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Um silêncio eloquente? O que a ausência do Direito da criança e do adolescente no Exame Nacional da Magistratura nos diz?

An eloquent silence? What do the absence of The right of children and adolescents in The razilian judiciary exam tell us?

Resumo:

A Resolução CNJ nº 531/2023 instituiu o Exame Nacional da Magistratura, como pré-requisito para inscrição nos concursos da magistratura, consistente em uma prova objetiva com cinquenta questões divididas em oito blocos temáticos. O Direito da Criança e do Adolescente não figura dentre os ramos do conhecimento selecionados para compor os grupos de questões do Exame. O presente artigo tem por objetivo investigar o que essa ausência significa no contexto mais amplo do ensino jurídico no Brasil. Para tanto, buscou-se realizar uma revisão de textos bibliográficos que examinam a evolução histórica desse ramo do Direito, bem como de fontes que avaliam a formatação da matriz curricular de cursos jurídicos no Brasil. Além disso, foi feito um levantamento de dados empíricos sobre a presença ou não do Direito da Criança e do Adolescente no currículo dos cursos de Direito nas vinte faculdades mais bem avaliadas no RUF 2023. Os resultados colhidos na pesquisa evidenciaram que a ausência desse ramo do conhecimento jurídico no Exame Nacional reflete a indisfarçável negligência dada à disciplina na formação acadêmica e profissional dos estudantes que se tornarão juízes e juízas e remonta à evolução histórica do perfil dos magistrados da infância e da juventude no Brasil.

Palavras-chave:
Exame Nacional da Magistratura; Direito da Criança e do Adolescente; Ensino jurídico; Diretrizes curriculares.

Abstract:

The CNJ Resolution No. 531/2023 establishes the National Judiciary Exam as a prerequisite for applying to a judicial position, consisting of an objective test with fifty questions divided into eight thematic blocks. Children’s and Adolescents’ Rights do not appear among the subdivisions of knowledge selected to compose the groups of questions for the exam. This article aims to investigate what this absence it means in the broader context of juridical education in Brazil. To this end, we conducted a review of bibliographic texts that examine the historical evolution of this area of Law, as well as sources that evaluate the formatting of the curricular matrix of legal courses in Brazil. Additionally, a survey of empirical data was carried out on the presence or absence of Children’s and Adolescents’ Rights in the curriculum of Law courses in the twenty best-evaluated universities in the RUF 2023 ranking. The results collected in the research showed that the absence of this area of legal knowledge in the National Exam reflects the undisguised negligence given to the discipline in the academic and professional training of students who will become judges and goes back to the historical evolution of the profile of childhood and youth magistrates in Brazil.

Keywords:
National Judiciary Exam; Children’s and Adolescents’ Rights; Juridical education; Curricular guidelines

INTRODUÇÃO

A Resolução nº 531, de 14 de novembro de 2023, alterou a Resolução nº 75, de 2009, ambas editadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Este novo ato normativo instituiu o Exame Nacional da Magistratura como pré-requisito para inscrição nos concursos públicos para ingresso na carreira da magistratura no Brasil. Doravante, para que o candidato se inscreva nos certames abertos a partir da data de publicação da Resolução nº 531/2023 será imprescindível a apresentação de comprovante que ateste a sua aprovação no Exame Nacional da Magistratura.

O texto da Resolução nº 531/2023 dispõe que o Exame Nacional da Magistratura será regulamentado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), sob a supervisão do CNJ, mas, desde já, esclarece que o Exame consistirá numa prova objetiva composta por 50 (cinquenta) questões, elaboradas com a finalidade de privilegiar o raciocínio do candidato, a resolução de problemas e a vocação para o exercício da carreira da magistratura. O ato normativo, então, elenca oito grupos temáticos, de acordo com ramos do conhecimento, sobre os quais as questões objetivas da prova irão versar. O Direito da Criança e do Adolescente não está no rol desse dispositivo. Vale dizer, o Exame Nacional da Magistratura não contempla o Direito da Criança e do Adolescente como um grupo temático específico, não se destinando, portanto, nenhuma questão a esse ramo jurídico. Logo, os profissionais que pretendem se tornar os juízes e as juízas das novas gerações não serão arguidos, especificamente, sobre tal temática.

Desde o seu anúncio, o Exame Nacional da Magistratura é alvo de candentes polêmicas e indisfarçáveis controvérsias. Este artigo não pretende, porém, analisar o acerto, a adequação ou a legalidade da Resolução nº 531/2023. O objetivo desta pesquisa é, na verdade, examinar de que forma a escolha do CNJ em não selecionar esse tema para compor o quadro de disciplinas do Exame Nacional da Magistratura é revelador e sintomático sobre o papel que é conferido ao Direito da Criança e do Adolescente no cenário mais amplo pertinente à formação acadêmica do estudante de Direito no Brasil, bem como à seleção profissional dos bacharéis em Direito para o acesso aos cargos públicos, especialmente quanto ao ingresso na carreira da magistratura.

Nesse sentido, a questão que norteia a presente pesquisa é a seguinte: “o que a ausência do Direito da Criança e do Adolescente no Exame Nacional da Magistratura diz a respeito da importância que é dada a esse ramo jurídico na formação do profissional do Direito, seja nas matrizes curriculares dos cursos de graduação em Direito nas faculdades brasileiras, seja como um conteúdo exigido dos candidatos em certames públicos para o acesso às carreiras jurídicas, especialmente nos concursos de ingresso na carreira da magistratura?”. A partir desse problema, pretende-se investigar se a ausência do Direito da Criança e do Adolescente como um bloco autônomo e específico de questões no Exame Nacional da Magistratura pode ser considerado um “silêncio eloquente” (do alemão beredtes Schweigen) do CNJ, ou seja, o reflexo da opção por uma omissão intencional, proposital e deliberada, e não simplesmente uma lacuna acidental.

Para consecução dos objetivos propostos, será realizada uma revisão bibliográfica de textos que examinam a evolução histórica do Direito da Criança e do Adolescente, no Brasil e no mundo, destacando a viragem paradigmática que esse ramo do conhecimento apresentou nas últimas décadas, com a superação do vetusto Direito Menoril, e o impacto dessa transformação no estudo científico e acadêmico do tema e na organização da Justiça e formação dos juízes e das juízas. Ademais, também serão examinadas fontes documentais que avaliam a formatação da matriz curricular das faculdades de Direito no Brasil.

Além disso, com o escopo de investigar a importância que é dada ao Direito da Criança e do Adolescente na formação do bacharelando em Direito no Brasil, a pesquisa será complementada por um levantamento de dados empíricos acerca da presença ou ausência dessa disciplina na matriz curricular dos cursos de Direito nas vinte faculdades mais bem avaliados no Ranking Universitário Folha - RUF 2023, para que, diante dos resultados obtidos, busque-se entender de que modo isto reflete no Exame Nacional.

O presente artigo é composto de três partes, além desta introdução e da sua conclusão. Na próxima seção, será abordada a evolução histórica do Direito da Criança e do Adolescente. Em seguida, será examinada a abordagem que é dada a esse ramo do conhecimento jurídico nas universidades públicas e privadas do Brasil, a partir da análise da matriz curriculares do curso de Direito em algumas instituições de Ensino Superior. Por fim, a última seção é dedicada ao estudo da inserção do Direito da Criança e do Adolescente como tema exigido (ou não) como elemento indispensável ou ignorado na formação profissional dos juízes e das juízas brasileiras, examinando-se os editais de abertura dos concursos públicos de ingresso na magistratura e o Exame Nacional da Magistratura inserido por força da recente Resolução nº 531/2023 do CNJ.

1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: DOS JUÍZES DE “MENORES” AOS JUÍZES DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE

Ao tempo da publicação do presente artigo, ao final de 2023, não há dúvidas: as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos, isto é, pessoas que titularizam direitos fundamentais (Rossato; Lépore; Cunha, 2019)ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei n. 8.069/90 - comentado artigo por artigo. 11ª ed. São Paulo, SP: Saraiva Educação, 2019.. Aos juízes e às juízas das Varas da Infância e da Juventude compete, pois, a resolução dos litígios relacionados à concretização dos direitos desses sujeitos. Contudo, nem sempre as crianças e os adolescentes foram entendidos como sujeitos de direitos e tampouco foi esse o papel historicamente destinado aos magistrados no contexto da infância.

Em estudo clássico, o historiador francês Philippe Ariès demonstrou que a “infância” é um constructo histórico e cultural e não um conceito ontológico imanente à toda sociedade (Ariès, 2021)ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. de Dora Flaksman. 2ª ed. Reimpressão. Rio de Janeiro, RJ: LTC, 2021.. Com efeito, em sua obra “História Social da Criança e da Família”, o pesquisador demonstrou que por muitos séculos não havia o que se denomina de “sentimento da infância”, isto é, a compreensão das particularidades das crianças, como pessoas distintas dos adultos (Ariès, 2021)ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. de Dora Flaksman. 2ª ed. Reimpressão. Rio de Janeiro, RJ: LTC, 2021.. Segundo o autor, durante a Idade Média, por exemplo, as crianças eram tratadas como “adultos em dimensões reduzidas” ou “adultos em miniatura”, não havendo, portanto, qualquer lei protetiva que reconhecesse a condição especial das crianças em relação aos adultos (Ariès, 2021)ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. de Dora Flaksman. 2ª ed. Reimpressão. Rio de Janeiro, RJ: LTC, 2021.. De fato, a consciência da particularidade que distingue a criança de um adulto é fruto de uma lenta e gradual construção social da modernidade, de modo que a infância só é efetivamente “descoberta” a partir do século XIII e, principalmente, nos séculos XVII e XVIII.

Ocorre, porém, que a “descoberta” da infância não significou, automaticamente, o reconhecimento das crianças (e dos adolescentes) como pessoas titulares de direitos autônomos. Pelo contrário. De partida, as crianças foram distinguidas pelo que não são e pelo que não têm. O Direito passou a tutelar as crianças com o fim precípuo de garantir a chegada à idade adulta. Vale dizer, o valor das crianças era medido pelo que ainda se tornariam, pelo adulto do futuro. Assim, para salvaguardar o regular desenvolvimento da criança, o Poder Público passou a intervir nas famílias, por exemplo, com medidas que implicavam na separação das crianças de seus genitores e na sua colocação em internatos, orfanatos e reformatórios (Donzelot, 1977)DONZELOT, Jacques. A Polícia das Famílias. Trad. de M. T. da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal, 1977..

Na verdade, a “descoberta” da infância redundou na separação de duas infâncias: é que o reconhecimento das crianças como pessoas com demandas específicas e distintas dos adultos culminou na “descoberta” de uma subcategoria do universo “infância” formada pelas crianças abandonadas e delinquentes, que foram reunidas sob o rótulo de “menores” (Scheinvar, 2002)SCHEINVAR, Estela. Idade e Proteção: fundamentos legais para a criminalização da criança, do adolescente e da família (pobres). In: NASCIMENTO, Maria Lívia do (org.). Pivetes: a produção de infâncias desiguais. Niterói, RJ: Intertexto ; Rio de Janeiro: Oficina do Autor , 2002.. A nomenclatura fala por si só: uma parte das crianças foi destacada das demais pois se entendeu que tinha um valor inferior, “menor”. Essa parcela era composta pelas crianças marginalizadas, carentes e desassistidas, em sua maioria pobres, pretas e pardas, das classes sociais subalternas.

Já deu pra notar que duas infâncias extremamente diferentes estão sendo construídas. A primeira, associada ao conceito de menor, é composta por crianças de famílias pobres, que perambulavam livres pela cidade, que são abandonadas e às vezes resvalam para a delinquência, sendo vinculadas a instituições como cadeia, orfanato, asilo etc. Uma outra, associada ao conceito de criança, está ligada a instituições como família e escola e não precisa de atenção especial. (Bulcão, 2002, p. 69, negrito no original)BULCÃO, Irene. A produção de infâncias desiguais: uma viagem na gênese dos conceitos “criança” e “menor”. In: NASCIMENTO, Maria Lívia do (org.). Pivetes: a produção de infâncias desiguais. Niterói, RJ: Intertexto; Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 2002.

Ocorre que nenhuma das duas infâncias era reconhecida como titular de direitos e de obrigações na ordem jurídica. De um lado, as “crianças” abastadas, os filhos das famílias ricas, eram subordinadas aos desideratos do pater familias, a quem competia definir o que podiam e o que não podiam fazer no espaço doméstico intrafamiliar. Não havia leis para tais crianças, porque todas as questões eram deliberadas pelo patriarca, a quem as crianças eram submetidas. Tampouco os “menores” tinham quaisquer direitos. A eles, contudo, havia leis, havia Direito.

Com efeito, o Direito passou a incidir sobre os “menores”. O ordenamento jurídico foi utilizado como importante ferramenta para o controle e a vigilância dos “menores”, sobretudo daqueles que perambulavam pelos logradouros públicos, que eram vistos como um perigo para a ordem pública (Melo, 2011)MELO, Eduardo Rezende. Crianças e Adolescentes em situação de rua: Direitos Humanos e Justiça. Uma reflexão crítica sobre a garantia de direitos humanos de crianças e adolescentes em situação de rua e o sistema de justiça no Brasil. São Paulo, SP: Malheiros Editores, 2011.. Sob o pretexto de “proteção”, foram editadas leis que, na prática, resultavam em opressão e repressão (García Méndez, 1994). Nesse sentido, o discurso dos juristas adquire notória importância no processo de controle e normatização das crianças. Afinal, se “a criança é vista como o futuro cidadão, futuro do homem e da pátria, devendo ser normatizada de acordo com a nova ordem disciplinar vigente para ser útil e produtiva ao país” (Bulcão, 2002, p. 67)BULCÃO, Irene. A produção de infâncias desiguais: uma viagem na gênese dos conceitos “criança” e “menor”. In: NASCIMENTO, Maria Lívia do (org.). Pivetes: a produção de infâncias desiguais. Niterói, RJ: Intertexto; Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 2002., o Direito se incumbiu de controlar os “menores”, evitando que se “desviassem” e, assim, garantindo que alcançassem a maioridade, tornando-se adultos úteis à sociedade.

Os “menores”, portanto, não tinham direitos, mas a esse grupo era aplicado um Direito: o Direito Menoril. De um lado, esse Direito era materializado em legislações que informaram a denominada “doutrina da situação irregular” (Ishida, 2019)ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina e Jurisprudência. 20ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador, BA: Editora JusPodivm, 2019.. São leis que não se aplicavam a todas as crianças, mas apenas aos “menores”, uma parcela da infância que se encontrava em “situação irregular”. No Brasil, primeiro foi editado o Decreto nº 17.943-A, de outubro de 1927, mais conhecido como “Código Mello Mattos”; após, sobreveio a Lei nº 6.697/1979, que institui o chamado “Código de Menores”, legislação que somente se aplicava às crianças abandonadas, desviadas, vítimas e/ou delinquentes. De outro lado, igualmente se fez “necessário criar uma estrutura diferenciada de controle social: o tribunal de menores (que recebe essa denominação não por acaso)” (García Méndez, 1994, p. 83)GARCÍA MÉNDEZ, Emilio. Das necessidades aos direitos. São Paulo: Malheiros Editores, 1994.. Logo, o tribunal de menores e o juiz de menores surgem como instituições que, na teoria, pretendiam “proteger” as crianças, mas que, na prática, exerciam o controle e a vigilância sobre os “menores”, a parcela residual e excluída da infância.

A figura do juiz de menores é bastante sintomática sobre o tratamento que era dado aos “menores” no contexto histórico que compreendeu o final do século XIX e grande parte do século XX. Isso porque, o juiz de menores tudo podia e as suas decisões praticamente não eram limitadas pela legislação. Afinal, se o seu papel era “proteger” os “menores”, tudo podia fazer sob o pretexto de “proteção”. No lugar de resolver os litígios à luz do que dispõe o ordenamento, o juiz de menores agiu quase como um “pai”, com poderes quase ilimitados para tomar qualquer providência que entendesse “melhor”, em sua visão, para “proteger” o “menor”. Nesse sentido:

O juiz de menores representa a realização institucional da ideologia da “compaixão-repressão”. Em todo texto clássico de direito de menores o com-portamento adequado do juiz está equiparado à figura do “bom pai de família”. Convém relembrar, aqui, que entre as inúmeras obrigações deste último não figura a de conhecer o direito para sua correta aplicação. O caráter absoluta-mente discricionário de suas funções coloca-o na situação paradoxal de estar, tecnicamente, impossibilitado de violar o direito. Além disso, a escassa ou nula importância dada às matérias sob sua jurisdição o exime, na prática, de submeter-se a instâncias superiores de revisão. Sua dupla competência tutelar e penal (sendo que o tutelar constitui-se em sinônimo de tudo), unida à miséria de seus recursos técnicos e financeiros, lhe outorgam poderes absolutos que, definitivamente, traduzem-se em nada. (García Méndez, 1994, p. 93)GARCÍA MÉNDEZ, Emilio. Das necessidades aos direitos. São Paulo: Malheiros Editores, 1994.

O juiz de menores, “magistrado paternal” que era, não se submetia ao império das leis, porque não precisava saber leis para julgar os casos, bastava seguir o seu “coração” para tomar a melhor decisão para o caso. As suas decisões sequer seguiam o primado do Estado de Direito. Logo, não se fazia necessário ensinar o Direito Menoril, que, assim, passou ao largo dos bancos das faculdades, malgrado manuais tenham sido escritos para “ensinar” os magistrados a julgar, a exemplo da obra “Direito do menor” (1976), de Alyrio Cavallieri, um notável juiz de menores para quem a palavra “menor” possuía inegável conteúdo jurídico e o Direito somente precisaria se preocupar com os “menores” e não com todo o universo da infância, razão pela qual entende “seria trágico se os juizados se chamassem juizados de crianças ou as delegacias de meninos” (Cavallieri, 1976, p. 15)CAVALLIERI, Alyrio. Direito do menor. Rio de Janeiro, RJ: Freitas Bastos, 1976.. De todo modo, contudo, não havia regras a se aplicar e a se ensinar. A atividade do juiz de menores, arbitrária e discricionária, era guiada por sua íntima convicção.

No último quarto do século XX, finalmente a doutrina menorista da situação irregular foi suplantada e cedeu lugar à doutrina da proteção integral. A partir de então, as crianças e os adolescentes deixaram de ser tratados como meros objetos de intervenção estatal e instrumentos para cumprimento dos desígnios do mundo adulto, e passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos. Com efeito, a doutrina da proteção integral “atribui à infância e à juventude um momento especial na vida do ser humano e, por isso, assegura a crianças e adolescentes o status de pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, além de conferir-lhes a titularidade de direitos fundamentais” (Rossato; Lépore; Cunha, 2019, p. 62)ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei n. 8.069/90 - comentado artigo por artigo. 11ª ed. São Paulo, SP: Saraiva Educação, 2019..

Em âmbito internacional, a nova doutrina foi adotada pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989, e, em âmbito nacional, pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) instituído pela Lei nº 8.069, de 1990. Com efeito, o ECA revogou o ultrapassado “Código de Menores” e reconheceu vários direitos às crianças e aos adolescentes, dentre outros, direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao lazer, à profissionalização, ao esporte, à dignidade, ao respeito e à liberdade (Brasil, 1990)BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Congresso Nacional, 1990. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm . Acesso em: 21 nov. 2023.
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.

De mais a mais, o ECA estabelece ritos e procedimentos que devem ser observados nos processos que versam sobre interesses de crianças e adolescentes, dispondo, por exemplo, a necessidade de atuação do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica e de nomeação de defensor para patrocinar os interesses do infante no curso do processo judicial (Brasil, 1990). Em suma, agora é reconhecido que os requisitos do primado do Estado de Direito se aplicam não somente aos adultos, mas igualmente aos processos que envolvem crianças e adolescentes.

A adoção da doutrina da proteção integral provocou, portanto, uma grande revolução: o Direito Menoril (Direito do “Menor”) cedeu lugar a um novo ramo do conhecimento jurídico, qual seja, o Direito da Criança e do Adolescente. Um campo autônomo da ciência jurídica, com normas específicas, que demanda conhecimentos técnicos, capacitação e formação contínua, a fim de habilitar o profissional operador do Direito a lidar com as situações que dizem respeito às crianças e aos adolescentes não com base em sua livre convicção, mas de acordo com o que está disposto no ordenamento jurídico. Consequentemente, se faz indispensável a aprendizagem acerca desse novo ramo do Direito, seja nos cursos de graduação, seja nos concursos públicos.

Como se vê, portanto, a história do Direito da Criança e do Adolescente é, na verdade, “a história das transformações da menoridade como objeto da compaixão-repressão à infanto-adolescência como sujeito pleno de direito” (García Méndez, 1994, p. 48)GARCÍA MÉNDEZ, Emilio. Das necessidades aos direitos. São Paulo: Malheiros Editores, 1994.. De fato, esse ramo do conhecimento jurídico passou por inúmeras transformações, por uma viragem paradigmática que modificou radicalmente o seu objeto central, o seu “DNA”. Em breve síntese: “do menor, como objeto da compaixão-repressão, à infância-adolescência, como sujeito pleno de direitos, é a expressão que melhor poderia sintetizar suas transformações” (García Méndez, 1994, p. 72)GARCÍA MÉNDEZ, Emilio. Das necessidades aos direitos. São Paulo: Malheiros Editores, 1994..

2 O DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NOS CURSOS DE GRADUAÇÃO

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, estabeleceu os direitos das crianças e dos adolescentes como uma prioridade absoluta a ser garantida pela família, pela sociedade e pelo Estado (Brasil, 1988)BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: 1988. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 13 nov. 2023.
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. Ora, “a palavra prioridade informa a precedência, a prima facie dos direitos da criança e do adolescente em confronto com outros” (Ishida, 2019, p. 23)ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina e Jurisprudência. 20ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador, BA: Editora JusPodivm, 2019.. Vale dizer, os direitos da criança e do adolescente devem vir em primeiro lugar, com especial importância.

Assim, se os profissionais jurídicos devem aplicar os direitos infantoadolescentes com prioridade absoluta, é crível entender que devem conhecê-los, para que possam assegurá-los, razão pela qual a disciplina que estuda o Direito da Criança e do Adolescente merece destaque no bojo dos saberes que formam a base de conhecimento acadêmico dos bacharéis em Direito.

Lamentavelmente, contudo, não é isso que se observa no Ensino Superior brasileiro. Com efeito, a viragem paradigmática capitaneada pela doutrina da proteção integral parece não ter provocado a revolução que se esperava no ensino jurídico nacional (García Méndez, 1994)GARCÍA MÉNDEZ, Emilio. Das necessidades aos direitos. São Paulo: Malheiros Editores, 1994.. Isso porque, passados mais de 30 (trinta) anos de vigência do ECA, ainda hoje a disciplina do Direito da Criança e do Adolescente não está presente integralmente nas matrizes curriculares dos cursos de graduação em Direito em grande parcela das faculdades do Brasil. Nesse sentido:

Em levantamento realizado pelo Programa Prioridade Absoluta organizado pelo Instituto Alana, organização da sociedade civil brasileira que busca a efetivação dos direitos da criança, foram pesquisados a existência do conteúdo de Direito da Criança na grade curricular dos 20 cursos de Direito primeiro colocados em três ranqueamentos referentes ao ano de 2016: Aprovação na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) e Ranking das Universidades da Folha (RUF). O uso de diferentes ranqueamentos se justifica pelo fato destes utilizarem critérios distintos entre si e, assim, apontarem diferentes faculdades em seus resultados. Pelo ranqueamento da OAB, de 20 faculdades, metade possui matéria relativa ao Direito da Criança. De forma semelhante, pela lista do Enade, de 20 faculdades, apenas nove possuem matéria nesse tema. Por fim, pelo ranqueamento do RUF, tem-se o melhor cenário: de 20 faculdades, 12 possuem matéria relativa ao Direito da Criança. Relevantes também os dados de que a maioria dos cursos de Direito oferece o conteúdo de Direito da Criança como matéria meramente optativa, e que a inclusão desse conteúdo nas grades curriculares é recente. (Hartung, 2022, p. 360)HARTUNG, Pedro Affonso D. Levando os direitos das crianças a sério: a absoluta prioridade dos direitos fundamentais e melhor interesse da criança. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.

No Brasil, os primeiros cursos jurídicos surgiram no distante ano de 1827, criados pelo governo do Império por meio da Carta de Lei de 11 de agosto, em São Paulo e Olinda, com o objetivo de contribuir na “formação de uma elite política e administrativa, mão-de-obra essa que visava essencialmente a compor o staff - a elite dirigente do país” (Linhares, 2009, p. 228)LINHARES, Mônica Tereza Mansur. Educação, currículo e diretrizes curriculares no Curso de Direito: um estudo de caso. 510 f. Tese (Doutorado em Filosofia do Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Direito, São Paulo, 2009.. De fato, a profissionalização em Direito no Brasil foi, historicamente, voltada para a formação da elite, razão pela qual, inclusive, ainda hoje em dia, há gerações de juristas que compõem uma “nobreza togada”, para se valer da expressão de Almeida (2010)ALMEIDA, Frederico Norma Ribeiro de. A Nobreza Togada: As Elites Jurídicas e a Política da Justiça no Brasil. 329 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 2010., que se mantém no poder, isto é, pais, filhos e netos formados nas ciências jurídicas. Nesse contexto, passou ao largo das faculdades de Direito uma capacitação humanística, reflexiva e crítica, voltada para discussão de pautas sociais. Como resultado, o pensamento jurídico construído nas graduações de Direito se notabilizou pela reprodução quase robótica do conhecimento, sobretudo pela memorização do texto de legislações, sem que seja instado o senso crítico do alunado, criando-se operadores do Direito que funcionam como “papagaios-rabulas que replicam superficialmente o que lhes é apresentado sem entender completamente o que dizem” (Boechat; Parodia, 2017, p. 86). Pois, a matriz curricular dos cursos de graduação em Direito é, ao mesmo tempo, um reflexo dessas raízes históricas e um reprodutor desse tipo de conhecimento focado na mera repetição de leis.

Em 29 de setembro de 2004, a Resolução CNE/CES nº 9, é expedida pela Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação instituindo as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Direito (Bacharelado). Segundo o artigo 3º da citada norma, a matriz curricular do curso de graduação em Direito deve assegurar, no perfil do aluno, “sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica” (Brasil, 2004)BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 9, de 29 de setembro de 2004. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito e dá outras providências. Brasília, DF: 2004. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rces09_04.pdf . Acesso em: 16 nov. 2023.
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. A norma não estabelece todas as disciplinas que devem compor a grade curricular do curso, limitando-se a arrolar, no inciso II do artigo 5º, conteúdos essenciais: “Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho, Direito Internacional e Direito Processual” (Brasil, 2004)BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 9, de 29 de setembro de 2004. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito e dá outras providências. Brasília, DF: 2004. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rces09_04.pdf . Acesso em: 16 nov. 2023.
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pd...
. Como se nota, o Direito da Criança e do Adolescente não é considerado como um conteúdo essencial ao curso.

Sobretudo no final do século XX - ou seja, justamente no mesmo momento histórico que demarcou a viragem paradigmática na seara do direito da infância, com a ascensão mundial da doutrina da proteção integral -, iniciou-se um movimento que se estende até os dias atuais, voltado para a discussão de uma reforma pedagógica da matriz curricular do curso de Direito, entendendo-se que “o objetivo do ensino jurídico no país deve ter como ponto de partida um aluno que pense não só nas leis e em seus textos interpretados de forma literal, fria, técnica, mas inclusive no lado humanístico das normas que conheceu durante o curso” (Mochetti, 2019, p. 63)MOCHETTI, Vanessa Bianchi. Direitos Humanos na matriz curricular do Curso de Direito na Universidade Metodista de São Paulo. 166 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Metodista de São Paulo - UMESP, Programa de Pós-Graduação em Educação, São Bernardo do Campo, 2019.. Pois, esse movimento vai repercutir diretamente na busca pela inclusão da disciplina do Direito da Criança e do Adolescente nos currículos do curso de graduação em Direito no Brasil.

Em 2014, o Instituto Alana, uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que tem por objetivo garantir que crianças e adolescentes sejam prioridade absoluta em todas as esferas de decisões da sociedade, assegurando o protagonismo infantojuvenil, apresentou ao Ministério da Educação (MEC) e à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) uma proposta para a inclusão do ECA como disciplina obrigatória nos cursos de Direito nas faculdades brasileiras, bem como de estágio com pessoas em vulnerabilidade social como prática jurídica obrigatória. Em carta enviada ao MEC, o Instituto Alana declarou que em levantamento feito pela entidade, “verificou-se que, dentre 11 faculdades brasileiras altamente reconhecidas pelo seu ensino do Direito, apenas uma, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), possui como obrigatória a disciplina sobre o ECA” (Instituto Alana, 2014)INSTITUTO ALANA. Carta enviada ao Ministério da Educação. Ref.: Consulta Pública para Novo Marco Regulatório do Ensino do Direito no Brasil - ECA como disciplina obrigatória e estágio com indivíduos em vulnerabilidade como prática jurídica obrigatória. São Paulo, SP: 21 jan. 2014. Disponível emDisponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2014/2/art20140217-08.pdf . Acesso em: 22 nov. 2023.
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. Em seguida, a entidade arremata no sentido de que, considerando a previsão legal e constitucional da efetivação do Direito da Criança e do Adolescente com prioridade absoluta, conclui-se que “o ensino jurídico brasileiro, tomando como referência as principais instituições de ensino de Direito, ainda não incorporou com a devida importância no seu currículo a reflexão e o preparo dos futuros advogados para a defesa da criança e do adolescente” (Instituto Alana, 2014)INSTITUTO ALANA. Carta enviada ao Ministério da Educação. Ref.: Consulta Pública para Novo Marco Regulatório do Ensino do Direito no Brasil - ECA como disciplina obrigatória e estágio com indivíduos em vulnerabilidade como prática jurídica obrigatória. São Paulo, SP: 21 jan. 2014. Disponível emDisponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2014/2/art20140217-08.pdf . Acesso em: 22 nov. 2023.
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, quadro que precisa ser modificado. Por isso, a organização, por meio do seu projeto Prioridade Absoluta, recomenda a incorporação de uma disciplina específica e obrigatória sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente dentro do novo marco regulatório para o currículo do ensino jurídico no Brasil (Instituto Alana, 2014)INSTITUTO ALANA. Carta enviada ao Ministério da Educação. Ref.: Consulta Pública para Novo Marco Regulatório do Ensino do Direito no Brasil - ECA como disciplina obrigatória e estágio com indivíduos em vulnerabilidade como prática jurídica obrigatória. São Paulo, SP: 21 jan. 2014. Disponível emDisponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2014/2/art20140217-08.pdf . Acesso em: 22 nov. 2023.
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Como resultado da mobilização da entidade, no I Congresso Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente das Seccionais da OAB, em 09 de junho de 2017, foi aprovada carta protocolada no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em 27 de junho de 2017. Ainda, no mesmo ano de 2017, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), instância máxima de formulação, deliberação e controle das políticas públicas para a infância e a adolescência na esfera federal, criado pela Lei nº 8.242/1991, se manifestou favorável à inclusão dos direitos da criança e do adolescente como conteúdo obrigatório nas diretrizes curriculares dos cursos de Direito. Segundo o órgão, “é fundamental reconhecer o papel das instituições de ensino que formam os futuros profissionais do Direito, as quais devem sensibilizá-los e capacitá-los para atuar em prol da infância e da adolescência” (Conanda, 2017)CONANDA. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Manifestação do CONANDA pela inclusão dos direitos da criança e do adolescente como conteúdo obrigatório nas diretrizes curriculares dos cursos de direito. Brasília, DF: 17 jul. 2017. Disponível em: Disponível em: https://prioridadeabsoluta.org.br/wp-content/uploads/2016/06/conanda-pedido-de-inclusao-aos-direitos-da-crianca.pdf . Acesso em: 22 nov. 2023.
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A inclusão do Direito da Criança e do Adolescente como uma disciplina específica e de caráter obrigatório na grade curricular dos cursos de graduação em Direito, porém, ainda não é realidade em todas as faculdades do Brasil. Nessa linha de raciocínio, visando a atualização dos dados trazidos por Hartung (2022)HARTUNG, Pedro Affonso D. Levando os direitos das crianças a sério: a absoluta prioridade dos direitos fundamentais e melhor interesse da criança. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022., que tinham por recorte temporal a competência de 2016, foi feita pesquisa empírica junto aos portais eletrônicos oficiais das vinte faculdades mais bem posicionadas no Ranking Universitário Folha - RUF 2023. Assim, os dados encontrados foram sistematizados na tabela a seguir, de acordo com 3 (três) classes distintas, a saber: S - sim, há a previsão do Direito da Criança e do Adolescente como disciplina específica e obrigatória no currículo do curso; N - não, o Direito da Criança e do Adolescente não é previsto na matriz do currículo do curso; OP - há previsão do Direito da Criança e do Adolescente na grade curricular, entretanto, como disciplina de natureza optativa, dependente da escolha facultativa dos alunos.

Tabela 1
Presença do Direito da Criança e do Adolescente nas matrizes curriculares

Os dados compilados na Tabela 1 evidenciam a negligência que é dada ao ensino do Direito da Criança e do Adolescente nos cursos de graduação de Direito no Brasil. Com efeito, das vinte faculdades mais bem posicionadas no RUF 2023, apenas metade (10) delas ofertam a disciplina aos seus alunos. Ademais, as sete faculdades mais bem ranqueadas sequer contam com o Direito da Criança e do Adolescente em sua matriz curricular, incluindo instituições de renome mundial, a exemplo da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Brasília (UnB). Tão somente duas faculdades preveem a disciplina como obrigatória em seu currículo, a saber, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Outras oito instituições oferecem a disciplina ao seu corpo discente, mas apenas como matéria “optativa” (também chamada de “eletiva”), de sorte que só uma parte dos alunos se matriculam na disciplina. Portanto, como se vê, ainda hoje é relativamente comum que muitos estudantes de Direito - incluindo os que futuramente são aprovados no concurso de ingresso na carreira da magistratura - saiam dos bancos das faculdades sem ter nenhuma aula sobre o Direito da Criança e do Adolescente, portanto, sem ter qualquer contato com a temática.

3 O DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NOS CONCURSOS PÚBLICOS PARA O INGRESSO NA CARREIRA DA MAGISTRATURA

Na seção anterior, viu-se que a formação acadêmica do estudante de Direito, no Brasil, foi sedimentada, historicamente, como seu foco para a mera reprodução de conteúdos abstratos, principalmente na replicação do texto de lei “seca” (a textualidade literal do dispositivo legal), sem a reflexão crítica sobre o conteúdo ensinado e aprendido. Ocorre que essa tônica também repercutiu diretamente na forma como a demonstração do conhecimento jurídico é exigida, nos certames públicos, dos bacharéis que postulam o seu ingresso nas carreiras públicas de Estado. Em outras palavras, as provas dos concursos públicos de acesso às carreiras jurídicas, a exemplo da magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública e das procuradorias, igualmente se notabilizaram por exigir do candidato o conhecimento “frio” do texto das legislações ou dos entendimentos dos tribunais, com pouca ou quase nenhuma margem para o pensamento crítico Almeida, 2010ALMEIDA, Frederico Norma Ribeiro de. A Nobreza Togada: As Elites Jurídicas e a Política da Justiça no Brasil. 329 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 2010.; (Mochetti, 2019)MOCHETTI, Vanessa Bianchi. Direitos Humanos na matriz curricular do Curso de Direito na Universidade Metodista de São Paulo. 166 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Metodista de São Paulo - UMESP, Programa de Pós-Graduação em Educação, São Bernardo do Campo, 2019..

Especificamente quanto à carreira da magistratura, a Constituição Federal de 1988, no inciso I do artigo 93, prescreve que o ingresso ocorrerá no cargo inicial de juiz substituto, “mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em Direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica” (Brasil, 1988)BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: 1988. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 13 nov. 2023.
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. Por sua vez, a alínea “c” do inciso I do artigo 96 dispõe que compete aos respectivos tribunais “prover, na forma prevista nesta Constituição, os cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdição” (Brasil, 1988)BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: 1988. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 13 nov. 2023.
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. Por conseguinte, cabe a cada tribunal a organização do próprio concurso público para o ingresso de juízes em seus quadros funcionais. Por exemplo, ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) cabe organizar o certame público para provimento do cargo de juiz substituto daquele tribunal, devendo constituir de concurso de provas e títulos, com participação da OAB. Apenas a nível da Justiça Estadual, por exemplo, considerando que são 27 os Tribunais de Justiça, hão de haver 27 distintos concursos públicos.

Considerando a notória diversidade existente no Brasil, país de dimensão continental, que se reflete no âmbito do Poder Judiciário, com o fim de conferir mínima uniformidade aos concursos públicos para ingresso nos tribunais de diferentes ramos da magistratura brasileira, o CNJ, órgão incumbido, pela Constituição Federal, do controle da atuação administrativa do Poder Judiciário brasileiro e do cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados, editou a Resolução nº 75, de 12 de maio de 2009. Este ato normativo regulamenta os concursos públicos para o ingresso na carreira da magistratura em todos os ramos do Poder Judiciário nacional (Brasil, 2009)BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 75, de 12 de maio de 2009. Dispõe sobre os concursos públicos para ingresso na carreira da magistratura em todos os ramos do Poder Judiciário nacional. Brasília, DF: 2009. Disponível em: Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/100 . Acesso em: 15 nov. 2023.
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. Segundo a Resolução, o concurso é composto por cinco etapas, sendo a primeira uma prova objetiva seletiva; a segunda, duas provas escritas, nas quais, em regra, o candidato deve elaborar uma sentença cível e uma criminal; a terceira fase compreende uma sindicância da vida pregressa e investigação social, exames de sanidade física e mental e psicotécnico; a quarta etapa é uma prova oral; e a última etapa consiste na avaliação dos títulos (Brasil, 2009)BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 75, de 12 de maio de 2009. Dispõe sobre os concursos públicos para ingresso na carreira da magistratura em todos os ramos do Poder Judiciário nacional. Brasília, DF: 2009. Disponível em: Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/100 . Acesso em: 15 nov. 2023.
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A Resolução nº 75/2009 não retira a autonomia dos tribunais, apenas dispõe algumas diretrizes gerais a serem cumpridas por todo concurso de ingresso na carreira da magistratura. Assim, cada tribunal organiza o seu próprio certame, observando, contudo, as balizas dispostas na Resolução nº 75/2009. Por exemplo, não pode o Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) criar uma sexta etapa em seu concurso, acrescentando uma fase diversa não prevista no ato do CNJ.

Sem prejuízo da diversidade existente entre os mais de cinquenta tribunais brasileiros, ao longo dos anos, uma característica em comum a praticamente todos os concursos sobressaiu: a cobrança hermética e pouco crítica dos conteúdos, muitas vezes baseada na mera repetição do texto literal da lei. Na verdade, o que se observou nas últimas décadas foi a formação de uma verdadeira “cultura” (ou “indústria”) dos concursos públicos, incluindo-se os da magistratura, baseada na atividade árida de memorização obtusa dos temas (o que é chamado de “decoreba”), na comercialização massiva de materiais com conteúdo simplificado e resumido (“mastigado”), na proliferação de cursinhos preparatórios e de videoaulas instantâneas etc. É o que Lenio Luiz Streck (2017)STRECK, Lenio Luiz. Resumocracia, concursocracia e a “pedagogia da prosperidade”. Consultor Jurídico: São Paulo, 11 mai. 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-mai-11/senso-incomum-resumocracia-concursocracia-pedagogia-prosperidade/ . Acesso em: 08 dez. 2023.
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apelidou de “resumocracia” e “concursocracia”, na seguinte reflexão:

Fast food jurídico: eis a solução. A moda. (...) Sim, é isso que a cultura fast tem vendido aos “fiéis”. A possibilidade de se “aprender” direito sem “estudar direito o Direito”. Fácil. De forma direta. Sem intermediações. (...) As faculdades e os cursinhos (e a doutrina “fast”) se adaptam àquilo que a prova da OAB e os concursos exigem. (...) Parece que esse “modelo” ou “método” de elaboração de concursos contaminou o ensino jurídico, entrando para dentro da sala de aula. E isso forjou uma resistência contradiscursos críticos. (...) O que quero dizer é que o ensino jurídico - que cada vez mais reproduz do tipo de literatura jurídica facilitada-simplificada-resumida (etc.) - produz uma blindagem, de modo que sua alienação é tamanha ao ponto de impedir o desenvolvimento de qualquer senso crítico.

Com efeito, o ensino jurídico no Brasil é pautado por um dogmatismo que reduz o Direito ao mero estudo formal e hermético das normas inseridas nos Códigos e nas legislações (Rodrigues, 1995; Wolkmer, 2015WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 9ª ed. São Paulo, SP: Saraiva, 2015.). Consequentemente, como num ciclo de retroalimentação, os concursos públicos para ingresso nas carreiras do Poder Judiciário e do Ministério Público também seguem a mesma linha árida do ensinamento dado nas salas de aula e nos manuais, adstrito à memorização maçante de conteúdos que estão descontextualizados da realidade social (Silveira; Naspolini; Couto, 2013)SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; NASPOLINI, Samyra Haydêe Dal Farra; COUTO, Mônica Bonetti (orgs.). Educação Jurídica. São Paulo, SP: 2013..

Pois, foi justamente com o propósito de injetar um maior senso crítico aos candidatos que postulam o ingresso na carreira da magistratura, para que sejam selecionados juízes e juízas mais vocacionados e atentos às demandas sociais, combatendo-se essa “cultura” do “decoreba”, dos “macetes” e das “leis secas”, enfim, o fast food jurídico, bem como com a finalidade de garantir um processo seletivo idôneo e com um mínimo de uniformidade entre os tribunais, que o CNJ publicou a Resolução nº 531, de 14 de novembro de 2023, como fruto de proposta do grupo de trabalho constituído pela Portaria nº 301/2023, formado com o objetivo de disciplinar uma fase nacional unificada para os concursos públicos de ingresso na carreira da magistratura. A Resolução nº 531/2023 instituiu o Exame Nacional da Magistratura, a ser regulamentado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), e estabeleceu que a inscrição preliminar nos concursos com edital de abertura publicado a partir da entrada em vigor da aludida Resolução dependerá da apresentação de comprovante de aprovação neste Exame (Brasil, 2023)BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 531, de 14 de novembro de 2023. Altera a Resolução CNJ nº 75/2009 para instituir o Exame Nacional da Magistratura. Brasília, DF: 2023. Disponível em: Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5332 . Acesso em: 15 nov. 2023.
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. De acordo com o voto do Ministro Luís Roberto Barroso, Presidente do CNJ, no Ato Normativo nº 0007429-42.2023.2.00.0000, que deu azo à edição da Resolução nº 531, a norma se funda em três pilares: (1) em primeiro lugar, a conveniência de instituir habilitação a nível nacional como pré-requisito para inscrição nos concursos da magistratura, de modo a garantir um processo seletivo idôneo e minimamente uniforme; (2) demais disso, a necessidade de que o processo seletivo valorize o raciocínio, a resolução de problemas e a vocação para a carreira da magistratura, mais do que a mera memorização de conteúdos; e (3) por derradeiro, a importância de democratizar o acesso à magistratura, tornando-a mais diversa e representativa (Brasil, 2023)BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 531, de 14 de novembro de 2023. Altera a Resolução CNJ nº 75/2009 para instituir o Exame Nacional da Magistratura. Brasília, DF: 2023. Disponível em: Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5332 . Acesso em: 15 nov. 2023.
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. Em tese, portanto, o objetivo é selecionar candidatos com pensamento crítico, com formação humanística e diversos entre si, para que sejam os juízes e as juízas do amanhã.

O Exame Nacional da Magistratura não pretende substituir os concursos de ingresso, a cabo dos respectivos tribunais, mas, isto sim, se colocar como um filtro seletivo precedente, de modo que para se inscrever nos concursos da magistratura, antes disso, o candidato deverá ter sido aprovado no Exame Nacional. A inscrição preliminar nos concursos dependerá, pois, da apresentação de comprovante que ateste ter sido o candidato aprovado no Exame Nacional.

Embora sejam nobres os objetivos declarados na aprovação da Resolução nº 531/2023, o Exame Nacional da Magistratura, na forma como previsto no ato normativo do CNJ, reproduz a negligência que é dada, historicamente, ao Direito da Criança e do Adolescente na formação dos operadores do Direito. Isso porque, da leitura do texto da citada Resolução, salta aos olhos uma ausência: dentre as disciplinas arroladas, não consta o Direito da Criança e do Adolescente. De fato, o artigo 4º-A da Resolução CNJ nº 75/2009, incluído pela Resolução CNJ nº 531/2023, prevê que o Exame Nacional consistirá em prova objetiva composta por 50 (cinquenta) questões divididas em 8 (oito) grupos temáticos que versam sobre os seguintes ramos do conhecimento: direito constitucional; direito administrativo; noções gerais de direito e formação humanística; direitos humanos; direito processual civil; direito civil; direito empresarial; e direito penal (Brasil, 2023)BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 531, de 14 de novembro de 2023. Altera a Resolução CNJ nº 75/2009 para instituir o Exame Nacional da Magistratura. Brasília, DF: 2023. Disponível em: Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5332 . Acesso em: 15 nov. 2023.
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. Ora, não há bloco específico que contempla o direito da criança e do adolescente. Ainda que o tema venha a ser exigido de forma secundária e difusa em alguma das seis questões previstas para o bloco de direitos humanos, o fato é que não foi erigido como conteúdo essencial para a formação básica do estudante que postula ingressar na carreira da magistratura no Brasil.

O Direito da Criança e do Adolescente é conteúdo obrigatório nos concursos públicos para provimento do cargo de Juiz de Direito Substituto da Justiça Estadual, do Distrito Federal e Territórios, inserido no Bloco Um do Anexo IV da Resolução CNJ nº 75/2009 (Brasil, 2009)BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 75, de 12 de maio de 2009. Dispõe sobre os concursos públicos para ingresso na carreira da magistratura em todos os ramos do Poder Judiciário nacional. Brasília, DF: 2009. Disponível em: Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/100 . Acesso em: 15 nov. 2023.
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. Porém, não o é para os concursos públicos para provimento do cargo de Juiz Federal Substituto da Justiça Federal, 2009. Tal constatação torna possível entender justificada a ausência de questões de Direito da Criança e do Adolescente no Exame Nacional da Magistratura porque a disciplina não é comum a todos os ramos da magistratura brasileira. Ocorre, entretanto, que é bastante questionável, em si, a desnecessidade de conhecimento acerca do Direito da Criança e do Adolescente pelos magistrados dos demais ramos do Poder Judiciário nacional, a exemplo dos juízes federais e dos juízes trabalhistas.

Afinal, na atividade jurisdicional, também os juízes desses ramos do Poder Judiciário se deparam com algumas causas que tangenciam a infância. Basta citar, por exemplo, tópicos como o sequestro internacional de crianças, o trabalho infantil e a tomada do depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crimes da competência da Justiça Federal (Oliveira, 2022)OLIVEIRA, Heitor Moreira de. O depoimento especial de crianças e adolescentes na Justiça Federal. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, [S. l.], v. 34, n. 3, p. 172-186, 2022. Disponível em: Disponível em: https://revista.trf1.jus.br/trf1/article/view/408 . Acesso em: 10 dez. 2023.
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. É válido, portanto, problematizar, por si só, a não exigência do Direito da Criança e do Adolescente nos concursos para acesso às carreiras da magistratura federal e do Trabalho. Ora, crianças e adolescentes podem entrar em contato com o sistema de Justiça em múltiplas e variadas jurisdições, não somente na Justiça Estadual. Assim, com ainda mais razão, é válido problematizar a não exigência do Direito da Criança e do Adolescente no Exame Nacional da Magistratura, prova que tem por escopo assegurar que o estudante que postula ingressar na magistratura, em quaisquer de seus ramos, tenha o mínimo de conhecimento jurídico entendido como essencial para o exercício da atividade profissional.

Assim sendo, entendemos igualmente possível interpretar a ausência de questões sobre o Direito da Criança e do Adolescente no Exame Nacional da Magistratura como um reflexo do processo histórico de formação da Justiça da Infância e da Juventude e do perfil atribuído ao respectivo magistrado, bem como da negligência ainda hoje dada à disciplina no currículo dos cursos de graduação em Direito nas faculdades brasileiras. Ora, à luz da Constituição Federal de 1988, que erige a criança e o adolescente como prioridade absoluta, é forçoso concluir que o Direito da Criança e do Adolescente é (deveria ser) um conteúdo mínimo essencial para todo profissional integrante da carreira da magistratura, em quaisquer de seus ramos, razão pela qual deve constar como disciplina obrigatória exigida na prova do Exame Nacional da Magistratura.

Nesse sentido, uma análise conjunta da evolução histórica desse ramo do Direito e dos dados obtidos por meio da pesquisa empírica nas grades curriculares das faculdades brasileiras autoriza concluir que a ausência do Direito da Criança e do Adolescente no Exame Nacional da Magistratura, instituído pela Resolução CNJ nº 531/2023, não é uma simples lacuna oriunda de um esquecimento acidental, mas, isto sim, uma hipótese de silêncio eloquente (Diniz, 2008), fruto de uma opção política do órgão, que entendeu não ser necessária a inclusão da disciplina.

A Tabela 1, inserida na seção antecedente, demonstra que depois de mais de trinta anos de vigência da Lei nº 8.069/1990 (ECA), ainda hoje o Direito da Criança e do Adolescente não é ensinado para boa parte dos estudantes que colam grau como bacharéis em Direito no Brasil. Ou seja, muitos estudantes saem dos bancos das faculdades e se inserem no mundo profissional sem ter qualquer contato com a disciplina do Direito da Criança e do Adolescente. O ingresso na carreira da magistratura seguirá esse mesmo itinerário: a inscrição preliminar nos concursos, de acordo com o que está previsto na Resolução CNJ nº 531/2023, não depende da comprovação de qualquer conhecimento sobre Direito da Criança e do Adolescente. Um cenário que remonta à ultrapassada figura do “juiz de menores”, que tinha poderes absolutos e discricionários, pois não se submetia às leis, não precisava conhecer o Direito, mas tão somente “ouvir seu coração”. Configura-se assim, um ciclo vicioso, no qual as Faculdades, com o ensino voltado eminentemente para a aprovação nos concursos, não consideram importante o estudo do tema.

O Direito da Criança e do Adolescente foi um dos ramos da ciência jurídica que mais se alterou ao longo dos anos (Rossato; Lépore; Cunha, 2019)ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei n. 8.069/90 - comentado artigo por artigo. 11ª ed. São Paulo, SP: Saraiva Educação, 2019.. Essa mudança de paradigmas impactou no próprio perfil do magistrado, tendo o “juiz de menores” cedido lugar ao juiz da infância e da juventude (Hartung, 2022)HARTUNG, Pedro Affonso D. Levando os direitos das crianças a sério: a absoluta prioridade dos direitos fundamentais e melhor interesse da criança. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.. É necessário, contudo, que a revolução ocorrida nas décadas de 1980 e 1990, materializada no Brasil com a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), também reverbere no ensino jurídico que é ofertado nas faculdades de Direito no Brasil e, igualmente, na carreira da magistratura, especialmente no processo de seleção dos futuros juízes brasileiros.

CONCLUSÃO

No ano de 2023, completou-se o centenário da criação do primeiro juízo especializado no processo e julgamento de causas judiciais envolvendo interesses de crianças e adolescentes da América Latina. Em celebração da efeméride, o Museu da Justiça do Rio de Janeiro lançou a exposição “Justiça da Infância e da Juventude: 100 anos”. Em um século, essa nova Justiça passou por mudanças significativas. Em 1923, ao tempo da criação do Juizado de Menores do Distrito Federal, a ordem jurídica incidia seletivamente apenas sobre uma parcela da infância, das crianças e dos adolescentes abandonados e delinquentes, então rotulados como “menores”. A legislação daquela época não reconhecia direitos aos “menores”, tratando-os como objetos de intervenção estatal. Naquele contexto, ao “juiz de menores” competia tomar as providências que entendesse necessárias para a proteção das crianças marginalizadas e desassistidas. O juiz agia de acordo com a sua íntima convicção e as decisões do Juizado de Menores não se submetia ao primado do Estado de Direito.

Em 2023, a realidade é notoriamente diversa. Pois, desde a aprovação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989, e, no Brasil, da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, o Direito do “menor” cedeu lugar ao Direito da Criança e do Adolescente, reconhecendo-se todas as crianças e todos os adolescentes como sujeitos de direitos fundamentais. Consequentemente, a Justiça do “menor” igualmente cedeu lugar à Justiça da Infância e da Juventude, nos termos como hoje é concebida. Uma Justiça que não é discricionária e tampouco arbitrária, mas que é regida por normas, ritos e procedimentos previstos na legislação. Uma Justiça que é informada pelo conjunto de princípios e regras que formam o ramo do conhecimento jurídico que compõe a disciplina do Direito da Criança e do Adolescente, que, em teoria, é ensinada aos estudantes nos cursos de Direito e é aplicada na prática profissional pelos juízes da infância e da juventude.

No ano de 2023, o Conselho Nacional de Justiça aprovou a Resolução de nº 531/2023, que alterou a Resolução nº 75/2009 para instituir o Exame Nacional da Magistratura como uma avaliação indispensável para a inscrição preliminar dos candidatos nos concursos públicos para o ingresso na carreira da magistratura, em quaisquer de seus ramos. O ato normativo dispõe que o Exame Nacional consistirá em prova objetiva composta por 50 (cinquenta) questões divididas em oito grupos temáticos. Ocorre que o Direito da Criança e do Adolescente não está previsto em nenhum dos oito blocos, de modo que o conhecimento sobre a disciplina não será exigido dos candidatos que postulam se tornar os novos juízes e as futuras juízas. Em outras palavras, do que se depreende do texto da Resolução nº 531/2023, o Direito da Criança e do Adolescente não é considerado como um conteúdo mínimo essencial para o exercício da judicatura no Brasil.

O presente artigo pretendeu justamente examinar, criticamente, o que pode significar essa ausência do Direito da Criança e do Adolescente no Exame Nacional da Magistratura no macro contexto do ensino jurídico no Brasil.

Em resposta à questão que norteou esta pesquisa, é forçoso concluir que a ausência do Direito da Criança e do Adolescente no rol de disciplinas que compõem os blocos temáticos do Exame Nacional da Magistratura pode ser entendida como resultado da posição de desprestígio a que, historicamente, esse ramo do conhecimento foi relegado no contexto do ensino jurídico. Nesse sentido, é possível identificar na não previsão do Direito da Criança e do Adolescente na Resolução CNJ nº 531/2023 um exemplo de silêncio eloquente da norma, que aponta na direção de que o Direito da Criança e do Adolescente ainda hoje é considerado uma disciplina inferior, de segunda categoria e de somenos importância no Brasil e, em particular, no Poder Judiciário.

Nesse sentido, para corroborar tal conclusão, foi demonstrado, com base em pesquisa documental e bibliográfica e com suporte em levantamento de dados empíricos, que o Direito da Criança e do Adolescente ainda não recebe a importância devida e a prioridade anunciada pela Constituição Federal, ocupando um papel secundário na formação do profissional jurista no Brasil. Na pesquisa empírica realizada, viu-se que a disciplina não compõe o currículo de boa parte dos cursos de graduação das faculdades brasileiras. Com efeito, das vinte instituições mais bem ranqueadas no Ranking Universitário Folha - RUF 2023, apenas em metade delas o Direito da Criança e do Adolescente é incluído na matriz curricular do curso, sendo que somente em duas faculdades é inserido como disciplina obrigatória, sendo nas demais apenas optativa. Logo, diante de tais dados, é válido inferir que um grande contingente de bacharéis em Direito inicia as suas carreiras profissionais sem nenhuma bagagem acadêmica sobre a disciplina do Direito da Criança e do Adolescente, o que tem o potencial condão de fragilizar o atendimento que deve ser prestado, prioritariamente, a esse grupo de sujeitos em situação de vulnerabilidade.

Depois de 100 anos de criação, hoje a Justiça da Infância e da Juventude é um ramo do Poder Judiciário que demanda, para além de vocação, conhecimento técnico especializado, o que pressupõe a inserção do Direito da Criança e do Adolescente como ramo do conhecimento no processo de formação acadêmica e profissional do operador do Direito. Quiçá a inclusão da disciplina no Exame Nacional da Magistratura sinalize positivamente para o reconhecimento da Justiça da Infância e da Juventude como um ramo fundamental do Poder Judiciário nacional.

Sem dúvidas, a carreira da magistratura ganha muito com a seleção de estudantes que, para além da simples “decoreba”, tenham aptidão, vocação e competência, e que demonstrem conhecimento sobre o Direito da Criança e do Adolescente. Mas, acima de tudo, sem dúvidas, as crianças e os adolescentes ganham ainda muito mais com juízes e juízas, seja de qualquer ramo do Poder Judiciário, que tenham uma bagagem mínima sobre essa disciplina tão relevante, que os habilitam a prestar um serviço jurisdicional de qualidade ao público infantoadolescente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2023
  • Aceito
    28 Dez 2023
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