Open-access Componentes indispensáveis no desenho da matriz regulatória de novas tecnologias

Indispensable components of new technologies regulatory matrix

Resumo

A ubiquidade de novas tecnologias é evidente, e sua regulação é apresentada como solução para todos os riscos potenciais que elas possam trazer à privacidade, democracia, e mesmo à autonomia da pessoa. Este artigo pretende identificar componentes que devem ser considerados na regulação de novas tecnologias. A hipótese é que a decisão relativa a quem deva ser o regulador de distintos aspectos do desenvolvimento e uso de novas tecnologias deve ser fundada no entendimento destes componentes mandatórios de uma matriz regulatória. O artigo se desenvolve no método crítico-dialético, e traz análise descritiva e prescritiva dos referidos componentes. A conclusão é de que um modelo regulatório que desconsidere os componentes aqui indicados será inexoravelmente inefetivo.

Palavras-chave Desenho regulatório; Novas tecnologias; Gestão de riscos; Componentes do ecossistema regulatório

Abstract

Ubiquity of new technologies is evident, and regulation is always presented as a solution for all potential threats they can bring in domains like privacy, democracy, and even human autonomy. This paper aim is to identify components that should be considered in regulating new technologies. The hypothesis is that the decision related to who should regulate distinct aspects of the development and usage of new technologies should be grounded in the understanding of those mandatory components of a regulatory system. The paper is developed according to the critical dialectic method and bring a descriptive and prescriptive analysis. It concludes that regulation that disregards the indicated components will be inevitably ineffective.

Keywords Regulatory design; New technologies; Risk assessment; Regulatory ecosystem components

1. INTRODUÇÃO

A explosão de aplicações de novas tecnologias - doravante indicadas como NTIC’s - que se irradiam em todos os planos da vida incorporou a matéria à agenda regulatória em todo o mundo. Discute-se o momento próprio para a disciplina da matéria, o ferramental adequado, e o modelo de regulação que se revela apto a promover o necessário equilíbrio entre as vantagens do desenvolvimento tecnológico, e os riscos da presença ubíqua desse mesmo aparato nos cenários social, político, familiar, do trabalho etc.

Em que pese as vozes que sustentam como bloqueio atual à regulação, a insuficiência do conhecimento dos problemas públicos associados ao uso de NTIC’s; o reclamo em favor da rápida normatização subsiste, ante o risco potencial da consolidação da presença de aparatos tecnológicos no cenário social sem qualquer filtro quanto às ameaças potenciais que eles ocultem. A urgência culmina por restringir a discussão a qual o instrumental jurídico adequado à construção de moldura incidente sobre desenvolvimento e uso de ferramentas como as plataformas de comunicação e os mecanismos de inteligência artificial.

Põe-se aí a problemática que provoca o presente artigo. O reducionismo do debate, elegendo a delimitação de áreas de regulação estatal e outras próprias ao regramento pelos regulados como o principal desafio regulatório, pode conduzir a resposta à trilha fácil da repetição de modelos já existentes no universo da regulação e aplicáveis a atividades que se desenvolvem exclusivamente no domínio do mundo físico.

A hipótese explorada é de que o ambiente de desenvolvimento e aplicação de novas tecnologias apresenta atributos distintos daqueles de atividades previamente reguladas, e que o mapeamento dos componentes orientadores desta normatização deve se dar a partir de uma perspectiva mais ampla.

Nestes termos, constitui objeto do presente artigo, a identificação dos componentes que devam ser considerados para o desenvolvimento da atividade regulatória no âmbito específico de NTIC’s. Esse percurso descritivo-exploratório figurará como facilitador da distribuição de competências entre Estado e agentes econômicos num modelo de autorregulação regulada, como tem sido comumente sugerido ao segmento.

De outro lado, o objetivo do texto é propor que, consideradas as características específicas do ambiente de NTIC’s, uma matriz regulatória que não compreenda os componentes identificados como indispensáveis, se revelará inapta a alcançar os propósitos desta mesma regulação.

O artigo expressa, portanto, uma análise descritiva (dos referidos componentes a integrar o ecossistema regulado) e prescritiva (quanto à indispensabilidade de sua consideração na matriz regulatória). O texto se constrói a partir do método crítico-dialético, e tem por fontes principais a literatura nacional especializada, com o suporte igualmente na produção estadunidense na mesma matéria.

No que toca à estrutura, o desenvolvimento do artigo se dá nos seguintes termos: Parte 1, com as considerações metodológicas aqui apresentadas; Parte 2, com um breve percurso histórico da regulação como ferramenta, para que se possa compreender quais os resultados pretendidos alcançar com essa atuação; Parte 3, explorando especificidades das NTIC`s que condicionem as soluções regulatórias; Parte 4 com a análise dos componentes em tese que se devem ter presente em um sistema regulatório; Parte 5, com a proposta de itens de agenda a serem incluídos no debate público. O artigo se finaliza com a Parte 6, onde se apresenta a conclusão que confirma a hipótese, e estatui que a regulação parcial tenderá à inefetividade, mantendo presentes os riscos de utilização desregrada de novas tecnologias, em especial as que dão suporte ao desenvolvimento de relações humanas de toda ordem.

Os particularismos das aplicações de NTIC’s gera intuitivamente uma percepção de que se cuide de realidade distinta daquela antes tratada pela regulação tradicional. A pressão de alguns pela subsistência do vazio regulatório ao argumento de insuficiente maturação quanto ao problema público - vazio esse que favorece práticas alheias à proteção a direitos fundamentais - tem encontrado como resposta, a proposição de regramentos de cariz predominantemente principiológico, sempre ao argumento ad terrorem de que outra orientação importará em deter a inovação em prejuízo de benefícios sociais que dela poderiam decorrer. É certo que muito dos potenciais riscos associados ao uso de NTIC’s tem vindo à luz a partir da sua utilização em condições reais e em maior escala, e isso tem ínsito, um custo para a sociedade. Nem por isso, todavia, se deve acolher como alternativa aceitável, um regramento parcial, que deixando de fora componentes indispensáveis, nasce condenado a não produzir os efeitos pretendidos.

2. ORIGENS HISTÓRICAS E TRANSFORMAÇÕES DA REGULAÇÃO

É de Moreira Neto (2003, p. 68) o apontamento de que a relevância do desenvolvimento de uma “harmonização setorial de interesses complexos para alcançar um micro-equilíbrio independentemente do todo social (os destaques são do original)” se apresenta no âmbito das relações humanas muito antes de ser incorporada como conceito teórico pelo Direito. Tem-se nesse tipo de ferramenta, uma evolução da clássica fórmula de comando-sanção, eis que o que se busca não é criar um comando vertical inflexível, mas conciliar intuitos distintos que, embora contrapostos inicialmente, podem encontrar um ponto de convivência minimamente equilibrado. O reconhecimento das virtudes deste tipo de parametrização setorial de condutas e finalidades torna, com o decurso do tempo, facilmente transponível a ideia de regulação para o âmbito das relações econômicas, inicialmente como mecanismo útil à superação de falhas de mercado.

A internalização da regulação como função do Estado como a conhecemos hoje, todavia, não se deu como consequência direta do desprestígio à concepção do Estado do laissez-faire puro. Uma primeira alternativa de superação das assimetrias do mercado envolveu o modelo segundo o qual se supunha a capacidade de regulação em decorrência da existência de uma categoria de propriedade pública, vocacionada igualmente à proteção ao interesse público (Majone, 2013, p. 13). Este modelo buscava, pela evocação de princípio republicanos aplicáveis a essa estrutura vinculada ao Estado, impor limites aos agentes do mercado. As dificuldades da proposta, todavia, se revelaram intransponíveis, seja pelo difícil convívio da modelagem jurídica aplicável a cada qual; seja pelo grau de mobilização que se exigiria do Estado no âmbito econômico.

Ao mesmo tempo, na perspectiva de política econômica, tem-se o “refluxo da concepção que erigia o Estado como motor do desenvolvimento” (Chevallier, 2009, p. 69), dando lugar à ideia da regulação como mecanismo hábil ao alcance dos mesmos objetivos de harmonização de interesses complexos.

Esse quadro geral de transformações no que toca às funções do Estado e ao papel da regulação se reproduz no Brasil, especialmente à luz da Constituição de 1988. Afinal, a chamada do Estado a um papel de arbitramento do processo econômico defluía já dos princípios postos à ordem econômica (art. 170 CF); e vem ainda explicitada nos termos do art. 174 CF, que qualificava o Estado como agente regulador da atividade econômica - ambos os preceitos tinham essa enunciação já na redação original da Constituição.

A transição do Estado de operador relevante da atividade econômica para a figura de agente subsidiário - como sugerido originalmente pelo art. 173 CF - se consolida com as reformas econômicas levadas a cabo a partir do Plano Nacional de Desestatização. A iniciativa, deflagrada pela Lei 8031, de 16 de março de 1990, se estende por toda a década de 90, encontrando nas reformas constitucionais empreendidas pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso, seu marco mais visível. A esse movimento é de se juntar a Reforma Administrativa, que abria espaço para o desenvolvimento de novas funções por este Estado - notadamente, a regulação. Esta viragem, na observação de Couto (1998, p. 51-86), representaria uma tardia formação do consenso possível quanto ao papel do Estado no cenário econômico; acordo esse que não se alcançara por ocasião do processo de deliberação constitucional - o autor alude a uma “longa constituinte”, que tinha nas reformas da década de 90, mais uma etapa.

Rapidamente se identifica que, não obstante a influência à época de uma teoria econômica da regulação, os compromissos finalísticos estabelecidos para o Estado Brasileiro exigirão dele a intervenção em outros domínios da vida que não o mercado e suas falhas. A exigência constitucional de um Estado também propulsivo determinará o uso do Direito para agir sobre sistemas sociais autônomos como a cultura, educação, saúde, meio ambiente etc.; para orientar o seu funcionamento na direção tida por mais consentânea com o interesse geral - ainda que esta última se distancie do impulso espontâneo originário do mercado (Morand, 1999, p. 71).

A ampliação do espectro de regulação estatal evidencia a magnitude da tarefa ante a complexificação do modo segundo o qual podem se desenvolver relações econômicas e sociais. O uso de NTIC’s reconfigura liames jurídico-econômicos tradicionais como a compra e venda e a prestação de serviços, hoje grandemente intermediadas por plataformas que promovem a aproximação entre as originárias figuras do comprador e vendedor. A par disso, tem-se uma agenda de preocupações sociais com temas como o da governança, sustentabilidade e das práticas adotadas ou apoiadas pelos agentes econômicos.

Finalmente, o aprofundamento da compreensão de relações de interferência recíproca decorrentes da ação humana, suscita o problema do risco - o que reforça a relevância da regulação como mecanismo de prevenção destas mesmas ameaças. Valoriza-se a análise de impacto regulatório, não só como ensaio dos efeitos presentes de uma matriz de comportamento que se cogite editar, mas também como exercício exploratório dos resultados futuros dessa mesma deliberação pública.

3. ESPECIFICIDADES DE NTIC’S A DESAFIAREM OS MODELOS REGULATÓRIOS TRADICIONAIS

O contexto que oportuniza a explosão de NTIC’s envolve a consolidação da sociedade em rede, assim entendida como “estrutura social baseada em redes operadas por tecnologias de comunicação e informação fundamentadas na microelectrónica e em redes digitais de computadores que geram, processam e distribuem informação a partir de conhecimento acumulado nos nós dessas redes” (Castells, 2006, p. 20). Essa nova forma de organização social encontra impulso com segunda geração da Web, “em que aplicativos da Web interoperáveis ​​e centrados no usuário e serviços promovem a conexão social, o compartilhamento de mídia e informações, conteúdo criado pelo usuário e colaboração entre indivíduos e organizações” (Wilson et. al., 2011, p.2).

Esse cenário ensejará modelos novos de relacionamento, baseados em plataformas que asseguram, de forma descentralizada, comunicação e compartilhamento de informações. Demandas coletivas de intensificação da interação pressionam pelo encurtamento do tempo transcorrido entre a descoberta científica, e sua disponibilização como produto (García-Pelayo, 2005, p. 70). O exemplo mais recente é o tsunami de aplicações de inteligência artificial generativa que se vê desde a disponibilização do Chat GPT.

É certo que um dos argumentos em favor da própria ideia geral de regulação está na velocidade das transformações em modelos de negócios, que se revelaria incompatível com a disciplina legislativa tradicional. Não resta dúvida que no domínio de NTIC’s, a volatilidade é atributo central, levando ao extremo o reclamo por modelos regulatórios suficientemente resilientes, aptos a oferecer resposta ainda que em ambiente de incerteza.

Segundo traço característico relevante de NTIC’s é a frequência nas relações de interdependência recíproca. O debate em torno da interoperabilidade como atributo relevante ao desenvolvimento da economia digital está posto (Kerber, Schweitzer, 2017) contrapondo-se as posições que defendem, de um lado, o imperativo de preservação de um ambiente de competição; e de outro, aqueles que sustentam se possa classificar sistemas ou componentes como instalações essenciais, sujeitas a mandatória interoperabilidade. Com ou sem esse atributo, operadores da economia digital constroem seus acordos de convivência, reforçando os laços de interferência recíproca. Uma vez mais é de se dizer que o tema do compartilhamento de essential facilities se apresenta na regulação das atividades tradicionais do mundo físico - mas em proporção mais restrita, e normalmente, determinando potenciais repercussões em (des)favor de um agente econômico do mesmo segmento. No campo de NTIC’s o leque de possibilidades é muito mais amplo, eis que uma plataforma digital figura como ambiente de funcionamento de aplicações outras que vão desde a venda de produtos, até o monitoramento de presos, sistemas de vigilância, e tantas outras funcionalidades.

Finalmente, sem pretensão de esgotamento das particularidades do ambiente das NTCI’s que determinam a concepção de um modelo próprio, é de se apontar a ubiquidade destes mesmos sistemas. Sua onipresença em domínios da vida pública e privada potencializa o temor de que uma intervenção regulatória menos feliz possa determinar impactos significativos nas relações de comunicação e informação que tem nesse aparato tecnológico hoje, a sua base principal.

Os traços específicos de NTIC’s culminam por exigir um modelo de regulação que esteja vocacionado não só à garantia de continuidade e qualidade de serviços, mas também a assegurar “condições para esse fluxo [de informações], subsidiando o acesso às redes, apoiando redes pluralistas - em detrimento de plataformas virtuais com centralização de poder - e comunidades virtuais diversificadas” (Hartmann, 2022, p. 20). Esse modelo, ainda que não se distancie inteiramente dos padrões de regulação já experimentados em relação ao universo analógico, merece reflexão quanto a seus componentes indispensáveis.

4. COMPONENTES DO ECOSSISTEMA REGULATÓRIO

Entendida regulação como o exercício de controle sobre o comportamento de determinadas entidades, tem-se como decorrência lógica possa sua matriz incidir sobre três dimensões do comportamento dessa mesma entidade, a saber: processo, produtos e resultado (Clarke, 2019, p. 402). Um passo prévio é de ser desenvolvido, como condição ao desenho destes três aspectos. A base do desenvolvimento da função regulatória é de se dar a partir do conhecimento construído em relação aos componentes constantes do quadro analítico proposto por Black e Murray (2019, [s.p.]). Passa-se à análise dos componentes indicados.

4.1. Objetivos e valores

Objetivos e valores constituem o vetor mais instintivo de um sistema regulatório. Afinal, se a regulação se relaciona a um intento de conformação de condutas, é natural que essa subordinação intencional se dê direcionada a um objetivo específico, que reverencia valores identificados como relevantes naquela seara.

Na temática de NTIC’s, existem objetivos e valores que já se beneficiam de algum grau de consenso, como a proteção à autodeterminação, a dados pessoais, e ainda à inovação; tudo isso irradiando da ideia-força da centralidade do humano. Indispensável, todavia, será a reflexão quanto a outros objetivos que sejam eventualmente instrumentalizados por NTIC’s específicas, para que não se recaia no risco de generalização contra o qual advertiam Marrara e Gasiola (2020, p. 133). Vale o apontamento de que essa generalização de objetivos - que parece consequência direta de baixa familiaridade com a atividade regulada - já se apresenta em alguma medida, quando se tem em conta diplomas legais já editados como o Marco Civil da Internet (Lei 12.965 de 23 de abril de 2014), a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709 de 14 de agosto de 2018), e mesmo a Lei de Inovação (Lei 10.973, de 2 de dezembro de 2004, alterada pela Lei 13.243, de 11 de janeiro de 2016). Referidas normas reproduzem um padrão relativamente homogêneo na fixação de seus objetivos. Se essa opção aparenta conferir alguma organicidade à regulação de NTIC’s; de outro lado se perdem oportunidades de enriquecimento que um espaço à setorização pode oferecer.

Não obstante essenciais, objetivos e valores não esgotam, em absoluto um sistema regulatório, especialmente quando se cuida de um segmento ainda pouco conhecido nas suas potencialidades e riscos. Em que pese sua relevância, o foco exclusivo em objetivos e valores pode bloquear o desenvolvimento de funções de coerção indução e controle. Assim, não obstante este componente inicial oriente a construção da matriz regulatória; ele não é suficiente para que se tenha, com sua enunciação, por suficientemente regulada a atividade.

4.2 Conhecimento e compreensão

O segundo componente da matriz sub examine instrumentaliza a atividade a ser desenvolvida pelo Estado-regulador, na medida em que busca reduzir uma assimetria cognitiva que é natural, especialmente em se cuidando da regulação de atividades que não são desenvolvidas pelo Estado, e que se revestem de alta complexidade técnica. Agregar conhecimento no curso da regulação é algo que pode decorrer da interação com os virtuais regulados, e ainda por observadores desse mesmo segmento, como a academia, entidades representativas e outras estruturas da sociedade civil. Afinal, mais do que o simples domínio da técnica aplicada no segmento regulado, o conhecimento aqui referido envolve outras dimensões da regulação, como sua aplicação (ou ausência de) em relação aos destinatários finais da atividade e à coletividade em geral.

O conhecimento, é de se dizer, não deve se limitar ao momento originário de criação da matriz regulatória; ele exige constante oxigenação, por inputs do domínio da técnica, e ainda daqueles decorrentes da dimensão aplicativa da regulação inicial.

A compreensão, de outro lado, entendida como a faculdade de perceber o significado de algo, é um vetor que se dirigirá a um só tempo, ao regulador; aos regulados, e ainda aos destinatários finais da atividade normatizada. No âmbito do regulador, cogitar da compreensão envolve se assegurar de que não só os níveis superiores de deliberação terão pleno domínio do sentido do que se tenha decidido - mas também os agentes que no dia a dia, e no contato com os regulados, concretizam o quadro regulatório. No que pertine aos agentes econômicos regulados, a compreensão concorre para a compliance, e ainda permite eventualmente demonstrar o desacerto de alguma deliberação da estrutura normatizadora. Finalmente, no que toca aos destinatários finais da atividade regulada, a compreensão assegura um nível mínimo de controlabilidade quanto às condições de uso da NTIC objeto da disciplina.

A importância da compreensão é particularmente relevante no campo do uso de NTIC’s, eis que frequentemente a sedução decorrente de comodidades oferecidas por mecanismos desta natureza pode suplantar a prudência do usuário que (supostamente) formula escolhas racionais (Pasquale, 2020, p. 16). Esse é um campo sensível, onde conceitos abstratos tendem a se apresentar como suposta solução para problemas regulatórios, cujas fragilidades podem ser evidenciadas pela sua aplicação em concreto. Na seara das NTIC’s mesmo, o conceito central do consentimento informado vem sendo criticado por sua artificialidade (Solove, 2013, p. 1883-1888). A esta objeção mais intuitiva que se aplica a NTIC’s em geral, se soma o argumento - agora já no campo específico da inteligência artificial - de que o consentimento informado pressupõe o conhecimento, por aquele que consente, em relação à disponibilização ou acesso a um dado ou informação que ele identifica como existente e qual seu conteúdo (Froomkin, 2019, p. 32). Já o mecanismo de inteligência artificial, orientado que é à identificação de padrões, pode revelar - em verdade, essa é a sua inclinação principal - associações ou atributos dos dados originalmente consentidos utilizar, que ele mesmo, sujeito que ofertou originalmente a anuência, não conhecia.

É certo que iniciativas regulatórias em curso como o substitutivo apresentado pelo Deputado Orlando Silva ao PL 2630/2020, que “Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet” (Brasil, 2023); e ainda o PL 21/2020 (BRASIL, 2023b), que “Estabelece princípios, direitos e deveres para o uso de inteligência artificial no Brasil, e dá outras providências”, optam por extensa enunciação de deveres dos agentes regulados, e direitos dos destinatários finais da atividade regulada. Tal estratégia sugere uma crença de que decorra desse rol de direitos a intervenção legislativa vocacionada a ampliar a compreensão destes últimos - mas essa escolha expressaria verdadeiro retrocesso. Afinal, se já no campo do direito à informação nas relações com o Poder Público, com a Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011, avançou-se para recepcionar a necessidade de uma postura ativa como mecanismo de disseminação espontânea do conhecimento detido pela Administração Pública; isso parece mais do que aplicável no domínio da regulação de práticas fundadas em tecnologias de difícil compreensão pelo leigo.

4.3 Ferramentas e técnicas

Ferramentas e técnicas é componente fortemente condicionado pelos objetivos e valores a serem tutelados - donde indispensável a observância de uma relação de congruência a ser expressa na regulação. O instrumental jurídico a veicular a regulação é de se revelar apto ao alcance desses objetivos e tutela dos valores eleitos como fundamento à atividade regulada. No campo das NTIC’s, a notória intercessão com direitos fundamentais como o são os da personalidade e da liberdade de expressão excui de pronto a alternativa de um sistema construído exclusivamente a partir da determinação dos agentes econômicos num exercício limitado de autorregulação.

Ainda que excluída a autorregulação, é de se ter por dimensionada a eventual necessária proeminência do Estado regulador, ou ainda a possibilidade do desenvolvimento de ações conjuntas, entre Estado e eventualmente o próprio segmento regulado. As eventuais combinações quanto ao autor da matriz normativa devem ser combinadas com as possibilidades acerca do âmbito de incidência da escolha formulada pelo destinatário do serviço ou atividade regulada. Assim é que se uma maior liberdade para, por exemplo, a autorregulação é de se ter por possível no campo de escolhas privadas ordinárias, como qual o filme a assistir ou a compra a formular; o mesmo não se pode dizer quando a escolha por um indivíduo detentor de baixo nível de conhecimento sobre os potenciais efeitos de sua deliberação, dispõe quanto a aspectos atinentes à sua personalidade, como dados pessoais, imagem, perfil de movimentação física dentre outros. O exemplo corrobora a afirmação inicial quanto à interferência recíproca entre objetivos e valores, e ainda, ferramentas e técnicas.

Ainda na órbita de incidência desse componente analítico, é de se ter em conta o delineamento das relações entre marco regulatório associado a uma determinada tecnologia, e aqueles pré-existentes, afetos a esse mesmo universo, diligenciando-se não só pela preservação da indispensável congruência, como também pela parametrização de critérios de solução para eventuais conflitos.

4.4 Comportamento dos indivíduos

O quarto componente analítico pode ser, para o regulador, um desafio! Primeiro obstáculo a se superar será aquele decorrente da racionalidade limitada dos destinatários da atividade regulada. É de Thaler (2019, p. 37) a explicitação de que racionalidade limitada envolve a “carência de capacidade cognitiva para resolver problemas complexos” - o que facilmente pode se verificar nos domínios das NTIC’s. Assim, quando menos os destinatários finais da atividade regulada operam sob limitações cognitivas, especialmente em relação aos riscos que a eles se apresentam decorrentes da utilização irrestrita de determinadas tecnologias.

A internalização da racionalidade limitada dos indivíduos envolvidos no ecossistema regulatório é particularmente importante porque a inclinação natural daquele que constrói sua moldura é projetar nos alcançados por essa parametrização a sua própria estatura cognitiva, o que decerto não se coaduna com a realidade. Afinal, se o regulador tem conhecimento profundo da matéria regulada (como seria de se esperar); ele pode até se pôr em posição simétrica àquela dos agentes econômicos do setor, mas decerto estará em patamar de conhecimento superior quanto aos destinatários da atividade regulada.

Nem se diga que a referida assimetria deva ou possa ser corrigida pela simples recomendação do desenvolvimento de ações educativas por qualquer dos integrantes do ecossistema. Esse é decerto um comportamento desejável - a Lei 13.848 de 25 de junho de 2019, em seu art. 16 determina às agências reguladoras, o dever de “implementar, em cada exercício, plano de comunicação voltado à divulgação, com caráter informativo e educativo, de suas atividades e dos direitos dos usuários perante a agência reguladora e as empresas que compõem o setor regulado”. Não obstante esse dever legal, fato é que não se pode a priori afirmar seja esse tipo de ação educativa suficiente para assegurar a simetria de informações, ou a possibilidade de formulação de um juízo substantivo de parte dos usuários de NTIC’s.

Mais ainda, a enunciação detalhada de direitos de usuários, como se verificar, por exemplo, no substitutivo ao PL 21/2020 proposto pela Comissão de Juristas designada pelo Senado Federal (Brasil, 2023c) se revela pouco eficiente quando os titulares destes mesmos direitos não são capazes de compreender sua extensão, ou identificar situação que os ponha em risco. Veja-se aqui igualmente, a relação de interdependência que no modelo regulatório é de se preservar, entre o grau de conhecimento e compreensão (subtítulo 3.2 acima) e o comportamento dos indivíduos.

A investigação quanto a este componente do sistema regulatório é de ter em conta que, não obstante a relevância do pensamento econômico clássico inspirador da racionalidade como vetor de orientação das escolhas dos indivíduos; fato é que ele se apresenta reducionista, eis que não tem em conta outros fatores que hoje influenciam no comportamento humano além de um projetado benefício pessoal (Leiser, 2016, p. 196). Em tempos de ampliação da consciência social, e de consideração quanto aos reflexos de nossas ações sobre o destino de gerações futuras, não é improvável que coletividade opte por abordagens alinhadas com o ideário da precaução - por isso a relevância de que uma matriz regulatória tenha em consideração, não uma visão abstrata de qual seria a escolha presidida por uma racionalidade econômica clássica, mas sim a visão atual da coletividade quanto ao ponto de equilíbrio desejável entre benefícios e riscos potenciais.

Finalmente, é de se ter em conta que a presunção de que os indivíduos, no ambiente digital, com suporte em novas tecnologias, formulem suas decisões segundo os mesmos padrões comportamentais que regeram suas escolhas anteriores no mundo físico revela-se inadequada. Anonimidade e velocidade, por exemplo, são atributos comuns nas plataformas digitais que decerto afetam os padrões de formulação de decisão dos destinatários de ofertas de parte de agentes regulados. Disso resulta que a transposição do conhecimento quanto ao comportamento do indivíduo em sistemas construídos no mundo físico não se apresenta como alternativa adequada de solução. Impositivo investigar qual seja o padrão de comportamento dos indivíduos na interação com a NTIC a ser regulada - ainda que esse conhecimento não seja totalmente estabelecido.

4.5 Comportamento das organizações

Este quinto componente é de ser entendido na sua dupla manifestação - a saber, considerando-se a organização reguladora, no seu mister de construir a matriz e aplicá-la; e ainda as organizações destinatárias da ação regulatória.

Na perspectiva da organização reguladora, a par dos elementos exigíveis da estrutura institucional que desempenha essa função - em especial, uma blindagem normativa que lhe permita o desenvolvimento livre da disciplina da matéria e dos agentes regulados; é de se ter em conta a dimensão de aplicação do quadro regulatório. Afinal, de pouca valia seria o desenho de parâmetros de atuação se estes não forem objeto do devido enforcement por parte dos agentes públicos a quem se confie essa função. Aqui, na seara do comportamento da organização pública reguladora, é de se ter em conta o delicado tema da esfera de discricionariedade que se venha a conferir ao street level bureaucrat.

É de Lipsky apud Hupe e Hill (2007, p. 280) a diagnose quanto ao papel de verdadeiro formulador de políticas públicas de funcionários que operam diretamente com o público, na aplicação do quadro normativo e na decisão de conflitos. Segundo esses autores, esse mesmo papel é construído a partir de duas características de sua atuação: 1) a titularidade de relativo grau de discricionariedade; e 2) relativa autonomia em relação à autoridade organizacional. Nestes termos, é certo que o comportamento do street level bureaucrat na aplicação do quadro regulatório é de ser considerado como vetor da determinação do comportamento da instituição, sob pena de indesejada subversão dos resultados projetados.

Também aqui tem-se o entrelaçamento com o componente referido no item 3.2 - conhecimento e compreensão. Afinal, é impositivo que o agente público que atua “no nível da rua” tenha um patamar cognitivo - no sentido técnico e no que toca à estratégia adotada pelo regulador - compatível com a atuação que lhe seja conferida. Eventuais diferenças substantivas entre a qualificação exigível para o desenvolvimento de distintas funções de enforcement da regulação devem ser refletidas na estrutura organizacional do ente regulador.

Adotada a perspectiva dos agentes econômicos destinatários da regulação, é de se ter sempre em conta o problema originário da assimetria de informações - que no domínio da tecnologia, tende a ser uma dificuldade ainda maior, considera a rapidez com que seu desenvolvimento se dá, refletindo em novas funcionalidades para atividades já conhecidas, ou ainda novas produtos. Indispensável que uma matriz regulatória tenha em conta a construção de um canal de atualização das informações - que pode inclusive viabilizar ações preventivas da estrutura reguladora, informada previamente pelo regulado.

Evidentemente, a relação entre regulador e regulado não é pautada a partir de uma identidade absoluta de interesses - mas disso não resulta necessariamente a construção de uma estrutura de relacionamento baseada numa aproximação adversarial.

Ainda no campo do comportamento das organizações, é de se compreender e considerar para fins de construção da matriz regulatória, o contexto em que elas operam - quais são os stakeholders relevantes, quais são as estruturas de incentivo e desincentivo existentes etc. Esse cenário pode ser útil a informar a aptidão de eventuais mecanismos regulatórios para gerar o comportamento efetivamente desejado.

4.6 Confiança e legitimidade

Este derradeiro componente apresenta-se, na seara específica de NTIC’s, como o mais sensível. Isso porque, ambos os atributos - confiança e legitimidade - envolvem uma alteridade; uma avaliação sobre o comportamento, havido ou potencial, do outro, ou de instituições outras que tenham intervenção direta ou potencial significativa na atividade regulada. Esse traço se multiplica quando se cogita de construção de confiança e legitimidade na regulação, eis que o “outro” é plural, e compreende pelo menos o ente gerador e gestor da tecnologia envolvida (normalmente, um ou mais atores na cena econômica), o regulador desse mesmo campo e os destinatários finais da atividade regulada, que devem ser em tese, protegidos pela matriz normativa.

É de Simmel apud Filgueiras (2007, p. 878), o apontamento de que “a confiança é uma hipótese sobre a conduta futura de outro, hipótese essa que oferece segurança suficiente para fundar nela uma atividade prática”. A confiança é elemento indispensável à compliance para com a regulação, e mesmo para a atração de investidores. Evidentemente, a formação desse vínculo de fidúcia exigirá, quando se tem em conta atividade sujeita a regramento estatal (ainda que parcial, como no modelo de autorregulação regulada), um ambiente de intensa publicidade, que permita a avaliação do (des)acerto da estratégia reguladora eleita e em aplicação; e ainda a sua eventual correção.

Destaque-se que a publicidade reclamada envolverá, justamente pela presença em cena de atores com severas limitações cognitivas em relação ao funcionamento e riscos potenciais do emprego de NTIC’s, investimento não só na qualidade das informações disponibilizadas - que devem ser claras, adequadas, acessíveis e atuais (Arruda, 2020, p. 76) - mas em especial, na inteligibilidade dessas mesmas informações.

Igualmente relevante para a construção da confiança será a visibilidade que se venha a conferir ao comportamento e às práticas da instituição encarregada da supervisão desse segmento. A relação de interferência recíproca, portanto, entre os dois componentes - comportamento da instituição (reguladora); confiança e legitimidade - é destacada por Filgueiras (2007, p. 883), que a caracteriza como “um elemento central para uma vida republicana em sociedades plurais, porquanto ela assegura um critério de avaliação permanente da sociedade em relação ao tema das virtudes [da instituição]”. No domínio de matérias complexas, como o são as NTIC’s, o sistema se comporá a partir de determinados níveis de conhecimento e percepção; mas se completa com o reconhecimento da ação virtuosa do regulador, que promove a harmonização de interesses contrapostos, em cenário de máxima visibilidade.

A aferição permanente do alinhamento do quadro regulatório de NTIC’s, e das práticas das instituições envolvidas na sua aplicação e eventual revisão, conferirá a toda essa arquitetura, o signo de legitimidade, seja a convencional substantiva, relacionada aos valores próprios da pessoa humana; seja a contratual formal, que se reconhece a normatizações consensuadas versando sobre outros temas (Moreira Neto, 2008, p. 41).

Uma vez mais identifica-se a relação de interferência recíproca entre os componentes sob análise - a confiança e legitimidade são reforçadas em ambientes onde a compreensão e percepção são igualmente fortalecidos; confiança e legitimidade se constroem a partir de comportamento de indivíduos e instituições que reforcem a adequação do procedimento deliberativo que antecedeu à normatização.

O desafio de construção de um marco regulatório que se revele apto à geração dos dois signos - confiança e legitimidade - não é simples, mas já encontra acolhimento normativo na Lei 13.848, de 25 de junho de 2019, em seu art. 15, § 1º, I, que assinala às agências reguladoras como objetivo a ser perseguido pelo plano estratégico e pelo plano de gestão anual, “aperfeiçoar o acompanhamento das ações da agência reguladora, inclusive de sua gestão, promovendo maior transparência e controle social”. Em boa medida, a já cogitação desse tipo de direcionamento estratégico a ser desenvolvido por agências reguladoras em geral, reforça a ideia de que a institucionalização de um corpo competente ao monitoramento e atualização do quadro regulatório se mostra imperativa para a eficiência da disciplina da atividade.

5. DOIS “PONTOS CEGOS” NO DEBATE QUANTO À MATRIZ REGULATÓRIA DE NTIC’S

A apresentação estruturada dos componentes que devem se conter numa matriz regulatória, seja qual for o setor regulado, evidencia o seu entrelaçamento - o que por sua vez sugere a incompletude de um quadro que cogite parcialmente desses mesmos elementos.

Ordinariamente, as propostas normativas têm se centrado na determinação do primeiro dos componentes analisados, a saber, objetivos e valores. Ferramentas e técnicas tem sido igualmente um ponto de debate frequente, com uma clara inclinação em favor do modelo de autorregulação regulada. Já os componentes que dizem respeito aos atores do cenário sobre o qual incidirá a regulação - compreensão e percepção; comportamento dos indivíduos e das instituições - são pouco presentes, seja na vocalização quanto ao modelo reputado desejável, seja nos projetos de lei já apresentados.

Credite-se essa omissão, à técnica referida por Sunstein (1994, p. 146) segundo a qual a deliberação política pode se dar a partir de acordos cuja teorização a funcionar como justificativa não se tenha ainda perfectibilizado. Assim, em matérias complexas, o processo legislativo pode compreender a identificação de pontos de consenso mínimo quanto a resultados - ainda que não haja essa mesma harmonização de pontos de vista em relação às razões em abstrato a sustentar essa preferência. Sensível ao reclamo de que a ausência total de regulação de NTIC’s pode gerar efeitos deletérios ao convívio social, à informação ou à liberdade de expressão, identificar-se-iam os pontos possíveis de acordo, limitando-se a eles a deliberação do parlamento. Essa alternativa soa ainda mais atraente quando se cogita de um modelo de autorregulação regulada, onde o pressuposto é um segundo nível de deliberação, onde em tese se pode verificar uma área maior de consenso.

O teste de viabilidade da referida estratégia no campo de NTIC’s é de ser sua aptidão para gerar justamente os resultados reputados desejáveis, em relação aos quais foi possível a formação de um consenso mínimo. Adotada essa perspectiva

Correta essa hipótese explicativa, é de se consignar seja ela equívoca a toda prova. Isso porque os interesses de agentes econômicos e destinatários finais da atividade regulada são contrapostos - logo, não será no domínio da autorregulação que se encontrará a devida consideração de temas como o da percepção e do comportamento dos indivíduos como elementos de constrição à liberdade do regulado. Ainda que se possa intuir detenham os agentes econômicos regulados, extenso conhecimento da matéria técnica, e mesmo do comportamento dos indivíduos (que afinal são o público-alvo de sua atividade econômica); essa expertise tenderá a ser utilizada em favor de seus próprios interesses - e não em prol da harmonização de interesses contrapostos.

Disso tudo se extrai que, ainda que prevaleça a inclinação por um quadro de regulação de modelo compartilhado entre Estado e operadores da atividade regulada; a consideração dos pontos já referidos - compreensão e percepção; comportamento de indivíduos e instituições - é de se ter na parcela de regulação confiada à autoria estatal, como componente indispensável de um ecossistema regulatório que seja suficientemente abrangente para gerar o efeito orientador que dele se espera. Intuitiva ainda a conclusão de que a internalização dos elementos ora indicados se refletirá automaticamente na consolidação da confiança e legitimação da mesma matriz.

Finalmente, mas não menos importante, é de se apontar seja imperativa contemplar-se em qualquer regulação atinente a NTIC’s, a correspondente estrutura institucional vocacionada à aplicação e revisão periódica do quadro normativo construído. A referência aqui não se limita à simples alusão a uma “autoridade competente” incumbida dessa ou daquela atividade. A natureza sensível da tarefa confiada ao regulador de NTIC’s em cenário de progressiva intensificação do uso de ambientes digitais para o desenvolvimento de relações humanas de toda ordem exige um cuidado na modelagem institucional do regulador, que não se satisfaz com a simples enunciação de competências. É preciso considerar sobretudo, uma blindagem institucional que assegure o desenvolvimento livre e desassombrado da tarefa que lhe venha a ser confiada.

A conjugação sob um mesmo arcabouço institucional, do desenvolvimento de função regulatória no campo de distintos campos tecnológicos pode se apresentar como uma alternativa útil, eis que permitirá a necessária comunicação quanto ao comportamento de tecnologias que, frequentemente, operam em conjunto. O déficit cognitivo já referido nesse artigo pode ser combatido com a construção de conhecimento por agregação que decorre de abarcar-se um espectro maior de atividades sob uma mesma instituição reguladora. Essa opção estratégica, de outro lado, exige a previsão e garantia de convivência, em igual nível de importância e de instrumentalização com os meios necessários, de segmentos orgânicos vocacionados ao monitoramento de cada qual das tecnologias que residam sob a mesma estrutura institucional. Significa dizer que na disputa clássica de poder nas instâncias da Administração Pública, a agregação de duas ou mais NTIC’s sob a mesma estrutura não pode se verificar mediante uma simples adição nominal - mas exigirá a construção desse modelo de convívio útil e equilibrado.

O que parece claramente insuficiente, é o argumento de limitações orçamentárias, como razão de bloqueio à devida consideração da dimensão institucional de um marco regulatório de NTIC’s.

6. CONCLUSÃO

O claro descompasso entre avanços tecnológicos e a internalização pelo Direito de seu papel no convívio social tem determinado por vezes, um impulso de resposta regulatória pautado mais pelas patologias do mau uso dos meios digitais, do que pela consideração adequada de quais sejam os componentes a serem necessariamente contemplados numa matriz disciplinadora dessas ferramentas. O tema é urgente - mas a resposta não está numa regulação parcial, desprovida de componentes indispensáveis à garantia de sua real transposição para o mundo da vida.

De outro lado, é preciso de já, ter-se por claro que o dinamismo do domínio da tecnologia não se compadecerá da pretensão de um modelo clássico de normatização, segundo o qual a segurança residirá numa perenidade do quadro regulatório. Incerteza é uma característica do presente; essa é uma premissa sobre a qual operará qualquer regulador, especialmente no campo de NTIC’s. À Administração restará a convicção, para atuar nesse quadro pantanoso, que incerteza será sempre parte do processo de assumir o controle.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2024
  • Aceito
    24 Maio 2024
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