Resumo
Este artigo objetiva delinear os contornos peculiares dos conflitos religiosos no Brasil contemporâneo, a partir de uma reflexão teórica com base na literatura sociológica referente à intolerância religiosa nacional. As reflexões apontam para um entendimento de que este fenômeno encerra genealogia ancorada nas formulações ideológicas de origem colonial construídas para subordinar ou extinguir as experiências, histórias, recursos e produtos culturais de povos colonizados/escravizados marcados pela inferioridade mental e cultural baseada em diferenças raciais artificialmente criadas. Seus desenhos atuais respondem ao legado colonial do racismo epistêmico, entrecruzado com a disputa pelo mercado religioso e as características peculiares da religiosidade nacional crédula de soluções mágico-religiosas para seus problemas cotidianos, sobrepostos à tendência da sociedade brasileira em usar da violência para a solução de conflitos. A tese deste artigo teórico sustenta que a intolerância religiosa brasileira contemporânea se articula por estas quatro vertentes de sinergia e performance que se retroalimentam.
Palavras-chave:
Intolerância religiosa; Racismo epistêmico; Mercado religioso; Religiosidade nacional; Violência social
Abstract
This article aims to delineate the peculiar contours of religious conflicts in contemporary Brazil, based on theoretical reflection on the sociological literature concerning national religious intolerance. The reflections point to an understanding that this phenomenon has a genealogy anchored in ideological formulations of colonial origin built to subordinate or extinguish the experiences, histories, resources and cultural products of colonized/enslaved peoples marked by mental and cultural inferiority based on racial differences artificially created. His current drawings respond to the colonial legacy of epistemic racism, intertwined with the dispute for the religious market and the peculiar characteristics of national religiosity credulous of magical-religious solutions to its daily problems, superimposed on the tendency of Brazilian society to use violence to solve conflict problems. The thesis of this theoretical article sustains that contemporary Brazilian religious intolerance is articulated by these four aspects of synergy and performance that feed each other.
Keywords:
Religious intolerance; Epistemic racism; Religious market; National religiosity; Social violence
Introdução
O momento da contemporaneidade aponta para um reavivamento do fenômeno religioso em todo o mundo. A politização em escala global de comunidades de fé e de tradições religiosas, o declínio numérico de religiões tradicionais ao lado da intensa circulação de pessoas por novas alternativas religiosas (Almeida, 2006ALMEIDA, Ronaldo de. A expansão pentecostal: circulação e flexibilidade. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Orgs.). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas, p. 111-122. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.; Teixeira, 2013TEIXEIRA, Faustino. O Censo de 2010 e as religiões no Brasil: esboço de apresentação. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Orgs.). Religiões em movimento: o censo de 2010. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.), dentre outros tantos deslocamentos contemporâneos no campo do sagrado, ratificam a resiliência extraordinária subsistente na religião, numa veemência que desafia mesmo a autocompreensão secular e racional da modernidade ocidental (Habermas, 2005HABERMAS, Jürgman. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005.). Outra faceta do fenômeno religioso da atualidade, não desarticulada do todo, reside no acirramento, nas mais diversas partes do planeta, de conflitos sob motivações religiosas.
Também no Brasil se observa acontecimentos como a irrupção e ascendência da representatividade religiosa no âmbito político regional e nacional (Freston, 1993FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Tese (Doutorado) - Departamento de Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 1993.), a proliferação de uma variedade de religiões acompanhada de um intenso trânsito no circuito das escolhas de filiação religiosa, bem como o surgimento de fenômenos correlatos como a provisoriedade da adesão e a dinâmica de privatização da prática religiosa (Silva, 2007______. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana Estudos de Antropologia Social, v. 13, n. 1 p. 207-236, Abr. 2007.; Pierucci, 2008; Teixeira, 2013TEIXEIRA, Faustino. O Censo de 2010 e as religiões no Brasil: esboço de apresentação. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Orgs.). Religiões em movimento: o censo de 2010. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.). Da mesma forma, na senda dos conflitos religiosos mundiais, o Brasil passou a verificar, expressivamente nas últimas três décadas, uma intensificação significativa de episódios violentos motivados por intolerância religiosa (Oro 1997ORO, Ari. P. Neopentecostais e afro-brasileiros: quem vencerá esta guerra? Debates do NER, n. 1, p. 10-37, 1997. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809- 52672020000300005>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
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; Oro & Bem, 2008; Silva, 2015).
A variação hodierna dos conflitos dentro do campo religioso brasileiro postou-se e permanece alocada - não exclusiva, mas principalmente - na demonstração declarada de intolerância religiosa emanada das igrejas neopentecostais contra as religiões afro-brasileiras, numa contenda que estaria relacionada à disputa entre concorrentes do mercado religioso nos mesmos estratos da população (Silva, 2007______. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana Estudos de Antropologia Social, v. 13, n. 1 p. 207-236, Abr. 2007.; 2015; Oro, 1997ORO, Ari. P. Neopentecostais e afro-brasileiros: quem vencerá esta guerra? Debates do NER, n. 1, p. 10-37, 1997. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809- 52672020000300005>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
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; Prandi, 2003PRANDI, Reginaldo. As religiões afro-brasileiras e seus seguidores. Civitas. v. 3, n. 1 p. 15-33, Jun. 2003.), ampliada pela demonização das entidades de culto ligadas às religiões de ancestralidade africana (Silva, 2007; 2015; Mariano, 2005, 2015).
Não que as religiões afro-brasileiras estranhem a hostilidade. Confrontos e perseguições são abundantes na história nacional contra os cultos considerados não cristãos, notadamente os rituais de origem africana, incluindo a forma de forte repressão estatal às chamadas práticas mágico-religiosas populares1
1
Inobstante o advento da República e o fim da religião de Estado, o Código Penal Brasileiro de 1890 previa prisão e multa a quem praticasse o espiritismo, a magia e seus sortilégios. Na era getulista, os locais de culto afro-brasileiros (de 1931 até 1964) deveriam registrar-se e obter permissão de funcionamento nas delegacias de polícia e eram vigiados pela Inspetoria de Entorpecentes e Mistificações. A repressão policial contra o “baixo espiritismo”, ainda em meados do século XX, existia e grassava amparada pelo então novo Código Penal, vigente a partir de 1942, que se já não trazia a proibição ao “espiritismo”, abria brechas várias para abusos em dispositivos como a criminalização da prática de curandeirismo (artigo 284 do Decreto-Lei 2.848/1940 - Código Penal Brasileiro).
. O fato é que os instrumentos de conflito contra religiosidades de ancestralidade africana não foram concebidos por ações proselitistas belicosas advindas das denominações herdeiras do pentecostalismo que aportou em terras brasileiras. Eles estão presentes na cultura nacional desde a dominação de Estado feita pelo catolicismo que transmitiu uma apreciável e fundamental herança de atuação no processo de formação de estereótipos negativistas contra o que chamava a “práticas religiosas dos negros”, as quais por diversas vezes condenou declaradamente (Oro, 1997ORO, Ari. P. Neopentecostais e afro-brasileiros: quem vencerá esta guerra? Debates do NER, n. 1, p. 10-37, 1997. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809- 52672020000300005>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
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: 10).
De fato, o legado de depreciação e demonização das práticas religiosas - tanto das populações nativas das colônias, mas especialmente daquelas sequestradas à África - deve seu vultoso e prolongado tributo de condenação às ações doutrinárias da Igreja Romana, intimamente coligadas aos processos de expansão territorial da colonização europeia e de pilhagem dos recursos humanos e naturais das colônias desde o século XVI. E este é o ponto inicial a partir do qual, 500 anos depois, a pecha de feitiçaria diabólica, não evoluída - eiva da qual se serve as evangélicas mais beligerantes - ainda pesa sobre as práticas rituais das religiões afro-brasileiras. Simultaneamente, esta composição epistemológica depreciativa das cosmogonias e práticas religiosas dos habitantes das colônias seguiu amarrada à estruturação de mecanismos ideológicos que alçaram o sujeito colonizado a uma categoria aquém do humano e suas elaborações intelectuais e culturais reduzidas a manifestações estranhas e primitivas que presumivelmente demonstrariam a sua inépcia congênita ao progresso humano. Em sentido oposto - e não por acaso -, sedimentou-se a narrativa da culminância histórica do desenvolvimento político, cultural e intelectual europeu - e, em termos religiosos, da primazia dos preceitos cristãos - cuja superioridade foi estabelecida sob a lógica da diferença entre Europa e não Europa como “diferenças de natureza racial e não de história do poder” (Quijano, 2005______. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.: 122). Para Franz Fanon, estas estratégias de dominação ideológica a partir da imposição opressiva dos modelos culturais europeus, e a concomitante denegação do negro (e do índio) de si, assim como a dominação econômica, fez parte do processo de subjugação colonial. Em suas palavras, “colonialismo epistemológico” (Fanon, 2008: 15) ou, no termo utilizado por este trabalho, racismo epistêmico.
É preciso adiantar que este artigo trata, notadamente, das religiões de ancestralidade africana enquanto religiões atualmente mais propensas a serem atacadas: 71% do total, conforme dados do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir), entre 2012 e 2014; cerca de 62,04% em 2018 e 50,41% até meados de 2019, conforme o Disque 100, e apenas para as denúncias que declinaram a religião das vítimas2 2 Sílvio Nogueira (2020) defende - em face da marginalização das religiões de origem africana, cujos denunciantes estariam mais propensos a esconderem a indicação de pertencimento religioso - que juntando as denúncias informadas e as não informadas as ocorrências contra o que ele prefere denominar CTTro ou Comunidades Tradicionais de Terreiro estariam na faixa dos 80%. . Isso não significa obliterar que as religiões de origem nativa americana tenham sido igualmente alvos elegidos e priorizados dos vereditos religiosos que impingiram a domesticação, a catequese e a proscrição às heranças culturais das populações indígenas das Américas, assoladas que foram pelas missões catequéticas, mormente por meio dos jesuítas. Nem que, centenas de anos depois, sejam afligidas pelo mesmo pensamento epistêmico patenteado pela modernidade/colonialidade que opôs e opõe racionalidade à natureza, palavra escrita à tradição oral, cristianismo às formas religiosas “primitivas” (ou à suposta falta de religião) em vista da continuidade, na atualidade, da evangelização nas aldeias, ações a que Ronaldo de Almeida (2006ALMEIDA, Ronaldo de. A expansão pentecostal: circulação e flexibilidade. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Orgs.). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas, p. 111-122. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.) chama de missões transculturais, realizadas, em sua maior parte, pelo meio evangélico não pentecostal, como o batista e o presbiteriano, cujo alvo privilegiado, aliás, é o xamanismo.
Dito isso, retornando aos contornos nacionais da intolerância religiosa contemporânea e relembrando que diversos autores dispuseram o conflito religioso, mormente entre neopentecostais versus afro-brasileiras, no centro de uma disputa pelo mercado de soluções mágico-simbólicas, Vagner Gonçalves da Silva (2007______. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana Estudos de Antropologia Social, v. 13, n. 1 p. 207-236, Abr. 2007.) ponderou que os ataques às religiões afro-brasileiras parecem ser mais do que uma estratégia de proselitismo junto a populações potencialmente consumidoras dos repertórios religiosos afro-brasileiros e neopentecostais. Decorrem do “papel que as mediações mágicas e a experiência do transe religioso ocupam na própria dinâmica do sistema neopentecostal em contato com o repertório afro-brasileiro” (Silva, 2007: 208), dinâmica que se traduz pela experiência vivida no próprio corpo - uma particularidade que até o surgimento e crescimento das neopentecostais estava sob a hegemonia das religiões afro-brasileiras e do espiritismo kardecista. O confronto das neopentecostais com essas religiões parece, portanto, significar mais do que um meio de arrancar fiéis às adversárias, mas também uma forma de atrair seguidores ansiosos pela experiência de religiões com forte apelo mágico e de arrebatamento místico com o benefício da legitimidade social cristã.
Destarte, a minha análise da intolerância religiosa em terras nacionais avança para além da polarização neopentecostal/afro-religiosa, embora esta relação seja inevitável para a compreensão dos contornos atuais deste fenômeno no Brasil. Da mesma forma, sem prescindir da fundamental importância da concorrência pelo mercado religioso nacional, não se atém a esta rivalidade para ilustrar as articulações da violência motivada por razões religiosas. As ponderações subjacentes aos argumentos expostos neste trabalho destacam a assunção do renovado processo de demonização das entidades de culto relacionadas às religiões de ancestralidade africana, contudo, dentro de um exame que tenciona resgatar como essencial a genealogia colonial profundamente alienante e ferina presente nesta demonização intercalada em uma sociedade brasileira violenta e hostil às suas heranças, especialmente religiosas, nativas e africanas3 3 Exceto, talvez, como a exaltação eventual de manifestações culturais de procedência indígena ou negra, celebradas como “tradição”. Tais louvores mascaram justamente a alocação destes saberes como folclore, lendas, mitos, superstições, mas não celebração legítima do sagrado, não produção reconhecida de conhecimento (Chauí, 2017). . Junto a este aviltamento sobrepõem-se as características religiosas brasileiras de crença nas intervenções mágicas e a inclinação pelas experiências de transe místico, das quais assoma um outro fenômeno correlato no bojo dos conflitos religiosos nacionais: a “incorporação” da liturgia afro-brasileira nas práticas neopentecostais de algumas igrejas (Silva, 2009: 207) ou, como prefere Almeida (2006ALMEIDA, Ronaldo de. A expansão pentecostal: circulação e flexibilidade. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Orgs.). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas, p. 111-122. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.), a peculiaridade evangélica de negação e assimilação do universo simbólico afro-brasileiro como estratégia de crescimento.
Em resumo, meus raciocínios apontam para uma articulação sinérgica de quatro elementos componentes da intolerância religiosa nacional:
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i. o racismo epistêmico contido na detratação pública das afro-brasileiras, classificadas como demoníacas, primitivas e até criminosas;
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ii. a disputa pelo mercado religioso em estratégias de expansão neopentecostal que incluem, entre outras, a batalha espiritual contra religiões consideradas seguidoras do diabo, como é o caso das afro-brasileiras;
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iii. a característica religiosa brasileira confiante das soluções transcendentais para as suas questões mundanas e abonadora das experiências de êxtase religioso, as quais urge tornar cristãs, sem a qual a estratégia de assimilação, já citada, restaria dispensável;
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iv. a sociedade brasileira violenta que não se furta em agir violentamente contra quem ou o que é apontado como fonte do mal, principalmente se este algo ou alguém já é, de antemão, estigmatizado, como os legados religiosos africanos.
Há um adendo importante em relação às táticas de expansão mercadológica neopentecostal: a busca por ascendência no campo político, tanto quanto o arrebanhamento de fieis, parece ocupar o centro do empenho das novas evangélicas, com a massiva utilização prosélita e político-partidária dos mais diversos tipos de mídia, tradicionais e eletrônicas. Isso e o fato de gigantes como a Igreja Universal do Reino de Deus diminuírem o tom de seus ataques nos últimos anos em relação às religiões acusadas de demoníacas semelham diminuir a importância das estratégias e pautas doutrinárias firmadas na batalha contra o diabo personificado no panteão afro-brasileiro e o racismo epistêmico nela esculpido. De fato, as abordagens mais recentes parecem tornar mais fluídos os conteúdos epistemologicamente racistas no bojo dos projetos de conversão em massa, institucionais e midiatizados, das novas pentecostais. Apesar disso, estes contextos não camuflam a presença constante (e a percepção intuitiva) da inferiorização de conteúdos culturais diretamente relacionados à herança indígena e negra brasileiras contida em ações tais como a constante sagração da superioridade moral cristã, desde sempre exógena e etnocêntrica, e a resistência evangélica, por exemplo, ao ensino de história da África nas escolas.
Enfim, resta ponderar sobre os elementos da intolerância religiosa nacional aqui expostos não foram imaginados, já estão postos pela literatura sociológica e antropológica de pesquisadores do tema da religião no país. O que o entendimento deste trabalho pretende suscitar é pensá-los conjuntamente e de modo intrinsecamente interligado para compreender os contornos específicos do fenômeno da intolerância religiosa no Brasil.
Recorte metodológico e alguns parâmetros relevantes
Este artigo objetiva propor uma tese sobre os contornos peculiares dos conflitos religiosos no Brasil do presente.
Este é, pois, um trabalho de reflexão teórica sobre a forma que o fenômeno intolerância religiosa toma no Brasil e tem como subsídios metodológicos a análise reflexiva da literatura sociológica e antropológica de pesquisadores do tema da religião no país, especialmente daqueles e daquelas que tratam de intolerância e violência religiosas. Tal empenho de raciocínio teórico é robustecido por inferências dadas pela avaliação dos conteúdos trazidos por mapas e relatórios sobre intolerância religiosa no Brasil4 4 Assinalo o Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015): resultados preliminares do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, Secretaria Especial de Direitos Humanos; as pesquisas Datafolha: “Perfil e opinião dos evangélicos no Brasil”, de 2016, e Avaliação do STF, de 2020; a pesquisa do Pew Research Center: Religião na América Latina mudança generalizada em uma região historicamente católica, de 2014; os resultados publicados pelo Disque Direitos Humanos - Disque 100, para denúncias de discriminação religiosa (denominação dada pelo próprio canal), desde 2011. e dos resultados apresentados por canais de denúncia como o Disque 100.
Proponho, neste sentido, algo do que a antropóloga Paula Montero (1999MONTERO, Paula. Religiões e dilemas da sociedade brasileira. In: MICELI, Sérgio (Org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995): antropologia, p.327-367. Sumaré, SP; Brasília: Anpocs; Capes, 1999.: 338) chamou de “imaginação teórica renovada” , diante de uma apetecível “acumulação interna de reflexão teórica” (Montero, 1999: 329). E, por isso, decerto, este meu empreendimento de análise requeira ainda algumas pontuações quanto aos processos escolhidos.
As principais ponderações seguiram, em grande parte, esteadas na teoria descolonial enquanto opção epistêmica, teórica e política para compreender e atuar no mundo marcado pela permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva(Ballestrin, 2013BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 11, p. 89-117, Maio-Ago. 2013. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbcpol/a/DxkN3kQ3XdYYPbwwXH55jhv/abstract/?lang=pt>. Acesso em: 03 A)go. 2021.
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: 89). Essa linha adotada de condução do trabalho, a empreendi sobretudo por se tratar de uma teoria que oferece a possibilidade de releituras históricas e de problematizações de velhas e novas questões sobre o continente latino-americano (Ballestrin, 2013: 89).
Os critérios temporais utilizados para os recortes das leituras e análises foram a produção científica sobre o tema de cerca de 30 anos para cá, momento em que a maioria dos autores estudiosos do fenômeno considera como de acirramento dos conflitos religiosos contemporâneos no Brasil.
Cumpre ainda realizar algumas importantes demarcações de alguns termos utilizados neste trabalho, especificadamente quanto à disposição do significado que tomo para certos conceitos utilizados.
As religiões afro-brasileiras são aquelas que se formaram a partir das tradições religiosas trazidas pelos mais diversos povos da África arrebatados ao Brasil como escravizados entre os séculos XVI e XIX.
Neopentecostal é definido como termo aplicado ao pentecostalismo de terceira onda, conforme a tipologia proposta por Paul Freston (1993FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Tese (Doutorado) - Departamento de Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 1993.), representada no Brasil, principalmente, pelas igrejas Universal do Reino de Deus, Mundial do Poder de Deus e Internacional da Graça de Deus. Essa chamada terceira onda do movimento pentecostal, iniciada nos anos de 1970, é marcada por diferenças significativas no perfil das igrejas pentecostais, tais como atenuação do ascetismo e valorização do pragmatismo, utilização de gestão empresarial na condução dos templos, ênfase na teologia da prosperidade, utilização da mídia para o trabalho de proselitismo em massa e de propaganda religiosa e centralidade da teologia da batalha espiritual contra as outras denominações religiosas, sobretudo as afro-brasileiras.
Refiro-me à intolerância religiosa como a expressão que descreve o conjunto de atitudes agressivas dirigidas a crenças e práticas religiosas diferentes (e, eventualmente, a quem não crê ou segue qualquer religião), que envolve ofensas ao grupo religioso atacado, desmoralização de suas divindades e símbolos religiosos, destruição de templos e de objetos ritualísticos, perseguição, agressão física e morte.
O racismo epistêmico exprime o exercício contínuo de invisibilização e ocultação das contribuições culturais e sociais de povos que foram racializados e é parte do racismo estrutural brasileiro, o qual representa um processo histórico e político em que as condições de subalternidade ou de privilégio de sujeitos racializados são estruturalmente reproduzidas (Almeida, 2018ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural. São Paulo: Letramento, 2018.).
Racialização, por sua vez, representa o processo de classificação, hierarquização e subalternização social derivado da conversão da etnia em raça e a transfiguração do traço fenotípico em estigma, que opera impedindo possibilidades de participação paritária e dificultando, mesmo vedando, aspirações sociais em amplos locais e situações cotidianas (Ianni, 2004IANNI, Octávio. Dialética das relações raciais. Estudos Avançados, v. 18, n. 50, Fev. 2004. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ea/a/78rQndTBbYLBzHMdc3ygj4w/abstract/?lang=pt>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
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).
Por fim, é preciso sopesar que compreender a força de preconceitos tão enraizados no caráter nacional não significa desprezar a agência nem localizar as religiões afro-brasileiras, suas seguidoras e seguidores, no papel de vítimas passivas. É verídico e necessário afirmar que o recrudescimento de afrontas e violência religiosas no Brasil foram acompanhados de reações correlatas e, de certa forma, inauditas diante de um passado não tão distante no qual as reações a estes casos mal passavam de “um esboço isolado e tímido de algumas vítimas” (Silva, 2015SILVA, Vagner Gonçalves da. Prefácio ou Notícias de uma guerra nada particular: os ataques neopentecostais às religiões afro-brasileiras e aos símbolos da herança africana no Brasil. In ______. Intolerância religiosa - impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro, p. 9-27. São Paulo: Editora USP, 2015.: 10). Atos de vandalismo a locais e objetos de culto, episódios de ataques morais e físicos resultam amiúde, hoje em dia, em inquéritos e processos criminais levados adiante por pessoas físicas ou instituições públicas. Com efeito, e também fruto de reações coordenadas de expoentes de designações religiosas de matriz africana, surgiram nos últimos anos comissões de combate à intolerância religiosa em organizações como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e em tribunais de justiça; comitês de respeito à diversidade religiosa, como o Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa (CNRDR) do governo federal; a abertura de denúncias em canais como o Disque 100 da Presidência da República, exclusivas para discriminação religiosa e de centros de conservação da liberdade religiosa e dos direitos humanos como o Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir), além do estabelecimento nos diversos estados da federação de outros canais de denúncia em ouvidorias e delegacias especializadas.
Dito isso e para avançar ao cerne de minhas ponderações sobre o fenômeno intolerância religiosa no Brasil atual, julgo central visualizar o panorama político nacional contemporâneo que evidencia - e cada vez mais - uma manifesta disposição incluída na intrincada relação entre política e religião no Brasil.
Ações político-religiosas, intolerância, direitos humanos e racismo
O cenário demonstra a crescente influência de atores religiosos na esfera pública, nomeadamente evangélicos, trazendo para o âmbito do político a sua linguagem, seu ethos e suas demandas (Burity, 2008BURITY, Joanildo. A. Religião política e cultura. Tempo Social Revista de Sociologia da USP, v. 20, n. 2, p. 83-113, 2008. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ts/a/rvTvKJ5tW6KLvNt9wB8nqny/?format=pdf⟨=pt>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
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). Este movimento, no entanto, não acarretou e nem parece inclinado a promover uma configuração pluralista e democrática de diálogo e coexistência tanto quanto traduz a concorrência religiosa para ter lugar privilegiado na arena civil na qual a conquista de posições de liderança política constitui num arranjo formidável de expansão. Mais significativamente ainda, esta mobilização político-eleitoreira evangélica que Freston (1993FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Tese (Doutorado) - Departamento de Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 1993.) chamou de “irrupção pentecostal” afigura servir para além da ambição de se angariar importância política: parece convir para instaurar em espaço republicano um discurso e uma agenda de proteção a certos valores particularistas que não dissimulam a tentativa de garantir um ambiente propício à prescrição de um modo de vida sectário e um projeto de hegemonia cristã (Giumbelli, 2015GIUMBELLI, Emerson. Um projeto de cristianismo hegemônico. In: SILVA, Vagner Gonçalves da. Intolerância religiosa - impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Editora USP, 2015.) cujas ações se direcionam para exercer “influência direta em questões que os incomodam, ligadas à preservação da família tradicional, costumes, sexualidade e liberdade de culto, no estilo pentecostal, evidentemente” (Baptista, 2009BAPTISTA, Saulo. Pentecostais e neopentecostais na política brasileira: um estudo sobre cultura política, Estado e atores coletivos religiosos no Brasil. São Paulo; São Bernardo do Campo, SP: Annablume: Instituto Metodista Izabela Hendrix, 2009.: 194). Ou seja, ações voltadas à aprovação de agendas muitas vezes avessas aos fundamentos da diversidade humana e das próprias liberdade e pluralidade religiosas.
O fato é que de pouco mais de 30 anos para cá, o crescimento vertiginoso aliado a discursos prosélitos altamente belicosos de algumas igrejas neopentecostais e a ampliação da mobilização político-eleitoreira de atores políticos com expressiva identidade religiosa que redundou no aumento significativo de lideranças cristãs no Congresso Nacional, resultou na assunção de figuras políticas cujos pilares de atuação incluem a batalha espiritual contra a ação das forças demoníacas sobre o Brasil (abundantemente identificadas com as entidades afro-brasileiras) encadeados à centralidade negativa dada às questões reprodutivas e da diversidade sexual e à proteção da família tradicional patriarcal. O aumento da presença política religiosa, notadamente evangélica, foi acompanhado do avanço da incidência e da brutalidade dos ataques5 5 Emprego o termo ataque conforme o entendimento de Silva (2015), que o utiliza no sentido de uma investida pública de um grupo religioso contra outro, cujas razões se justificariam, do ponto de vista do atacante, por convicções religiosas, além de ilustrar todo um vocabulário belicoso em que se destacam expressões como “batalha”, “guerra santa” e “soldado de Jesus” para descrever suas ações contra o demônio e as religiões que presumivelmente o cultuam. contra adeptos e locais de culto afro-brasileiros, cuja violência desenvolta parece se ampliar ao lado de certo destemor das implicações civis e penais destes atos.
Não é o desígnio deste artigo desenredar os entrelaçamentos entre a política nacional e a intolerância religiosa, senão, ao menos neste momento, pontuar mais uma questão cogitativa: as atuais ações político-religiosas marcam uma retomada da presumida superioridade moral fixada nos legados do patriarcado judaico-cristão, simbolizado pelo modelo de normalidade e bastião onde se assenta a virtude social: a família nuclear burguesa. Os saberes de ancestralidade africana, os quais instauram sua vivência religiosa na fala e na corporalidade, que concebem e acatam uma extensiva designação de “família” e autorizam a constituição de uma hierarquia sacerdotal que eleva aos mais altos postos litúrgicos mulheres, homossexuais, travestis e transgêneros, tanto acentuam a sua probabilidade de serem os alvos principais de violência religiosa quanto, e apesar de sua pequenez numérica, perturbam de alguma forma este projeto de poder.
Por outro lado, e não contingencialmente, no que se refere aos principais argumentos acionados pelos grupos constituintes do campo da militância (incluídos os representantes políticos) e dos estudos sobre a intolerância religiosa no Brasil, observa-se uma confluência habitual presente na tendência em propor o problema a partir de um liame com a violação de direitos humanos e a questão no Brasil (Cunha, 2011CUNHA, Christina V. “Traficantes evangélicos” e intolerância religiosa nas favelas hoje: o caso de Acari. Rio de Janeiro, XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.), notadamente em vista das principais religiões atacadas.
Contudo, esses posicionamentos não escaparam de questionamentos importantes, mormente relativos à premissa de que a intolerância religiosa nacional se fundamenta primordialmente no racismo estrutural da sociedade brasileira. Primeiro, o fato de que a maioria dos fieis do cristianismo evangélico é negra enquanto religiões como Candomblé e Umbanda vêm embranquecendo paulatinamente (Pierucci, 2006PIERUCCI, Antônio F. Religião como solvente: uma aula. Novos Estudos, n. 75, p. 111-127, Jul. 2006. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/nec/a/sppGWNSmKdp6RfpbPPVMmPN/abstract/?lang=pt>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
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). Segundo, em se considerando os protagonistas no caso brasileiro, a intolerância religiosa que acobertaria mais uma forma de racismo não faria sentido já que as igrejas neopentecostais estão, de fato, centradas na questão da batalha espiritual contra o mal e não em uma batalha de origem racial (Mariano, 2015MARIANO, Ricardo. Pentecostais em ação - a demonização dos cultos afro-brasileiros. In: SILVA, Vagner Gonçalves da. Intolerância religiosa - impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Editora USP, 2015.).
Minhas ponderações distinguem-se, em certo alcance, destas predisposições. Elas apontam que há sim interligação entre intolerância religiosa, violação de direitos humanos e racismo no Brasil. Mas, ela se dá entremeada no tecido social no qual irrompe, principalmente:
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i. o racismo epistêmico, parte do racismo estrutural brasileiro, que opera desconsiderando os saberes e as experiências das populações afro-diaspóricas e autóctones das Américas e se constitui como o patrono mor do preconceito às produções de conhecimento destes corpos sócio-político-culturais originários das colônias assinalados pela criação e propagação da ideia de raça como marcadora de desenvolvimento ou de atraso (Quijano, 2005______. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.);
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ii. a violência, que Maria Cecília de Souza Minayo (2006MINAYO, Maria Cecília de Souza. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.: 27) afiançou “que se poderia chamar estrutural e ‘estruturante’ pelo seu grau de enraizamento” em um Brasil “marcado por ambivalências e ambiguidades de um país escravista e colonizado”;
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iii. no bojo de uma sociedade que demonstra ter uma visão tortuosa dos direitos humanos em que 63% dos brasileiros se dizem genericamente “a favor” dos direitos humanos, mas, 28 % afirmam que os “direitos humanos não significam nada no meu cotidiano”, 21% se manifestam contrários à sua mera existência e 56% acham que os “bandidos” são os maiores beneficiados6 6 Dados do Instituto Ipsos, edição 157, referente à pesquisa Pulso Brasil, de 1 a 15 de abril de 2018. .
Entendo pois que pensar a intolerância religiosa e o racismo é crucial, mas numa interpretação mais intrincada do que um mero embate racial/étnico incidente sobre relações agressivas no âmbito do religioso. Primordialmente, é necessário admitir que o campo da religião é capaz de atingir o centro de nossas valorações do que sejam cultura e cosmogonia legítimas ou ruinosas, cultos e práticas de devoção benévolas ou maléficas. É essa autoridade sobre o poder-saber transcendental que, coligado ao racismo epistêmico, cuidadosamente edificado durante séculos, torna cáustico o terreno religioso no Brasil.
De igual modo, a relação intolerância religiosa e violação de direitos humanos é importante, mas dentro da necessária compreensão capaz de inferir para quem, de fato, foram criados os discursos de tolerância inter-religiosa e os chamados direitos humanos, a quem realmente servem, mas, principalmente, de que forma eles podem ser acionados no caso de pessoas e conhecimentos inferiorizados que historicamente foram e são colocados em um plano abaixo do humano7 7 Este poderia ser um ponto de partida válido para pensar o porquê dos brasileiros em geral se mostrarem tão alienados e, de certa forma, avessos à linguagem dos direitos humanos. .
Sem embargo, a primazia das religiões hegemônicas cristãs está coligada às argumentações que sobrelevam os direitos individuais de crença e de culto ao mesmo tempo em que usurpam de outras revelações do sagrado o seu direito à livre manifestação. Porque as práticas e discursos formadores das relações de poder têm fundamento em um domínio epistemológico que incide justamente sobre o que é válido enquanto prática e discurso que legitimam tanto o poder político quanto a esfera da cultura. Em outras palavras, a epistemologia dominante concebe e demarca os fundamentos e a relevância do conhecimento humano, mas, principalmente, a sua validade.
E, é neste recorte subsumido na grandiosidade de se aferir a gnose humana que se arvora a pretensão de dizer o que é ou não é verdadeiro, erudito, correto e eficaz - uma ambição que se amplia para determinar o que é ou não benéfico, útil ou lícito. É, portanto, dentro da dominação global dos fundamentos epistemológicos inapelavelmente masculinos e eurocentrados - não por acaso, incidentes sobre padrões institucionalizados de valoração cultural e humana que se reflete, em pleno século XXI, no Parlamento brasileiro majoritariamente masculino, branco, heterossexual e cristão - que a produção e reprodução de conhecimento efetuado por mulheres e/ou pelos povos racializados das colônias se viram e continuam sendo rebaixados, degradados e desqualificados. Tais saberes e competências desprezados envolvem, e igualmente de forma não eventual, as expressões religiosas outras que não aquelas que usufruem da legitimidade epistemológica dominante, as quais detêm o monopólio “de definir o que é verdade, o que é a realidade e o que é melhor para os demais” (Grosfoguel, 2016GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 25-49, Jan.-Abr. 2016. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/se/a/xpNFtGdzw4F3dpF6yZVVGgt/?lang=pt>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
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: 25).
Os delineamentos da intolerância religiosa no Brasil atual
Considero importante pontuar que, historicamente, a animosidade e a coibição, sobretudo em termos de Estado brasileiro, não foi exclusiva dos cultos de origem africana no Brasil. A repressão aos cultos protestantes existiu oficialmente durante o Império brasileiro. O Código Criminal do Império anunciava, no capítulo reservado aos delitos contra a religião, a moral e os bons costumes, que era vedado “celebrar em casa, ou edifício, que tenha alguma forma exterior de Templo, ou publicamente em qualquer lugar, o culto de outra Religião, que não seja a do Estado”, sob pena de “serem dispersos pelo Juiz de Paz os que estiverem reunidos para o culto; da demolição da forma exterior; e de multa de dois a doze mil réis, que pagará cada um”8 8 Artigo 276 da Lei de 16 de dezembro de 1830, Código Criminal do Império. . Além disso, não havia registro civil para o matrimônio de protestantes, que só podia ser validado em presença de um sacerdote católico. Quem não o fizesse estaria em concubinato e, por conseguinte, teria filhos ilegítimos que não herdariam os bens paternos9 9 O casamento de protestantes seria definido por lei pelo decreto de 21 de outubro de 1865 o qual, contudo, exigia que os filhos de matrimônio misto fossem batizados na Igreja Católica, contudo, o decreto significou um avanço, pois permitia aos não católicos que tivessem casamentos oficiados por pastores. . O problema recrudescia quando aconteciam os óbitos. Não havia cemitérios públicos e os existentes ou pertenciam às paróquias ou haviam sido abençoados por autoridade eclesiástica. Cristãos dissidentes não podiam ser sepultados em tais locais e os protestantes, não raro, tinham que enterrar seus mortos no campo. Apenas com a Constituição republicana de 1891 resolveu-se a questão ao considerar públicos todos os cemitérios (Dreher, 1999DREHER, Martin N. A igreja latino-americana no contexto mundial. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1999.).
Apesar disso, o que almejo ressaltar, além de destacar que os protestantes também se constituíram em alvo de perseguição religiosa em determinada fase da história nacional, é que foram eles os que, em realidade, se beneficiaram das aberturas dadas pelo regime republicano laico. Pois, de toda forma, eram cristãos e, em maior parte, imigrantes brancos europeus e seus descendentes, cujos estabelecimentos em terras nacionais o Estado brasileiro não só desejava como incentivava. Os praticantes de religiões afro-brasileiras prosseguiriam ignorados pelas instituições republicanas e continuariam perseguidos pelas autoridades públicas.
Assim, não obstante a República e o Estado laico de direito, artífice de uma Constituição que se afirmou inclusiva, as últimas décadas assistiriam ao recrudescimento de perseguições religiosa, em grande parte ativado justamente pela postura doutrinária das herdeiras da Reforma - aquelas cujas antecessoras foram acossadas na época do Império - imbuídas da “guerra santa” ou da “batalha espiritual” contra a influência do diabo no mundo, constantemente identificado com as divindades afro-brasileiro, e ansiosas por monopolizar o mercado de soluções simbólicas e prestação de serviços religiosos para os problemas materiais e espirituais de estratos da população que compartilham “os mesmos códigos simbólicos e cognitivos” (Oro, 1997ORO, Ari. P. Neopentecostais e afro-brasileiros: quem vencerá esta guerra? Debates do NER, n. 1, p. 10-37, 1997. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809- 52672020000300005>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
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: 17). Portanto, uma finalidade prática coligada a uma convicção doutrinária, sobre as quais assevera Ricardo Mariano:
O combate aos cultos afro-brasileiros, além de basear-se nos ideários bíblico e idiossincrático mencionados, em termos práticos visa converter os adeptos das religiões rivais e, por meio disso, dizimar a concorrência espírita nos estratos populares com o fechamento de centros espíritas, tendas de Umbanda e terreiros de Candomblé existentes, sobretudo, nas redondezas dos templos evangélicos (Mariano, 2015MARIANO, Ricardo. Pentecostais em ação - a demonização dos cultos afro-brasileiros. In: SILVA, Vagner Gonçalves da. Intolerância religiosa - impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Editora USP, 2015.: 137).
Ocorre, entrementes, que uma grave demanda social e um intrigante questionamento acompanham a detecção desta disputa mercadológica religiosa em terras nacionais marcada pela difamação renitente e a conclamação à guerra contra o demônio encarnado no panteão afro-brasileiro: o afluxo de violência, em virtude de intolerância religiosa no Brasil, no qual vem se avolumando notícias de agressões físicas, afrontas públicas, destruição de templos e de objetos sagrados, expulsões de bairros e de comunidades que se tornaram comuns de um modo inequivocamente inquietante; a realidade de que somadas todas as fés de ancestralidade africana presentes no Brasil, estas mal chegam a 2% da totalidade de devotos (Datafolha, 2020), motivo pelo qual indago sobre os motivos por trás destes ataques às afro-brasileiras, tendo em vista uma disputa pelo mercado de bens religiosos, ainda que junto à aversão doutrinária de suas divindades e símbolos, diante de um adversário numericamente tão pouco significativo.
Se o domínio do mercado religioso e de sua considerável ascendência sobre a conquista de posições de liderança social e política é elemento fundamental desta disputa, por que se importar com religiões como o Candomblé e a Umbanda que não são mais do que 2% da população? Ainda que se considere estes valores subestimados por diversos motivos históricos como os que geraram o duplo pertencimento dos adeptos às religiões afro-brasileiras ao catolicismo (Silva, 2007______. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana Estudos de Antropologia Social, v. 13, n. 1 p. 207-236, Abr. 2007.; Prandi, 2003PRANDI, Reginaldo. As religiões afro-brasileiras e seus seguidores. Civitas. v. 3, n. 1 p. 15-33, Jun. 2003.), os números são irrisórios10 10 Não seria, pois, o Catolicismo decrescido, mas ainda majoritário, o grande adversário? Ocorre que contra um inimigo ainda tão poderoso quanto a Igreja Católica, são necessárias outras estratégias que não o embate direto. Relembre-se o episódio do “chute na santa” e as rumorosas repercussões negativas que lhe sobrevieram e se percebe a dificuldade do enfrentamento aberto contra um secular monopólio religioso que apresenta vínculos fortes com as mais diversas esferas da sociedade brasileira. .
Eis porque sustento que a intolerância religiosa atual no Brasil expõe os seus mais potentes alicerces fincados nos construtos ideológicos de origem colonial (Quijano, 2005______. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.; 2014; Grosfoguel, 2007______. Dilemas dos estudos étnicos norte-americanos: multiculturalismo identitário, colonização disciplinar e epistemologias descoloniais. Ciência e Cultura, v. 59, n. 2 p. 32-35, Abr.-Jun. 2007. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252007000200015>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
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; 2016; Maldonado-Torres, 2014) sistematicamente arquitetados para subalternizar ou extinguir - na impossibilidade de amoldá-los aos planos da conquista - as experiências, histórias, recursos e produtos culturais dos povos colonizados. Estas preconcepções altamente aviltantes erigidas sobre elaborações ideológicas possantes e persistentes, impostas com constância e violência, no campo das religiões, forjaram a demonização obstinada das cosmogonias e concepções do sagrado das populações colonizadas e/ou escravizadas, de modo que, até hoje, as religiões advindas das culturas africanas são classificadas como primitivas, incivilizadas e têm suas práticas cerimoniais tidas por sórdidas, quando não, criminosas, e continuamente redemonizadas. Estas elaborações ideológicas, reais e concretas, alinhavadas com a disputa pelo mercado religioso, diante das características peculiares da religiosidade brasileira e de sua tendência ao uso da violência para a solução de conflitos delineiam a intolerância religiosa nacional da atualidade.
Sendo assim, minhas considerações partem das seguintes premissas:
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i. As construções ideológicas coloniais entranhadas na sociedade brasileira forjaram um pensamento colonizado persistente, o qual privilegia e entende como superior e civilizada quase exclusivamente a tradição de pensamento dos eruditos europeus (Grosfoguel, 2007______. Dilemas dos estudos étnicos norte-americanos: multiculturalismo identitário, colonização disciplinar e epistemologias descoloniais. Ciência e Cultura, v. 59, n. 2 p. 32-35, Abr.-Jun. 2007. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252007000200015>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php... ; 2016). Paralelamente, estes construtos erigiram a inferiorização dos saberes11 11 Não confundir esta negação com a exaltação eventual de manifestações culturais de procedência indígena ou negra, celebradas como “tradição”. Tais louvores mascaram justamente a alocação destes saberes como folclore, lendas, mitos, superstições. Tudo menos celebração legítima do sagrado; tudo menos produção reconhecida de conhecimento (Chauí, 2017). e dos modos de produção de conhecimento dos povos colonizados e escravizados nas Américas e no Brasil (Quijano, 2005______. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.), até mesmo a hierarquização espiritual-religiosa fundada na prerrogativa irrestrita das espiritualidades cristãs ocidentais em detrimento das espiritualidades não cristãs coloniais (Mignolo, 2017MIGNOLO, Walter. Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94 p. 1-18, Jun. 2017. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/nKwQNPrx5Zr3yrMjh7tCZVk/abstract/?lang=pt>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
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ii. Tais construções ideológicas estão ancoradas na composição histórico-estrutural racial das diferenças entre colônia e metrópole (Mignolo, 2017MIGNOLO, Walter. Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94 p. 1-18, Jun. 2017. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/nKwQNPrx5Zr3yrMjh7tCZVk/abstract/?lang=pt>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/nKwQNPr... ) e são artífices e produto da criação, estabelecimento e firmação do conceito de raça (Quijano, 2005______. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.) e da racialização do mundo (Ianni, 2004IANNI, Octávio. Dialética das relações raciais. Estudos Avançados, v. 18, n. 50, Fev. 2004. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ea/a/78rQndTBbYLBzHMdc3ygj4w/abstract/?lang=pt>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
https://www.scielo.br/j/ea/a/78rQndTBbYL... ); -
iii. A despeito do domínio quase absoluto da Igreja Cristã (católica e depois protestante), abalizado pela expansão colonial, a práxis religiosa que se estabilizou na sociedade brasileira persistiu eminentemente crédulo e confiante nas soluções mágicas no que se refere ao uso de forças sobrenaturais para intervenção na esfera mundana (Maggie, 1992MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.);
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iv. Neste quadro pintado por séculos, o expansionismo evangélico encontrou terreno fértil para combater as religiões de ancestralidade africana, identificando-as com a obra do demônio, mas também apropriando-se, no que lhes servia, do vocabulário e de algumas práticas dos cultos africanos;
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v. Por fim, resta destacar que estamos inseridos em uma sociedade brasileira violenta, autoritária, racista, recalcada quanto às suas heranças históricas de desprezo aos seus legados nativos e africanos, “como se estivessem superados, séculos de escravidão, séculos daquela escravidão que permaneceu vigente como uma das últimas do mundo a ser abolida” (Misse, 2008MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, v. 8, n. 3, p. 371-385, Set.-Dez. 2008. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/ index.php/civitas/article/view/4865>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs... : 372).
Tais reflexões possibilitaram minhas inferências sobre os abalizamentos da intolerância religiosa no Brasil, sua origem e especificidades, interseções e inserção na sociedade brasileira contemporânea, especialmente no que se refere às características do conflito relacionadas à maioria dos ataques direcionados contra as religiões de matriz africana. Portanto:
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i. Ela é epistemologicamente racista;
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ii. As religiões afro-brasileiras são as mais suscetíveis de serem atacadas porque são racializadas, ou seja, são classificadas, hierarquizadas e estigmatizadas por sua procedência marcada pela criação e reprodução da ideia de raça (Quijano, 2005______. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.)12 12 Esta classificação social, por meio da criação e reprodução da ideia de raça à partir da colonização das Américas, é delimitada pelo conceito de colonialidade, introduzido pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, ao qual me aterei mais adiante. enquanto registro de inferioridade social, biológica, intelectual e cultural (Grosfoguel, 2016GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 25-49, Jan.-Abr. 2016. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/se/a/xpNFtGdzw4F3dpF6yZVVGgt/?lang=pt>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
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iii. A eleição das vítimas preferenciais, seja dos ataques verbais ou da violência explícita derivados de conflitos religiosos, não é aleatória e atende à difamação epistêmica das concepções de mundo e da religiosidade dos povos colonizados/escravizados e de sua racialização;
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iv. Os ataques por motivos religiosos transformam-se em agressões, destruição e morte porque a sociedade brasileira é violenta (Misse, 2008MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, v. 8, n. 3, p. 371-385, Set.-Dez. 2008. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/ index.php/civitas/article/view/4865>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs... ; Minayo, 2006MINAYO, Maria Cecília de Souza. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.), ao revés de uma historiografia dada a eufemismos e à idealização do brasileiro pacífico e caloroso (Chauí, 2017CHAUÍ, Marilena. Sobre a violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.) e possuidora de um histórico de abuso, coação e exclusão, mormente para com quem ou o que já é previamente passível de fustigo ou de eliminação13 13 Trago, para ilustrar este último argumento, a contribuição de Judith Butler (2011) e sua concepção de vidas precárias incidente sobre aquelas vidas passíveis de eliminação e aquelas dignas de luto. Resgato esta autora para asseverar que a precariedade da vida, no Brasil, possui raça e classe social (vide os resultados apresentados pelo Atlas da Violência 2017 - Ipea e FBSP, especialmente o homicídio em massa de negros), e a estendo para a “precariedade” cultural do que já é historicamente considerado abjeto (outro termo de Judith Butler), como as religiosidades de origem africana, as quais não provocam maiores manifestações de luto, nem social, nem institucional, quando ameaçadas. ; -
v. A praxe religiosa brasileira, carregada de confiança nos expedientes sobrenaturais para os problemas mundanos, sempre teve as religiões afro-brasileiras como as mais prestigiosas e eficazes nestes assuntos (Silva, 2007______. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana Estudos de Antropologia Social, v. 13, n. 1 p. 207-236, Abr. 2007.; Maggie, 1992MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.). Este foi um dos ensejos para a peculiaridade do proselitismo evangélico da negação concomitante à assimilação do universo tradutor das religiões afro-brasileiras (Almeida, 2006ALMEIDA, Ronaldo de. A expansão pentecostal: circulação e flexibilidade. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Orgs.). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas, p. 111-122. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.). De modo que as liturgias que constituem a teologia neopentecostal se aproveitam largamente do vocabulário do sistema difamado em seu próprio benefício como a introdução nos cultos de manipulações mágicas e pessoais com a utilização das terminologias e dos elementos simbólicos das afro-brasileiras.
Esquematicamente, a intolerância religiosa brasileira articula-se em quatro vertentes de sinergia e performance que se retroalimentam (Figura 1).
Meu entendimento afiança a relevância da disputa pelo mercado religioso que segue abraçada à conquista de posições de liderança social e autoridade política, sobretudo nos últimos 30 anos. Mas sublinho, pelo que expus, que a contenda mercadológica e a premissa do combate ativo à influência do demônio na terra personificado pelas entidades afro-brasileiras, não dão conta, per se, do fenômeno da intolerância religiosa no Brasil.
As fissuras que descerro apontam para a fundamental análise crítica da intolerância religiosa no Brasil como desmembramento relacionado à sociedade brasileira violenta, autoritária, vertical e racista (Chauí, 2007______. Contra a violência. Portal da Fundação Perseu Abramo, 03 Abr. 2007. Disponível em: <http://csbh.fpabramo.org.br/contra-violencia-por-marilena-chaui>. Acesso em: 03 Ago. 2021.
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), acionada pelo legado colonial que alocou e continua realocando as descobertas mentais e culturais os povos conquistados e dominados numa posição presumidamente originária de subalternidade (Quijano, 2005______. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.). Esta intolerância religiosa que fomenta a violência religiosa tem base assentada no racismo epistemológico porque encontra justificação discursiva na episteme da cristandade europeia, e não apenas na arenga, que remonta ao medievo europeu, da diferença hierárquica natural entre os cristãos e os não cristãos (que as conquistas d’além-mar rapidamente transformaria em diferenças raciais), mas também na inferiorização e supressão das heranças culturais dos povos colonizados/racializados transformadas em heréticas e diabólicas para as quais urgia o dever cristão de converter à fé verdadeira.
As manifestações de intolerância religiosa no Brasil contemporâneo estão atreladas ao racismo estrutural da sociedade brasileira, mas não para afirmar um contexto da existência de religiões que seriam ou deveriam ser primordial e substancialmente vinculadas a uma etnia. Digo que a intolerância religiosa que fomenta a violência religiosa nacional é racista porque deriva do racismo epistêmico implantado pela colonialidade14 14 Colonialidade do poder é um conceito inaugurado por Aníbal Quijano que define o eixo fundamental da dominação colonial caracterizado pela classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, que foi criado e consolidado a partir da colonização e constituição da América e da edificação do capitalismo colonial/moderno eurocentrado como o novo padrão de poder mundial. Esta matriz colonial de poder naturalizou hierarquias - raciais, territoriais, culturais, de gênero e epistemológicas - bem como tomou para si o controle da subjetividade, da cultura e da produção do conhecimento das populações conquistadas ao tempo em que compôs para apagar ou subalternizar os conhecimentos, experiências e modos de vida daquelas populações. que fixou as elaborações ideológicas de origem colonial, as quais foram concebidas, executadas e compelidas sobre os alicerces da diferença racial como marca da inferioridade espiritual, moral, intelectual e cultural dos povos colonizados/escravizados.
Algumas considerações finais
A intolerância religiosa brasileira configura mais um dos efeitos do racismo epistêmico enquanto apagamento, diminuição e marginalização das crenças ancestrais dos povos colonizados, militarmente subjugados e economicamente explorados, que estipulou, e continua estabelecendo, não apenas uma ordenação que coibiu e condenou manifestações de devoção ao sagrado que não decorressem da crença do colonizador, mas também assentou metodicamente e durante séculos a concepção destas crenças como integradas ao contexto do mal.
A intolerância religiosa nacional bebe da mesma fonte epistemologicamente racista que enunciou as elaborações ideológicas coloniais, que foram concebidas, executadas e compelidas sobre os alicerces da diferença racial como marca da inferioridade espiritual, moral, intelectual e cultural dos povos colonizados/escravizados -, uma concepção epistêmica que está igualmente encravada no racismo estrutural de nossa sociedade.
A estratégia prosélita evangélica de degeneração da imagem pública das religiões de matriz africana, novamente desqualificando-as e as redemonizando, utilizando as mesmas concepções coloniais de inferiorização e supressão via alocação do sagrado ancestral dos povos invadidos e conquistados na fronteira do sortilégio e do anátema inclui outra tática relacionada que é a apropriação do vocabulário e de elementos simbólicos das religiões difamadas, notadamente entre as neopentecostais, ação que exprime tanto uma negação por meio do ultraje quanto uma assimilação do universo tradutor das religiões afro-brasileiras no interior de comunidades que compartilham de seus significados. A percepção deste nicho dentro do mercado de serviços sobrenaturais até então dominado por portadores de práticas religiosas de vasta freguesia, mesmo que continuamente negados, carregado de todo um vocabulário familiar aos ouvidos de todas as camadas sociais brasileiras e a compreensão do papel que as mediações mágicas e a experiência do transe religioso possuem para a dinâmica religiosa brasileira foi o grande tino da intelecção neopentecostal para atrair seguidores ávidos pela experiência de arrebatamento com as vantagens da legitimidade social cristã.
Os ataques por motivos religiosos convertem-se em agressões, destruição e morte porque a sociedade brasileira é violenta, autoritária, hierárquica e racista. Não obstante, poderia se arguir que o mero desprezo às manifestações religiosas de outrem, a simples dissensão no que se concebe por verdade transcendental não deveria ocasionar, por si só, atos como o de apedrejar pessoas em logradouros públicos apenas por portar vestuário atinente à sua devoção religiosa, ou ações como invadir e derrubar templos e objetos sacros, expulsar sacerdotes e devotos de suas localidades, ou agredir e até matar o Outro que não partilha de igual visão do sagrado. Tais ações exigem mais do que menosprezo e repulsa. Demandam uma aversão à que se incorpora uma tendência de aniquilamento do que se considera eliminável, tudo isso no seio de uma sociedade construída sob a égide da violência colonial, do esmagamento de sua população nativa, da escravização de milhões de seres humanos desterrados. Ou seja, de uma sociedade edificada sob níveis altíssimos de crueldade e aviltamento, coroados pelo peso da colonialidade e do racismo epistêmico que forjaram o repúdio às heranças não afetas aos pretensamente superiores legados europeus seculares, filosóficos, científicos e religiosos.
A linguagem da religião e da liberdade religiosa, em interface com a intolerância religiosa, permeia cada vez mais os discursos em arena republicana e constitui um fenômeno político que não se pode mais avaliar insignificante, ao contrário, perpassa com manifesta constância as ações e mediações estatais hodiernas, de modo que deve ser considerado em toda sua extensão e importância. A linguagem da religião encadeada à dicção e ação políticas pode constituir um campo minado quando relacionada à intolerância religiosa no que se refere à assunção político-hegemônica de apenas uma dimensão, mormente se exclusivista, do sagrado. A organização das religiões de matriz africana, que historicamente se formaram a partir de um mapa religioso constituído por uma variedade de federações e terreiros, todos ao mesmo tempo autônomos e rivais entre si, ainda não representam um movimento articulado que faça frente, por exemplo, à organização dos evangélicos cada vez mais empenhados em ocupar espaços estratégicos nos meios de comunicação e nos poderes Legislativo e Executivo. A despeito da insurgência coordenada por líderes de comunidades tradicionais de terreiro e do surgimento de comissões e de canais de denúncia, as reações estruturadas a ataques no campo religioso (e isso também pode se referir a outras religiões minoritárias igualmente atacadas) precisam ainda avançar em respostas e aparelhamento em campo político.
Por todas estas perspectivas, que interferem na liberdade religiosa e de culto, que se perfaz o nó que interliga intolerância religiosa, violação de direitos humanos e racismo: o desrespeito continuado às prescrições dos direitos fundamentais recepcionados e ordenados pela Constituição Federal, consubstanciado pela intolerância que, em realidade, nega a liberdade de crença e de culto sob argumentos que remontam asserções epistêmicas racistas de origem colonial.
As interferências do privilégio e do desprestígio epistêmicos são tão permanentemente presentes quanto dissimuladas pela ilusão da amabilidade e congraçamento inerentes ao povo brasileiro, pelo racismo e sexismo recreativos acobertados pelo riso e pela falta de intensão em ofender, pela injustiça epistêmica e sua cortante parcialidade contaminada pelos preconceitos remissivos ao pertencimento identitário da pessoa que abaliza um déficit de credibilidade quanto à sua capacidade de conhecer e de transmitir conhecimento. É preciso, pois, desvendar estas influências, porque elas suscitam mais que o apagamento intelectual e cultural de mulheres ou das populações que sofreram a invasão colonial e que até o presente constituem a periferia do sistema-mundo, mas seguem interferindo para continuar promovendo sistematicamente o epistemicídio destas vozes e destes conhecimentos. Porque o laço do racismo epistêmico, mormente quando encravado na religião, é justamente manter-se oculto não somente nas entrelinhas dos mecanismos usados para privilegiar projetos imperiais/coloniais/patriarcais, mas naqueles utilizados para determinar o que é a verdade, a lei, o real e o correto para todos.
Por fim, faz oportuno e fundamental asseverar que a intolerância religiosa é sempre uma violência, independentemente do grau do ataque, porque ultraja e mais uma vez confisca a experimentação da espiritualidade e de elementos religiosos e sagrados dos antepassados de povos que foram impedidos de perpetuar sua memória, de sequer se expressar em seu idioma ou pronunciar o próprio nome. Por isso é cogente a necessidade de reconhecer a agência das pessoas, dos lugares e das religiosidades historicamente subalternizadas naquilo que pode ser a grande resistência existente na religião em face da inferiorização, do domínio e da coerção forjados pela colonialidade: o empenho pela legitimidade do sagrado, a partir do conhecimento que foi subtraído e demonizado.
Agradeço, por justo e oportuno, ao inestimável apoio intelectual e pessoal de meu orientador de doutorado, professor doutor Luiz Mello de Almeida Neto, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás.
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1
Inobstante o advento da República e o fim da religião de Estado, o Código Penal Brasileiro de 1890 previa prisão e multa a quem praticasse o espiritismo, a magia e seus sortilégios. Na era getulista, os locais de culto afro-brasileiros (de 1931 até 1964) deveriam registrar-se e obter permissão de funcionamento nas delegacias de polícia e eram vigiados pela Inspetoria de Entorpecentes e Mistificações. A repressão policial contra o “baixo espiritismo”, ainda em meados do século XX, existia e grassava amparada pelo então novo Código Penal, vigente a partir de 1942, que se já não trazia a proibição ao “espiritismo”, abria brechas várias para abusos em dispositivos como a criminalização da prática de curandeirismo (artigo 284 do Decreto-Lei 2.848/1940 - Código Penal Brasileiro).
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2
Sílvio Nogueira (2020) defende - em face da marginalização das religiões de origem africana, cujos denunciantes estariam mais propensos a esconderem a indicação de pertencimento religioso - que juntando as denúncias informadas e as não informadas as ocorrências contra o que ele prefere denominar CTTro ou Comunidades Tradicionais de Terreiro estariam na faixa dos 80%.
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3
Exceto, talvez, como a exaltação eventual de manifestações culturais de procedência indígena ou negra, celebradas como “tradição”. Tais louvores mascaram justamente a alocação destes saberes como folclore, lendas, mitos, superstições, mas não celebração legítima do sagrado, não produção reconhecida de conhecimento (Chauí, 2017).
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4
Assinalo o Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015): resultados preliminares do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, Secretaria Especial de Direitos Humanos; as pesquisas Datafolha: “Perfil e opinião dos evangélicos no Brasil”, de 2016, e Avaliação do STF, de 2020; a pesquisa do Pew Research Center: Religião na América Latina mudança generalizada em uma região historicamente católica, de 2014; os resultados publicados pelo Disque Direitos Humanos - Disque 100, para denúncias de discriminação religiosa (denominação dada pelo próprio canal), desde 2011.
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5
Emprego o termo ataque conforme o entendimento de Silva (2015), que o utiliza no sentido de uma investida pública de um grupo religioso contra outro, cujas razões se justificariam, do ponto de vista do atacante, por convicções religiosas, além de ilustrar todo um vocabulário belicoso em que se destacam expressões como “batalha”, “guerra santa” e “soldado de Jesus” para descrever suas ações contra o demônio e as religiões que presumivelmente o cultuam.
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6
Dados do Instituto Ipsos, edição 157, referente à pesquisa Pulso Brasil, de 1 a 15 de abril de 2018.
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7
Este poderia ser um ponto de partida válido para pensar o porquê dos brasileiros em geral se mostrarem tão alienados e, de certa forma, avessos à linguagem dos direitos humanos.
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8
Artigo 276 da Lei de 16 de dezembro de 1830, Código Criminal do Império.
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9
O casamento de protestantes seria definido por lei pelo decreto de 21 de outubro de 1865 o qual, contudo, exigia que os filhos de matrimônio misto fossem batizados na Igreja Católica, contudo, o decreto significou um avanço, pois permitia aos não católicos que tivessem casamentos oficiados por pastores.
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10
Não seria, pois, o Catolicismo decrescido, mas ainda majoritário, o grande adversário? Ocorre que contra um inimigo ainda tão poderoso quanto a Igreja Católica, são necessárias outras estratégias que não o embate direto. Relembre-se o episódio do “chute na santa” e as rumorosas repercussões negativas que lhe sobrevieram e se percebe a dificuldade do enfrentamento aberto contra um secular monopólio religioso que apresenta vínculos fortes com as mais diversas esferas da sociedade brasileira.
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11
Não confundir esta negação com a exaltação eventual de manifestações culturais de procedência indígena ou negra, celebradas como “tradição”. Tais louvores mascaram justamente a alocação destes saberes como folclore, lendas, mitos, superstições. Tudo menos celebração legítima do sagrado; tudo menos produção reconhecida de conhecimento (Chauí, 2017).
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12
Esta classificação social, por meio da criação e reprodução da ideia de raça à partir da colonização das Américas, é delimitada pelo conceito de colonialidade, introduzido pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, ao qual me aterei mais adiante.
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13
Trago, para ilustrar este último argumento, a contribuição de Judith Butler (2011) e sua concepção de vidas precárias incidente sobre aquelas vidas passíveis de eliminação e aquelas dignas de luto. Resgato esta autora para asseverar que a precariedade da vida, no Brasil, possui raça e classe social (vide os resultados apresentados pelo Atlas da Violência 2017 - Ipea e FBSP, especialmente o homicídio em massa de negros), e a estendo para a “precariedade” cultural do que já é historicamente considerado abjeto (outro termo de Judith Butler), como as religiosidades de origem africana, as quais não provocam maiores manifestações de luto, nem social, nem institucional, quando ameaçadas.
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14
Colonialidade do poder é um conceito inaugurado por Aníbal Quijano que define o eixo fundamental da dominação colonial caracterizado pela classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, que foi criado e consolidado a partir da colonização e constituição da América e da edificação do capitalismo colonial/moderno eurocentrado como o novo padrão de poder mundial. Esta matriz colonial de poder naturalizou hierarquias - raciais, territoriais, culturais, de gênero e epistemológicas - bem como tomou para si o controle da subjetividade, da cultura e da produção do conhecimento das populações conquistadas ao tempo em que compôs para apagar ou subalternizar os conhecimentos, experiências e modos de vida daquelas populações.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Ago 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022
Histórico
-
Recebido
02 Set 2021 -
Aceito
27 Maio 2022