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A saúde de mulheres lésbicas e bissexuais: experiências das profissionais de saúde no município de Belford Roxo/RJ

RESUMO

O trabalho visa conhecer a percepção das profissionais de saúde no cuidado de mulheres lésbicas e bissexuais. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com 12 profissionais de diferentes áreas e unidades de saúde da cidade de Belford Roxo (RJ). Em relação aos resultados, destacam-se duas temáticas com seus respectivos núcleos de sentidos: 1) o atendimento prestado a mulheres lésbicas e bissexuais na unidade de saúde; 2) facilitadores e dificultadores do acesso de mulheres lésbicas e bissexuais aos serviços. Apesar do reconhecimento de que a diversidade no cuidado à saúde da mulher faz parte do cotidiano das profissionais entrevistadas, as demandas e as especificidades de saúde de mulheres lésbicas e bissexuais ainda são pouco valorizadas nas práticas de cuidados, mantendo protocolos heteronormativos. O diálogo sobre a diversidade feminina, acerca do conhecimento e da materialização da Política LGBT é essencial para os profissionais e gestores, propiciando mudanças nesse cenário e minimizando as dificuldades de acesso. Por fim, é preciso discutir em que medida a política de saúde da população LGBTQIA+ vem sendo abordada nos currículos e está na agenda de compromissos da gestão municipal de modo a garantir os direitos dessa população nos serviços de saúde.

PALAVRAS-CHAVE
Minorias sexuais e de gênero; Acessibilidade aos serviços de saúde; Saúde da mulher; Homossexualidade feminina

ABSTRACT

This study aims to understand the perception of healthcare professionals regarding the care of lesbian and bisexual women. This qualitative research project involves 12 professionals from several fields and Belford Roxo, Rio de Janeiro, healthcare facilities. Regarding the results, we underscore two main themes with their respective core meanings: 1) Care provided to Lesbians and Bisexuals in Healthcare Facilities; 2) Facilitators and barriers for Lesbians and Bisexuals to accessing services. Despite the recognition that diversity in women’s healthcare is part of the daily routine of the interviewed professionals, the health needs and specificities of lesbian and bisexual women are still undervalued in care practices, preserving heteronormative protocols. Dialogue on female diversity, knowledge, and the materialized LGBT policy is essential for professionals and managers, enabling changes in this setting and minimizing access difficulties. Finally, we should discuss how LGBTQIA+ health policy is being addressed in curricula and is on municipal management commitments’ agenda to guarantee this population’s rights in health services.

KEYWORDS
Sexual and gender minorities; Health services accessibility; Women’s health; Homosexuality, female

Introdução

Apesar de assegurado o direito à saúde, garantido na Constituição de 198811 Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988., alguns grupos populacionais, quando procuram atendimento, encontram dificuldades de acesso aos serviços de saúde. Mulheres lésbicas e bissexuais vêm denunciando que suas demandas e especificidades são invisibilizadas pelos profissionais de saúde, sendo isso influenciado pela heterossexualidade compulsória, que contribui para o apagamento dessas mulheres - e quando conseguem acesso, são expostas a discriminação e preconceito.

Em relação às mulheres lésbicas e bissexuais, afiguram-se especificidades e singularidades, que são atravessadas pela questão de gênero, orientação sexual, identidade de gênero, podendo inclusive se fazer um recorte étnico-racial e de classe22 Araújo LM, Penna LHG. A relação entre sexo, identidades sexual e de gênero no campo da saúde da mulher. Rev. Enferm UERJ. 2014; 22(1):134-138.. Diante da existência desses marcadores sociais, a situação de invisibilidade dessas mulheres, promovida de forma consciente ou inconsciente, pode comprometer a experiência das mulheres lésbicas durante o atendimento por parte dos serviços de saúde33 Brasil. Ministério da Saúde. Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais: Relatório da Oficina Atenção à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais. Brasília, DF: MS; 2014., contribuindo para uma busca menor por consultas ginecológicas em relação às mulheres heterossexuais, acarretando a vulnerabilidade, o adoecimento e o agravamento do quadro de saúde ou até a morte.

Em que pesem os avanços e as conquistas, fruto da luta por garantias de direitos à saúde pelos movimentos feministas e lésbicos, as especificidades e as demandas de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros, Queer, Intersexo, Assexuais e outras (LGBTQIA+) ainda não têm apresentado o devido reconhecimento44 Silva AN. Políticas públicas de saúde voltadas as lésbicas: analisando o contexto de produção dos textos e das práticas de cuidados. [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher e da Criança Fernandes Figueiras; 2021.. Desde a publicação da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSI-LGBT)55 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: MS; 2013., um marco no reconhecimento das demandas desse grupo populacional, têm se intensificado as denúncias por violações de direitos e exclusão nos serviços de saúde66 Lionço T. Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saúde Soc. 2008; 17(2):11-21..

Material e métodos

Trata-se de um estudo descritivo-exploratório, com abordagem qualitativa. O método escolhido foi o de interpretação dos sentidos, para compreender os sentidos atribuídos pelas profissionais de saúde durante o atendimento às mulheres lésbicas e bissexuais77 Gomes R. Análise e intepretação de dados de pesquisa qualitativa. In: Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2016. p. 72-95..

Os cenários de estudo foram unidades de saúde localizadas no município de Belford Roxo, no Rio de Janeiro. Participaram da pesquisa: 12 profissionais selecionadas por critério de gênero, de diferentes áreas e unidades de saúde, que aceitaram voluntariamente fazer parte da pesquisa. Foram excluídos profissionais do gênero masculino, as que estavam afastadas por férias, licença especial e por motivo de doença no período em que foram realizadas as entrevistas.

A produção dos dados foi realizada por meio da técnica de entrevistas narrativas88 Gomes R, Mendonça EA. A representação e a experiência da doença: princípios para a pesquisa qualitativa em saúde. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002. p. 109-132., utilizando um roteiro semiestruturado, feita a entrevista no local de atuação das participantes, no período de maio de 2022. Houve também um questionário sociodemográfico e informações sobre processo de formação e tempo de atuação. As narrativas das profissionais de saúde foram gravadas e posteriormente transcritas.

Os passos para a interpretação das narrativas foram: a) leitura compreensiva do material; b) identificação e problematização das ideias explícitas e implícitas nos materiais; c) busca de sentidos relacionados com as falas e as ações dos sujeitos da pesquisa; e d) elaboração de síntese interpretativa, procurando articular objetivo do estudo, base teórica adotada e dados empíricos88 Gomes R, Mendonça EA. A representação e a experiência da doença: princípios para a pesquisa qualitativa em saúde. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002. p. 109-132..

A pesquisa seguiu as recomendações e diretrizes éticas e legais necessárias à boa prática de pesquisa, de acordo com as Resoluções nº 466/2012 e nº 510/20161 do Conselho Nacional de Saúde; sendo aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz - Ensp/Fiocruz (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética - CAAE 57021522.1.0000.5240, número do parecer: 5.434.546). Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; e para manter o anonimato dos participantes, designou-se, a cada uma delas, um código: de S1 até S12. É importante ressaltar que a pesquisa não contou com recursos financeiros de patrocinadores para a sua realização, ou seja, foi realizada com recursos próprios.

Para análise dos dados, foi utilizado o referencial teórico de Pierre Bourdieu: habitus, campos e violência simbólica99 Bourdieu P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 1992.,1010 Bourdieu P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Russel; 1998., visto que esses conceitos são fundamentais para compreender como, no campo, perpetuam-se as desigualdades e como essas profissionais constroem seus cuidados, já que essas são responsáveis, no campo, em legitimar as necessidades de saúde da população.

Resultados e discussões

No conjunto de dados analisados, afiguram-se três categorias de análise: 1) conhecendo as profissionais de saúde do município de Belford Roxo; o atendimento prestado a mulheres lésbicas e bissexuais na unidade de saúde; e facilitadores e dificultadores do acesso de mulheres lésbicas e bissexuais aos serviços.

Conhecendo as profissionais de saúde do município de Belford Roxo

Quanto as 12 profissionais de saúde entrevistadas, observa-se que, em relação ao gênero, há predomínio de mulheres cis (100%). Sobre a sexualidade, a maioria delas definiu-se como heterossexual, ou seja, 66,7%. Em relação à religião, a predominante era a católica (33,3%). Essas mulheres estavam situadas na faixa etária de 50 a 56 anos (41,7%).

As participantes possuem experiência no cuidado à saúde, visto que possuem mais de sete anos de atuação. Quanto à capacitação profissional, a maioria das participantes tinha alguma especialização lato sensu, porém, com predomínio da especialização em saúde mental (33,3%), seguida de especialização em violência (16,6%). Uma participante relatou especialização latu sensu em psicologia social, e outra, em nutrição clínica.

O Atendimento prestado a mulheres lésbicas e bissexuais na unidade de saúde

Podem-se destacar duas concepções nessa categoria: abordagem durante o atendimento a mulheres lésbicas e bissexuais; e demandas apresentadas pelas mulheres. Quando as profissionais foram questionadas como esses atendimentos ocorrem, as respostas foram similares entre as entrevistadas no que se refere ao fato de que não necessariamente a busca por atendimento está relacionada com as questões de saúde, o que pode ser observado nas narrativas:

[...] questões de conflitos familiares. A procura foi por conta de conflito familiares e no decorrer do atendimento, elas verbalizaram a orientação sexual. (S1).

[...] é difícil identificar. Não lembro de ter atendido. Somente um homem trans e com uso de nome social. (S5).

Nesse sentido, a decisão de procurar os serviços de saúde está relacionada com outros problemas, tais como: conflitos familiares e desconhecimento sobre terem atendido essa população. Outro fato que aparece na fala de uma das entrevistadas refere-se ao simbolismo do feminino:

[...] acho que houve uma identificação simbolicamente do feminino. (S1).

[...] o fato de ser uma mulher lésbica acho que me ajuda. (S9).

Existe a necessidade de refinar a abordagem da questão do acesso a cuidados ginecológicos entre mulheres lésbicas e bissexuais, levando em conta a diversidade dessas mulheres, de suas experiências e as diferentes representações que têm sobre o próprio corpo, o risco de adoecimento e o papel da busca por cuidados ginecológicos, de modo a produzir ações mais efetivas no sentido de reduzir as dificuldades ao acesso1111 Barbosa RM, Facchini R. Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2009; 25(supl2):s291-s300..

Por outro lado, acreditam que a visibilidade existente nas mulheres lésbicas masculinizadas facilitaria o atendimento. O habitus heteronormativo presente nas práticas de saúde leva as profissionais a realizarem seus cuidados voltados à heterossexualidade, o que pode contribuir para a naturalização da heterossexualidade e o não reconhecimento de vivências sexuais e de gênero plurais1212 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl3):5351-5360..

Outro ponto importante foi o não reconhecimento das demandas reais das mulheres lésbicas e bissexuais. Quando as profissionais foram questionadas sobre seu conhecimento sobre as principais demandas apresentadas e a não vinculação com os serviços e as equipes, as respostas foram preocupantes:

[...] as demandas de saúde encontrada na equipe são na saúde emocional e na busca dos atendimentos no cuidado da saúde da mulher. (S4).

[...] as demandas são muito poucas e somente quando os colegas têm dúvidas eles me acionam. (S10).

[...] elas não voltam por causa dos preconceitos. Principalmente nas portas das unidades... [acolhida e recepção]. As perguntas na entrada dos atendimentos, dependendo de como são feitas, as pessoas se recolhem e não se sentem acolhidas. Ou pior, se sentem constrangidas. (S2).

A percepção das entrevistadas aponta que as experiências vivenciadas pelas mulheres lésbicas e bissexuais durante o atendimento nos serviços de saúde contribuem para que elas não retornem. Considerando essa realidade, faz-se necessário manter um olhar atento às inclusões, às exclusões, às possibilidades e aos limites que colocam no processo cotidiano de trazer dado sujeito político, com suas demandas, para o espaço público. Tal olhar possibilita tomar os sujeitos enunciados pelo movimento como sempre abertos à inclusão, acolhendo novas e diferentes demandas, questionando arranjos hierárquicos1111 Barbosa RM, Facchini R. Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2009; 25(supl2):s291-s300..

Quanto à organização dos serviços, para atender às demandas das mulheres lésbicas e bissexuais, as narrativas mostraram que há ausência de acolhimento que permita a escuta de suas vivências. Além disso, os protocolos de atendimentos mantêm formato para atendimento a mulheres heterossexuais, o que mostra nas narrativas:

Falta inclusão... (S1).

Não vejo nenhuma ação. (S3).

Não estão organizadas. (S4).

Não tem ações… (S6).

Nenhum trabalho e nenhuma ação. (S7).

Não tem nenhuma organização para esse atendimento. (S8).

Corroborando as narrativas, outros estudos apontam que um dos desafios nos atendimentos enfrentados por mulheres lésbicas e bissexuais no acesso aos serviços de saúde está no atendimento humanizado, com um olhar para as especificidades das pacientes lésbicas e bissexuais, o que requer dos profissionais preparo e qualificação para o reconhecimento das necessidades dessa população. Isso implica a ressignificação das habilidades e competências durante o processo de formação dos profissionais de saúde, para o reconhecimento das reais demandas da população que está sob seus cuidados, promovendo um espaço de acolhimento, criação de vínculo, que respeite às singularidades e desconstrua qualquer forma de violência institucionalizada1212 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl3):5351-5360..

Além disso, a não inclusão da PNSI-LGBT na formação dos profissionais, a utilização de protocolos e as intervenções a partir de um olhar heteronormativo vêm dificultando a construção de vínculos e o cuidado, produzindo um atendimento fragmentado, que contribui para exclusão e violência simbólica, dificultando o acesso e a permanência dessas mulheres nos serviços de saúde1212 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl3):5351-5360.,1313 Santana ADS, Lima MS, Moura JWS, et al. Dificuldades no acesso aos serviços de saúde por lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Rev. enferm UFPE. 2020; 13:e243211..

A invisibilização das demandas e das especificidades de mulheres lésbicas e bissexuais no atendimento à saúde está atrelada ao habitus99 Bourdieu P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 1992.,1010 Bourdieu P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Russel; 1998. heteronormativo, presente nas práticas de saúde e no processo de formação dos profissionais de saúde, que direcionam seu cuidado voltado para mulheres heterossexuais1212 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl3):5351-5360.. Essa naturalização vem contribuindo para violência simbólica e fragmentação do cuidado integral.

Facilitadores e dificultadores do acesso de mulheres lésbicas e bissexuais aos serviços

Ao serem questionadas a respeito das facilidades ao conduzirem os atendimentos de lésbicas e mulheres bissexuais nos serviços de saúde, observou-se que a existência de profissionais lésbicas e bissexuais na equipe é um facilitador nas experiências de atendimento:

[...] acho que o fato do feminino. Talvez, o fato delas carregarem ainda em si essa questão do feminino. Acho que houve uma identificação simbolicamente do feminino. (S1).

[...] o fato de ser uma mulher lésbica acho que me ajuda. (S9).

[...] acreditamos que qualquer unidade de saúde tem que ter uma visão holística, onde possamos ver um todo por igual. Uma vez que, um olhar amplo no atendimento pode facilitar o acolhimento do paciente. E, incluo ainda, que temos mulheres lésbicas e/ou bissexual em nossa equipe, o que nos capacita todos os dias. (S12).

Ainda sobre os facilitadores de acessos e atendimentos, ao serem questionadas sobre quais facilidades elas acreditam ser necessárias para conduzirem esses atendimentos, as profissionais afirmaram que:

[...] acho que seria de grande valia que esses profissionais fossem capacitados para isso dentro das unidades. Para que eles pudessem a abrir o espaço para escuta, muito mais do que o tratamento. Porque eu acho que a escuta é secundária e abrir grupos de escutas para saber o que essas mulheres trazem de demandas, de experiências, de sofrimentos, em questões familiares, de relacionamento. Acho que falta escuta! (S1).

Não ter preconceito. (S9).

[...] a rede poderia facilitar o acesso das demandas das profissionais da ponta. (S11).

Observou-se, contudo, que os facilitadores dependem exclusivamente do olhar de cada profissional. Além disso, para o cuidado integral de mulheres lésbicas e bissexuais, é preciso o estabelecimento de vínculo, reconhecimento e respeito à singularidade, desconstruindo todas as formas de violência, estigma e discriminação44 Silva AN. Políticas públicas de saúde voltadas as lésbicas: analisando o contexto de produção dos textos e das práticas de cuidados. [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher e da Criança Fernandes Figueiras; 2021.,1212 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl3):5351-5360.. Isso influencia na construção de espaços que possam acolher essas mulheres e profissionais de saúde que, por um lado, não conheceram as reais necessidades e, por outro, ao serem afetados pelo preconceito e discriminação, contribuam para o cuidado fragmentado.

O respeito ao direito à saúde esteve presente nas narrativas das entrevistadas, sendo visto como um dificultador no cuidado às mulheres lésbicas e bissexuais. Todavia, há uma dificuldade por questões religiosas e posturas conservadoras:

[...] é mostrar por outro que trabalha com você, que aquela pessoa tem direitos e que ela precisa ser respeitada. Mas o que me deixa angustiada é o profissional querer doutrinar essa pessoa [religiosidade]. (S2).

[...] senti dificuldade quando ela me perguntou se o profissional que eu estava encaminhando seria uma pessoa sensível. (S10).

Há uma preocupação com a necessidade de mudança no olhar das profissionais com posturas conservadoras. Corroborando um documento do Ministério da Saúde, os conservadores acham que esse não é um problema a ser debatido no Sistema Único de Saúde (SUS), sendo esse debate visto como uma pauta não realizada nos serviços, exceto nos serviços especializados de atendimento a Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST)/aids33 Brasil. Ministério da Saúde. Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais: Relatório da Oficina Atenção à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais. Brasília, DF: MS; 2014..

Outro aspecto relevante nas entrevistas diz respeito ao constrangimento das mulheres lésbicas e bissexuais ao revelar ou não sua orientação sexual, por terem vivenciado experiências negativas durante o atendimento, quando pressionadas a revelar sua orientação sexual1212 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl3):5351-5360..

[...] ouvir o sofrimento e não ter pra onde direcionar no momento. (S7).

[...] perceber o constrangimento da paciente. (S9).

Cabe destacar que as consultas devem ser permeadas da construção de vínculo, levando essas mulheres à livre revelação da sua orientação sexual, quando elas têm o direito de revelar ou não aos profissionais. Isso implica, durante o cuidado, considerar as diversas possibilidades de prevenção e condutas existentes para cada uma das práticas sexuais informadas1414 Milanez LS, Nabero APP, Silva AN, et al. Saúde de lésbicas: experiências do cuidado das enfermeiras da atenção básica. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(10):3891-3900..

A falta de espaço de acolhimento para mulheres lésbicas e bissexuais é uma realidade enfrentada diariamente por elas, aparecendo como dificultador trazido nos relatos das profissionais:

[...] falta de espaço na unidade para que pudéssemos fazer este atendimento, espaço físico e profissional, partindo da gestão para que o profissional, possa criar esses trabalhos. (S1).

[...] talvez por eu ser mulher, eu não tenha nenhuma dificuldade. Acredito que a maior dificuldade está nessas mulheres não se sentirem confortáveis em ser atendidas por homens. (S5).

As profissionais demonstraram incômodo pela inexistência de espaços para atender mulheres lésbicas e bissexuais. Tal sentimento pode ser compreendido pela ausência desse diálogo nos espaços de formação e pelo entendimento de que o SUS é universal, equânime e integral. No entanto, a falta de visibilidade e representatividade dessas mulheres contribui para a perpetuação do estigma, da discriminação e da violência simbólica99 Bourdieu P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 1992.,1010 Bourdieu P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Russel; 1998. que elas enfrentam. Assim, é fundamental que mulheres lésbicas e bissexuais aproximem as suas vivências dos profissionais de saúde33 Brasil. Ministério da Saúde. Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais: Relatório da Oficina Atenção à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais. Brasília, DF: MS; 2014..

Conclusões

Apesar do reconhecimento de que a diversidade no cuidado à saúde da mulher faz parte do cotidiano das profissionais, as demandas e as especificidades de saúde de mulheres lésbicas e bissexuais ainda são pouco valorizadas nas práticas de cuidados, mantendo protocolos heteronormativos, desvalorizando, assim, suas trajetórias e práticas sexuais.

No município de Belford Roxo, as unidades de saúde, em relação a estruturas, não estão preparadas para acolher as demandas dessas mulheres, ou seja, que tenham programas que abranjam as questões de gênero e orientação sexual. Embora as entrevistadas tenham demonstrado empatia a esse grupo social, sabe-se que não é suficiente para melhorar, de maneira geral, a qualidade do atendimento, pois são ações pontuais, não estruturais. Nesse sentido, existe a necessidade de refletir sobre o processo de cuidado a partir da perspectiva do gênero e da sexualidade. Além disso, traz a ênfase para a necessidade de uma formação profissional e educação permanente que contemple a integralidade do cuidado à saúde, o que implica o diálogo sobre políticas públicas LGBTQIA+ e a abordagem e o reconhecimento das demandas e especificidades dessa população. Isso possibilita maior acolhimento e pertencimento no momento que essa população procura unidades de saúde para atendimento, caminho para desconstruir a perpetuação do habitus heteronormativo nas práticas de cuidados e da violência simbólica.

Por fim, o diálogo sobre a diversidade feminina, acerca do conhecimento e da materialização da PNSI-LGBT é essencial para os profissionais e gestores, de modo a promover mudanças nesse cenário, minimizando as dificuldades de acesso de mulheres lésbicas e bissexuais aos serviços de saúde, nos quais suas experiências sejam valorizadas. Além disso, trazer ênfase ao conhecimento sobre em que medida a política de saúde da população LGBTQIA+ vem sendo abordada nos currículos e está na agenda de compromissos da gestão municipal, a fim de garantir os direitos dessa população nos serviços de saúde.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.
  • 2
    Araújo LM, Penna LHG. A relação entre sexo, identidades sexual e de gênero no campo da saúde da mulher. Rev. Enferm UERJ. 2014; 22(1):134-138.
  • 3
    Brasil. Ministério da Saúde. Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais: Relatório da Oficina Atenção à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais. Brasília, DF: MS; 2014.
  • 4
    Silva AN. Políticas públicas de saúde voltadas as lésbicas: analisando o contexto de produção dos textos e das práticas de cuidados. [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher e da Criança Fernandes Figueiras; 2021.
  • 5
    Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: MS; 2013.
  • 6
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  • 7
    Gomes R. Análise e intepretação de dados de pesquisa qualitativa. In: Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2016. p. 72-95.
  • 8
    Gomes R, Mendonça EA. A representação e a experiência da doença: princípios para a pesquisa qualitativa em saúde. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002. p. 109-132.
  • 9
    Bourdieu P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 1992.
  • 10
    Bourdieu P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Russel; 1998.
  • 11
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  • 12
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  • 13
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  • 14
    Milanez LS, Nabero APP, Silva AN, et al. Saúde de lésbicas: experiências do cuidado das enfermeiras da atenção básica. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(10):3891-3900.

Editado por

Editora responsável: Vania Reis Girianelli

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2023
  • Aceito
    15 Dez 2023
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