Open-access Luz, câmera, cocriação: o cinema documentário como inspiração para descolonizar a produção de conhecimentos

RESUMO

O artigo discute o papel do cinema documentário como inspiração para o desenvolvimento de metodologias sensíveis co-labor-ativas em campos interdisciplinares como a saúde coletiva, envolvendo a aproximação entre cientistas, cineastas e movimentos sociais em torno de problemas de saúde e ambiente. O artigo ancora-se na noção de tornar comum usada por Paulo Freire, e na obra de Boaventura de Sousa Santos denominada de epistemologias do Sul e sua proposta para descolonizar o conhecimento, o que inclui a realização de ecologias de saberes. A partir de tais referenciais, o documentário é refletido para além de uma obra artística e autoral apoiado na ciência, mas enquanto emergência de novas epistemes e saberes conectados a lutas sociais e processos emancipatórios que podem inspirar a renovação teórico-metodológica na produção de conhecimentos. No artigo, selecionaram-se dois documentários que versam sobre as lutas contra a agricultura capitalista e os efeitos do uso intensivo de agrotóxicos, assim como a promoção da agroecologia e da reforma agrária como alternativas para sociedades mais justas, saudáveis e sustentáveis. Como resultado, a análise de tais documentários demonstra o potencial de reunir ciência, política, arte e ética enquanto práticas interdisciplinares e interculturais de co-labor-ação, coprodução e cocriação.

PALAVRAS-CHAVE Cinema; Epistemologia; Saúde coletiva; Agrotóxicos; Agroecologia.

ABSTRACT

The article discusses the role of documentary cinema as inspiration for the development of sensitive collaborative methodologies in interdisciplinary fields, such as collective health, involving the approximation between scientists, filmmakers, and social movements around health and environmental problems. The article is anchored on the notion of making common used by Paulo Freire and in the work of Boaventura de Sousa Santos, called Epistemologies of the South, and his proposal to decolonize knowledge, which includes the realization of ecology of knowledges. From such references, the documentary is reflected beyond an artistic and authorial work based on science, but as an emergence of new epistemes and knowledge connected to social struggles and emancipatory processes that can inspire theoreticalmethodological renewal in the production of knowledges. In the article, we selected two documentaries that address the struggles against capitalist agriculture and the effects of the intensive use of pesticides, as well as the promotion of agroecology and agrarian reform as alternatives for fairer, healthier, and more sustainable societies. As a result, the analysis of those documentaries demonstrates the potential of bringing together science, politics, art, and ethics as interdisciplinary and intercultural practices of co-labor-action, co-production, and co-creation.

KEYWORDS Cinema; Epistemology; Public health; Pesticides; Agroecology.

Introdução

O artigo busca aproximar a interface entre três campos interdisciplinares de conhecimento, a saúde coletiva, a ecologia política e as epistemologias do Sul para enfrentar diferentes crises em andamento, como a civilizatória, social, democrática, sanitária e ecológica1.

O artigo está estruturado em três partes que se seguem. Na primeira, são apresentados os fundamentos conceituais para pensar o significado de descolonizar a ciência e sua relevância para a saúde coletiva, em particular, a partir das contribuições de Paulo Freire sobre o papel da arte e do tornar comum2 para a transformação social, e de discussões realizadas por Boaventura de Sousa Santos e conceitos estratégicos das epistemologias do Sul, como pensamento abissal e as metodologias colaborativas não extrativistas. Em seguida, é introduzido o tema dos documentários selecionados e o contexto de lutas sociais em que eles surgem, formando uma combinação exemplar que reúne cientistas, cineastas, movimentos sociais e organizações ativistas envolvidas nas lutas sociais contra os efeitos perversos da agricultura capitalista (agronegócio) no Brasil e do consequente uso intensivo de agrotóxicos. No próximo tópico, são analisados elementos presentes nos dois documentários a partir do contexto da produção destes, cujas fontes foram entrevistas narrativas realizadas com cineastas, cientistas e lideranças de movimentos sociais, e que foram compiladas. É acrescentada, também, a análise narrativa das cenas3 que mostram dinâmicas criativas que articulam conhecimentos científicos e a linguagem audiovisual do cinema documentário. Por fim, é feita uma discussão sobre como tanto a produção quanto a circulação dos filmes pode inspirar práticas inovadoras de copresença, cocriação e coprodução que caminham na direção da renovação das metodologias de produção de conhecimentos voltadas à transformação social por meio de articulações e diálogos interdisciplinares e interculturais3.

Contribuições para pensar a descolonização da saúde coletiva: Freire e a arte, epistemologias do Sul e a transição pós-abissal

A saúde coletiva é considerada um campo de conhecimentos e práticas de natureza interdisciplinar fortemente influenciada pelas ciências sociais e o pensamento crítico para a compreensão e o enfrentamento das iniquidades em saúde; e que, academicamente, concretizou-se na teoria da determinação social da saúde que atravessa diferentes temáticas e áreas. A aliança com vários movimentos sociais e a preocupação com a renovação de um Estado Democrático apoiado em políticas públicas de bem-estar, que inclui necessariamente a saúde pública, fizeram do Sistema Único de Saúde (SUS) um grande campo de experiências e práticas. Diversas áreas buscam dialogar e dar centralidade a diferentes sujeitos e movimentos sociais na construção tanto de conhecimentos como de políticas públicas, e, dentre elas, podem-se destacar a educação popular em saúde, a saúde mental em torno das lutas antimanicomiais, a saúde dos(as) trabalhadores(as), saúde e ambiente, e a promoção da saúde.

Um desafio conceitual e metodológico dessas áreas ou subcampos da saúde coletiva diz respeito a como, simultaneamente, construir conhecimentos de qualidade e promover a participação dos sujeitos coletivos, como movimentos sociais e organizações comunitárias. Várias proposições metodológicas de base qualitativa vêm sendo usadas nas últimas décadas nesse sentido, tais como a pesquisa participante, a pesquisa ação e as pesquisas participativas de base comunitária.

Nos últimos anos, a emergência do ativismo de grupos e movimentos sociais em torno das lutas antirracistas, de gênero, bem como de indígenas, quilombolas, camponeses(as) e de periferias urbanas, tem reforçado o interesse nas abordagens pós-coloniais, entre elas, as chamadas epistemologias do Sul, que sintetizam a obra do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Assim como as metodologias participativas mencionadas, a emergência das epistemologias do Sul se justificou, no plano intelectual, a partir de duas propostas que revolucionaram a pedagogia e as ciências sociais: a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire e a investigação ação participativa de Orlando Fals-Borda. Elas influenciaram a proposição mais recente das metodologias colaborativas não extrativistas4, que também têm sido renomeadas de sensíveis e co-labor-ativas3. As diversas crises já citadas, não só no Brasil, tornam ainda mais urgente a necessidade de repensar as teorias e as métodos para a produção de conhecimentos e sua conexão com transformações sociais.

Uma contribuição importante para a construção deste artigo encontra-se na experiência de um centro de estudo, pesquisa e publicação de histórias da Tradição Oral que reuniu contadores de histórias e profissionais de educação, atuante desde os anos 1990 na Região Serrana do Rio de Janeiro3, a Escola Granada. A proposta nasceu articulada e inspirada no Movimento de Escolinhas de Arte, que teve como uma de suas referências teóricas iniciais a tese de Educação pela Arte de Herbert Read5. Um grupo de educadores, incluindo Paulo Freire, criaram a Escolinha de Arte do Recife em 1953, cujo modelo esteve presente em várias regiões e cidades do Brasil. As Escolinhas de Arte funcionaram como um sistema de ensino paralelo e complementar ao sistema oficial e na formação em arte-educação para professores e artistas. Com o tempo, Freire passou a disseminar essas metodologias entre grupos sociais vulnerabilizados, em uma tentativa de suprir as lacunas do sistema educacional brasileiro.

Além da teologia da Libertação e do Marxismo, Freire se inspirou também na perspectiva da Arte como Experiência do filósofo e pedagogo estadunidense John Dewey6, que enxergava na arte a capacidade de ampliação dos sentidos no processo de conhecer, perceber, sentir, tornar comum e transformar o mundo. Essa premissa é uma das bases para a transição paradigmática na construção da educação popular, e explica a abertura existente para a incorporação de diferentes linguagens artísticas e populares que extravasam as fronteiras dos cânones científicos, inclusive nas ciências sociais. Para este artigo, é também evidente que a ideia da comunicação enquanto tornar comum possui nas linguagens sensíveis criativas um elemento dinamizador para a aproximação entre pessoas, coletividades e mesmo culturas para além do discurso racional e logocêntrico, e isso traz à obra de Paulo Freire um elemento adicional para compreender sua universalidade. O tornar comum, na concepção freiriana, inspirada em Dewey e assumida neste estudo, está conectado à ideia de humanização na construção de conhecimentos e narrativas que resistam aos processos marcantes das lógicas de opressão dentro do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado7.

Além do trabalho de Freire, consideram-se as epistemologias do Sul7 como referencial estratégico para compreender o significado de renovar e descolonizar o conhecimento produzido pela modernidade capitalista. No contexto de intercâmbios acadêmicos, os autores deste artigo aprofundaram o pensamento sobre as epistemologias do Sul com uma permanência de 18 meses no programa de investigação dirigido por Boaventura de Sousa Santos na Universidade de Coimbra. Dessa forma, foram sendo amadurecidas reflexões que possibilitaram a articulação de referenciais epistemológicos, teóricos, metodológicos e pedagógicos que buscam avançar na direção de metodologias sensíveis co-labor-ativas3.

Em uma apresentação sintética, as epistemologias do Sul buscam resgatar a dignidade e a relevância dos saberes e das práticas dos grupos sociais em regiões historicamente dominadas pelo colonialismo, o qual ainda persiste como um dos eixos de dominação e opressão da modernidade, juntamente com o capitalismo e o patriarcado. Entende-se que o colonialismo (ou colonialidade) continua mesmo após o fim das colônias, as quais posteriormente permanecem subordinadas ao capitalismo de forma periférica no atual sistema-mundo8, e se materializa em fenômenos como o racismo, a misoginia e os epistemicídios que desqualificam os povos do Sul global, seus saberes, práticas e visões de mundo, considerados primitivos e descartáveis.

A ênfase na continuidade do colonialismo é estratégica para entender a relevância de conceitos como justiça cognitiva e ecologia de saberes, e entender uma das máximas das epistemologias do Sul: não haverá justiça social global sem justiça cognitiva global. O que está em jogo, nessa concepção, é a superação das linhas - chamadas de abissais9 - que separam a realidade metropolitana da modernidade, seus valores e formas de organização social - como o Estado, o Direito, a Ciência e suas instituições - que caracterizam o chamado Norte global, da realidade do Sul global. Este tende a ser ignorado, menosprezado e invisibilizado por diferentes e complexos processos de natureza ontológica, social, cultural e psicológica, manifestos em fenômenos como o racismo, a misoginia, as violências e as exclusões radicais que atingem indígenas, negros, mulheres e homossexuais, entre outros grupos, e cujas opressões se somam às produzidas pela exploração dos(as) trabalhadores(as) pelo capitalismo. Nas palavras de Santos9, a linha abissal

Impede a copresença do universo ‘deste lado da linha’ com o universo ‘do outro lado da linha’. Do lado de lá, não estão os excluídos, mas os seres sub-humanos não candidatos à inclusão social. A negação dessa humanidade é essencial à constituição da modernidade, uma vez que é condição para que o lado de cá possa afirmar a sua universalidade. Assim, práticas que não se encaixam nas teorias não põem em causa essas teorias, e práticas desumanas não põem em causa os princípios da humanidade9(14).

Uma tarefa dos processos emancipatórios atuais diz respeito a reinventar as utopias diante do esgotamento dos ideais utópicos liberal e socialista que forjaram as principais conquistas da modernidade (Estado, Direito e Ciência). Ao centrarem-se na luta por emancipação social, sistematicamente consideraram primitivos, silenciaram e eliminaram (epistemicídios) os saberes e as experiências dos povos do Sul global que não seguiam os cânones da modernidade e, particularmente, da ciência moderna e seus métodos. Obviamente, isso não significa dizer que os avanços da ciência moderna devam ser negados, ou necessariamente serem considerados racistas. A ideia de descolonização passa por um processo continuado de (des)(re)construção de pensamentos e práticas que apontem para sociedades pós-abissais que ressignifiquem, e não ignorem ou desprezem, conhecimentos, experiências e práticas sociais que dão sentido e sabedoria a inúmeros povos do Sul global7. Experiências irredutíveis da aventura humana do viver em busca da sabedoria diante da beleza e do mistério foram amuralhadas nos mundos paralelos e menores que ainda persistem da filosofia, das artes, das religiões e de diversas cosmologias. Em um momento de agravamento de várias crises, tornam-se ainda mais estratégicas novas formas de convívio e confrontação entre saberes científicos, tradicionais e populares.

O pensamento abissal busca explicar como a modernidade divide e convive com realidades de proteção e cidadania ao lado de outra marcadas pela violência e pelo sofrimento das exclusões radicais, as quais sistematicamente são invisibilizadas por processos culturais, cognitivos e políticos como o racismo. A abissalidade também está presente na ciência na medida em que essa, com seus cânones, considera-se superior e universal. Tal perspectiva se torna clara quando a relação entre ciência e sociedade é pensada principalmente em termos de comunicação e educação científica, restringindo a disciplinas e a abordagens, como a antropologia e as etnociências, as relações com saberes ditos não científicos provenientes, por exemplo, de povos indígenas e de matriz africana.

Outra dimensão abissal é a ideia de que as políticas ditas democráticas e inclusivas implicam universalizar, ao conjunto das comunidades e povos, os benefícios e os direitos da modernidade pela lógica metropolitana. Mesmo políticas redistributivas por governos de esquerda tendem a pensar o desenvolvimento restrito à melhoria do Produto Interno Bruto (PIB) per capita, padrões de consumo, educação e saúde que podem ter outras lógicas por outros povos e suas cosmologias. Isso justifica por que boa parte das lutas sociais da atualidade - muitas vezes nomeadas equivocadamente como lutas identitárias - são lutas por justiça cognitiva.

Diversas lutas emancipatórias no Sul global expressam a busca por reconhecimento e legitimação de outras formas de conhecer e se relacionar com o mundo material e imaterial, incluindo as relações comunitárias e econômicas, a natureza, a espiritualidade e inúmeras práticas de (auto)cuidado, cujo sentido holístico de integração é marcante em povos como os indígenas, de matriz africana, camponeses(as) e muitas expressões de hibridismo que marcam diversos povos tradicionais. Essa reflexão justifica a ênfase na dimensão epistemológica (aliada à ontológica) como central para as lutas contemporâneas por emancipação social. Integrar tais lutas e processos emancipatórios na produção de conhecimentos ultrapassa a dimensão freiriana restrita ao campo da educação para alcançar, de forma transversal, diferentes áreas de conhecimento e disciplinas, desde que abertas a um processo dialógico de alteridade. O desafio epistemológico possui uma natureza interdisciplinar e intercultural que, na concepção deste estudo, passa pela construção de metodologias sensíveis, co-labor-ativas em torno do fazer junto (e não apenas para) que atualize a missão da ciência enquanto apoiadora de processos emancipatórios contemporâneos.

Santos10 propõe uma transição civilizatória em direção a sociedades pós-abissais a partir de mudanças profundas na forma como os conhecimentos são produzidos, suas teorias e métodos. Isso implica um realinhamento que supere a indolência da razão moderna, uma indiferença que coloca barreiras entre o pensar e o agir diante da dignidade humana. Nesse sentido, outra dialética da emancipação tem por desafio central enfrentar dualismos mal resolvidos pela modernidade e sua ciência, avançando em novas possibilidades de conexão perante estes diversos dualismos: ausência-presença, opressão-emancipação, indiferença-atenção, abandono-cuidado, sociedade-natureza, trabalho remunerado-(re)produção da vida. Tal superação implica, nessa perspectiva, uma reaproximação entre os mundos da ciência, da arte e da política. O cinema documentário é um dos caminhos possíveis na direção de ampliar a imaginação criativa para a transformação.

A produção de documentários como inspiração para descolonizar a geração de conhecimentos

Para ilustrar a ideia central do artigo sobre caminhos de renovação teórico-metodológica na produção de conhecimentos a partir de diálogos interdisciplinares e interculturais que possibilitem a descolonização da academia, apresenta-se o encontro da ciência, a artes e as lutas sociais na produção e circulação do cinema documentário. Com esse intuito, selecionaram-se dois documentários produzidos com uma forte articulação entre cineastas, movimentos sociais e pesquisadores militantes envolvidos em lutas sobre saúde e ambiente nas quais a determinação socioambiental da saúde encontra-se muito presente. Nesse caso, tais lutas sociais denunciam, de um lado, o uso intensivo dos agrotóxicos pelo agronegócio e seus impactos na saúde e, de outro, anunciam como alternativas a construção de outro modelo agrícola baseado na agricultura familiar e na agroecologia. Trata-se, portanto, de lutas que também denunciam os três eixos de opressão da modernidade: o capitalismo, a partir de um modelo de agricultura de exportação de commodities que serve aos interesses das empresas transnacionais, dos países mais ricos, enfim, das elites internacionais e nacionais (financeira, industrial e agrária); o colonialismo, expresso na forma ignorante e violenta como são desprezados os saberes, direitos e territórios de indígenas, quilombolas e camponeses(as); e o patriarcado, ao levar em consideração o papel das mulheres e do feminismo nas lutas pela agroecologia, a segurança e a soberania alimentar, além das práticas tradicionais e comunitárias de cuidado, o que inclui a alimentação.

Tais documentários podem ser analisados enquanto estratégias de comunicação, pluralidade de vozes e encontro de saberes, ou seja, enquanto dimensões simultaneamente comunicacionais e epistemológicas. Na busca de transformações sociais e espaços de diálogo com a sociedade, tais lutas sociais envolvem narrativas e saberes contra-hegemônicos, anti-hegemônicos ou alternativos produzidos para enfrentar os interesses do agronegócio, a agricultura industrial capitalista inserida na globalização econômica em curso e que, no contexto brasileiro, marcam o modelo neoextrativista11. O modelo do agronegócio é apoiado, além da grande mídia, por diversas instituições e políticas públicas do Estado, inclusive as científicas que defendem o ‘desenvolvimento’ e o ‘progresso’ sem questionarem as injustiças socioeconômicas, sanitárias e ambientais decorrentes do modelo do agronegócio baseado em monocultivos de grande extensão e no uso intensivo de agrotóxicos.

Acrescentam-se dois conceitos (anti-hegemônicos e alternativos) ao lado de saberes contra-hegemônicos com o objetivo de ampliar a compreensão comunicacional, pedagógica e epistemológica das lutas sociais para além de disputas por hegemonia na perspectiva gramsciana. No ponto de vista deste estudo, isso contribui para uma gramática mais precisa e flexível que amplie possibilidades de compreender e articular lutas sociais e resistências sem o peso de ter como objetivo mais geral a tomada de poder com a retirada de uma elite política opressora e sua substituição por outra supostamente libertária. Muitas vezes, essa perspectiva de disputa por hegemonia acaba por acirrar cisões entre diferentes grupos sociais oprimidos em torno das estratégias e táticas revolucionárias e político-partidárias. Saberes e práticas anti-hegemônicos ou alternativos fazem parte de um grupo social subalternizado, mas não implicam propriamente a tomada de poder dentro de um sistema sociopolítico mais amplo. Buscam, sim, viabilizar condições de crescente auto-organização e autonomia que enfrentem formas de dominação e ampliem graus de liberdade e autodeterminação. Trata-se de uma questão muito relevante para a busca de convergências e colaborações entre diferentes sujeitos oprimidos que lutam por dignidade, pois pensar saberes e práticas como anti-hegemônicos ou alternativos (e não necessariamente contra-hegemônicos) pode evitar que outras formas de opressão e invisibilização sejam produzidas nas disputas de hegemonia entre diferentes movimentos e sujeitos sociais que lutam por dignidade.

Neste artigo, centrou-se a atenção na articulação entre três espaços sociais em que se encontram os sujeitos envolvidos na produção dos filmes: i) os movimentos sociais; ii) a produção científica a partir de cientistas militantes envolvidas nos impactos do agronegócio e dos agrotóxicos; e iii) o espaço da criação do filme a partir de cineastas e suas equipes de produção. A seguir, são explorados alguns elementos que marcam cada um desses espaços.

Os movimentos sociais, embora principalmente relacionados com o campo, não se restringem a ele na medida em que se articulam e são foco de movimentos e organizações que atuam nas cidades em torno de questões como segurança e soberania alimentar, consumo de alimentos saudáveis, agricultura urbana, cidades sustentáveis, saudáveis e democráticas, entre outras. Segundo Gohn12, diversos movimentos sociais surgidos nas últimas três a quatro décadas caracterizam-se por suas pluriagendas e novas modalidades de lideranças, bandeiras e sujeitos políticos. Inúmeras questões são levantadas e atualizadas nas lutas sociais que foram eleitas, entre elas, as pela reforma agrária e a transição agroecológica a partir da agricultura camponesa e familiar. Tais lutas também incorporam questões identitárias, de raça e gênero, territórios, culturas e cosmovisões. Isso implica resgate, atualização e ressignificação dos sentidos de vida, trabalho, economia, desenvolvimento, saúde e natureza, entre outros; daí a dimensão da luta contra o colonialismo e por justiça cognitiva ser também tão relevante.

Em relação ao lugar da academia, diversos grupos de pesquisa da saúde coletiva, em particular das áreas de saúde e ambiente, saúde do trabalhador, promoção da saúde e nutrição e saúde, têm focado seus trabalhos, nos últimos 20 anos, na questão dos agrotóxicos, e muitos deles vêm assumindo uma perspectiva militante e articulada com movimentos sociais. Esses grupos reúnes pesquisadores de várias disciplinas (clínica, toxicologia, ciências sociais, nutrição, engenharia, entre outras) marcados por uma abordagem interdisciplinar, incorporando o que autores das epistemologias do Sul têm chamado de pluralidade interna da ciência para se referir aos cientistas que trabalham as interfaces entre diversos paradigmas, e que, caso dos autores deste estudo, estão abertos para o diálogo com movimentos sociais e suas lutas. Além das universidades, tais grupos incluem instituições de âmbito federal que vêm assumindo um papel de destaque nessa discussão, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Nacional de Câncer (Inca), este último em função da crescente preocupação com o consumo de alimentos contaminados por agrotóxicos como fator de risco para o câncer.

Por fim, o lugar do documentário, do cineasta e sua equipe de realização é, possivelmente, o menos conhecido no campo da saúde coletiva e exige uma rápida reflexão. Para Jean-Claude Carrière13, roteirista e escritor francês referenciado nos estudos da relação entre educação, filosofia e arte, o filme e sua equipe de produção retomam, com os recursos tecnológicos atuais, uma função muito antiga, simultaneamente mágica e educativa: a de contar histórias articulada, porém diferenciada, de outras narrativas como a poesia, o romance e a filosofia.

Em uma perspectiva mais social e crítica, o cinema, em especial o filme documentário, tem sido um lugar privilegiado tanto para refletir sobre os efeitos perversos da atual sociedade capitalista, colonial e patriarcal como para circular ideias e práticas a um público mais amplo sobre as denúncias e alternativas para as transformações sociais, econômicas e políticas. No Brasil, o documentário como prática social transformadora é conhecido há várias décadas, principalmente a partir do surgimento do chamado Cinema Novo, em que diversos cineastas vão pensar o País e seus problemas, as desigualdades, a periferia, a favela, os miseráveis, a luta por reforma agrária, o sertão e a fome.

Aqui, busca-se compreender o audiovisual como estratégia de produção de conhecimentos e de visibilidade das lutas emancipatórias3. Nessa perspectiva, a sociologia das imagens de Silvia Rivera Cusicanqui14 avança na proposta de uma antropologia visual atrelada às lutas sociais, pois possibilita uma variedade de vozes e expressões que se multiplicam aos olhares que nela se produzem. Não se tem apenas a escrita do autor, mas a emergência do olhar sobre outros olhares em construção coletiva. Para a autora e sua proposta, o audiovisual se apresenta como um princípio democrático pela imagem, no qual os outros não emergem como elementos de captura, mas como sujeitos coletivos de ação que expressam suas diversas formas de ser e conhecer por meio de seus gestos, falas, e de seus olhares. Nesse sentido, o audiovisual se harmoniza com a ecologia de saberes e o diálogo intercultural ao trabalhar com a emergência de múltiplas linguagens, sentidos e expressões provenientes do território e da cultura popular. Um audiovisual que não pertence a um sujeito e que permite o escape da captura e do aprisionamento de uma narrativa de fidelidade aos ditos fatos que a escrita colonial tanto busca prezar para validar seu discurso. Por isso a semelhança entre a narrativa audiovisual do colonizador com a prática científica que também se aparta e menospreza saberes e experiências provenientes dos movimentos e comunidades. Essa proposta de expressão da imagem em movimento é imersa na força da vida diária, possibilitada pelo audiovisual, e por seus significados, falas, cores, poesia e conhecimentos que aproximam a presença do outro como sujeito e ator, fazendo do seu dia a dia um elemento capaz de promover outras possibilidades sensíveis e perceptíveis de comunicação de saberes e afetos.

No caso dos documentários que são objeto empírico deste artigo, a questão central reside na aposta que eles podem expressar múltiplas vozes e saberes, sendo espaços de articulação, co-labor-ação e cocriação, promovendo tanto a construção e a ampliação de diálogos interculturais em torno das bandeiras que os movimentam quanto o encontro de diálogos interdisciplinares envolvendo distintos saberes e práticas colaborativas3. Nessa lógica, expressam possibilidades de aproximação entre saberes científicos e aqueles produzidos pelos sujeitos sociais, incluindo conhecimentos e processos éticos, artesanais e artísticos que mesclam razão e afeto, base do corazonar15. Sendo assim, os documentários promovem, articulam e criam possibilidades de comunicação mais dialógicas e polifônicas, bem como podem inspirar novas formas de produção mais compartilhadas e criativas de saberes voltados à transformação social.

Apresentação dos documentários analisados: vozes e saberes em cena

A seguir, é apresentada uma breve análise de dois documentários que ilustram a proposta do artigo. Eles foram selecionados a partir de critérios como sua articulação com as lutas de movimentos sociais contra os agrotóxicos e pela agroecologia; são considerados relevantes pelo conjunto de redes, fóruns, articulações e grupos de pesquisadores engajados que atuam com o tema; possuem em sua produção a participação de representantes dos três espaços já mencionados (movimentos sociais, academia e cinema engajado).

Três perguntas orientaram a análise dos documentários selecionados:

  1. Noções como a linha abissal e a construção de uma ecologia de saberes se traduzem na produção dos documentários, por meio da incorporação, explicitação e articulação de uma pluralidade de saberes em diálogo para além dos saberes científicos, ademais de apontarem para exclusões radicais?

  2. De que maneira os documentários expressam uma pluralidade de vozes que compõem os movimentos e as lutas contra os agrotóxicos e pela agroecologia, promovendo um diálogo intercultural?

  3. Como a produção dos documentários sugere pistas para a construção de uma ecologia de saberes, na medida em que aumentem a visibilidade dos sujeitos excluídos com seus saberes e experiências (sociologia das ausências16), ou ainda indiquem novas alternativas de transição a sociedades pós-abissais (sociologia das emergências16)?

Neste estudo, realizaram-se entrevistas narrativas com representantes destes três espaços, cineastas, cientistas e lideranças de movimentos sociais, envolvidos na produção dos documentários, permitindo envolvê-los enquanto, eles próprios, contadores de história. Como o objetivo foi construir intersubjetividades que possibilitassem a emergência de relatos significativos3, a pesquisa foi pensada na perspectiva de uma cocriação com esses sujeitos, que deixam de ser simples fontes de informação para adotarem um papel ativo na produção de conhecimentos, ou seja, um co-laborar de natureza ética, política e epistemológica, para que possam se fortalecer em suas lutas emancipatórias por reconhecimento e dignidade. As entrevistas constam do projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Sergio Arouca da Fiocruz, e os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

As entrevistas narrativas se apresentam como recurso artesanal, não estruturado, que busca a profundidade de conteúdo, a partir dos quais emergem histórias de vida, experiências subjetivas, ou seja, relatos significativos que podem ser transmitidos. Nessa concepção é que se desenvolveu uma metodologia sensível e co-labor-ativa, que se aproxima da noção de corazonar, na medida em que propõe que a interação com os sujeitos da pesquisa permita um espaço para o exercício de recursos perceptivos e intuitivos.

O primeiro documentário é ‘O Veneno está na Mesa’, dirigido por Silvio Tendler, lançado em 2011, com 48 minutos, e que resulta da criação da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. O filme foi produzido em forte articulação com a Campanha, os movimentos sociais e os pesquisadores militantes que dela participavam. A dinâmica do filme buscou seguir os cinco objetivos estratégicos iniciais da Campanha: i) construir um processo de conscientização sobre as ameaças dos agrotóxicos e transgênicos; ii) articular ambientalistas, camponeses(as), trabalhadores(as) urbanos, estudantes e consumidores na defesa do meio ambiente e do alimento saudável; iii) denunciar e responsabilizar as empresas que produzem e comercializam agrotóxicos; iv) criar formas de restringir o uso de venenos e de impedir sua expansão, incluindo novas bases legais e políticas governamentais; v) mudança do atual modelo agrícola em direção a uma agricultura camponesa e agroecológica.

Foram realizadas entrevistas com o cineasta diretor do filme, com o coordenador nacional à época da Campanha e militante do movimento social Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), e um pesquisador militante da Fiocruz que apoiou sua realização. A análise narrativa do filme dividiu-o em 17 cenas, com uma intensa variedade de vozes, imagens e informações que apresentam, frequentemente em tom de denúncia, os diversos elementos que compõem os objetivos e os focos da denúncia. Há uma profusão de falas, vozes e saberes apresentados em sequência que dão um movimento rápido e intenso ao documentário, com o uso frequente de noticiários da mídia hegemônica para reforçar a denúncia sobre os impactos dos agrotóxicos, mas também para apresentar o discurso concorrente e hegemônico do agronegócio. A denúncia predomina na maior parte do filme, mas os minutos finais lançam uma luz de esperança a partir de experiências em andamento da produção agroecológica e alimentos saudáveis.

O segundo documentário, ‘Chapada do Apodi, morte e vida’, foi dirigido por Tiago Carvalho, possui 27 minutos e foi lançado em 2013. O filme faz parte do projeto Curta Agroecologia lançado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) na Cúpula dos Povos na Rio+20 em 2012, que tem como objetivo retratar experiências em Agroecologia no Brasil. A escolha da história do agrotóxico na Chapada do Apodi foi feita por duas razões: de um lado, a região era uma referência na produção agroecológica e na convivência com o semiárido; de outro, fazia parte de um território cobiçado pelo agronegócio e com histórico de conflitos, e foi avaliado ser importante documentar o que estava acontecendo para que um conjunto mais amplo da sociedade pudesse refletir sobre os diferentes modelos de desenvolvimento no campo do Brasil. Foram entrevistados para a pesquisa o diretor, o secretário executivo da ANA à época, a pesquisadora e coordenadora do núcleo Tramas da UFC, e uma liderança camponesa e sindical da região. A análise narrativa do filme dividiu-o em 21 cenas, muitas delas com belas imagens e momentos em que a sonoplastia mescla músicas, som de caminhadas ou chuvas. O documentário não possui um locutor, uma voz em off que narra e conduz ao fundo a sequência de imagens. As narrativas dos entrevistados, ocupando uma parte relativamente menor, mesclam-se com cenas do cotidiano, como as pessoas indo para o trabalho, aplicando agrotóxicos, ou ainda a dramática caminhada coletiva na homenagem da comunidade de São Tomé à liderança comunitária Zé Maria três anos após seu brutal assassinato a mando, segundo investigações judiciais posteriores, de um empresário do agronegócio da região. Essas cenas vão narrando a história, como o bordar de um tapete com cores vibrantes de uma memória viva de experiências dos sujeitos envolvidos nessa luta.

Diálogos inacabados: luz, câmera e cocriação para inspirar a produção de conhecimentos

O conjunto dos filmes busca tornar claro que muitas vozes são desconsideradas quando se trata da questão do agronegócio, dos agrotóxicos e das alternativas da agricultura camponesa e agroecológica. Pela lente da sociologia das ausências, os documentários em si buscam demonstrar como a mídia hegemônica e diversos espaços públicos desconsideram tais discursos e vozes. Os filmes levantam questões como a saúde dos(as) trabalhadores(as) e populações excluídas, o desrespeito à natureza e à biodiversidade que, em grande medida, resultam de um processo ativo de invisibilização de realidades consideradas desqualificadas, ininteligíveis e descartáveis pela lógica do capitalismo neoliberal globalizado. As vozes alternativas que surgem nos documentários se articulam com o objetivo de transformar essas ausências em presenças na busca recuperar a autonomia de vozes silenciadas como camponeses(as) e agricultores(as) familiares.

Os dois documentários tornaram-se uma ferramenta de luta para todas as comunidades envolvidas tanto diretamente na produção como posteriormente na circulação dos vídeos feito por meio de diferentes estratégias, como debates em escolas, universidades, sindicatos rurais, e até no nível local comunitário e de pequenos municípios, quando se organizavam projeções na tela grande em plena praça pública. As entrevistas realizadas com cineastas, lideranças de movimentos sociais e pesquisadores militantes mostram a ação ativa de todos na produção dos filmes, porém com papéis e pesos diferenciados. Em ‘O Veneno está na mesa’, a participação desses três integrantes foi ativa em todo o processo de produção, desde a construção do argumento e roteiro, passando pela seleção das experiências e locais a serem registrados, a edição final e, posteriormente, a circulação do documentário, com um processo qualificado de debates em diversos lugares e contextos por todo o Brasil. Já no ‘Chapada do Apodi, morte e vida’, as vozes do cineasta e do movimento social aparecem em torno das propostas da ANA, com a participação da secretaria executiva desta em todo o processo de produção. A voz da ciência militante aparece fortemente como fonte de pesquisa para a argumentação e o roteiro; e por sua relevância na região, ela contribui de forma fundamental na aproximação do cineasta com as comunidades e entidades locais, além de aparecer ao longo do filme.

A existência de diferentes saberes e os distintos encontros entre eles estão presente nos dois documentários analisados. Isso decorre não apenas pela influência dos trabalhos de Boaventura de Sousa Santos nos pesquisadores, mas pelo compromisso de pesquisadores e cineastas com as lutas sociais.

No documentário ‘Chapada do Apodi, morte e vida’, os(as) trabalhadores(as) rurais apresentados em algumas partes possuem saberes circunscritos à sua inserção dependente do trabalho que possuem na fruticultura do agronegócio e da falta de outras opções. Isso demarca um dos desafios mais complexos abordados pelo filme sobre como avançar nas lutas sociais a partir da articulação de duas situações que tendem a se opor. De um lado, o reconhecimento e a ampliação das alternativas de enfrentamento do agronegócio pela reforma agrária e a agroecologia; de outro, a dependência econômica local e de inúmeras famílias do agronegócio, mesmo em circunstâncias em que há o reconhecimento e vivência dos sofrimentos provocados pelos agrotóxicos e outras formas de exploração do trabalho. A solução está na capacidade de reinventar a luta diante das adversidades extremas, o que fica claro no destaque dado à manifestação que relembra os três anos do assassinato do líder comunitário Zé Maria, e, também, na voz da liderança camponesa local, que não admite perder as conquistas realizadas com a luta pela terra e a agroecologia. Um conhecimento impregnado nos corpos, nas experiências que são enfrentadas na celebração pela dignidade da luta e da vida de Zé Maria.

O filme ‘O Veneno está na Mesa’ também expressa uma ecologia de saberes pela forte articulação construída pela Campanha contra Agrotóxicos entre movimentos sociais e cientistas militantes, particularmente da saúde coletiva. Combinam-se vozes e saberes de agricultores(as), técnicos e cientistas, muitas em off, que se articulam de forma a se complementarem uma com as outras. Segue, assim, os ensinamentos de Paulo Freire, que diz não haver saberes maiores ou menores, saberes que são mais que os outros, há, sim, saberes diferentes. A argumentação científica é seguida, ao longo de todo o filme, das vozes e saberes de agricultores(as) que viveram e vivem os efeitos perversos dos impactos dos agrotóxicos em seus corpos. Outra característica marcante é a sistemática conexão entre as origens e as causas estruturais dos problemas de saúde apresentados, que associam o uso dos agrotóxicos às guerras e indústrias multinacionais que, mais tarde, iriam sustentar o modelo de agricultura industrial dependente do agrotóxico. As falas iniciais e finais do filme pelo escritor Eduardo Galeano abordam a contradição central a ser superada na América Latina com relação ao modelo de desenvolvimento, adotado mesmo em governos ditos progressistas de esquerda.

Esses filmes potencializam o realinhamento entre criatividade, autonomia e transformação social tanto na compreensão e produção social de novos sentidos como na articulação e produção de conhecimentos. Isso ocorre por meio de concepções que ressignificam temas como trabalho, saúde e natureza. Essa capacidade de aliar a produção de novos conhecimentos e práticas, inseparáveis nas abordagens pós-coloniais das relações de poder e saber, busca romper com a alienação existente no próprio mundo acadêmico, cuja pretensão de isenção e objetividade funciona como armadilha que distancia ciência e ética.

Nos filmes, são marcantes os sentimentos ora de indignação, ora de vibração e da paixão por parte não só dos agricultores e agricultoras envolvidos com as resistências, as denúncias e o anúncio da agroecologia, mas também dos próprios pesquisadores militantes. Dessa maneira, os documentários engajados analisados possibilitam, pela co-labor-ação, coprodução e cocriação, criar estratégias comunicacionais e epistemológicas que ajudam a reaproximar ciência, arte, transformação social e sabedoria.

A importância desse tema fica ressaltada ao se levar em conta que a aproximação de processos de trabalho criativos e engajados da ciência e do documentário pode servir de fonte de inspiração para a construção de metodologias sensíveis e co-labor-ativas em que a produção de conhecimentos promova formas mais fluidas e híbridas de integração de linguagens e práticas criativas normalmente apartadas usadas pela ciência, arte e pela ação política voltada à transformação social. Ou seja, essa circulação fluida de fronteiras possibilita a renovação teórico-metodológica e a emergência de práticas científicas não apenas mais socialmente engajadas, mas também sensíveis justamente por conectar capacidade de compreensão e experiência, ou ainda razão e afeto. Essa é uma ideia central no trabalho de Paulo Freire e sua ideia de comunicação enquanto tornar comum, e que mais recentemente autores latino-americanos vinculados a cosmologias andinas têm denominado de corazonar a academia. Tal perspectiva complementa e avança na ideia de descolonizar a academia proposta por escolas pós-coloniais de pensamento crítico como as epistemologias do Sul.

Para concluir, ressoam-se os argumentos de Walter Benjamin17 ao refletir sobre a perda contemporânea dos conhecimentos tecidos nas experiências, a sabedoria, e expressos por diferentes narrativas não logocêntricas ou abstratas, que são por excelência a principal linguagem do conhecimento científico e, por isso, distanciam-se da vida e das lutas sociais. Em consonância com Benjamin, Ailton Krenak18 afirma que esta era é especialista em criar ausências no sentido do viver em sociedade e do próprio sentido da experiência da vida. Para confrontar essas ausências, Krenak propõe manter a capacidade de narrar histórias que unam as pessoas, pois as narrativas são fruto da experiência da circulação pelo mundo; e poder contar, uns aos outros, essas histórias permite continuar a viver. O cinema, como outras artes, pode assumir um forte caráter artesanal em seu processo de realização e criação na capacidade de gerar narrativas alternativas. No caso dos documentários engajados analisados, surgem práticas colaborativas e solidárias que contribuem para produzir sínteses, enfrentar limites e construir alternativas a partir do que é aflorado pelo diálogo entre movimentos sociais e cientistas. Um belo exemplo de corazonar a ser seguido pela saúde coletiva na produção de conhecimentos.

  • Suporte financeiro: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Bolsa de Doutorado Nota 10

Agradecimentos

Agradecemos ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (PPGSP, EnsP/Fiocruz) pelo apoio.

Referências

  • 1 Porto MF. Crise das utopias e as quatro justiças: ecologias, epistemologias e emancipação social para reinventar a saúde coletiva. Ciênc. Saúde Colet. 2019; 24(12):4449-4458.
  • 2 Freire P. Extensão ou comunicação? 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1977.
  • 3 Fasanello MF. O documentário nas lutas emancipatórias dos movimentos sociais do campo: produção social de sentidos e epistemologias do Sul contra os agrotóxicos e pela agroecologia. [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2018. 320 p. [acesso em 2021 mar 25]. Disponível em: https://neepes.ensp.fiocruz.br/sites/default/files/tese_final_marina_fasanello.pdf#overlay-context=users/acavalcanti
    » https://neepes.ensp.fiocruz.br/sites/default/files/tese_final_marina_fasanello.pdf#overlay-context=users/acavalcanti
  • 4 Santos BS. O Fim do Império Cognitivo. Coimbra: Almedina; 2018.
  • 5 Read H. A Educação pela Arte. São Paulo: Martins Fontes; 2001.
  • 6 Dewey J. A arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes; 2012.
  • 7 Santos BS, Meneses MP. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez Editora; 2014.
  • 8 Wallerstein I. The capitalist world-economy. Cambridge: Cambridge University; 1979.
  • 9 Santos BS, Araujo S, Baumgarten M. As Epistemologias do Sul num mundo fora do mapa. Sociologias, Porto Alegre. 2016; 18(43):14-23.
  • 10 Santos BS. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez; 2000.
  • 11 Gudynas E, Acosta A. La renovación de la crítica al desarrollo y el buen vivir como alternativa. Utopía y Praxis Lat. 2011; 16(53):71-83.
  • 12 Gohn MG. Abordagens teóricas no estudo dos movimentos sociais na américa latina. Caderno CRH, Salvador. 2008; 21(54):439-455.
  • 13 Carrière JC. O Círculo dos Mentirosos. São Paulo: Códex; 2004.
  • 14 Cusicanqui SR. Sociologia de la Imagen: ensayos. Buenos Aires: Tinta Limón; 2015.
  • 15 Guerrero-Arias P. Corazonar el sentido de las epistemologías dominantes. Desde las sabidurías insurgentes, para construir sentidos otros de la existencia. Calle 14: Rev. Invest. En El Campo Del Arte. 2010; 4(5):80-95.
  • 16 Santos BS. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais. 2002; 62:237-280.
  • 17 Benjamin W. O contador de histórias: Reflexões sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Benjamin W. Walter Benjamin: Linguagem, tradução e literatura. Obras Escolhidas de Walter Benjamin 5. Porto: Assírio & Alvim; 2015 (edição e tradução de João Barrento). p. 147-178.
  • 18 Krenak A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras; 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2021
  • Aceito
    09 Ago 2022
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