses.
Após a avaliação dos prontuários, constatou-se que 77 (26,6%) pacientes foram encaminhados em atraso e seus familiares poderiam compor o conjunto de participantes das entrevistas. Desse total, dez pacientes foram excluídos por não terem telefone cadastrado no prontuário eletrônico, portanto, 67 pacientes compuseram o grupo em atraso, cujos responsáveis estavam aptos a serem entrevistados. 51 (66,2%) dos pacientes eram do sexo masculino, com idade média de 58 meses na avaliação pelo cirurgião, e que a patologia mais incidente foi a hérnia inguinal, também em 51 dos casos (66,2%).
Para a seleção dos participantes, fez-se a randomização do grupo em atraso. A partir daí, entrou-se em contato com 17 responsáveis, sendo que 10 não atenderam as ligações telefônicas após as inúmeras tentativas e nem retornaram os recados enviados via aplicativo de mensagem rápida. Desse modo, foram entrevistados, um a um, os sete contatados com sucesso, fazendo-se a transcrição e análise de cada entrevista, em busca de constructo que indicasse ou não a necessidade de randomizar mais participantes. Como utilizou-se o critério de saturação teórica para a definição da amostra, constatou-se que não seria necessária a reposição dos dez pacientes randomizados que não atenderam ou retornaram o contato dos entrevistadores.
Dos sete responsáveis que participaram das entrevistas, seis eram mães e um era pai de criança operada; uma das crianças era do sexo feminino e as outras seis, do sexo masculino. Duas crianças eram moradoras da cidade-sede da Regional de Saúde e as demais, de outras cidades. Cinco eram portadoras de hérnia inguinal e duas, portadoras de criptorquidia. A idade média das crianças na avaliação pelo cirurgião foi de 79,1 meses (variando entre 33 e 125 meses), enquanto a idade média das crianças na data de realização da cirurgia foi de 80,7 meses (variando entre 35 e 125 meses).
No que diz respeito ao período da descoberta do problema cirúrgico até a realização da cirurgia, identificou-se que os familiares registraram diferentes percepções em relação ao tempo transcorrido entre o diagnóstico, o encaminhamento, a avaliação pelo cirurgião e a realização da cirurgia. Desse contexto, emergiram três categorias temáticas de análise.
Dificuldades encontradas
O primeiro ponto evidente nas entrevistas foi o ‘tempo de espera para a realização dos exames’ complementares necessários:
Achei que demorou um pouquinho, sim [a realização dos exames pré-operatórios]. Comparado à consulta com a cirurgiã, o exame foi o mais demorado. (E1).
Eu me lembro [tempo de demora entre o pedido e a realização dos exames] que ele só pediu e marcou como emergência, e daí, foi bem rápido. (E2).
Então, entre ser pedida [os exames], foi demorado um pouco, por causa da questão que era pra esperar. Mas pra ser feita, foi rápida porque eu fiz particular, né?, eu paguei. Assim que ela pediu, eu já fiz. (E7).
Outra questão aludida pelos entrevistados refere-se à ‘quantidade de pacientes na fila de espera’ para atendimento:
Talvez [tempo entre o encaminhamento para o cirurgião e a realização da cirurgia] por motivo de ter bastante paciente, né? [...]. (E6).
Tinha muita gente, tinha muita gente na fila, daí atrasou um pouco. Mas logo depois passou para uma doutora lá, que eu esqueci o nome dela, e daí ela pediu mais urgência por causa da... por causa da hérnia dele, que estava muito grande. (E5).
Alguns aspectos abordados pelos familiares nas entrevistas geram pontos a serem discutidos, como a necessidade de que exames sejam caracterizados como urgentes para que possam ser realizados com agilidade, bem como a realização de exames complementares em sistema de saúde complementar para suprir a dificuldade de fazê-los por meio do sistema público, o que onera os pacientes, muitos que não possuem condições financeiras para arcar com tais despesas. As dificuldades mencionadas, portanto, referem-se ao tempo de espera e à demanda por atenção especializada.
Atendimento na atenção primária
A ‘percepção do usuário sobre o atendimento recebido’ por ele na atenção primária demonstrou satisfação.
Muito bom [atendimento recebido na unidade de saúde], eu só falei assim: ‘Doutor, eu tenho uma dúvida: eu acho que um lado dele é maior do que o outro, parece que um é crescido’. E ele foi bem atencioso, examinou, e daí ele falou que era uma hérnia. (E2).
Foi, foi bem tranquila [consulta na unidade de saúde]. Bem rápido... Gostei também, na época, porque foi bem direcionado para essa parte de criança, da parte pediátrica mesmo. Então, foi bem tranquilo e bem rápido também. (E4).
Receberam [profissionais da Atenção Básica em Saúde (ABS)] nós muito bem, foi bem atendido. (E5).
Ah, na verdade, eu não tenho o que reclamar, né? Teve um pouco a demora, né? Mas, fazer o quê? (E7).
Ainda, observou-se a ‘percepção do usuário acerca da forma como se organiza o sistema de saúde’:
Eu acho que, no meu ponto de vista, pensar assim, em questão de SUS... eu acho assim: que deveria ser mais estruturado os municípios, né? Só uma, uma sensação da minha experiência, né? Tipo assim: na nossa cidade, é tudo encaminhado, né?, para Cascavel [PR], e eu acho que muitas vezes as pessoas vão lá e perdem um tempo muito grande, um dia, por nada... Só para ir lá e pegarem o encaminhamento de um doutor, né? Talvez essa questão assim, do SUS, ela devia ser integralizada... Não sei se seria isso... Tipo assim: para otimizar mais o tempo das pessoas também, sabe? Não muito, não muito centralizado em um centro somente... Às vezes, tem algumas especialidades que poderiam ser resolvidas nos próprios municípios, né? (E4).
Um aspecto positivo, encontrado de forma unânime nas entrevistas, foi a ‘qualidade do atendimento recebido na atenção primária’. Apesar de eventual demora por conta do excesso de pacientes, inúmeros foram os elogios à empatia das equipes.
Da descoberta do problema à realização da cirurgia
As famílias relataram o processo da descoberta do problema, do diagnóstico e dos encaminhamentos, além da realização da cirurgia propriamente dita, emergindo como subtema a ‘percepção do tempo’:
O [encaminhamento] dela até que não demorou muito, foi mais ou menos rápido. De quando ela fez a primeira consulta, os exames, até ser chamada, assim, não demorou demais. Eu não lembro exatamente, mas deve ter demorado um ano, um ano e pouquinho. No caso dela, que não era considerado grave, eu ... eu acho que foi um tempo bom. (E1).
Para nós, foi mais rápido do que pensamos. (E3).
Achei um pouquinho a demora, né? [...]. Ah, é ruim, né?, porque, às vezes, vai saber o que pode acontecer?! No caso, não era uma coisa muito grave, mas, é demorado... Na verdade, hoje em dia, tudo demora, né? Ainda mais pelo SUS [...], mas depois que ele foi chamado, tudo foi bem. (E7).
[...] fazer o quê? Tinha que esperar, o povo tem que esperar. Porque já encaminharam e falaram que saía urgente, e daí, com três meses, já pedimos, e daí, deu tudo certo. [...] foi longa, sim, por causa que já tinha começado bem antes, né? Mas os três meses só, não foi muita espera, não, em vista do que está hoje, né? (E5).
Ainda sobre a trajetória dos pacientes e familiares, quando questionados a respeito da suspeição e confirmação do diagnóstico, emergiu o segundo subtema, ‘descrevendo a busca pelo atendimento’:
Eu que percebi, em casa [problema de saúde do filho]. [...] daí, procurei um pediatra e ele me encaminhou para o especialista. (E1).
[...] nós aqui de casa que percebemos que um lado era maior do que o outro [identificaram a hernia inguinal e levaram a criança à unidade de saúde]. (E2).
Se eles [profissionais da ABS] não tivessem visto o problema, não sei como seria. Desde pequeno, ninguém tinha visto o devido problema. E nesta consulta foi onde descobrimos. Ficamos satisfeitos com o atendimento. (E3).
Diversos aspectos foram observados nesse contexto. No que diz respeito ao itinerário terapêutico, observou-se que em sua maioria os próprios pais ou responsáveis identificaram alterações na criança que motivaram a busca pelo atendimento na atenção primária, e em outras situações, as alterações foram percebidas em consultas de rotina. Em relação à percepção do tempo pelas famílias, observa-se que a espera pelo atendimento já é considerada normal e que mesmo uma espera mais longa, quando não se trata de uma emergência, pode ser considerada aceitável. Em alguns casos, os familiares previram até esperas mais longas, com base na experiência de conhecidos que também precisaram desses serviços. No entanto, como não havia outra opção, existiu uma aceitação do serviço que era oferecido e da forma como foi oferecido.
Discussão
A suspeição e confirmação de uma patologia nas crianças, ainda mais quando há necessidade de tratamento cirúrgico, consiste em fator estressor para o paciente e todo o seu círculo familiar. A incerteza do desfecho e as preocupações com a demora na resolução do quadro tendem a ser fatores agravantes nesse quesito. Além do efeito psicossocial envolvido, também há o efeito econômico, visto que o responsável pela criança frequentemente deixa de trabalhar para acompanhá-la em suas consultas. Além disto, a necessidade de internamentos, exames e intervenções adicionais também resultam em custos ao sistema de saúde16.
De acordo com o modelo dos três atrasos4 – inicialmente, descrito na literatura para avaliar a mortalidade materna, mas que passou globalmente a ser adotado também na área de cirurgia –, os tipos de atrasos podem ser identificados como: tipo 1 – atraso na decisão de procurar pelo atendimento; tipo 2 – atraso para chegar ao serviço de saúde; e tipo 3 – atraso na realização dos cuidados de saúde.
A aplicação do modelo supracitado pode avaliar o tipo ocorrido no presente estudo – a ‘espera para encaminhamento à especialidade’, que se enquadra no modelo de atraso do tipo 1, referindo-se à questão da procura da família pelo atendimento inicial. Segundo os dados obtidos pelas entrevistas, somente um familiar referiu não ter notado a alteração no paciente, que só foi percebida pelo médico da atenção primária em consulta de rotina. Nos outros casos, assim que os responsáveis/familiares levantaram a suspeita clínica, procuraram imediatamente o sistema formal de atendimento.
Em relação aos atrasos dos tipos 2 e 3, estão envolvidos os ‘aspectos relativos ao sistema de saúde’ de cada país. Sendo assim, o atraso aconteceu devido aos ‘fatores relacionados ao sistema de saúde’. No Brasil, desde sua criação pela Lei nº 8.080/1990, o SUS passou por diversas reestruturações, e vem enfrentando muitos desafios na busca por garantir aos usuários o cumprimento de seus princípios. A partir da constatação, no início dos anos 2000, de que a maioria das cidades, isoladamente, não possui condições de garantir a integralidade aos seus cidadãos, recebeu ênfase o processo de descentralização, definindo o espaço regional como essencial na construção do SUS17.
Nesse contexto, foi estruturada a Atenção Primária à Saúde (APS), que visa oferecer cuidado profissional generalista, abrangente, com acesso universal facilitado, acompanhando o paciente ao longo do tempo, filtrando suas necessidades e acionando os cuidados especializados prestados por outros serviços do sistema de saúde, quando necessário18.
As redes de atenção representam uma estratégia de organização da saúde, que visa promover a integração do cuidado para a garantia de sua longitudinalidade. Após sua instituição, se apresentam como um conjunto articulado e interdependente de unidades de saúde, com objetivo de proporcionar atenção integral e contínua, de acordo com a necessidade individual de cada cidadão. Compreender o conceito de integração de cuidados é fundamental na definição das Redes de Atenção à Saúde (RAS)17, incluindo a atenção à saúde da criança.
A coordenação do cuidado na APS brasileira enfrenta muitas dificuldades, especialmente no que se refere à interação e continuidade do cuidado entre os diferentes serviços das RAS, como ocorre entre a APS e a atenção especializada, quando o paciente requer encaminhamento. No que diz respeito à regulação do acesso a estes diferentes níveis de atenção, destacam-se as centrais de regulação e os complexos reguladores, espaços privilegiados de observação, com visão abrangente do sistema de saúde, para uma melhor organização das redes e dos fluxos assistenciais, disponibilizando o acesso do usuário ao atendimento especializado, sempre que necessário. É neste ponto que tange o acesso aos serviços de saúde que se encontra a maior dificuldade dos pacientes participantes deste estudo. Isto porque, ainda que o acesso à APS seja facilitado e que, diante da suspeita do problema, os familiares prontamente tenham conseguido atendimento e encaminhamento nas unidades de saúde, o acesso à atenção especializada e aos exames complementares – especialmente, de imagem – foi obtido somente após longa espera. E, em alguns casos, ainda sendo necessária a realização dos exames no sistema de saúde privado para suprir a demora e a dificuldade em fazê-lo pelo sistema público. Assim, por todas as questões já citadas, tal dificuldade se torna ainda maior nas cidades do interior do País, afastadas dos grandes centros de referência e das capitais.
O recentemente criado projeto A Organização da Atenção Ambulatorial Especializada em Rede com a Atenção Primária à Saúde (PlanificaSUS) propõe diversas estratégias para a melhoria da gestão do cuidado no SUS, no âmbito da atenção especializada, descrevendo, entre outras, o conceito de lista de espera, como uma tecnologia da gestão clínica que objetiva racionalizar o acesso aos serviços de saúde nos quais há desequilíbrios entre suas demandas e ofertas19. Como já discutido, estes desequilíbrios são manifestações de uma descoordenação na atenção à saúde, que podem ser decorrentes tanto da demanda excessiva de pessoas em fila de espera quanto da baixa oferta de serviço especializado.
O modelo regulatório vigente no SUS, em geral, tende a reforçar as dificuldades e a oferta insuficiente, o que acaba agravando os problemas. Em geral, não existem critérios objetivos e baseados na clínica para a inclusão ou a exclusão dos pacientes das filas, e a questão requer, para sua solução, ações concomitantes de racionalização nos campos da demanda, da oferta e dos sistemas logísticos; e exige, para sua solução, ações de racionalização e comunicação entre APS, atenção especializada, sistemas de apoio diagnóstico e terapêutico, e sistemas logísticos7. Os longos tempos de espera representam um dos principais problemas dos sistemas de atenção à saúde, não só no Brasil, mas também em países de primeiro mundo, como em alguns da Europa Ocidental e no Canadá, porque geram insatisfação nas populações e aumentam os custos da atenção. Enquanto as listas de espera mostram os usuários em busca de atenção em um ponto determinado do tempo, o período de espera evidencia o diferencial temporal para oferecer o serviço, em função da atual e da futura oferta19.
A superação do problema do tempo de espera exige melhorias de oferta e intervenções na organização da demanda. Quanto à oferta, o incremento da produtividade dos serviços é fundamental. Uma boa política de superação dos tempos de espera inclui a combinação entre medidas de demanda e de oferta, além da definição de metas nacionais, em relação a tempos de espera máximos, o que hoje não é bem estabelecido,19. Outro ponto a ser levantado aqui refere-se à ‘espera para atendimento pelos especialistas’, em que se observa um excesso de demanda frente a uma menor oferta de consultas, além da escassez de profissionais em determinadas áreas, como a cirurgia pediátrica. Situação esta que, na Regional de Saúde em estudo, ainda se agrava pelo fato de que é necessário atender às demandas de outras Regionais de Saúde próximas, visto que estas não possuem especialistas na área da cirurgia pediátrica.
Nesse processo de reordenamento dos sistemas e de melhor estruturação e coordenação do cuidado, o fortalecimento da APS se configura como uma estratégia bastante importante7. Na APS, os pacientes pediátricos são atendidos pelos mais diversos especialistas, desde clínicos gerais até médicos da família e comunidade, e, em alguns casos, de pediatras. O conhecimento dos profissionais que prestam assistência a esta população, sobre as patologias cirúrgicas pediátricas e o tempo ideal em que a criança deve ser avaliada pelo cirurgião e operada, é outro item de questionamento pertinente. Por serem patologias pouco usuais para tal grupo de médicos, o ideal seria que eles recebessem algum tipo de educação em serviço ou uso de protocolos direcionados ao tema, a fim de que tivessem subsídios para orientação e melhor definição dos casos avaliados, evitando atrasos no encaminhamento ao especialista, quando este se fizesse necessário.
O presente estudo possui limitações, como área de abrangência reduzida, olhar específico para uma única especialidade, curto tempo de observação, seguimento pós-operatório curto e o fato de ser prospectivo. Porém, levanta importantes pontos a serem mais bem estudados e avaliados, a fim de que seja possível propor melhorias no itinerário terapêutico da população infantil com algum comprometimento, que requeira avaliação do cirurgião pediátrico, facilitando o encaminhamento das crianças dentro do tempo preconizado, para que sejam operadas nas faixas etárias previstas, assim evitando complicações futuras em decorrência de atraso no encaminhamento e na cirurgia.
Considerações finais
A abordagem qualitativa permitiu identificar o caminho percorrido pelos pacientes até a realização da cirurgia, e os relacionados a tal itinerário foram elencados. Observou-se que os familiares reconheceram a espera como satisfatória e dentro do esperado por eles, pois, em se tratando de um sistema público de saúde, para eles, a espera era normal. Apesar de algumas dificuldades iniciais, com encaminhamentos e exames de imagem, todos tiveram as cirurgias realizadas e consideraram o atendimento recebido no percurso como bom e de qualidade.
Infere-se que a escassez de profissionais da especialidade e a falta de coordenação na rede de atenção primária – que dificulta a articulação entre os serviços da rede –, podem ser levantadas como pontos de dificuldade durante o processo.
-
Suporte financeiro: não houve
Referências
-
1 Jesus LE, Aguiar AS, Campos MSM, et al. Formação e demanda do cirurgião pediátrico no Brasil. Rev Col Bras Cir. 2009;36(4):356-361. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-69912009000400016
» https://doi.org/10.1590/S0100-69912009000400016 -
2 Toobaie A, Emil S, Ozgediz D, et al. Pediatric surgical capacity in Africa: Current status and future needs. J Ped Surg. 2017;52(5):843-848. DOI: https://doi.org/10.1016/j.jpedsurg.2017.01.033
» https://doi.org/10.1016/j.jpedsurg.2017.01.033 -
3 Petroze RT, Calland JF, Niyonnkuru F, et al. Estimating pediatric surgical need in developing countries: a household survey in Rwanda. J Ped Surg. 2014;49(7):1092-1098. DOI: https://doi.org/10.1016/j.jpedsurg.2014.01.059
» https://doi.org/10.1016/j.jpedsurg.2014.01.059 -
4 Pilkington M, Situma M, Winthrop A, et al. Quantifying delays and self-identified barriers to timely access to pediatric surgery at Mbarara Regional Referral Hospital, Uganda. J Ped Surg. 2018;53(5):1073-1079. DOI: https://doi.org/10.1016/j.jpedsurg.2018.02.045
» https://doi.org/10.1016/j.jpedsurg.2018.02.045 -
5 Melo EA, Gomes GG, Carvalho JO, et al. A regulação do acesso à atenção especializada e a Atenção Primária à Saúde nas políticas nacionais do SUS. Physis. 2021;31(1):e310109. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312021310109
» https://doi.org/10.1590/S0103-73312021310109 - 6 Solla J, Chioro A. Atenção ambulatorial especializada. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, et al., organizadores. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. p. 547-576.
-
7 Evangelista MJO, Guimarães AMDN, Dourado EMR, et al. O planejamento e a construção das Redes de Atenção à Saúde no DF, Brasil. Ciênc saúde coletiva. 2019;24(6):2115-2124. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232018246.08882019
» https://doi.org/10.1590/1413-81232018246.08882019 -
8 Siqueira SMC, Jesus VS, Camargo CL. Itinerário terapêutico em situações de urgência e emergência pediátrica em uma comunidade quilombola. Ciênc saúde coletiva. 2016;24(6):179-189. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232015211.20472014
» https://doi.org/10.1590/1413-81232015211.20472014 -
9 Demetrio F, Santana ER, Pereira-Santos M. O Itinerário Terapêutico no Brasil: revisão sistemática e metassíntese a partir das concepções negativa e positiva de saúde. Saúde debate. 2019;43(7):204-221. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S716
» https://doi.org/10.1590/0103-11042019S716 -
10 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciênc saúde coletiva. 2012;17(3):621-626. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000300007
» https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000300007 - 11 Taquette SR. Análise de dados de pesquisa qualitativa em saúde. In: Anais do 5° Congresso Ibero-Americano de Investigação Qualitativa; 2016; Porto. Porto: CIAIQ, 2016. p. 1111-1120.
-
12 Sandelowski M. The problem of rigor in qualitative research. ANS Adv Nurs Sci. 1986;8(3):27-37. DOI: https://doi.org/10.1097/00012272-198604000-00005
» https://doi.org/10.1097/00012272-198604000-00005 - 13 Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesq Qualit. 2017;5(7):1-12.
- 14 Ministério da Saúde (BR); Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos e revoga as Resoluções CNS nos. 196/96, 303/2000 e 404/2008. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 jun 13; Seção I:549.
- 15 Ministério da Saúde (BR); Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2016 maio 24; Seção I:44.
-
16 Arulanandam B, Dorais M, Li P, et al. The burden of waiting: wait times for pediatric surgical procedures in Quebec and compliance with national benchmarks. Can J Surg. 2021;64(1):14-22. DOI: https://doi.org/10.1503/cjs.020619.
» https://doi.org/10.1503/cjs.020619. - 17 Ouverney AM, Noronha JC. Modelos de organização e gestão da atenção à saúde: redes locais, regionais e nacionais. In: Fundação Osvaldo Cruz. A saúde no Brasil em 2030. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. v. 3. p. 143-182.
-
18 Tesser CD, Neto PP. Atenção especializada ambulatorial no Sistema Único de Saúde: para superar um vazio. Ciênc saúde coletiva. 2017;2(3): 941-951. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232017223.18842016
» https://doi.org/10.1590/1413-81232017223.18842016 - 19 Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein. PLANIFICASUS: Workshop 4 – Gestão do Cuidado. São Paulo: Hospital Israelita Albert Einstein, Ministério da Saúde; 2019. 44 p.: il.
Editado por
-
Editora responsável: Maria Lucia Frizon Rizzotto
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Out 2024 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2024
Histórico
-
Recebido
01 Jun 2023 -
Aceito
09 Maio 2024