Temporalidades e racialização de jovens gays negros: Entre memórias e imagens de futuro

Temporalities and racialization of young black gay men: between memories and images of future

Temporalidades y racialización de los jóvenes negros gay: entre recuerdos e imágenes de futuro

Resumo

Este artigo tem o objetivo de problematizar as singularidades presentes nas narrativas de jovens gays negros acerca das suas memórias e o que imaginam para o futuro. No contexto brasileiro, as suas experiências são atravessadas pelo racismo, homofobia e desigualdades sociais que se perpetuam ao longo das gerações ocasionando altas taxas de violência, exclusão e morte. Para compor essa discussão apresentamos reflexões, desde uma perspectiva dos estudos raciais e de gênero, de conversas realizadas com dois jovens negros e gays com o intuito de abordar as suas vivências e o que imaginam para o futuro. No diálogo construído com nossos interlocutores se revelam as singularidades presentes no modo de narrar as conexões e vínculos construídos em suas histórias de vida e como se relacionam com as narrativas de futuro, onde imaginam espaços de cuidado de si, lançando luz às resistências e possibilidades de existência encontradas pelos jovens.

Palavras-chave:
raça; sexualidade; juventude; memória; futuro.

Abstract

This article aims to problematize the singularities present in the narratives of young black gay men about their memories and what they imagine for the future. In the Brazilian context, their experiences are crossed by racism, homophobia, and social inequalities that are perpetuated throughout generations, causing high rates of violence, exclusion, and death. To compose this discussion we present reflections, from a perspective of racial and gender studies, of conversations held with two young black and gay men in order to address their experiences and what they imagine for the future. In the dialog constructed with our interlocutors, the singularities present in the way of narrating the connections and bonds built in their life stories are revealed, and how they relate to the narratives of the future, where they imagine spaces of self-care, shedding light on the resistances and possibilities of existence encountered by young people.

Keywords:
race; sexuality; youth; memory; future.

Resumen

Este artículo tiene por objetivo problematizar las singularidades presentes en las narrativas de jóvenes gays negros sobre sus memorias y lo que imaginan para el futuro. En el contexto brasileño, sus experiencias están atravesadas por el racismo, la homofobia y las desigualdades sociales que se perpetúan a lo largo de las generaciones, provocando altos índices de violencia, exclusión y muerte. Para componer esta discusión, presentamos reflexiones, desde una perspectiva de estudios raciales y de género, de conversaciones mantenidas con dos jóvenes gays negros con el objetivo de abordar sus experiencias y lo que imaginan para el futuro. El diálogo con nuestros interlocutores revela las singularidades presentes en la forma en que narran las conexiones y vínculos construidos en sus historias de vida y cómo se relacionan con las narrativas del futuro, donde imaginan espacios de autocuidado, arrojando luz sobre las resistencias y posibilidades de existencia encontradas por los jóvenes.

Palabras clave:
raza; sexualidad; juventud; memoria; futuro.

Introdução

Neste artigo propomos problematizar as singularidades presentes nas narrativas de jovens gays negros¹, no contexto brasileiro, acerca das suas memórias e o que imaginam para o futuro. Nesse intento, buscamos, por meio deste estudo exploratório, tornar acessíveis as narrativas e temporalidades das bichas pretas, as quais, de antemão, sabemos que em suas existências se encontram a intersecção entre raça, gênero, sexualidade, dentre outros marcadores sociais, como classe, geração e território. São vivências que reivindicam o deslocamento do pensar, sentir e imaginar outros horizontes de futuro, que não se reduzem a única saída definida pelo discurso da violência racial.

O tempo aqui é abordado como produto das experiências humanas, e por isso, constituído por regulações históricas, sociais e culturais, que se traduzem em diversas e múltiplas formas de vivenciar as temporalidades no curso da vida (Elias, 1989). A respeito disso, a situação da população negra brasileira traz consigo uma experiência particular do espaço-tempo que, ao olhar para o passado, destaca-se o legado da escravidão e genocídio de grupos racializados; no presente, há a perpetuação da objetificação e violência racial, afirma a incapacidade de o sujeito negro imaginar outros futuros, os quais, muitas vezes, se reduzem a sua aniquilação (Brasileiro, 2021).

Compreendemos que abordar a violência racial na vivência do tempo se faz necessário frente a urgência de desnaturalizar concepções lineares, estáveis e normativas do tempo-espaço, inculcadas pelo pensamento moderno e colonial, em particular, dada a relação intrínseca entre a temporalidade e constituição de modos de pensar, ser e agir no mundo (Mbembe, 2017). Na discussão sobre as experiências de jovens gays negros, falar sobre as suas temporalidades implica uma forma singular de reconhecimento do processo de racialização, construção da masculinidade e dos desejos sexuais, sobretudo um modo disruptivo de construção de conexões, vínculos e rotas fugitivas para o devir.

Nesse sentido, algumas questões orientam este estudo: é possível homens gays pretos imaginarem um futuro? Como as memórias se relacionam com narrativas de futuro? O que pensam esses homens sobre as possibilidades de futuro para gays pretos? Neste artigo apresentamos informações obtidas em uma etapa preliminar e exploratória da pesquisa de doutorado em desenvolvimento, as quais estão sendo problematizadas e colocadas em discussão tendo em vista um alcance maior de participantes.

Com o intuito de localizar o campo de discussão deste estudo, apresentamos a dinâmica das relações raciais no Brasil e as especificidades de jovens gays negros. Em seguida, apresentamos os processos metodológicos adotados para aproximação com os interlocutores da pesquisa e o modo de construção da análise². Alguns dados da pesquisa são apresentados logo depois, articulando as narrativas e reflexões sobre as suas memórias e narrativas do futuro. E, por fim, propomos reflexões finais para este artigo, os quais abrem novos caminhos para o estudo e ações junto as bichas pretas na realidade brasileira.

Temporalidades negras e a violência racial na sociedade brasileira

As vivências da população negra brasileira recuperam o passado marcado pela colonialidade e violência racial, e que no presente, continua a regular o processo de racialização e do tornar-se negro (Souza, 2021). No desenvolvimento histórico da sociedade e da ciência moderna, o conceito “raça” aparece como uma forma de classificação social e justificação de discriminações e desigualdades raciais, que implicou a definição de um ser humano ideal a ser alcançado para que haja o reconhecimento de sua humanidade, a saber, estar mais próximo da brancura (Carneiro, 2023).

Compreendemos a categoria raça como um construto que se fundamenta na construção e manutenção de diferenças e privilégios baseados na cor das pessoas (Guimarães, 1999). Com isso, estética e aparência física, isto é, a cor da pele, o cabelo e formas faciais, aparecem como formas subjacentes da definição de raça. Esses marcadores foram utilizados para a categorização e inferiorização de grupos sociais, como a população negra e indígena, que tiveram as suas características físicas consideradas inferiores e menos humanas. O conceito de raça encontrou suporte em ideias, teorias e práticas políticas que naturalizam a inferiorização, preconceito e extermínio de grupos racializados (Carneiro, 2023). Esse evento racial se traduz em normalização e naturalização das temporalidades negras, predeterminando a construção de identidades e o curso da vida (Brasileiro, 2019; Silva, 2019).

As vivências do negro brasileiro são permeadas por disputas em torno de tentativas de definir a sua identidade, o que se constrói em meio a processos complexos e contraditórios, que visam definir não apenas o que é o negro, mas quais relações afetivas podem construir, as condições materiais e econômicas que podem acessar e os lugares que podem assumir no espaço-tempo. O sociólogo Guerreiro Ramos discute que nas condições particulares da sociedade brasileira há uma oposição entre o Negro-tema e o Negro-vida; o primeiro, ele se refere como “uma coisa examinada, olhada, vista, ora como ser mumificado, ora como ser curioso, ou de qualquer modo como um risco”; o segundo, o negro-vida, é “algo que não se deixa imobilizar, é despistador, protéico, multiforme, do qual, na verdade, não se pode dar uma versão definitiva, pois o é hoje o que não era ontem e será amanhã o que não é hoje”. (Ramos, 1995: 171).

Tal como Guerreiro Ramos, e como outros(as) intelectuais negros(as), a nossa escrita se dirige a pensar as relações afetivas e concretas que se alteram, modificam e se transformam ao longo do tempo, sobretudo na compreensão de que o processo de “tornar-se negro”, não é único e universal, mas diverso e pluriversal (Souza, 2021). Abordar essas temporalidades nos coloca frente ao emaranhado de acontecimentos históricos, tais como a colonização do continente africano, o tráfico negreiro e a escravidão, que constituíram modos específicos de povos africanos e da diáspora africana orientarem suas práticas sociais e a constituição de sua subjetividade ao longo das gerações. Contudo, se a constituição das temporalidades envolve práticas de normatização, também, há o negro-vida com as suas práticas afetivas que desestabilizam a norma.

Sem dúvidas, a construção da identidade negra brasileira tem uma forma própria de relação com/no tempo, e nesse sentido, a tarefa que nos é dada é apreender o movimento da constituição da população negra ao longo do tempo, e, alcançar narrativas que revelem novos caminhos, relações e futuridades. Esse movimento é tomado para desnaturalizar o discurso racial e as suas representações, principalmente negativas, que tornam o corpo negro como um ser objetificado, inferiorizado e negado de sua própria humanidade. A constituição das relações raciais no Brasil, encontrou no mito da democracia racial uma das estratégias para construir uma representação e identidade “positiva”, num processo de favorecimento da miscigenação entre negros e brancos, e o consequente embranquecimento da população brasileira, que implica na ideia de igualdade no acesso recursos materiais e imateriais.

A democracia racial é umas das formas de favorecer o assujeitamento à uma norma social que intenta definir um modelo ideal de ser reconhecido como humano e apagar as tensões étnico-raciais (Carneiro, 2023). Esse debate envolve a dimensão subjetiva das relações raciais, em que há um deslocamento de pensar o branqueamento como um problema do negro, o qual, nessa lógica, identifica-se como branco, desconfortável com sua condição de negro, buscando a miscigenação. O branqueamento é um processo inventado pela elite branca brasileira, e trata-se de um pacto da branquitude que permanece presente nas relações raciais, visando manter os seus privilégios concretos e simbólicos, e assim, a sua supremacia (Bento, 2016).

O problema do tempo acompanha a história da população negra brasileira, de tal maneira que a representação moderna e colonial dos povos africanos, trazidos à força para as Américas, favorecem um conveniente esquecimento de seus sistemas simbólicos, das civilizações e culturas africanas. Esquecer, apagar e aniquilar permanecem como o signo da violência racial no contexto pós-colonial. Tal processo se aproxima das reflexões de Castiel Vitorino Brasileiro (2021) acerca da racialização negra, compreendida como uma delimitação tempo-espacial, em que na experiência do tempo, define-se o que deve ser lembrado e o que será esquecido, bem como, impõe o caminho linear a ser trilhado, que não se altera e nem modifica a violência racial instaurada pela lógica europeia.

Se a violência racial é colocada como a matriz do tempo, uma história única e universal, que produz a impossibilidade de se humanizar e imaginar outros caminhos para existir e resistir, é nas práticas cotidianas, na discussão do negro-vida (Ramos, 1995), do tempo de existência e experiência (Mbembe, 2017), que se recuperam as possibilidades de narrar as memórias e de imaginar outros devires. Frente a esse cenário complexo, damos destaque as experiências de bichas pretas, em um movimento de adentrar nos processos de racialização que se intercruzam com os modos singulares de constituição da masculinidade e sexualidade.

Temporalidade, masculinidade e bichas pretas

O espaço que são alocadas as bichas pretas na sociedade, que não é o centro e nem a margem, é o lado de fora. Trata-se do lugar “para quem expressa pecado, perigo, anormalidade, fragilidade física e emocional, inadequação a determinadas atividades profissionais, falta de caráter, propensão ao crime, dificuldade de conviver em sociedade etc” (Oliveira, 2017: 99). As experiências de homens negros gays, o que temos nomeado também como bichas pretas, são atravessadas por questões de gênero, sexualidade e classe social.

No contexto brasileiro, homens estão mais vulneráveis as doenças crônicas e são os que morrem mais precocemente, seja por doenças ou por homicídios, principalmente os homens mais pobres. A situação dos homens negros se intensifica, visto que a morte violenta se torna um dos principais motivos de morte, e torna mais grave entre os jovens negros que são os que mais morrem (Ministério da Saúde, 2009; Cerqueira et al., 2021). Os registros de violência por orientação sexual apresentam dados parecidos, são os jovens negros gays que mais sofrem homofobia, e também, são jovens negros os que mais morrem no Brasil (Cerqueira et al., 2021). A violência racial aparece em tais dados, mas não se reduz a algo dos últimos anos, mas que se expressa ao longo da história, como parte do genocídio negro no Brasil.

Desde o final do século XIX, há registros sobre indagações acerca da homossexualidade negra no contexto brasileiro. Nos estudos de Luiz Mott, as práticas homoeróticas entre os homens negros aparecem em arquivos coloniais como o abominável pecado de “sodomia” (Mott, 2005). O Brasil se torna um dos territórios de punição de possíveis sodomitas (Mott, 2005). A punição e criminalização articuladas com ideias eugenistas e higienistas marcam a história de homens gays negros no país (Junior, 2012). Assume destaque a obra de Adolfo Caminha, “O Bom Crioulo”, publicado em 1895 no Brasil, a saber, menos de uma década após a “extinção” da escravidão em 1888 e o fim da monarquia em 1889. Na obra, vemos Amaro, o personagem negro, representado com comportamento instintivo, animalesco e selvagem, que deseja cuidar e se relacionar com Aleixo, um marinheiro iniciante de quinze anos, branco, loiro, olhos azulados, filho de pescadores, representado como indefeso, ingênuo e vulnerável.

Na obra de Caminha não há destaque sobre a constituição de uma relação amorosa ou homoafetiva, mas em essência apresenta a dinâmica das relações raciais e da violência racial, deixando em segundo plano o homoerotismo, como algo inferior. No contexto brasileiro, há certo desencontro entre os estudos de raça, gênero e sexualidade, principalmente pouco se fala sobre a sexualidade de homens negros, sendo um movimento recente a articulação entre esses marcadores sociais (Ratts, 2007).

Em uma busca rápida no Google Acadêmico utilizando os termos “homossexualidade negra” é apresentado 24.800 resultados, composto por artigos, teses, dissertações, capítulos de livro, dentre outros tipos de produções, que a partir de diferentes objetivos, áreas de conhecimento e metodologias, sugerem abordar as experiências de homens gays negros. Esse número expressivo nos parece revelar que esse tem sido um tema que tem despertado interesse no espaço acadêmico.

Nessa breve busca é possível visualizar nos títulos das produções a recorrente ênfase nas representações de homens gays negros na mídia, literatura, cinema, e em outras obras de arte, bem como, o estudo de personalidades, eventos e espaços de sociabilidade em diferentes regiões do Brasil. Esses estudos dão destaque a violência racial e homofóbica, e os modos de resistência encontrados por homens gays negros nos diferentes contextos de investigação. Não há dúvidas de que se trata de campo de discussão complexo e desafiador, sobretudo para abordar a problemática que gira em torno da intersecção raça, gênero e sexualidade.

O homem negro gay tende a ser representado no imaginário da sociedade brasileira, sob o signo de imagens de um corpo negro, violento, instintivo, com grande apetite sexual, e excluído das possibilidades de pensar a sua intimidade, afetos e o direito de exercer a sua sexualidade. A representação do homem gay negro se divide entre o seu instinto animal e a disposição em estar pronto para servir ao outro, em particular, ao homem branco, isto é, recorre a branquitude. Tal como discutido anteriormente, esse é o ideal que se impõe para a humanização do negro, o ser o mais parecido com o branco. Para Lucas Veiga (2018: 80), no desenvolvimento de meninos negros “está colocada, desde sempre, a possibilidade de afirmação e proteção de si pela via da submissão ao modo de vida do sequestrador, no caso, do homem-branco-héterossexual”.

Oliveira (2017, 2018) aborda os dois espaços e dois mundos que habita os homens negros gays: a da homossexualidade e da raça. Para o homem negro, o seu processo de racialização, se constitui com a normalização do negro heterossexual, e a afirmação de sua homossexualidade seria então a traição ao estereótipo atribuído e assumido pelo próprio homem negro. Essa seria a posição e identidade esperada para o homem negro, as quais, Osmundo Pinho (2019: 107) apresenta que “a violência, barbárie e selvageria se unem, ao espaço simbólico da representação da identidade masculina negra”.

A complexidade que gira em torno do processo de racialização do homem negro e afirmação da homossexualidade, tende a colocar as bichas pretas em solidão, desprotegidas, lidam com a não aceitação da família e medo constante da rejeição (Veiga, 2018). É visto sem família, sem capacidade de se inserir em espaços de sociabilidade, lida com as crenças de que a família negra é desorganizada, sem vínculos afetivos. Pinho (2019) afirma que o parentesco e as relações de gênero entre os africanos escravizados e os seus descendentes foram alvos da ocultação ideológica de famílias negras, alvos de criminalização, patologização e interdição sexual.

Sem nome, sem história, sem memória. Ao que parece, resta ao homem negro gay ser submisso, internalizar a masculinidade branca e não se render à tristeza gerada por esse mundo branco-heteronormativo (Veiga, 2018). Essas são formas de controle e extermínio das vivências de bichas pretas, pois a elas se “coloca em risco um projeto de futuro, um empreendimento fadado ao fracasso. O futuro que importa anunciado por uma criança só pode ser aceitável se corresponder à norma cis heterossexual branca” (Oliveira, 2017: 114).

Este artigo propõe aproximações com a discussão sobre o futuro de homens gays negros, a partir de diálogos tecidos com jovens negros e que se identificam como gays. Na contramão da lógica de normatização da vida, intentamos nos parágrafos que seguem o exercício de pensar-narrar outro modo de imaginar a socialização de meninos gays negros, desde as narrativas apresentadas em encontros realizados com dois jovens que narram as suas memórias, afetações e as suas imagens de futuro. Este percurso reflexivo compõe as aproximações e afetações desenroladas no desenvolvimento de uma pesquisa de doutorado em andamento, na qual temos o interesse de acessar as singularidades existentes nas vivências de jovens e velhos gays negros.

Método

Neste estudo, de caráter exploratório, abordamos as experiências e temporalidades de homens gays negros a partir da proposição de uma pesquisa narrativa, a qual consiste em propor a construção de conhecimentos científicos desde a constituição de espaços dialógicos de partilha de experiências que levam em conta o emaranhado de afetos, memórias e conexões vividas na cotidianidade (Balash; Montenegro, 2000). Trata-se de uma prática de pesquisa situada, localizada e corporificada, em que os investigadores e participantes são ressignificados na produção do conhecimento, assumindo-se como atores e agentes mediados pela linguagem. Nos aproximamos das proposições de Donna Haraway (1995: 37), em que “os atores existem em muitas e maravilhosas formas”, e complementa, afirmando que “explicações de um mundo ‘real’, assim, não dependem da lógica da ‘descoberta’, mas de uma relação social de ‘conversa’ carregada de poder”.

Compreendemos que ao constituir a relação social de conversa e abordar as narrativas e experiências da vida, nos vemos situados na gramática e léxicos raciais do pensamento moderno. Estes, nos conduzem as categorias onto-epistemológicas, isto é, de formas únicas de conceber o Ser, o Saber e o Pensar, que instauram o que pode ser entendido, conhecido e compreendido no mundo e o que deve permanecer inacessível e irrelevante (Silva, 2019). Assim, defendemos uma proposta ética e epistemológica em diálogo com Denise Ferreira da Silva (2016; 2019) para pensar e imaginar outros modos de narrar O Mundo Ordenado, a partir de narrativas d’O Mundo Emaranhado, o qual seria constituído por existentes que seriam expressões singulares de outros existentes na composição do emaranhado em que existem em vez de narrar.

Assumir o emaranhado nas conversas e relações sociais, incorre na compreensão de que as produções narrativas evocam uma rede de relações e estabelece um jogo intersubjetivo, onde são assumidas posições no espaço dialógico (Montenegro et al., 2022). Neste estudo, há uma aproximação entre os jovens interlocutores e um dos autores (entrevistador) no reconhecimento de racialização, orientação sexual e a dimensão geracional, visto que nos localizamos na identificação de sermos jovens gays negros e vivenciarmos, de modo coletivo, momentos geracionais similares. Situar, localizar e corporificar a produção de conhecimento se dá nas tentativas de tecer redes, conexões e alianças que favorecem aproximações singulares das significações dos interlocutores, jovens negros gays, acerca de suas temporalidades, em encontros dialógicos que recuperam as suas memórias e as narrativas de futuro.

Portanto, valorizamos a rede de relações e conexões estabelecidas com o campo de pesquisa, o cotidiano e as pessoas que coparticipam e orientam os modos de recompor na escrita acadêmica as histórias colhidas nas práticas de pesquisa (Spink; Spink, 2017). As relações construídas permitiram uma visão situada e parcial do fenômeno investigado, e tornou possível a produção narrativa a partir dos sentidos e significados partilhados nos encontros dialógicos estabelecidos com os jovens.

Em meio ao emaranhado que incide neste estudo e nas conversas cotidianas, foram indicados jovens para a participação da construção da pesquisa, residentes em uma cidade no interior do estado de São Paulo, um dos municípios mais populosos do estado. Essa forma de contato com participantes se inspira no procedimento snowball, cuja tradução é “bola de neve”, comumente utilizado para acesso às populações estigmatizadas e, também quando o foco do estudo envolve questões sensíveis, exigindo o diálogo com pessoas que se reconhecem no tema investigado, mobilizando suas redes de contato, tendo em vista as indicações para a pesquisa (Vinuto, 2014).

Dados os objetivos do estudo, o critério para a participação foi o de se reconhecer como negro, gay e idade entre 18 e 29 anos. Neste estudo exploratório foi realizada entrevistas com dois jovens que correspondiam aos critérios. Com vistas de garantir o sigilo de suas identidades, nossos interlocutores foram nomeados como Felipe e Pedro. As conversas aconteceram em espaços previamente combinados com os dois jovens, tendo em vista a escolha de um local que pudesse ser acessível e que assegurasse a privacidade e possibilidade de estarem confortáveis. Junto com Felipe, escolhemos o espaço de café de uma livraria na região central da cidade onde ele residia, e com Pedro, foi sugerido realizar a conversa no salão de convivência do condomínio onde morava. Ambos os jovens residiam em uma região da cidade com altos índices de vulnerabilidade social e baixa renda.

Para este estudo optamos por construir espaços dialógicos com inspiração na proposta de entrevistas semiestruturadas, sendo formuladas questões que abordassem a experiência do racismo, homofobia e o que imaginam para o seu futuro. Apresentamos parte das narrativas tecidas desses dois jovens que se identificam como negros e gays. As conversas foram gravadas em áudio, transcritas e submetidas a leituras recorrentes, para apreensão de temas e sentidos presentes em seus discursos. Estes foram complementados com os registros em diário de campo do pesquisador, os quais possibilitaram acessar outras nuances e aspectos afetivos que participam da construção e, possível interpretação, das narrativas compartilhadas pelos jovens.

O processo analítico apresentado oferece uma possível escrita dos caminhos, conexões, vínculos e afetos compartilhados pelos jovens, que constituem as suas memórias e as narrativas do futuro. Desde o emaranhado de questões que foram apresentadas organizamos dois eixos de reflexão e discussão, sendo o primeiro “Memórias: construção de conexões e vínculos”, e o segundo “Imagens do futuro: construção de outras conexões e espaço de cuidado”.

Memórias: construção de conexões, vínculos e parentesco

A pesquisadora Megg Rayara apresenta em sua tese de doutorado importantes contribuições para pensar, refletir e direcionar novos olhares para as vivências das bichas pretas, feito por um “zigue-zague constante por terrenos acidentados” (Oliveira, 2017: 101). Voltando a atenção aos encontros que aconteceram com os jovens, os trajetos de uma bicha antecedem a data e horário dos nossos encontros, tiveram início nas memórias da escravidão e do modo como as relações raciais têm sido construídas ao longo do tempo. Neste espaço dialógico houve o encontro com as memórias coletivas, e ainda mais, com as memórias da infância de meninos negros. O encontro com cada um deles se deu de modo análogo à fala de Megg, visto que não foi uma tarefa fácil, foi um caminhar titubeante, em zigue-zague, encontrando e acessando outras temporalidades que não se desenrolam em linha reta.

As temporalidades dos jovens apareceram em um emaranhado de afetos, conexões e vínculos estabelecidos em suas histórias de vida. Felipe um jovem negro e gay com 25 anos, apresentou as suas conexões e vínculos estabelecidos na sua infância e adolescência. As suas vivências parecem ser marcadas profundamente pela relação estabelecida com o irmão, o qual assume para Felipe diferentes posições e papéis sociais, tal como ele afirma: “pra mim, ele foi mais do que um pai pra mim, um herói pra mim”. Ao falar dessa figura de pai e herói retoma que em suas relações familiares, o irmão mais velho foi o primeiro a assumir a sua homossexualidade e lidou com diferentes violências no âmbito familiar. Felipe contou que o irmão conquistou independência financeira, passou a morar sozinho e construiu outros vínculos que permitiu a sua liberdade de ser quem é, sobretudo, demonstrou que foi uma trajetória solitária e sem muito apoio.

Ao que parece o herói ofereceu a base e instaurou o desejo de construir outros espaços de cuidado de si, sobretudo como um plano para o futuro. Felipe recorda um áudio recebido pelo irmão que o aconselha “não quero que você volte ao passado, não quero que você volte pra lá, porque lá trás, não vai te dar o que na frente está querendo te dar”. Voltar ao passado parece algo difícil, diz sobre um lugar de violência, impossibilidades e dificuldade de acesso ao cuidado. Felipe sofreu um acidente quando tinha aproximadamente quatro anos de idade, o que o fez perder a visão direita. Esse acontecimento alterou significativamente a dinâmica das relações em sua casa, e de modo singular, afetou o seu processo de racialização, ao passar a ser reconhecido não somente como negro, mas também como uma pessoa com deficiência, e sobre isso recordou: “[...] quando eu sofri esse acidente aqui, eu sofri muito. E eu tinha que ficar calado e ouvir aquilo, não podia fazer nada. Minha mãe também não podia.”

Ele afirmou que se percebia sozinho, visto que a mãe não poderia sair do trabalho e ir lidar com as violências que vivenciava na escola, devido a sua cor, deficiência, orientação sexual e a sua performance de gênero. Ele relembra: “uma das maiores dificuldades que já tive na minha vida, é chegar em casa e não ver a minha mãe em casa, e a maior dificuldade era chegar pra ela e não conseguir contar o que estava sentindo”. Em meio as diferentes violências vivenciadas, ao que parece, falar sobre a sua orientação sexual era urgente e necessário. Próximo aos onze anos, Felipe optou por falar com o irmão sobre a sua sexualidade, e como contou: “Meu irmão me ensinou o caminho da verdade, ensinou o caminho certo pra mim, ele sempre me mostrou que nem tudo é um mar de rosa”.

A situação de haver outras pessoas que assumiram a orientação sexual dissidente da norma heterossexual, também aparece na história de vida de Pedro - jovem negro e com 29 anos - em que a sua irmã mais velha compartilhou com a mãe a respeito de ser lésbica. Contudo, ele ressalta, que ainda assim, sentia que pensar e falar sobre os seus desejos sexuais tinha o “peso” da família. Em suas relações familiares, seria a “vergonha da família”, relembra que esse sentimento era presente, mesmo tendo a irmã assumida, pois pensa que assumir a sua orientação sexual “daria muito desgosto para a minha mãe”. Ainda sobre a sua família, em sua infância e adolescência imaginava que receberia apoio da mãe, mas o que o impedia de assumir a sua orientação era porque:

carregava o peso de ser o único filho homem, sempre ouvir ela falando o quanto esperou esse filho homem, e pra eu me assumir gay iria quebrar tudo o que ela imaginou pra vida dela, que eu não seria tão homem por ser gay.

As suas falas nos fazem questionar quais seriam as representações e expectativas que inviabilizam assumir e revelar a orientação sexual, ainda que no espaço da família nuclear havia alguém que antes já havia assumido e, que apesar dos impasses e violências, mostram a possibilidade de estabelecer formas de aceitação. Com isso, nos deparamos com a necessidade de acessar de dentro, os espaços de intimidade, e colocar-nos a ouvir e olhar como se deu a constituição de conexões, vínculos e o parentesco. Sobretudo, como as experiências passadas e o que permanece na memória, passaram a ser atualizadas nas vivências dos jovens, assumindo outros significados e singularidades a respeito de serem meninos negros e gays.

Como afirma Brasileiro (2021: 63), a racialização negra acontece de modo singular e “mesmo que a raça seja a mesma (negra), o modo que seremos integradas/os a esse limite vital (local existencial) será sempre singular”. Nessa perspectiva, ao olhar as singularidades dessa experiência traumática nos deparamos com um emaranhado de nós que constituem a racialização e a violência racial, pois articula-se com “violências relacionadas ao sexo, gênero, classe social, e local de nascimento do planeta” (Brasileiro, 2021: 64).

Pedro relembra que em sua família composta por maioria pardos e negros, havia a reprodução do discurso da violência racial, sobre o qual ele conta que “sempre ouvia dos meus padrastos, principalmente que eu deveria honrar o nome da minha família, tinha que ser o homem da família, tinha que pegar várias mulheres, tinha que fazer jus à minha cor”. Ao que parece, para pertencer a família, construir a sua masculinidade e identidade, deveria assumir atitudes de uma masculinidade hegemônica, representada pela virilidade e grande apetite sexual. Entender-se como gay traria desonra para a família, o faria menos homem, e principalmente, menos homem negro. A infância e adolescência dos jovens negros gays, ou das bichas pretas, foram marcadas por violências, onde racismo e a homofobia que se intercruzam, e visam os ajustar e fazerem com que permaneçam dóceis, adjetos e excluídos da possibilidade estabelecer vínculos saudáveis. Fazer jus à cor, é algo que Pedro disse não saber o que seria, e a respeito disso, nos questionamos se esse fazer se realiza na autorização da violência contra crianças negras.

Essa violência se concretizava também no espaço escolar, o que, ainda em diálogo com Pedro, ele nos contou que na escola “zoavam bastante o meu cabelo, o formato do meu rosto por ser bem fininho, por ser magro”, isto é, o corpo negro colocado como alvo de violências, e desse processo, “eu acho que dali desse ponto, de uns 9, 10 anos, que eu passei a entender, que, poxa, eu sou negro, e pra sociedade não é algo tão bem visto, algo tão agradável”. Situação que também foi vivida de modo singular por Felipe, sobre isso ele conta que “desacreditava muito dos estudos, queria abandonar sempre os estudos. Não gostava de ir pra escola, por causa do meu cabelo e da minha cor. Chegava lá, passava mal e voltava”. Para ele, essa situação se desenvolve em meio as representações compartilhadas em sua família: “Uma coisa que eu não aceitava era o meu cabelo, e a minha cor [...] por causa do meu pai”.

Desse modo, parece que a violência sentida e vivida por Felipe e Pedro se atualizam, no sentido de insistir em formas mais elaborados de reprodução da violência racial, ainda mais, na tentativa de fazer cumprir as representações e expectativas sobre o corpo negro, sobretudo, a sua inferiorização intelectual e estética, bem como, o reconhecimento de que a negritude de homens negros só se realiza assumindo-se como heterossexual. Frente a esse trajeto, Pedro contou que em suas experiências na infância e adolescência não houve atos homofóbicos contra ele, sobretudo por assumir a sua orientação sexual em 2019, aos vinte e seis anos, a saber, aproximadamente quatro anos atrás. Momento marcado por mudanças significativas nos vínculos estabelecidos até então, principalmente devido ao falecimento de sua mãe e o término de uma relação heterossexual que durou sete anos.

Pedro relatou que nesse período resolveu “tirar um tempo”, o que durou três anos, para pensar sobre os seus relacionamentos, “tentar cuidar de mim, da minha mente, e entender o que eu gostava”. Esse espaço íntimo é algo valorizado por Felipe, que ao falar sobre as pessoas LGBT, disse que “muitos acabam se esquecendo que eles têm que ter a vida particular, [...] mais voltada para o cuidado deles”. Nesse sentido, nos questionamos sobre quem cuida de meninos negros gays, afeminados, que possuem desejos afetivo-sexuais, que sofrem o racismo, homofobia, capacitismo e outras violências cotidianamente; como construir esse espaço de cuidado e de olhar a vida particular.

Vemos que a família assume posição de destaque nas falas dos jovens, sobretudo o estabelecimento de conexões e as experiências sociais que interpelam o modo como os vínculos são construídos. No entanto, para Felipe, nas experiências passadas, houve também a presença do pedagogo de um serviço socioassistencial que participava, alguém que ele se refere que “cuidou de mim desde pequeno”, e que se tornou o seu confidente, uma pessoa que pareceu estar disposta a ouvir a sua história. Alguém “que conta a sua história”, a de “viver em lugar periférico, vivendo e aprendendo nesse mundo”, e que o incentivava a contar a sua história, a de ser o primeiro negro e deficiente que participou da ONG. Para Pedro, outra instituição que aparece é a religião, visto que frequentava uma igreja evangélica, e, sendo evangélico, os seus desejos sexuais eram vistos como “pecado” e que “Deus não se agrada daquilo”. O que mostra, diferente de Felipe, que encontrou uma instituição que não valorizava a sua história, mas inseria regulações que negava a sua sexualidade e seus desejos. Mas, ambas as instituições, a ONG e a Igreja, parecem trazer modos próprios de construir significações sobre o cuidado de si, os quais se relacionam com as concepções familiares.

Felipe também contou de uma cuidadora, vizinha da casa onde morava - uma mulher negra que o ensinou a cuidar e trançar o cabelo, amar a sua cor, sobra a cultura negra, o ensinou que “no meio de gente preta existe amor”, e a cuidar de si. Foi uma das primeiras pessoas negras que ouviu a falar sobre a história passada, as lembranças familiares, as quais não se reduziam as violências, mas caminhos potentes. Esses movimentos narrados retomam as discussões sobre o tempo de existência e experiência, que trouxe a possibilidade de apreender como as relações se desenvolvem, e nos colocou frente as construções de vínculos e afetos, que ganham destaque nas memórias dos jovens.

Imagens do futuro: construção de outras conexões e espaço de cuidado

As memórias narradas pelos jovens permitiram a aproximação com as singularidades presentes em suas conexões e vínculos sociais, os quais favoreceram o processo de racialização e assimilação de sua orientação sexual. O passado é marcado por violências, mas também por resistências encontradas em suas relações na/com a comunidade que estavam inseridos, as quais se constituíram como caminhos para imaginar o porvir. Como discute Neusa Santos Souza (2021: 69), “numa sociedade multirracial, racista, de hegemonia branca, o ‘a posteriori’, se produz no momento em que o negro enfrenta peito a peito as condições concretas de opressão em que está imerso”. Ao serem instigados a pensar sobre o futuro, o “a posteriori”, se torna um ato que retoma as suas memórias e experiências, e os colocaram frente, peito a peito, com as (im)possibilidades de narrar e imaginar o futuro de bichas pretas.

No momento em que conversamos sobre o futuro, apreendemos o movimento que se direciona ao coletivo e retorna para as suas particularidades. No que se refere ao coletivo, Pedro nos contou que:

não consegue mensurar o que de fato nos aguarda, o que de fato nos espera [...] É um campo muito desconhecido, de fato, pra todos nós. Onde a gente tenta imaginar mil possibilidades, mas a gente caminha em passos muito lentos ainda, em relação a direitos iguais, a liberdade de expressão e a liberdade da gente ser o que a gente é […].

Felipe nos disse: “eu não sei o que eu viria [...] futuramente no mundo LGBT [...] o que poderia melhorar ou não melhorar, mas só sei que poderia ser uma coisa diferente”. Em suas falas, o futuro aparece como um lugar desconhecido, não mensurável e de mil possibilidades, sobretudo, parece tratar de um espaço diferente do que se vive agora, onde pode ser “o que a gente é”. A respeito disso, Felipe aparenta narrar o ato necessário, que complementa em sua fala: “começar a ver de dentro pra fora”, e o que viríamos ao olhar para dentro? O que poderia ser descoberto?

Essas complexidades constituem a subjetividade das bichas pretas, em que olhar para dentro, para as suas experiências, relações intersubjetivas e formas de cuidado de si, se interseccionam, com o olhar para fora, para a dinâmica de relações de poder, violência racial e políticas de Estado, que “caminha em passos muito lentos ainda”. Supomos que ver o que está fora, os coloca à procura de espaços e relações que favorecem o enfrentamento das violências e de condições de desumanização, vividas muitas vezes na família, como parte de um projeto futuro.

E Souza (2021: 69) diz que “o cotidiano é prodígio em situações em que o negro se vê diante de falsas alternativas, insatisfatórias todas: afirmação/negação, exploração, dominação/submissão”. Essas são formas de normalização das temporalidades de pessoas negras, encerradas na violência racial, onde não é possível falar e viver o futuro. No entanto, há resistências e enfrentamentos, e partir das memórias narradas, as quais aproximam os dois jovens, sobressaem a dimensão do cuidado de si e do outro. Na narrativa de Pedro há expectativa de que

daqui há 5 anos eu me imagino formado [...] fora do Brasil, morando fora. Com uma vida mais estável emocionalmente e financeiramente, podendo curtir um pouco mais, que eu ainda não tenho mais tanto tempo assim.

Nesse mesmo sentido, Felipe contou que os seus sonhos seriam ter “casa, carro, filhos [...] penso e quero isso para o meu futuro sim, ter uma oportunidade”. Ao falar sobre os seus sonhos ele relembra que o irmão adotou uma criança, assim como, os amigos do irmão, os quais também são gays; e sobre si mesmo, recordou os momentos em que assumiu os cuidados dos seus irmãos mais novos. A posição de cuidado é algo que atravessa a sua fala, vê o irmão e os demais cuidando, ele também cuida dos irmãos, dos amigos, mas permanecem poucos espaços de cuidado de si.

Ao falar sobre cuidar de si, Felipe e Pedro relembram as ideações suicidas, tentativas de suicídio e automutilação, e em particular, para Felipe, o motivo estava em que “as pessoas não gostam de mim do jeito que eu sou, elas não me veem do jeito que eu quero e eu me vejo”, e para Pedro, eram ações direcionadas para si mesmo quando se sentia sozinho e lidava com as mudanças constantes em suas relações interpessoais. Estabilidade econômica e emocional, oportunidade de constituir família e possuir bens materiais, e conseguir ter tempo disponível para cuidado de si, passam a compor as suas significações sobre o que imaginam para o futuro.

O futuro imaginado recupera as memórias e as relações estabelecidas na infância e adolescência, e que se deram em determinadas condições materiais, sociais e econômicas, que favorecem dinâmicas singulares de cuidado. O que pareceu assumir destaque em falas é o desejo de estar em contato consigo sob uma forma de cuidado e de cura de si mesmo, como afirmou Felipe sobre a urgência de “curar por nós mesmos”. Esse movimento não soa como individualista e separado das relações intersubjetivas, mas aparenta ser o de se estar afastados das situações de adoecimento psíquico, da lógica que mantém sem pudores a violência racial, em suas diferentes expressões.

As significações enunciadas parecem dialogar com os escritos de Brasileiro (2019: 56) sobre a cura, em que ela afirma que “a cura é movimento inominável, ou o movimento de tornar-se inominável. Percebo a cura como um acesso àquilo que é inexistente na temporalidade moderna”. Nesse âmbito, é dar espaço para o desentendimento, contradição e para as transfigurações das memórias - o espaço de cura para Brasileiro (2019), pode ser o quarto de casa, e se torna o lugar onde nos prepararmos para acolher a vida na imprevisibilidade. As transfigurações de memórias é o movimento e alteração das formas de se relacionar e de viver as temporalidades, é cuidar de si. Como observou Felipe, é também um espaço para brincar, ao relembrar que “uma coisa que eu não tive na infância: brincar. Hoje eu brinco. Eu não tive uma infância”. Morar sozinho para Felipe e Pedro, parece ter sido esse espaço de cura.

Os emaranhados das conexões vivenciadas por Felipe e Pedro representam um modo singular de construção de filiações e, uma forma de imaginar o futuro. Desde as suas memórias, falar do futuro retoma formas circunstanciais de relacionalidade, constituídas pelas situações de violência racial, homofobia, capacitismo, desigualdades sociais e econômicas. Situações essas que impõem aos jovens a busca por um lugar próprio, fora do espaço da família nuclear, para a constituição do cuidado de si. E, deste lugar, enunciam como o futuro pode ser narrado e imaginado. A respeito de suas expectativas futuras, Pedro nos disse: “pra mim o avanço mais importante e significativo que a gente teve nos últimos anos foi o casamento gay e gays também poderem adotar crianças. Isso em si, já se constitui família”.

Pedro recordou o reconhecimento, que perdura desde 2011, da união estável de casais homossexuais em cartórios no contexto brasileiro, o que apesar de ser uma significativa conquista, ainda não se configura como lei; e, relembrou a aprovação da adoção por casais gays, algo também citado por Felipe. Ao que parece falar de futuro, em suas experiências e em suas narrativas, encontramos a família como um possível horizonte de futuro, sendo as relações familiares a representação do espaço de cuidado.

No entanto, consideramos que a garantia de poder haver uma relação reconhecida pela lei e regulada pelo Estado, ainda recobra a atenção de como os modos de constituir família são atravessadas pelo processo de racialização. Felipe, em sua narrativa de futuro, não se esquece da dimensão racial que observa a sua volta: “Olha, eu não vou saber te responder essa pergunta [sobre o seu futuro], porque [...] assim, o que pode acontecer atualmente, é nós tá observando o dia a dia, porque têm muitos que acabam morrendo, muitos acabam se matando”.

A violência racial aparece como marcador da temporalidade de homens gays negros, que se expressa em meio a exclusão da família, suicídio e morte. Embora, para Felipe, assuma destaque esses aspectos, Pedro imagina para o seu futuro a constituição de família, em particular, uma família negra, ele nos disse:

quero muito adotar duas crianças, negras, obviamente, de preferências meninos, mas esses são os meus planos, como eu me imagino daqui há 5 anos. Formado, morando fora do Brasil, com meu namorado e meus dois filhos.

No entanto, há algo que não pode ser esquecido, como lembrou Felipe, que homens gays “esquece que também tem outra família, não tem só uma. Família LGBT ela é a segunda oportunidade que a pessoa tem também”. A consolidação de uma família LGBT é para Felipe uma de suas expectativas para o futuro: “Família LGBT deveria estar mais junta [...] é todo mundo estar no mesmo propósito”.

A complexidade que se envolta do processo de racialização e seu entrelaçamento com a construção dos desejos sexuais, em particular, a orientação de desejos que contrariam a norma heterossexual, nos lança a outros modos de significações de cuidado e pertencimento, e constituição de família. Na fala dos jovens, o assumir-se como gay favorece a apropriação de um modo particular de estabelecer relações com as pessoas a sua volta e repercute no que pode ser imaginado sobre as futuras conexões e vínculos familiares dos jovens gays negros. O que parece estar em discussão sobre o futuro é a disputa que se refere a descoberta de outros modos de ser e estar no mundo. Alguns questionamentos permanecem: o que significa constituir família para jovens negros gays? É possível imaginar uma família para jovens negros gays? Como esse desejo pode se tornar legítimo e reconhecido?

Situar o espaço-tempo vivenciados por jovens gays negros faz com a cautela de perseguir formas alternativas de estabelecer vínculos, os quais não se reduzem a reprodução da violência machista e patriarcal, até mesmo entre homens gays negros. Em suas narrativas, os jovens imaginam e visualizam em suas futuridades a construção de outras possibilidades de cuidado. Trata-se possibilidade de reinventar e criar outras relações, sobretudo pela postura que se abre ao se tornar negro e gay, de questionar a norma machista, racista e heterossexual.

Considerações finais

A intenção de temporalizar as experiências de jovens gays negros aparece como um ato que abre a possibilidade de desvelar as complexidades que nos constituem, situar-nos em espaços sociais, reconhecer como estabelecemos vínculos e conexões, bem como traçar rotas que desestabilizam a naturalização e normatização da vivência do tempo. As narrativas dos jovens nos fazem ver as suas memórias, experiências e temporalidades, e nos coloca frente a novos desafios, sobretudo o de imaginar como construir o futuro de homens gays negros, como fortalecer os caminhos alternativos e modos de existir que escape da lógica de sua aniquilação.

O estudo apresentado se situa em vivências particulares de dois jovens pretos gays de uma cidade no interior do estado de São Paulo. Localizar e situar as suas narrativas é relevante para não universalizar e tornar estáticas as suas experiências. Com essas reflexões, esperamos em estudo futuro ampliar o debate e aprofundar nas discussões acerca da intersecção da identidade sexual e racial dos jovens. Contudo, compreendemos que as reflexões que se originam dos diálogos tecidos com Pedro e Felipe recuperam o social e o coletivo, que todos fazemos parte.

O modo como fomos interpelados pelas narrativas nos conduziu a pensar as afetações e as memórias coletivas das bichas pretas no contexto brasileiro. Nas memórias da infância dos meninos pretos houve a ênfase no cuidado e o modo como as conexões e o parentesco são vivenciadas e, constituem uma forma particular de reconhecimento da masculinidade e dos desejos sexuais não heterossexuais. Essa dinâmica relacional com o espaço inaugura uma temporalidade não-linear, mas em zigue-zague, que foge do entendimento da lógica colonial, que atribui constantemente à dinâmica de famílias negras como desestruturadas e fadadas ao fracasso, sem memórias e sem futuro (Oliveira, 2017).

As conexões, vínculos e os afetos que os constituem, orientam as memórias das bichas pretas e constituem modos singulares de imaginar o futuro, e com isso, intentamos neste artigo abordar as temporalidades que se constroem em meio as complexidades da violência racial. Sobretudo, as significações compartilhadas abriram caminhos para traçar rotas que levam aos espaços de cuidado de si e cura, que implica o cuidar de si e voltar-se para cuidar dos outros.

Com essa discussão exploratória, esperamos compor com a construção de caminhos alternativos que resgatem as memórias e o futuro de jovens gays negros, e repensemos as suas conexões, vínculos e sua humanização. Dialogamos com hooks (2019) acerca da “necessidade de criar espaços nos quais seja possível resgatar e recuperar o passado, legados de dor, sofrimento e triunfo de modos que transformem a realidade presente.”. Essa é uma tarefa complexa e criativa, a de homens negros gays criar espaços para inventarem a si mesmos, criarem papéis alternativos para se relacionarem, relatar como se sentem e falem sobre as suas dores, onde possam nomear as suas realidades e resistências. O futuro é possível, e tem se construído a partir das memórias ressignificadas no presente.

• 1
  Negros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referem-se aos grupos de pessoas que se identificam como pretos e pardos.
• 2
  Este texto traz reflexões fruto da bolsa de pesquisa de doutorado da Fapesp (processo 2022/10025-0).

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  11 Dez 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  26 Abr 2023
• Aceito
  24 Out 2023