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Crescimento e sofisticação produtiva do Queijo Minas Artesanal da Canastra: uma leitura a partir dos processos inovativos em recursos naturais

Resumo

O objetivo deste artigo é reconhecer o papel da inovação nos resultados exitosos que a produção de Queijo Minas Artesanal (QMA) da Canastra. O alicerce metodológico se estruturou com revisão bibliográfica, levantamento documental, pesquisa de campo e entrevistas. Nossos resultados revelam a articulação entre conhecimento tradicional e científico como elemento chave na sofisticação produtiva do QMA da Canastra, promovendo a qualificação do trabalho e a busca pelo atendimento a padrões de exigência do mercado consumidor sem romper com laços e práticas do saber-fazer local, fruto de uma relação sociedade-natureza historicamente construída. A discussão proposta é situada no âmbito de estudos empíricos sobre inovação baseada em recursos naturais na América Latina e de reflexões em torno de sistemas territoriais de inovação (STI), que leva em consideração uma perspectiva multiescalar do processo inovativo que tem vigorado em estudos no campo da Geografia do Conhecimento e da Inovação. Apesar dos avanços constatados, salientamos que a estruturação do QMA da Canastra ainda enfrenta obstáculos com fragilidades estruturais típicas de STI periféricos. Almejamos que os resultados possam contribuir não apenas para a compreensão da região produtiva do QMA da Canastra, mas que possa ser um material de apoio para políticas de inovação que consideram a necessidade de um olhar para a realidade das regiões.

Palavras-chave:
Território; Difusão de novos produtos; Sistema Territorial de Inovação

Abstract

This article aims to delineate the role of innovation in the successful outcomes of Minas Artisanal Cheese (QMA) from Canastra. The methodological foundation is built upon literature review, documentary analysis, field research, and interviews. Our findings reveal the interplay between traditional and scientific knowledge as a pivotal element in the productive sophistication of Canastra’s QMA, facilitating work enhancement and striving to meet consumer market demands while maintaining local know-how and practices, which the society-nature relationship has historically shaped. The discussion is situated within the realm of empirical studies on natural resource-based innovation in Latin America and reflections on Territorial Innovation Systems (TIS), which consider a multiscale perspective of the innovation process prevalent in studies in the field of Knowledge and Innovation Geography. Despite advancements, we underscore that the establishment of Canastra’s QMA still faces challenges stemming from typical structural frailties of peripheral TIS. We aspire that these results not only contribute to comprehending the productive region of Canastra’s QMA but also serve as a supportive framework for innovation policies that acknowledge the necessity of contextual considerations in regional realities.

Keywords:
Territory; Diffusion of new products; Territorial Innovation System

INTRODUÇÃO

A discussão em torno do processo inovativo em recursos naturais em países periféricos tem despertado um amplo interesse da literatura (Caye et al. 2020CAYE, A.; RUFFONI, J.; ZIEGLER, D. D. Sectorial system of innovation in agribusiness: an analysis for the production of olive oil in RS. Estudios económicos, v. 37, n.75, p. 75-105, 2020. Doi: 10.52292/j.estudecon.2020.1714
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; Giuliani; Bell, 2005GIULIANI, E.; BELL, M. The micro-determinants of meso-level learning and innovation: Evidence from a Chilean wine cluster. Research Policy, v. 34, p. 47-68, 2005. Doi: 10.1016/j.respol.2004.10.008
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; Iizuka; Gebreeyesus, 2016IIZUKA, M.; GEBREEYESUS, M. Using Functions of Innovation System to Understand the Successful Emergence of Non-traditional Agricultural Export Industries in Developing Countries: Cases from Ethiopia and Chile. European Journal of Development Research, v.29, p. 384-403, 2016. Doi: 10.1057/s41287-016-0004-0
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; Katz et al. 2011KATZ, J.; IIZUKA, M.; MUÑOZ, S. Creciendo en base a los recursos naturales, “tragedias de los comunes” y el futuro de la industria salmonera chilena. División de Desarrollo Productivo y Empresarial: Santiago de Chile, abril de 2011. Serie 191.; Martínez; Rivera, 2018MARTÍNEZ, J. M. T.; RIVERA, M. C. V. Territorial Governance and Social Innovation: The Cases of San Pedro Capula's Artisanal Cheese and the Rice (Oryza Sativa) of Morelos, Mexico. Agriculture (Switzerland), v. 8, n. 2, p. 23, 2018. Doi: 10.3390/agriculture8020023
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). Partindo de uma proposta de estudar as analogias entre casos cuja lógica produtiva está baseada em recursos naturais (Andersen et al., 2015ANDERSEN, A. D. et al. Natural Resources, Innovation and Development. Thematic Report III. Aalborg: Aalborg University Press, 2015.), o objetivo deste artigo é reconhecer o papel da inovação no recente crescimento (quantitativo e qualitativo) da produção do Queijo Minas Artesanal (QMA) da Canastra, região do estado de Minas Gerais.

O modo de se fazer queijo na Canastra tem vivenciado, especialmente nos últimos vinte anos, a reafirmação de costumes e tradições, inclusive como forma de adequação às exigências dos órgãos de cadastramento, o que requereu um fortalecimento do modo de fazer local e um apoio de instituições públicas e privadas, em geral, de ensino, pesquisa e extensão. A partir de práticas multiescalares e da articulação entre distintos conhecimentos, os agentes sociais envolvidos nessa dinâmica promoveram transformações que colaboraram para a organização de um sistema inovativo. A estruturação desse sistema está sendo fundamental para a consolidação do crescimento e da sofisticação produtiva do Queijo Minas Artesanal da Canastra porque promoveu a dinamização de processos produtivos, a busca pelo atendimento a padrões de exigência do mercado consumidor e a manutenção dos laços e práticas do saber-fazer local.

O crescimento qualitativo e quantitativo dessa cadeia produtiva pode ser evidenciado com base, dentre outros aspectos, em alguns momentos históricos marcantes. O QMA conquistou em 2002 a primeira lei que legislava a seu respeito e se tornou Patrimônio Imaterial Brasileiro em 2008. Já o QMA da Canastra foi contemplado com selo de Indicação Geográfica (IG) em 2012; e ganhou uma série de prêmios em concursos nacionais e internacionais nos anos de 2015, 2017, 2019 e 2021. Nessa conjuntura, em 2018, foi sancionado o Selo Arte (Lei Federal 13.680), primeira lei brasileira que regulamenta especificamente a produção artesanal de queijos de leite cru.

A estruturação dos pilares desta pesquisa se pautou a partir de questionamentos elaborados durante análise de estudos de casos que apresentavam algum tipo de semelhança com o sistema inovativo que envolve o QMA da Canastra. A pesquisa se direcionou para o entendimento de quais seriam os alinhamentos com a literatura que trata de inovação em contextos periféricos e quais seriam as especificidades que indicam a participação de uma dinâmica inovativa nos resultados exitosos dessa cadeia produtiva. Vale destacar que a inovação se apresenta como um dos desafios impostos aos membros dessa dinâmica produtiva, de modo que esse artigo também discute dificuldades estabelecidas neste território produtivo.

A abordagem sobre sistema territorial de inovação (STI) apontada por Fernandes (2016FERNANDES, A. C. Sistema Territorial de Inovação ou uma Dimensão de Análise na Geografia Contemporânea. In: SPOSITO, E. S.; et al. A Diversidade da Geografia Brasileira: Escalas e Dimensões da Análise e da Ação. Rio de Janeiro: Editora Consequência, p. 113-143. 2016.) é utilizada para apontar a necessidade de o processo de inovação ser pensado a partir de uma concepção multiescalar, em que o local está submetido ao posicionamento em uma divisão nacional e internacional do trabalho. Acredita-se que a literatura que envolve essas temáticas contribua para a melhor compreensão dos elementos que cooperaram para a estruturação de inovações na cadeia produtiva do QMA da Canastra.

Para estabelecimento dessa discussão teórica e empírica, o alicerce metodológico é composto por revisão bibliográfica, levantamento documental, pesquisa de campo e entrevistas. Sem pretensão de se esgotar o debate acerca da temática em questão, o texto se estrutura a partir de uma literatura que dialoga diretamente com sua temática central; em seguida, apresentam-se os principais aspectos metodológicos; os resultados e as respostas aos questionamentos suscitados; por fim, as considerações finais deste artigo.

Recursos naturais e processos inovativos em regiões periféricas

O processo inovativo em atividades intensivas em recursos naturais não segue o mesmo padrão de outras atividades, como os serviços e a manufatura. Como já apontou Rosenberg (1976ROSENBERG, N. Perspectives on Technology. New York: Cambridge University Press, 1976. ), na agropecuária, as condições ecológicas participam de maneira direta do processo de produção induzindo singularidades às trajetórias tecnológicas. O sucesso produtivo no contexto agrícola depende de uma combinação de predicados fornecidos pelo ambiente natural, como por exemplo, topografia, precipitação, luz solar, variantes de temperatura e composição química do solo.

Andersen et al. (2015ANDERSEN, A. D. et al. Natural Resources, Innovation and Development. Thematic Report III. Aalborg: Aalborg University Press, 2015.) avançam na temática em questão explorando a noção de “idiossincrasia do conhecimento dos recursos naturais”. Segundo eles, existe uma combinação exclusiva de dotações e capacidades tecnológicas em cada ambiente natural. Sendo assim, a diversidade dos espaços naturais comumente origina a necessidade de inovações específicas que demandam a construção e a aplicação de conhecimento no local. Para que haja êxito inovativo, as novas tecnologias desenvolvidas ali precisam respeitar as características culturais e ecológicas daquele espaço geográfico.

Sistemas produtivos baseados em recursos naturais dependem de inovações para avanços de produtividade e lucratividade, e para superar determinados limites que o meio natural impõe ao processo produtivo. Para isso, “a produção de recursos naturais requer insumos inovadores de serviços e atividades de manufatura de sofisticação de conhecimento variada, bem como apoio do desenvolvimento de ciência e tecnologia (C&T)” (Andersen et al., 2018ANDERSEN, A. D.; MARÌN, A.; SIMENSEN, E. O. Innovation in Natural Resource-Based Industries: A Pathway to Development? Introduction to Special Issue. Innovation and Development v.8, p. 1-27, 2018. Doi: 10.1080/2157930X.2018.1439293
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, p.7).

A estratégia de práticas inovativas em produção baseada em recursos naturais, particularmente em países periféricos, tem despertado o interesse de estudos recentes. O Quadro 1 expõe um conjunto de estudos, seus autores, produtos e localidade; os principais desafios enfrentados no processo produtivo em questão; e as ações listadas como decisivas para o êxito das cadeias produtivas investigadas.

Quadro 1
Estudos empíricos sobre inovação baseada em recursos naturais

É notório que a maior parte dos desafios identificados nos trabalhos listados no Quadro 1 se liga à necessidade de maior acesso a conhecimentos, tecnologias e infraestruturas. Dessa maneira, as práticas que contribuíram diretamente para uma reorganização produtiva exitosa desses sistemas produtivos estão voltadas para: o intercâmbio entre conhecimentos baseados na ciência e no saber fazer local; a inserção de novas tecnologias (por agentes internos ou externos); e o apoio (assistência técnica e/ou financiamento) de instituições (públicas e privadas) locais e não locais.

Assim, não apenas a natureza, mas, principalmente, as condições socioeconômicas atuam como limitantes de processos inovativos. Como aponta Fernandes (2016FERNANDES, A. C. Sistema Territorial de Inovação ou uma Dimensão de Análise na Geografia Contemporânea. In: SPOSITO, E. S.; et al. A Diversidade da Geografia Brasileira: Escalas e Dimensões da Análise e da Ação. Rio de Janeiro: Editora Consequência, p. 113-143. 2016., p. 132),

o território e suas marcas são, eles mesmos, fatores que encorajam ou limitam as possibilidades de produção e difusão de novos produtos e processos, de modo que estes não se realizarão senão em condições apropriadas, nem sempre disponíveis em um dado território.

A noção de STI situa o entendimento do processo inovativo local em um “espaço de relações complexas entre agentes diversos, localizados em um dado recorte do espaço, mas com conexões com outros recortes em diferentes escalas, reunidos com vistas à produção, apropriação e difusão de inovações” (Fernandes, 2016FERNANDES, A. C. Sistema Territorial de Inovação ou uma Dimensão de Análise na Geografia Contemporânea. In: SPOSITO, E. S.; et al. A Diversidade da Geografia Brasileira: Escalas e Dimensões da Análise e da Ação. Rio de Janeiro: Editora Consequência, p. 113-143. 2016., p.132). Esse tipo de sistema é formado por componentes do setor produtivo, que podem ser locais, mas que estão interconectados com componentes externos, como aqueles vinculados à pesquisa, ao mercado e à produção de insumos e tecnologias (Fernandes, 2016FERNANDES, A. C. Sistema Territorial de Inovação ou uma Dimensão de Análise na Geografia Contemporânea. In: SPOSITO, E. S.; et al. A Diversidade da Geografia Brasileira: Escalas e Dimensões da Análise e da Ação. Rio de Janeiro: Editora Consequência, p. 113-143. 2016.).

O STI apoia a compreensão da criação do conhecimento científico que transforma a natureza conforme a racionalidade de um meio técnico-científico-informacional (Santos, 2013SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico-informacional. São Paulo: Edusp, 2013.), sendo este entendido tanto pela circulação de fluxos de conhecimento dos agentes hegemônicos quanto estruturadores de convivência e de resistência para pequenos produtores. Estas características e condicionantes podem ser percebidos no caso do QMA da Canastra, conforme explorado nas próximas seções.

METODOLOGIA

A base metodológica desse estudo se estrutura em uma abordagem qualitativa e se consolida a partir de revisão bibliográfica e levantamento documental (com foco no STI em questão), e em pesquisa de campo e entrevistas (com elaboração de diário de campo) que permitiram uma aproximação com a região, com os produtores e com detalhes do processo produtivo.

As entrevistas foram executadas no ano de 2021 (de janeiro a setembro) junto a um grupo de 22 produtores e outro de 22 pesquisadores que desenvolvem trabalhos vinculados ao QMA da Canastra. Devido à dificuldade em se determinar o universo amostral, com exatidão, o critério de saturação utilizado foi a técnica metodológica bola de neve ou snowball sampling, que consiste em pedir indicação de novos indivíduos a serem convidados ao final de cada entrevista (Goodman, 1961GOODMAN, L. A. Snowball sampling. Annals of Mathematical Statistics, v. 32, p. 148-170, 1961. Doi: 10.1214/aoms/1177705148
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). Assim, sucessivamente, os convites foram sendo feitos, as novas entrevistas foram executadas e a conclusão foi determinada quando se coletou elementos robustos o suficiente para responder as perguntas de pesquisa, prevalecendo a repetição nas indicações de entrevistados. Além desta amostra, também foram entrevistados agentes membros de duas organizações de iniciativa popular que se destacam no apoio e na representação dos produtores, a Associação de Produtores de Queijo Canastra (APROCAN) e a ONG SerTãoBras. Em função do distanciamento social imposto pela pandemia de Covid19, as entrevistas foram desenvolvidas à distância, e mediante aprovação do Comitê de Ética (CAAE: 18724819.3.0000.8142).

Desse modo, a principal fonte metodológica adotada foram as entrevistas e percebeu-se que a triangulação dos dados adquiridos por diferentes fontes de apreensão mostrou-se eficaz para atingir os objetivos projetados.

Especificidades da produção do QMA

O queijo é produzido no Brasil desde o período colonial de exploração do ouro, espaço que atualmente corresponde ao estado de Minas Gerais. Aos poucos, o processo produtivo se espalhou por várias partes do estado, sendo que o modo de fazer foi adaptado a partir dos recursos naturais e técnicos que estavam disponíveis na colônia (Meneses, 2006MENESES, J. N. C. Modos de fazer e a materialidade da cultura “imaterial”: o caso do queijo artesanal de Minas Gerais. Patrimônio e Memória, v. 5, n. 2, p. 27-41, 2009. ).

De um modo geral, considerando a fabricação de queijos no Brasil, pode-se afirmar que o mercado nacional possui um grande número de pequenos e micro laticínios que, na maioria das vezes, tem seu modo de fabricação denominado como artesanal. Porém, para receber tal designação eles precisam caracterizar-se “tipicamente pela produção em pequena escala, utilizando o leite produzido na própria fazenda e seguindo técnicas tradicionais de confecção de queijos próprios de cada região” (Kamimura et al., 2019KAMIMURA, B. A.; et al. Brazilian artisanal cheeses: An overview of their characteristics, main types, and regulatory aspects. Comprehensive Reviews in Food Science and Food Safety. v. 18, p.1636-1657, 2019. Doi: 10.1111/1541-4337.12486
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, p. 1636). Esses autores também defendem que os queijos artesanais brasileiros têm grande importância histórica e socioeconômica, especialmente porque sua comercialização em todo o país permite avivar a conexão entre o produto e a cultura popular, essencial para a preservação desse patrimônio.

O QMA, assim como demonstraram Shiki e Wilkinson (2016SHIKI, S. F. N.; WILKINSON, J. Movimentos em torno dos queijos artesanais de origem: os casos da Canastra e do Serro. In: WILKINSON, J.; NIEDERLE, P. A.; MASCARENHAS, G. O Sabor da Origem. Porto Alegre: Escritos, p. 257-316, 2016. , p. 257), “representa a base de sustentação econômica e social de quase 30 mil famílias rurais mineiras”. Na maioria das vezes, as nuances envolvidas na fabricação de queijos artesanais indicam que o desenvolvimento de aptidões e tecnologias necessárias para se alcançar êxito inovativo precisa respeitar as características de cada local. Martins et al. (2015MARTINS, J. M.; et al. Determining the minimum ripening time of artisanal Minas cheese, a traditional Brazilian cheese. Brazilian Journal of Microbiology, v. 46, n. 1, p. 219-230, 2015. Doi: 10.1590/S1517-838246120131003
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) afirmam que os queijos artesanais de leite cru estão envolvidos em sistemas complexos que têm como resultado propriedades sensoriais únicas influenciadas pelas: condições ambientais dos locais de produção e de maturação; pelas características edafoclimáticas locais; pela microbiota endógena envolvida em todos os processos; e pelas variações do próprio leite não pasteurizado. Portanto, essa forma de se produzir pode ofertar múltiplas possibilidades de queijos, a partir de dotações únicas e capacidades tecnológicas de cada ambiente natural.

A “idiossincrasia do conhecimento dos recursos naturais” (Andersen et al., 2015ANDERSEN, A. D. et al. Natural Resources, Innovation and Development. Thematic Report III. Aalborg: Aalborg University Press, 2015.) aponta um direcionamento para a compreensão das características intrínsecas à produção de queijo. É importante pontuar que existem diversos tipos de queijos, número bastante difícil de ser mensurado, especialmente devido ao dinamismo dos modos de fazer (determinado culturalmente) e pelas características naturais do ambiente produtivo (do leite e do queijo), que podem fazer com que a mesma receita atinja resultados completamente diferentes de acordo com os atributos ecológicos, socioeconômicos e socioculturais do local.

Devido à necessidade de comprovação da inocuidade dos queijos de leite cru, os agentes que atuam nas análises microbiológicas - de modo independente ou vinculados a órgãos de inspeção - também podem ser fundamentais para o sucesso e a continuidade do processo produtivo. Em geral, quando está em preparação para as etapas de fiscalização, o produtor recebe treinamentos especializados, o que pode incluir no sistema outros agentes relevantes.

No caso específico do queijo artesanal de Minas Gerais é comum que a promoção dessas ações ocorra por intermédio de instituições como associações; sindicatos; órgãos reguladores de nível municipal, estadual ou federal; instituições de ensino, pesquisa e extensão; Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (EMATER/MG); a Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (EPAMIG); Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE). Nesses casos, fica ainda mais evidente a diversidade de técnicas e de agentes; situados em variadas escalas que, de diversos modos, interagem entre si.

Idiossincrasias do processo inovativo do QMA da Canastra

Para a compreensão das idiossincrasias presentes no STI do qual o QMA da Canastra faz parte analisou-se as especificidades dos processos que levaram ao crescimento (quantitativo e qualitativo) dessa cadeia produtiva. Os resultados dessas análises apontam para um debate que se direciona para o entendimento de práticas inovativas a partir da articulação entre conhecimentos (tradicional local e científico) que, da sua forma, apoiam-se na interação com a natureza. Nesse contexto, discute-se também uma dinâmica em que se destacam os principais obstáculos e as principais formas de superação de barreiras estabelecidas nesse sistema inovativo.

Da interação entre saberes na consolidação do sistema inovativo QMA da Canastra

A produção artesanal de queijo de leite cru no Brasil, apesar de se remontar a pelo menos duzentos anos de história, obteve maior notoriedade, estratégias inovadoras de fabricação e grande valoração nos últimos vinte anos. Um momento histórico que é compreendido como um dos marcos para a maior valorização do produto foi a medalha de prata recebida por um QMA da Canastra no principal concurso mundial de queijos (Mondial du Fromage et des Produits Laitiers), na França, em 2015. A repercussão positiva adquirida pela região contribuiu para o entendimento do enorme potencial de mercado desse produto e motivou importantes debates sobre as dificuldades em se alcançar autorização para venda, junto aos órgãos competentes.

A idiossincrasia do conhecimento presente na produção queijeira aponta sua dependência em relação aos recursos naturais e aos agentes centrais do processo produtivo, especialmente no que se refere à demarcação de territórios e ao estabelecimento de fluxos de conhecimento. Vale ressaltar que o QMA da Canastra é produzido com leite cru e marcado por atributos sensoriais particulares a ele (Kamimura et al., 2019KAMIMURA, B. A.; et al. Brazilian artisanal cheeses: An overview of their characteristics, main types, and regulatory aspects. Comprehensive Reviews in Food Science and Food Safety. v. 18, p.1636-1657, 2019. Doi: 10.1111/1541-4337.12486
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).

Então, o modo de se fazer queijo na Canastra tem vivenciado a reafirmação de costumes e tradições, inclusive como forma de adequação às exigências dos órgãos de cadastramento, o que requereu um fortalecimento do modo de fazer local e um apoio de instituições públicas e privadas, em geral, de ensino, pesquisa e extensão. A partir de uma dimensão multiescalar, a articulação entre os agentes sociais envolvidos nesse processo - com conhecimentos distintos, presentes em escalas variadas - possibilita, ao mesmo tempo, a dinamização da produção atendendo a padrões de exigência do mercado consumidor e a manutenção dos laços e práticas do saber-fazer local. Acredita-se que tais transformações têm corroborado para a organização de um sistema inovativo que envolve a cadeia produtiva desse tipo de queijo.

As transformações que aconteceram na conjuntura histórica mencionada estão envolvidas em uma dimensão global de reestruturação produtiva e reorganização social que consolidaram o entendimento de que o caminho mais assertivo para a ascensão socioeconômica nesse cenário é por meio da inovação e do conhecimento. Dessa maneira, a C&T também podem ser produzidas e apropriadas territorialmente por indivíduos e instituições que não estejam entre os grandes agentes hegemônicos mundiais (Fernandes, 2016FERNANDES, A. C. Sistema Territorial de Inovação ou uma Dimensão de Análise na Geografia Contemporânea. In: SPOSITO, E. S.; et al. A Diversidade da Geografia Brasileira: Escalas e Dimensões da Análise e da Ação. Rio de Janeiro: Editora Consequência, p. 113-143. 2016.). Projetos estruturados em contextos periféricos também possuem potencial para desenvolver inovações e gerar conhecimentos a partir da interação entre saberes diversificados, provenientes de agentes estabelecidos em diferentes escalas.

O sistema inovativo que se constitui com a participação do QMA da Canastra se estrutura numa região periférica do território nacional; numa lógica produtiva de pequena produção; a partir de articulações sociais; sendo que, essas articulações se estabelecem em diversas escalas: local, regional, nacional e internacional. Albuquerque (1996 ALBUQUERQUE, E. M. Sistema nacional de inovação no Brasil: uma análise introdutória a partir de dados disponíveis sobre a ciência e a tecnologia. Revista de Economia Política, v. 16, 1996. Doi: 10.1590/0101-31571996-0891
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), ao analisar o conjunto de esforços nacionais ligados ao desenvolvimento de C&T - com base nas categorias de sistema de inovação consagradas pela literatura internacional (Lundvall, 1992LUNDVALL, B. National Systems of Innovation: Towards a theory of innovation and interactive learning. London: Pinter, 1992. ) -, advoga que o Brasil se coloca numa condição de estruturação inacabada, de modo que lhe faltam muitos elementos necessários para que fosse classificado dentro de uma posição socioeconômica central.

O sistema inovativo na Microrregião da Canastra possui características bastante peculiares que contribuem para o seu fortalecimento. Além disso, percebe-se que dentre os principais agentes sociais que colaboram para a consolidação dessa cadeia produtiva estão os membros envolvidos diretamente no processo produtivo desse QMA e pesquisadores que atuam na área de Ciência, Tecnologia & Inovação (CT&I). Essa microrregião (delimitada pela EMATER/MG) compreende sete municípios: Tapiraí, Medeiros, Bambuí, São Roque de Minas, Vargem Bonita, Delfinópolis e Piumhi, todos conectados à Serra da Canastra, em Minas Gerais. (Figura 1)

Figura 1
Mapa da Microrregião Produtora de Queijo Minas Artesanal da Canastra - Minas Gerais/Brasil

O selo foi atribuído ao produto queijo produzido com leite cru (com um gado específico), de modo artesanal em uma área delimitada por características da pastagem que se vinculam a clima, altitude, relevo, solo e água locais - que marcam seu terroir (ver Figura 2). Terroir é comumente definido como o caráter singular de um alimento que resulta de condições edafoclimáticas particulares, ou seja, de uma complexa interação entre solo, planta e clima que é combinada com métodos de produção e matérias-primas tradicionais (APROCAN, 2011APROCAN. Associação dos Produtores de Queijo Canastra. Regulamento de uso da Indicação de Procedência “Canastra, para Queijo Minas Artesanal”. In: Ata de Assembleia Geral Extraordinária da APROCAN, 30/08/2011 . São Roque de Minas, 2011. ).

Figura 2
O terroir da Serra da Canastra caracteriza o queijo produzido lá

As idiossincrasias do conhecimento dos recursos naturais podem se associar ao entendimento mais largo do significado de terroir. Casabianca et al. (2005CASABIANCA, F.; et al. Terroir et typicité: deux concepts-clés des Appellations d’Origine Contrôlée - Essai de définitions scientifiques et opérationnelles. Symposium international Territoires et enjeux du développement régional. Lyon: INRA.2005.) destaca que terroir pode ser compreendido como um território construído por um agrupamento de indivíduos que desenvolveu saberes coletivos específicos, sendo esses aprendizados vinculados ao modo como essa comunidade se relaciona entre si e com o ambiente natural. Ou seja, o terroir é formado pelo conjunto de especificidades socioculturais e naturais que originam a construção de conhecimentos coletivos, historicamente estabelecidos e que são típicos de determinado local.

Com base em Benko e Pecqueur (2001BENKO, G.; PECQUEUR, B. Os recursos de territórios e os territórios de recursos. Revista Geosul, v.16, n.32, p.31-50, 2001.), se pode afirmar que o tipo de condição produtiva estruturada na Canastra se construiu a partir de recursos ancorados num território que passam a ser usados como ativos específicos. Numa estratégia local de seus agentes, a dinâmica estabelecida em torno desses recursos “resulta em efeito de regras, de costumes, de uma cultura elaborada num espaço de proximidade geográfica e cultural (pág. 46)”. Sendo assim, “o recurso específico de um território, tomado globalmente, aparece então como o resultado de processo longo de aprendizados coletivos que termina num estabelecimento de regras tácitas (pág. 47)”.

Desafios e soluções estabelecidos no sistema inovativo que envolve o QMA da Canastra

Como o terroir pode ser determinante para as dinâmicas socioeconômicas estabelecidas no território, observou-se que na cadeia produtiva do QMA da Canastra a interação entre aqueles indivíduos e aquele meio físico e social foi geradora de êxitos e de obstáculos.

Para as famílias que dependem economicamente da comercialização do queijo, um dos desafios mais significativos é a dificuldade em se obter autorização para vendas. O fato do queijo de leite cru ter sido ignorado das regulações brasileiras que tratavam da produção de origem animal, de certa forma, estabeleceu a sua incapacidade de atender aos padrões de fiscalização, criou a interpretação de que se tratava de um produto com insegurança alimentar e impossibilitou aos produtores emitirem nota fiscal. Em simultâneo, se consolidou uma grande desvalorização econômica do produto associada com a ampliação da dependência dos produtores em relação aos atravessadores. Historicamente, a produção comercial desse tipo de queijo sempre dependeu das vendas não locais para seu sustento.

Muitas iniciativas de regularização, por parte dos produtores, foram geradoras de diversos tipos de conflitos, especialmente entre produtores e fiscais. Essas relações de poder se consolidam no território de uma forma bastante complexa e se pautam em desacordos ocasionados, na maioria das vezes, pela falta de compreensão do conhecimento do outro e de legislação adequada àquele processo produtivo.

Muitas vezes, essas dificuldades apresentadas reforçavam o vínculo dos produtores da região com os atravessadores (chamados de queijeiros), especialmente porque eram eles que assumiam o risco de ter prejuízo pela apreensão do produto por órgãos fiscalizadores. Em função disso, os queijeiros que determinavam quanto pagariam pelo produto, e nesse contexto, muitos produtores abandonaram a prática comercial por insustentabilidade do negócio.

Alguns movimentos contribuíram diretamente para reduzir esses conflitos, entre eles citam-se: a) os esforços em torno da necessidade de haver uma legislação apropriada à produção de queijo de leite cru motivou a regulamentação da lei do Selo Arte, primeira lei nacional que qualifica esse tipo de produto; b) a consolidação dos selos de inspeção municipal (SIM) em municípios da Canastra cria a possibilidade da fiscalização ser feita por pessoas que já conhecem o modo de fabricação artesanal local e, em geral, se institui protocolos considerados mais adequados àquele tipo de fabricação; c) os produtores passaram a ter maior qualificação e mais contato com agentes sociais (pesquisadores, professores, extensionistas) que compreendem os parâmetros impostos pela legislação de laticínios pasteurizados, desse modo, tiveram a oportunidade de refletir coletivamente sobre quais seriam as “boas práticas de fabricação” capazes de garantir a tão exigida qualidade microbiológica sem descaracterizar o produto artesanal. Esses três movimentos aumentaram o número de produtores cadastrados (junto a órgãos que atuam na fiscalização da produção de alimentos de origem animal) e, concomitantemente, melhoraram a qualidade do queijo.

Entretanto, a comercialização intermediada por queijeiros ainda é dominante principalmente porque a maior parte dos produtores de QMA da Canastra não possui condições socioeconômicas para investir em mudanças estruturais que viabilizem a autorização para venda; mesmo assim, com a ampliação da valorização do produto, a atividade é considerada lucrativa. São bastante comuns os relatos de produtores que, aos poucos, foram experimentando a comercialização direta ao cliente de uma parcela da produção, sem abandonar o queijeiro. Desse modo, foram adquirindo empoderamento e autonomia até não precisarem mais do apoio desse intermediário.

A falta de infraestrutura de transporte e de acesso a meios de comunicação também são geradoras de dependência em relação aos atravessadores. Tal fato se dá, na maioria das vezes, porque as restrições orçamentárias de muitos produtores inviabilizam sua autonomia comercial, por exemplo, pela dificuldade de compra de veículo adequado ao transporte em estradas não pavimentadas; além do que, muitas famílias produtoras alegam que não dispõem de tempo para se dedicar às vendas; ou não possuem acesso aos meios de comunicação que facilitariam essa comercialização; ou não têm qualificação para usar as tecnologias digitais que são acessíveis a elas.

A autonomia produtiva da maior parte dessas famílias depende da ajuda de diversas instituições, pois requer uma série de adaptações estruturais, econômicas e sociais; que só serão instituídas a partir de fomento financeiro e apoio educacional. Dentro dessa perspectiva,

(...) a promoção de integrações horizontais de grupos sociais menos beneficiados pelo desenvolvimento científico e tecnológico pode contribuir para que se tornem sujeitos da decisão sobre o uso político de ciência e da tecnologia, particularmente no caso de formações socioeconômicas periféricas ou subordinadas. (Fernandes, 2016FERNANDES, A. C. Sistema Territorial de Inovação ou uma Dimensão de Análise na Geografia Contemporânea. In: SPOSITO, E. S.; et al. A Diversidade da Geografia Brasileira: Escalas e Dimensões da Análise e da Ação. Rio de Janeiro: Editora Consequência, p. 113-143. 2016., pág. 115)

A tecnologia tem sido uma aliada na superação de problemas na Canastra e um fato bastante ilustrativo foi a adoção da etiqueta de caseína. Inúmeros foram os casos de uso indevido da marca “Canastra” e de falsificação de rótulos. A busca por estratégias de rastreabilidade culminou no estabelecimento de parceria com uma empresa francesa que produz as etiquetas com a marca registrada pela IG e que identifica numericamente produtor e produto. Além disso, há um grande esforço, de amplitude nacional, para que o consumidor compreenda quais municípios fazem parte da microrregião geográfica “Canastra” e para que sejam feitas denúncias de irregularidades.

As idiossincrasias do QMA da Canastra podem ser reveladoras de desafios e de oportunidades. No que se refere a desafios, destacam-se as diferenciações (físicas, químicas, microbiológicas) no resultado do processo produtivo devido, por exemplo, a oscilações estacionais de temperatura e de umidade. O não conhecimento a respeito dos motivos que causaram as “irregularidades” ao queijo (no sabor, aroma, cor ou textura) gera bastante insegurança. As dúvidas promovidas por essa condição acabaram se tornando uma oportunidade para gerar conhecimento e inovação, pois se percebeu que era necessário compreender e registrar melhor essas diferenciações, bem como, notou-se que era possível “criar” novos tipos de queijos. A ampla diversidade de QMA’s que pode ser fabricada é nitidamente geradora de maior valorização ao produto (simbólica e financeira), ao mesmo tempo em que promove o receio de que os processos inovativos descaracterizem a herança cultural que esse artefato carrega.

É comum que algumas dessas variações de QMA da Canastra recebam maior destaque a partir de premiações em concursos internacionais de queijos. Existem opiniões muito controversas sobre as mudanças no modo de fabricação e sobre uma possível descaracterização desse produto/patrimônio. O destaque central está nas distintas estratégias de maturação que também podem significar resultados bastante exclusivos no que se refere aos novos tipos de QMA da Canastra. Contudo, a demanda não local por produtos com formas de maturação diferenciadas é tão grande (e a oferta é insuficiente) que fica cada vez mais interessante economicamente consolidar a fabricação de novas variedades. Os produtores que buscam atender essa procura - a partir do próprio lucro e de financiamentos complementares - investiram em adaptações necessárias ao cadastramento junto aos órgãos fiscalizadores, conseguiram emitir nota fiscal e aumentaram o valor do produto.

O Quadro 2 sintetiza os desafios centrais e as ações exitosas, dentro do contexto em estudo. Nesta figura também está evidenciada a escala de atuação, de modo que se esclarece a abrangência de cada agrupamento de ações desenvolvidas em prol da superação dos desafios listados.

Quadro 2
Desafios e soluções desenvolvidas no sistema inovativo que envolve o QMA da Canastra

Em geral, dentro da cadeia produtiva do QMA da Canastra, os desafios e ações listados no Quadro 2 estão em movimento, dentro de suas múltiplas escalas de transformação; enquanto algumas dificuldades vão sendo superadas, os resultados positivos vão se consolidando. Diversos agentes sociais (indivíduos e instituições) se empenham (coletivamente, na maioria das vezes) para minimizar os impactos negativos das barreiras que ainda são impeditivas de uma maior robustez desse sistema produtivo. Entretanto, a necessidade de constantes mudanças (especialmente devido às adaptações da legislação e dos protocolos de fiscalização) para atender às demandas externas é entendida por muitos produtores como algo negativo e, também por isso, esses não estão dispostos a alterar a sua forma de produção ou de comercialização. Esse tipo de postura é mais comum entre os produtores que não têm a fabricação queijeira como principal fonte de renda. Dentre os 21 produtores entrevistados, quatro se posicionaram dessa forma.

CONCLUSÃO

Considerando o debate sobre inovação baseada em recursos naturais, com foco em contextos de periferia, este estudo destaca o QMA da Canastra e aponta para algumas similaridades entre a sua dinâmica produtiva e aquelas apresentadas no Quadro 1. Entre elas, a necessidade de uma base científica que suporte o conhecimento das características socioambientais locais para definição de melhores estratégias de produção e de regulação; o enquadramento num setor formado por produtos que tipicamente se diferenciam pela menor padronização; a utilização de tecnologias que estejam minimamente adaptadas às especificidades socioambientais locais; o estabelecimento de intercâmbios entre conhecimentos promovendo aprendizados interativos voltados para a consolidação de sua cadeia produtiva. Em relação aos desafios, destacam-se aspectos relacionados à regulação, infraestrutura, tecnologia e conhecimento. Já entre os caminhos de atuação que foram decisivos para a superação de problemas sobressaem-se: interação entre conhecimentos de agentes e instituições locais e não locais envolvidos na cadeia; esforços de ampliação do entendimento das características socioambientais locais para definição de melhores estratégias de produção; criação de novas técnicas e tecnologias adaptadas às especificidades socioeconômicas e ambientais locais; manutenção da produção com menor padronização com o objetivo de se consolidar em nichos de mercado de alto valor.

O caráter particular do terroir da Canastra está sendo desvendado e catalogado, principalmente após os anos 2000, pelas atividades desenvolvidas a partir de conexões entre produtores e pesquisadores. Dessa maneira, a C&T pode ser utilizada para aperfeiçoar os ganhos que as dotações ambientais exclusivas oferecem ao QMA da Canastra. Assim como nos estudos empíricos sobre inovação baseada em recursos naturais (Quadro 1), a cadeia produtiva em questão também depende diretamente de ações voltadas para o fluxo entre conhecimentos. Sendo que, a partir desses fluxos e da construção de novos conhecimentos (estruturados pela cooperação entre agentes endógenos e exógenos), possa se desenvolver tecnologias e práticas inovadoras mais assertivas para as demandas socioeconômicas locais, mesmo diante de suas fragilidades periféricas.

O conjunto formado pelas atividades coletivas desenvolvidas para a superação de dificuldades dentro da cadeia produtiva em questão fomentam novas ocupações, novas qualificações e até mesmo novas profissões. São exemplos dessas transformações: a) a busca pela autonomia na comercialização estimula iniciativas de marketing digital e gera novas ocupações; b) a expectativa em adquirir autorização para venda leva muitos produtores a participarem de cursos e, a partir daí, adaptam seu modo de fabricação; c) a valorização das inúmeras possibilidades de maturação do queijo produzido com leite cru levou à consolidação da profissão de afinador, responsável por desenvolver métodos e técnicas específicas de maturação, para elaboração de queijos com novos sabores, aromas e texturas. Todos esses fatores evidenciam a necessidade de inovar como uma das estratégias de produção e a consolidação de novas práticas laborais na cadeia produtiva em questão. O dinamismo instituído por essas ações impacta a estrutura produtiva de diversas formas porque: conduz interação entre conhecimentos de modo multiescalar; promove atividades inovativas; contribui diretamente para a solução de problemas e fortalece a economia local.

Os resultados obtidos repercutem no maior conhecimento e catalogação da biodiversidade microbiológica presente na Canastra; maior entendimento das dinâmicas que promovem diferenciações entre os tipos de queijos para possíveis adaptações no processo produtivo e para criação de novos produtos; maior valorização das especificidades do produto e dos recursos naturais que determinam sua diferenciação; consolidação de novos conhecimentos que contribuem para dar autonomia aos produtores; divulgação externa e maior notoriedade.

Assim como no caso dos vinhos e salmão no Chile, da flor na Etiópia, dos queijos artesanais e do arroz no México e do azeite de oliva no Rio Grande do Sul (para ficarmos apenas nos casos apontados), o QMA da Canastra demonstra que os recursos naturais prescindem de uma base de inovação para ter ganhos de competitividade e entrar em nichos de mercado com maior valor agregado. A despeito das típicas fragilidades estruturais de regiões periféricas, os produtores da região da Canastra, junto a instituições de C&T, conseguiram promover uma complexa interação de conhecimentos que está por trás dos diversos êxitos e premiações recebidas pelo QMA da Canastra. Almeja-se que os resultados deste trabalho contribuam não apenas para a compreensão da região produtiva em questão, mas que possa ser um material de apoio para políticas de inovação que consideram a necessidade de um olhar para a realidade das regiões.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2023
  • Aceito
    30 Out 2023
  • Publicado
    10 Jan 2024
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