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Entre arestas: repensando desafios contemporâneos para a ação coletiva em contexto de periferização do mundo

PARANÁ, Edemilson; TUPINAMBÁ, Gabriel. Arquitetura de arestas: as esquerdas em tempos de periferização do mundo. São Paulo: Autonomia Literária, 2022

Diante de uma época marcada por crises diversas, o que é possível fazer politicamente em prol de uma sociedade mais justa? Essa, obviamente, não é uma pergunta nova - seja para teóricos da ação coletiva, seja para militantes. A operação de construir um diagnóstico sobre a realidade, ressaltando os seus pontos problemáticos e, a partir disso, esboçar caminhos possíveis para tornar mais justa essa mesma realidade é algo amplamente presente no pensamento social do século XX e dos dias atuais, sobretudo no que se convencionou chamar de “teoria crítica”.

Desde os escritos marxianos mais explicitamente panfletários, como o próprio Manifesto, passando pelas reflexões teóricas de importantes figuras dos movimentos revolucionários do último século (como Lênin e Rosa Luxemburgo) e chegando às diversas pesquisas das últimas décadas, inúmeros pensadores vêm se debruçando sobre as possibilidades de concretização de projetos alternativos de sociedade. Em anos mais recentes, acontecimentos políticos como a Primavera Árabe e Junho de 2013 deram um novo fôlego aos debates em torno da pergunta sobre “o que fazer?”.

É nesse amplo campo de debates que se insere o livro Arquitetura de arestas. Os autores, Gabriel Tupinambá e Edemilson Paraná, mesclam suas diferentes formações acadêmicas (o primeiro, filósofo e psicanalista; o segundo, sociólogo) às suas distintas experiências como militantes na última década a fim de proporcionarem ao leitor um modelo de análise das organizações políticas de esquerda que seja, ao mesmo tempo, teórico e político, uma vez que Tupinambá e Paraná reiteram que a efetividade de seu modelo só pode ser verificada pela própria experiência concreta dos militantes que dele se apropriarem.

A ideia fundamental de Arquitetura é a de que vivemos desde os anos 1970/1980 uma profunda transformação no sistema capitalista, cujo modo de funcionamento parece prescindir cada vez mais “da organização do mundo do trabalho para garantir a organização dos processos de valorização" (Tupinambá, 2020TUPINAMBÁ, G. Um pensador na periferia da História. Revista Porto Alegre, 2020. Disponível em: http://revistaportoalegre.com/um-pensador-na-periferia-da-historia/ . Acesso em: 08 de jul. 2023.
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). Nesse contexto, em vez de acompanharmos a concretização do ideário progressista associado ao Welfare State, caracterizado pela expectativa de um “transbordamento” do progresso material dos países centrais para os países periféricos, assistimos ao movimento contrário: é a experiência desses últimos que aponta o futuro dos primeiros, vinculando a nossa realidade a um processo de “periferização do mundo” (Canettieri, 2020CANETTIERI, T. A condição periférica. Rio de Janeiro, RJ: Consequência Editora, 2020.)2 2 Importante ressaltar que essa mesma ideia pode ser encontrada, ainda que sob conceituações distintas, em reflexões de autores tão diferentes quanto Paulo Arantes (2014), Machado da Silva (1999) e Achille Mbembe (2018). Para um comentário mais extenso sobre a noção de periferização do mundo, cf. (FERREIRA; FLEURY; RAMOS, 2021). . Tal processo pode ser caracterizado como a expansão, em direção aos países centrais, de certos elementos típicos da maior parte das populações da periferia do capitalismo, como profundas desigualdades sociais, ausência de amparos institucionais, generalização da “viração” em relação à reprodução social, avanço do mercado informal, entre outros. Recuperando a fortuna crítica de Chico de Oliveira (2015), os autores reforçam que, longe de representar um retrocesso, a expansão da condição periférica se desdobra a partir do que há de mais avançado no capitalismo - como é o caso dos trabalhadores de plataforma e TICs -, aprofundando a mescla entre formas arcaicas e modernas de sociabilidade.

Tupinambá e Paraná argumentam que, se a ideia da periferização do mundo está correta, então devemos assumir que não sabemos, de antemão, a conformação do terreno social sobre o qual estamos pisando. Não sabemos devido ao fato de que a degradação do laço entre progresso material e organização do mundo trabalho produz um tecido social profundamente fraturado, recheado de “arestas” e caracterizado pela fricção potencialmente conflituosa entre regimes normativos incompatíveis. Daí os discursos, ouvidos nos últimos tempos, a respeito da sensação de desorientação frente à política atual e da dificuldade de transformar as múltiplas formas de resistência em projetos políticos de longo prazo. Levando a sério a condição periférica, os autores se mostram profundamente descrentes em relação à possibilidade de aglutinar as esquerdas em torno de um “significante vazio” comum, como querem os simpatizantes do “populismo de esquerda” (Mouffe, 2020MOUFFE, C. Por um populismo de esquerda. São Paulo: Autoomia Literária, 2020.), ou de um conjunto supostamente comensurável de movimentos sociais diversos, como querem os autonomistas Negri; Hardt, 2005HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão: Guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.). Para Tupinambá e Paraná, um dos poucos elementos que atravessam os diferentes fragmentos dos projetos políticos progressistas são os seus problemas de organização. Tidos muitas vezes como problemas “menores”, “internos” ou meramente “de logística”, são eles o ponto de partida eleito pelos autores para se repensar a ação coletiva de esquerda na atualidade.

Na primeira parte do livro acompanhamos um debate entre Paraná e Tupinambá. Isso permite ao leitor observar não só as réplicas e tréplicas dos dois autores, como também as diferenças e similaridades entre as suas visões a respeito dos temas trabalhados ao longo da obra. Assim, na primeira “rodada” do debate, Paraná (p. 21) esboça uma possível análise das esquerdas no Brasil, dividindo-as em “i) uma esquerda institucional-parlamentar ou “estadocêntrica”; ii) a esquerda dita tradicional-radical ou “saudosa”; (...) iii) a esquerda fragmentária ou dita ‘pós-moderna’”, e propõe que devemos reter as virtudes e descartar os vícios de cada um dos tipos descritos. Tupinambá (p. 28), por sua vez, argumenta que, na verdade, a esquerda já estaria unida, embora de forma curiosa e um tanto “atabalhoada”, uma vez que “as deficiências de cada corrente alimentam as certezas e funcionamentos das demais”, criando uma situação na qual “o militante que toca na contradição interna de [uma dessas correntes] encontra alívio e poder crítico [em outra delas]” (p. 30).

Na segunda “rodada”, em resposta a tal provocação, Paraná mobiliza a questão, clássica no marxismo, a respeito do “acúmulo de força social”, argumentando que, a despeito dessa união “sub-reptícia” entre as esquerdas mencionada por Tupinambá, elas estariam fracassando “retumbantemente em sua disputa geral da sociedade” (p. 45). O outro autor, por sua vez, desloca o debate novamente para uma visão mais “interna” à própria esquerda, sugerindo que “o nosso trato atual com o poder dentro da esquerda é um índice bem mais convincente do que é que faríamos caso mais pessoas aderissem ao nosso campo político” (p. 53). Com isso, o autor defende que as formas pelas quais as organizações lidam com o dinheiro, o tempo e o trabalho dos militantes é um forte indicativo, para os que estão “de fora”, de como esses espaços se relacionam com a reprodução social da vida - ou, nas suas palavras, com os “problemas de qualquer um” (p. 59).

Na terceira e última “rodada” do debate, torna-se evidente uma convergência dos autores em torno de duas ideias. A primeira é que o acúmulo de força social estaria “intimamente vinculado a um tratamento adequado da ‘problemática da reprodução concreta da vida’” (p. 69) - isto é, dos problemas práticos de boa parte da população, como aqueles relativos ao dinheiro, à mobilidade urbana, ao acesso a infraestruturas básicas, etc. A segunda ideia diz respeito à aposta de que “a eficácia de uma dada organização ou discurso político depende da sua capacidade de mapear ou figurar internamente as forças que organizam a nossa vida social” (p. 75) - ou seja, uma aposta referente à necessidade de que as organizações se atentem aos problemas logísticos/organizacionais, ou, em outros termos, aos problemas de reprodução social dos próprios membros que compõem o seu espaço.

Na segunda parte (capítulo 7), os autores escrevem juntos o esboço de um modelo de análise das esquerdas a partir do saldo do debate desenvolvido. Para isso, Paraná e Tupinambá detalham cinco premissas de construção desse modelo. A primeira diz respeito à “primazia do múltiplo” (p. 87), o que significa que os autores não acreditam na existência de uma fonte única daquilo que se convencionou chamar de “esquerda”, tampouco de que a “unidade das esquerdas” deveria ser sempre possível ou desejável. Assim, a possibilidade de que, em certas situações, emerja uma unidade localizada entre diferentes setores da esquerda se torna um objeto de investigação. A segunda premissa se refere ao “recorte prático” (p. 88) do modelo - a ideia é que esse quadro de análise não dependa exclusivamente das representações que as organizações fazem de si mesmas, uma vez que elas podem assumir diferentes sentidos do ponto de vista de cada fração da esquerda, e que se concentre, portanto, em uma dimensão mais “objetiva” de sua atuação no mundo.

A terceira premissa diz respeito à postura de levar a sério a “ecologia de organizações” (Nunes, 2023) no campo da esquerda, o que significa entender os coletivos, partidos políticos e movimentos sociais como elementos constitutivos de um ecossistema organizacional construído não apenas por meio de “alianças diretas ou conexões positivas” (Paraná ; Tupinambá , 2022, p. 89), mas também pelo distanciamento crítico entre diferentes organizações. A quarta se refere a um cuidado analítico com “misturas e escalabilidade” (Idem) - ou seja, com o fato de que cada organização representa um espaço de coexistência de diferentes correntes associadas à esquerda. Tal perspectiva complexifica enormemente a caracterização das organizações, uma vez que se torna possível encontrar, por exemplo, partidos organizados internamente de modo voluntarista, atuantes na sociedade por meio do parlamentarismo e defensores de um discurso que “rejeita tanto o heroísmo individual quanto a legitimidade do dinheiro” (p. 90).

A quinta e última premissa diz respeito à proposta de se manter uma “homogeneidade teórica” (Idem) entre as ferramentas teóricas basilares desse modelo analítico e os recursos teóricos utilizados pela própria esquerda. O argumento fundamental sugere que há uma potência analítica em se utilizar, em relação às próprias organizações progressistas, os enquadramentos teóricos que as esquerdas comumente mobilizam para descrever o mundo. Com isso, os autores apostam que o desenvolvimento de ferramentas reflexivas capazes de navegar a fricção entre teorias distintas sobre a realidade também contribui para “pensar a fricção organizacional entre esses espaços” (p. 91).

Partindo de tais premissas, Paraná e Tupinambá sugerem investigar as diferentes lógicas das organizações de esquerda a partir de três dimensões constitutivas da modernidade (baseado no marxista japonês Kojin Karatani): o Estado (representante da lógica institucional), a nação (representante da lógica comunitária) e o capital (representante da lógica da valorização). Mobilizando a premissa da homogeneidade teórica, os autores apostam, então, na identificação de três tendências estruturantes da esquerda (p. 98): a lógica da esquerda comunitária (concentração sobre as formas de opressão e aposta na superação do trabalho abstrato via reciprocidade), a lógica da esquerda institucional (concentração sobre as formas de expropriação e aposta na superação do trabalho abstrato pela participação no Estado) e a lógica da esquerda econômica (concentração sobre as formas de exploração e aposta na superação do paradoxo do sacrifício por meio da transformação da esfera produtiva).

Com esse enquadramento teórico em vista e considerando as possíveis misturas dessas três lógicas em cada organização política progressista, os autores propõem que coletivos, partidos e movimentos sociais sejam analisados a partir de quatro aspectos: o epistemológico (como uma organização conhece a realidade social?), o político (como uma organização atua sobre a realidade social?), o ideológico (como uma organização se representa para si mesma e para os outros?) e o da reprodução social (como uma organização lida com as condições materiais de vida dos organizados?). Ao final do capítulo, Paraná e Tupinambá reforçam que a efetividade de tal modelo não deve ser verificada pela consistência de suas premissas e arcabouços teóricos, mas sim pela sua possibilidade de eventualmente “jogar uma nova luz sobre as interações entre organizações” (p. 114), aspecto que só poderá ser observado a partir da reintrodução do mesmo modelo no cotidiano militante dessas organizações.

Na última parte, os autores desenvolvem certas “análises de conjuntura” a partir da problemática da periferização do mundo e do modelo de análise das esquerdas esboçado no capítulo 7. Paraná e Tupinambá (p. 134-135) defendem “substituir o foco na democracia como uma finalidade (...) por um novo cuidado com a democratização de qualquer atividade política”. Isso significa priorizar a construção de plataformas de trânsito entre diferentes organizações políticas, de tal forma que seus êxitos, fracassos e problemas organizacionais possam ser transmitidos entre elas a fim de se construir, aos poucos, uma rede de sustentação das múltiplas frentes de luta emergentes. Se, de acordo com os autores, não podemos mais contar com qualquer tipo de substrato social homogeneizador ou discurso unificador das esquerdas, então devemos nos preocupar “em conformar as vitórias e derrotas de cada experimento político a um espaço ‘artificial’ (...) em que essas experiências possam se inscrever, se acumular e nos poupar de repetir os mesmos erros” (p. 135).

Por fim, acredito que Arquitetura aponta caminhos relevantes para análises sobre ação coletiva. Em outro texto (no prelo), sugeri que, a despeito da proficuidade da sociologia da ação coletiva clássica, há uma dimensão interna desse fenômeno, prenhe de situações problemáticas, ainda a ser investigada mais amplamente. Essa dimensão diz respeito aos problemas de organização e coordenação das ações inerentes a qualquer empreendimento coletivo. Dada a preocupação dos autores em criar um modelo que leve a sério as engrenagens organizacionais das ações coletivas, penso que o livro indica vias relevantes de investigação para pesquisadores interessados na “dimensão interna” de partidos, movimentos sociais, coletivos etc.

Referências

  • ARANTES, P. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.
  • FERREIRA, V.; FLEURY, J.; RAMOS, C. Neoliberalismo, condição periférica e os Panteras Negras: um breve estudo sobre reprodução social e ação coletiva no mundo periferizado. Revista Ensaios, v. 19, p. 39-58, 2021.
  • FERREIRA, V. Por dentro da ação política: uma proposta de investigação dos problemas internos da ação coletiva. Revista Ensaios, no prelo.
  • CANETTIERI, T. A condição periférica. Rio de Janeiro, RJ: Consequência Editora, 2020.
  • DE OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista/. São Paulo: Boitempo, 2015.
  • HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão: Guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.
  • MOUFFE, C. Por um populismo de esquerda. São Paulo: Autoomia Literária, 2020.
  • SILVA, L. A. M. Trabalhadores do Brasil: Virem-se. Revista Insight/Inteligência, n.1, p. 58-65, 1999.
  • TUPINAMBÁ, G. Um pensador na periferia da História. Revista Porto Alegre, 2020. Disponível em: http://revistaportoalegre.com/um-pensador-na-periferia-da-historia/ . Acesso em: 08 de jul. 2023.
    » http://revistaportoalegre.com/um-pensador-na-periferia-da-historia
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    Importante ressaltar que essa mesma ideia pode ser encontrada, ainda que sob conceituações distintas, em reflexões de autores tão diferentes quanto Paulo Arantes (2014), Machado da Silva (1999) e Achille Mbembe (2018). Para um comentário mais extenso sobre a noção de periferização do mundo, cf. (FERREIRA; FLEURY; RAMOS, 2021).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Jul 2023
  • Aceito
    07 Ago 2023
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