Resumo
Um número crescente de estudos tem se dedicado à análise da relação entre a contestação social e o funcionamento de mercados ou empresas. Elaborados a partir de perspectivas teóricas diversas, mas com uma forte ancoragem nas contribuições oriundas da sociologia econômica e na sociologia dos movimentos sociais, essas análises dão visibilidade ao papel desempenhado pela crítica social no surgimento, transformação e estabilização dos mercados. No presente dossiê, reunimos artigos que mostram como a ação de movimentos sociais tem interagido com empresas e agentes estatais em diferentes campos econômicos, buscando objetivar a atuação de diferentes agentes sociais nessas interações, além de ser uma contribuição que problematiza a questão dos padrões de moralidade presentes nas diferentes formas de intercâmbio de bens e serviços (reciprocidade, redistribuição e mercado). A riqueza desse conjunto de análises, desenvolvidas no Brasil e em outros países (França e Itália), mostra a vitalidade desse novo campo de estudos, ao mesmo tempo que aponta para a abertura de novos temas de pesquisa no âmbito da sociologia econômica.
Palavras-chave contestação; mercado; empresas; crise; campo econômico
Abstract
An increasing number of studies have been dedicated to analyzing the relationship between social contestation and the functioning of markets or companies. Developed from different theoretical perspectives, but with a strong anchoring in contributions from economic sociology and the sociology of social movements, these analyses bring to light the role played by social criticism in the emergence, transformation, and stabilization of markets. In this dossier, we present a collection of articles that show how social movements have interacted with companies and state agents in different economic fields, seeking to consolidate the actions of different social agents in these interactions. In addition, it is a contribution that problematizes the issue of present standards of morality in the different forms of goods and services exchange (reciprocity, redistribution, and market). The richness of this set of analyses, developed in Brazil as well as in other countries (France and Italy), shows the vitality of this new field of study, while at the same time pointing to the opening of new research themes within the scope of economic sociology.
Keywords contestation; market; companies; crisis; economic field
A discussão sobre a relação entre a contestação social e o funcionamento de mercados ou empresas possui raízes distantes, que remontam às análises acerca dos protestos contra o encarecimento do preço dos alimentos a partir da economia moral dos pobres (Thompson, 1998) e à atuação de movimentos de consumidores na Europa e Estados Unidos, geralmente organizados em cooperativas operárias, no século XIX (Dubuisson-Quellier, 2009).
No campo da “velha” sociologia econômica, duas perspectivas de análise se destacam. Uma é a abordagem polanyiana da luta pela construção de um mercado autonomizado dos constrangimentos sociais (das chamadas mercadorias fictícias: terra, trabalho e moeda) e os movimentos, em sentido contrário, de regulação desses mercados (Polanyi, 2000); e outra, numa discussão mais microssociológica, é a perspectiva de Hirschman (1973) acerca do papel desempenhado pelas ações de saída (exit), voz ou lealdade no funcionamento e/ou declínio das empresas (Swedberg, 1994).
Em período mais recente, a questão da interação entre movimentos de contestação social e o funcionamento de mercados ganhou novas elaborações, dando origem a um volume amplo de publicações e ao surgimento de dois campos de estudos que abordam, respectivamente, a relação entre movimentos sociais, firmas e mercados (King; Pearce, 2010; Fligstein; McAdam, 2019; Bereni; Dubuisson-Quelier, 2020) e a relação entre contestação moral e mercados (Steiner; Trespeuch, 2014; Barbosa; Gomes, 2016).
Embora a discussão sobre mercados contestados1 venha ganhando importância crescente (Wilkinson, 2016), podemos dizer que o campo de estudos mais influente para a análise da relação entre contestação e o funcionamento de empresas e mercados é o que surgiu do cruzamento de abordagens da sociologia dos movimentos sociais e da sociologia econômica (ou das organizações) nos Estados Unidos (Fligstein; McAdam, 2019; Bereni; Dubuisson-Quelier, 2020).
O diálogo entre esses dois campos de estudos tornou possível o desenvolvimento de trabalhos que analisam o papel de movimentos sociais no funcionamento de organizações ou mercados, utilizando, por exemplo, conceitos como o de estrutura de oportunidade política (Balsiger, 2020), que vem sendo utilizado para pensar o contexto no qual ações de contestação de práticas empresariais podem ser mais ou menos eficazes. Por outro lado, o diálogo com a tradição da sociologia econômica levou pesquisadores de movimentos sociais a considerarem a ação coletiva orientada para alvos não estatais, como o caso de mercados e empresas, e a investigarem o desenvolvimento de um conjunto específico de repertórios de ação coletiva elaborados para quebrar a rotina de empresas, como ações de boicote e de buycotting (Bereni; Dubuisson-Quelier, 2020).
Em revisão acerca dessa abordagem, Fligstein e McAdam (2019) apontaram três efeitos principais da atuação de movimentos sociais na emergência, transformação e funcionamento dos mercados. O primeiro desses efeitos diz respeito ao surgimento de mercados a partir da atuação de movimentos sociais; o segundo aponta para o papel de movimentos sociais na alteração de mercados preexistentes. Por último, destacam a atuação das campanhas de movimentos sociais com o objetivo de modificar a atuação de determinadas empresas em certos mercados, como no caso do combate a firmas que promovem o desmatamento ou o trabalho infantil. Nesse caso, a atuação da contestação social pode abrir espaço para o reposicionamento de outras empresas e, dessa forma, modificar a hierarquia no mercado.
Os artigos que integram o dossiê “Contestação social, transformação e estabilização dos mercados” dialogam com os estudos acima listados, procurando, a partir de tradições teóricas específicas, fornecer novos caminhos para a compreensão da complexa interação que marca a relação entre os mundos (ou campos) da contestação e da economia.
O artigo de Philippe Steiner, “La sociologie économique de la contestation morale”, dá continuidade à reflexão que vem sendo desenvolvida por esse autor acerca da relação entre moralidade e mercados (Steiner; Trespeuch, 2014), expandindo essa discussão para além da relação entre mercados e crítica social e ampliando o debate sobre processos de contestação aos dois outros mecanismos de alocação de bens e serviços, caso da reciprocidade e da redistribuição (Polanyi, 2000).
Para realizar esse desenvolvimento, o autor passa em revista contribuições da sociologia clássica e contemporânea, com destaque para a utilização de elementos da sociologia da crítica – ou sociologia pragmática – (Boltanski; Thévenot, 2020), caso das operações de crítica e justificação elaboradas por essa abordagem para pensar a relação entres os diferentes “mundos” (inspirado, doméstico, da opinião, cívico, mercantil e industrial), bem como os momentos de apaziguamento que caracterizam as situações de estabilização da relação entre mercado e contestação.
Os artigos seguintes, “The establishment of soy moratorium in Brazilian Amazon rainforest: Strategic environmental action to exploit opportunities in multiple fields”, de Silvio Eduardo Alvarez Candido, e “Transformações em um mercado contestado: estabilidade e upgrading da indústria siderúrgica na Amazônia oriental”, de Roberto Martins Mancini, inserem-se na tradição de estudos sobre movimentos sociais, firmas e mercados, ainda que a análise do papel da contestação ou da crítica social seja realizada a partir de perspectivas teóricas diferentes. No primeiro caso, a da teoria do processo político (Tilly; Tarrow, 2008), e, no segundo, a da sociologia pragmática da crítica (Boltanski; Thévenot, 2020; Carneiro, 2023).
Dialogando com a perspectiva dos campos de ação estratégica (Fligstein; McAdam, 2012) e com a abordagem do processo político, Silvio Eduardo Alvarez Candido apresenta o processo que levou ao estabelecimento do dispositivo da moratória da soja com o objetivo de controlar o desmatamento provocado pela atividade sojícola na Amazônia.
Se a perspectiva dos campos de ação estratégica fornece a moldura geral a partir da qual é abordada a contestação realizada por organizações não governamentais e movimentos sociais locais dirigida às principais empresas (tradings) comercializadoras da soja no mercado internacional, o diálogo com a teoria dos movimentos sociais possibilita mostrar a mudança na escala da contestação, com a ação coletiva passando do plano local para uma arena global, quando a mobilização contra a expansão da soja na Amazônia passa da luta contra a instalação do porto da Cargill em Santarém (ação local) para as ações desenvolvidas por ONGs contra as principais tradings (ADM, Bunge, Cargil) que operam no mercado internacional.
Por último, mas não menos importante, vale registrar que o conceito de campo de ação estratégica é indicado para analisar internamente as empresas – caso da McDonalds, que teve um papel central na campanha de pressão sobre as tradings da soja – e para pensar o papel desempenhado pelo Estado. Contudo, vale apontar que, apesar de registrar a importância da ação estatal, o papel das diferentes agências governamentais no estabelecimento da moratória da soja não foi devidamente destacado.
No estudo realizado por Roberto Martins Mancini, a questão central é a transformação no campo da produção siderúrgica na Amazônia, sob o acicate da crítica social (Boltanski; Chiapello, 1999) e da crise econômica que atingiu fortemente a atividade em 2008. Nesse sentido, com o auxílio de conceitos da teoria da regulação (Boyer, 2009) e da abordagem do mercado como política (Fligstein, 2001), o artigo mostra como determinados grupos econômicos presentes no campo da produção siderúrgica na Amazônia adotaram estratégias diferenciadas para enfrentar o desafio da crítica social e as mudanças institucionais advindas da dificuldade de obtenção de insumos (carvão vegetal e minério de ferro) a baixo custo.
Muito interessante também é a utilização dos conceitos de regime de acumulação e estratégias de lucro (Boyer, 2009) para pensar as diferentes concepções de controle (Fligstein, 2001) que organizaram o campo da produção siderúrgica, bem como o processo pelo qual alguns grupos, a partir de um processo de upgrading econômico e social (Barrientos et al., 2018), conseguiram estabelecer um novo padrão para a siderurgia na Amazônia.
O artigo “The generative effects of economic crises: the case of the Italian innovation system”, de Alberto Gherardini e Francesco Ramella, discute o papel desempenhado por eventos externos no funcionamento de um dado campo econômico, caso dos efeitos da crise econômica de 2008 e da pandemia da Covid-19 no desenvolvimento do sistema de inovação italiano.
De acordo com esses autores, a grande recessão que se seguiu à crise de 2008 mostrou a fragilidade do tecido industrial italiano, que se encontrava muito defasado em termos da digitalização da produção de bens, ao passo que a situação criada pela pandemia mostrou a necessidade de fortes investimentos no acesso a serviços pela internet. Nesse sentido, esses dois eventos funcionaram como uma “janela de oportunidade” (Tarrow, 2009) para a atuação do governo italiano e de agentes econômicos que, por intermédio de políticas públicas, passaram a investir fortemente em processos de transição digital, o que permitiu a esse país superar a lacuna que o separava de seus congêneres na Europa.
O último artigo, “Slow food: a revolução pelo consumo? Sociologia de uma requalificação de bens alimentares”, de Marie-France Garcia-Parpet, analisa o movimento Slow Food na França, destacando o processo de funcionamento dos grupos locais (em Paris e outras cidades), as estratégias de atuação para a valorização dos produtos agroalimentares e as características dos integrantes desses grupos, numa perspectiva que enfatiza a importância da objetivação das propriedades sociais dos agentes (Bourdieu, 2000).
Questionando a reificação de categorias como “cidadão-consumidor”, “consumidor-ator”, o artigo procura identificar os outros tipos de pertencimento (as propriedades sociais) dos participantes do movimento Slow Food, muitos dos quais são profissionais oriundos do mundo da gastronomia, professores universitários ou profissionais liberais – portanto, pertencentes a grupos sociais com elevado capital cultural.2
A partir da realização de entrevistas e da observação de eventos do movimento (feiras, festivais, encontros nos chamados “convivia”), a autora problematiza também o caráter das mobilizações realizadas, mostrando que a participação no Slow Food não implica, necessariamente, um engajamento que os oponha de forma radical às empresas do sistema-agroalimentar, apontando a existência de uma multiplicidade de interesses que preside o investimento das pessoas na participação em grupos locais. Nesse sentido, a participação pode envolver desde a obtenção de um certo tipo de prazer, relacionado com o consumo de um conjunto específico de alimentos e bebidas, à inserção em redes de proximidade, mas também a valorização simbólica e financeira de determinados produtos, que o movimento Slow Food elege para promover.
Ao reunir esse conjunto de contribuições para este dossiê, esperamos ter demonstrado a importância desse campo de estudos relativamente novo no âmbito da sociologia econômica, bem como a variedade de abordagens possíveis para pensar a relação entre ações e movimentos de contestação e funcionamento de empresas e mercados. Nesse sentido, acreditamos que ele dialoga com um conjunto de estudos que vêm sendo realizados no Brasil, relacionando crítica social, mercados e empresas (Nahoum, 2017; Carneiro, 2023; Wilkinson, 2023), mas também apresentando sugestões para o desenvolvimento de novas agendas de pesquisa.
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1
Mercados contestados seriam aqueles mercados constituídos por mercadorias e serviços oferecidos que são alvos de questionamento acerca de sua legitimidade enquanto tais (Barbosa; Gomes, 2016, p. 16). Para Steiner e Trespeuch (2014, p. 8), a noção de mercadoria contestada diz respeito à existência de “controvérsias acerca das coisas que podem ser vendidas ou compradas, disputas essas que se focalizam na existência de mercados para a transação dessas coisas, de propostas para a criação de mercados para esses bens ou mesmo de discursos em favor de sua criação”.
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2
De forma semelhante à análise realizada por essa autora para o processo de reposicionamento de produtores franceses de vinho, defrontados com a concorrência de produtores do novo mundo (Estados Unidos, Chile, Argentina etc.) e a globalização do consumo (Garcia-Parpet, 2009).
Referências
- 1BARBOSA, Lívia; GOMES, Laura G. Mercados contestados. Revista Antropolítica, n. 41, p. 10-24, 2016.
- 2 BALSIGER, Philip. Marché et mouvements sociaux. In: FILLIEULE, O. et al (org.). Dictionnaire des mouvements sociaux 2. ed. Paris: Presses de SciencesPo, 2020.
- 3 BARRIENTOS, Stephanie et al Economic and social upgrading in Global Production Networks. A new paradigm for a changing World. In: GEREFFI, G. Global value chains and development: redefining the contours of 21st Century Capitalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.
- 4 BERENI, Laure; DUBUISSON-QUELLIER, Sophie. Au-delà de la confrontation : saisir la diversité des interactions entre mondes militants et mondes économiques. Revue Française de Sociologie, v. 61, n. 4, p. 505-529, 2020.
- 5 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Éve. Le nouvel esprit du capitalisme Paris: Gallimard, 1999.
- 6 BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. A justificação: sobre as economias da grandeza. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2020.
- 7 BOURDIEU, Pierre. Les structures sociales de l’économie Paris: Ed. du Seuil, 2000.
- 8 BOYER, Robert. Teoria da Regulação Os fundamentos. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.
- 9 CARNEIRO, Marcelo S. O debate sobre “O novo espírito do capitalismo” e os desafios para a análise da contestação social na etapa conexionista do capitalismo. In: VÉRAS DE OLIVEIRA, Roberto et al (org.). Diálogos críticos: o pensamento estrangeiro e a sociologia do trabalho no Brasil. Annablume, 2023. p.791-814.
- 10 DUBUISSON-QUELLIER, Sophie. La consommation engagée Paris : Presses de SciencesPo, 2009.
- 11 FLIGSTEIN, Neil. Mercado como política: uma abordagem político-cultural das instituições de mercado. Contemporaneidade e Educação, n. 9, p. 26-55, 2001.
- 12 FLIGSTEIN, Neil.; McADAM, Doug. A theory of fields New York/Oxford: Oxford University Press, 2012.
- 13 FLIGSTEIN, Neil; McADAM, Doug. States, social movements and markets. Socio-Economic Review, v.17, n.1, p.1-6, 2019.
- 14 GARCIA-PARPET, Marie-France. Le marché de l’excellence: les grands crus à l’épreuve de la mondialisation. Paris: Editions du Seuil, 2009.
- 15 HIRSCHMAN, Albert. Saída, voz e lealdade: reação ao declínio de firmas, organizações e estado. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1973.
- 16 KING, Brayden G.; PEARCE, Nicholas A. The contentiousness of markets: Politics, social movements and institutional changes in markets. Annual Review of Sociology, v. 36, p. 249-267, 2010.
- 17 NAHOUM, André V. A sociologia econômica no Brasil: balanço de um campo jovem. In: MICELI; S.; MARTINS, C. B. (org.). Sociologia brasileira hoje. Cotia: Ateliê Editorial, 2017. p. 15-86
- 18 POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. São Paulo: Campus, 2000.
- 19 STEINER, Philippe; TRESPEUCH, Marie (org.). Marchés contestés Quand le marché rencontre la morale. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 2014.
- 20 SWEDBERG, Richard. Une histoire de la sociologie économique Paris: Desclée de Brouwer, 1994.
- 21 TARROW, Sidney. O poder em movimento: movimentos sociais e confronto político. Petrópolis: Vozes, 2009.
- 22 THOMPSON, Edward P. Costumes em comum São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
- 23 TILLY, Charles; TARROW, Sidney. Politiques du conflit Paris: Presses de Sciences Po, 2008.
- 24 WILKINSON, John. O mundo dos alimentos em transformação. Mesmos pratos. Novos ingredientes, processos e atores Curitiba: Appris, 2023.
- 25 WILKINSON, John. Os mercados não vêm mais do “mercado”? In: MARQUES, F. C. et al (org.) Construção de mercados e agricultura familiar Porto Alegre: EDUFRGS, 2016. p. 53-73.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
14 Ago 2023 -
Aceito
19 Set 2023