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A política de um cenário de dados transformado: estatísticas etnorraciais no Brasil em uma perspectiva comparativa regional

Resumo

As primeiras décadas do século XXI presenciaram uma dramática transformação do cenário de dados para a produção de estatísticas etnorraciais na América Latina. Essa transformação é mais evidente nos censos nacionais da região. Há algumas décadas, quase nenhum país latino-americano incluía questões sobre raça ou etnia em seu censo nacional. Já no censo de 2010, quase todos os países da região coletaram informações sobre identificação étnica ou racial. Este artigo argumenta que a produção de dados populacionais etnorraciais na América Latina é tanto um produto da política quanto produz a política. Tais dados contribuem para moldar o terreno que parecem meramente descrever, mas nem sempre da maneira prevista ou pretendida. Colocar a experiência brasileira em uma perspectiva comparativa regional revela como essas estatísticas oficiais podem produzir resultados que são simultaneamente producentes e contraproducentes para os objetivos daqueles que lutam, primeiramente, por sua produção. Traduzido para o português por Carolina Fernandes.

Palavras-chave
dados demográficos; dados populacionais etnorraciais; afrodescendentes; populações indígenas; América Latina

Abstract

The first decades of the 21st century witnessed a dramatic transformation of the datascape for the production of ethnoracial statistics in Latin America. This transformation is most strikingly evident in national censuses in the region. A few decades ago almost no Latin American countries included questions about race or ethnicity in their national census. By the 2010 census round, almost every country in the region collected information about ethnic or racial identification. This article argues that the production of ethnoracial population data in Latin America is both product of politics and productive of politics. Ethnoracial statistics contribute to shaping the terrain they seem to merely describe, but not always in ways that are predicted or intended. Placing the Brazilian experience in regional comparative perspective illuminates how official ethnoracial statistics can produce outcomes that are simultaneously productive and counterproductive to the aims of those who struggle for their production in the first place.

Keywords
demographic data; ethnoracial population data; Afrodescendents; indigenous populations; Latin America

Introdução: uma avalanche de dados populacionais etnorraciais

As primeiras décadas do século XXI presenciaram uma explosão sem precedentes de dados demográficos étnicos e raciais produzidos oficialmente na América Latina. Esta avalanche de estatísticas desagregadas por raça e etnia decorre, em grande parte, da drástica mudança na forma como os estados latino-americanos classificam e contabilizam suas populações nos censos nacionais.1 1 O uso do termo “avalanche” neste contexto refere-se ao ensaio de Ian Hacking (1982), “Biopower and the avalanche of printed numbers”. Embora Hacking analise um contexto e um momento muito diferentes na história das estatísticas demográficas, os ecos dessa prévia avalanche ainda hoje reverberam. Desde os anos 2000, quase todos os países da região modificaram seu censo nacional para coletar novos tipos de dados sobre a identificação etnorracial ou a cor dos indivíduos. Em toda a América Latina, os Estados que há muito se abstinham de coletar essas estatísticas em seus censos nacionais mudaram de rumo, adotando novas questões que reconhecem diferenças étnicas ou raciais dentro de suas populações.

Tabela 1
Visibilidade dos afrodescendentes e povos indígenas nos Censos da América Latina, 1980-2020

A acolhida regional bastante repentina da coleta desse tipo de dados nos censos, nas primeiras décadas do século 21, está resumida na Tabela 1. As células sombreadas na tabela indicam que um país realizou um censo nacional naquela década. Um círculo branco indica que o censo incluiu uma questão que tornou as populações indígenas estatisticamente visíveis. Um círculo preto indica que o censo incluiu uma questão que tornou as populações negras ou afrodescendentes estatisticamente visíveis.

Nas primeiras décadas do século XXI, os censos nacionais da América Latina tornaram cada vez mais visíveis os indivíduos que se identificam como indígenas ou afrodescendentes. Nos anos 1980, aproximadamente metade dos países latino-americanos já havia identificado populações indígenas no contexto dos recenseamentos nacionais. Em 2010, quase todos o haviam feito ou planejavam fazê-lo na próxima rodada do censo. Com relação às populações afrodescendentes, nos anos 1980, apenas dois países – Brasil e Cuba – incluíram perguntas no censo que as diferenciavam das demais na população. Até 2010, quase todos os países da América Latina ou já incluíam uma pergunta do censo para a contabilização de indivíduos que se identificavam como negros ou afrodescendentes, ou planejavam incluir tal pergunta em seu próximo censo.2 2 A Tabela 1 fornece uma visão geral resumida da mudança na visibilidade estatística das populações indígenas e afrodescendentes, mas também obscurece a variação considerável nas particularidades dos formatos das perguntas do censo e opções de resposta entre os países, que fazem distinções visíveis dentro dessas categorias. A Tabela 1 também omite a consideração de outras linhas de distinção etnorracial contabilizadas em alguns censos nacionais na região (por exemplo, alguns censos permitem respostas para “brancos” ou “asiáticos”, enquanto alguns omitem deliberadamente essas opções de resposta). Para mais informações sobre essas variações e suas justificativas e consequências, consulte Loveman (2014, cap. 7) e Del Popolo (2008). Em conjunto, as mudanças nos censos latino-americanos neste período marcaram uma dramática transformação do cenário de dados para a coleta e produção de estatísticas demográficas etnorraciais.

Este artigo argumenta que a transformação do cenário de dados para a produção e uso de dados populacionais etnorraciais na América Latina é tanto produto da política quanto produtor da política. A transformação rompe com várias décadas de cegueira oficial para a cor no levantamento censitário em grande parte da região, uma ruptura atribuída, antes de tudo, à luta política. Enquanto isso, uma vez em vigor, o cenário de dados transformado contribui para moldar as realidades etnorraciais que pretende meramente descrever, afetando os contornos do terreno político no qual as estatísticas etnorraciais oficiais são produzidas e implementadas. Colocar a experiência brasileira em perspectiva comparativa regional revela como as estatísticas etnorraciais oficiais podem produzir resultados que são simultaneamente producentes e contraproducentes para os objetivos daqueles que lutam primeiramente por sua produção.

Contexto histórico: censos nacionais e a ideia de progresso como branqueamento demográfico

Para apreciar o quão importante politicamente é a transformação do final do século XX e início do século XXI na produção de dados etnodemográficos nos censos nacionais para a América Latina, é útil recordar a história mais extensa da produção estatística etnodemográfica na região. A recente mudança nos censos nacionais da América Latina para incluir questões sobre raça e etnia marca um afastamento radical da prática dominante na maior parte da região desde meados do século. Entretanto, antes do censo de 1960, a coleta de estatísticas étnicas e raciais nos censos nacionais latino-americanos tem um importante precedente histórico.

Ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, a maioria dos países da América Latina coletou estatísticas etnorraciais em pelo menos um censo nacional, se não mais.3 3 Para uma visão geral da classificação etnorracial nos censos na América Latina nesse período, ver tabelas em Loveman (2014, p. 233 e p. 241). Tais estatísticas produzidas nessas décadas foram geradas e aplicadas de forma heterogênea. Contudo, alguns temas comuns são evidentes nos relatórios oficiais de censos de toda a região.

Entre esses temas comuns, destacam-se vários relatórios oficiais do censo do século XIX e início do século XX que utilizavam dados demográficos para fundamentar argumentos de que as populações nacionais estavam se tornando gradualmente mais homogêneas e mais brancas. Muitos autores de relatórios do censo observavam declínio nas populações negras e indígenas, seja por mortalidade e fertilidade diferenciais, seja por miscigenação. Eles apontavam essas tendências demográficas, supostamente objetivas, como sinais positivos de progresso nacional.4 4 Essas generalizações são desenvolvidas mais extensamente e com muitos exemplos em Loveman (2014, cap. 4-6). Existem também muitos estudos excelentes dessas práticas para países e anos censitários específicos – são muitos para citá-los todos aqui, mas ver, por exemplo, Otero (2006) e Camargo (2010). No contexto da publicação dos relatórios do censo nacional, as estatísticas eram utilizadas para apoiar o nacionalismo – nacionalizando narrativas que enfatizavam a gradual dissolução ou desaparecimento de grupos indígenas ou afrodescendentes racialmente distintos dentro da população. Com variações no tema em contextos distintos, as elites políticas e cientistas latino-americanos apontavam as estatísticas publicadas nos resultados oficiais do censo para elaborar e apoiar histórias de progresso nacional concebidas como progresso demográfico etnorracial.

Estatísticas oficiais eram organizadas em tabelas comparativas capciosas, e apresentadas como evidência irrefutável da tendência “natural” das populações ao branqueamento. Na maioria das vezes, tais tabelas estatísticas eram apresentadas de forma direta e sem muita análise, sugerindo que os números pudessem falar por si mesmos. Em alguns contextos, no entanto, a narrativa associada foi decididamente triunfante. Um exemplo notório de tal triunfalismo racista está na longa introdução ao relatório do censo nacional brasileiro de 1920, escrita por Oliveira Vianna. Discutindo mudanças na composição etnorracial do Brasil de 1872 a 1890, e ignorando a miríade de problemas conhecidos relativos aos dados do censo que ele apontava como evidência, Vianna escreveu: “o delicado e complexo mecanismo de seleção étnica foi explicado nos parágrafos anteriores; entretanto, a demonstração da excelência de seus efeitos é esta tabela estatística”.

Figura 1
Composição estatística etnorracial brasileira no Censo Nacional de 1920s

Vianna celebrou (sua leitura de) tendências estatísticas, que apresentou aos leitores como clara evidência do progresso racial da nação. A certa altura, ele se entusiasma: “veja como é rápida a destruição da população negra no extremo sul... Em contraste com a evolução descendente dos dois tipos inferiores, [podemos ver] o magnífico movimento ascendente do tipo ariano”.5 5 Brasil. Directoria Geral de Estatística, Recenseamento do Brasil, p. 344.

A introdução ao censo brasileiro de 1920 se destaca de outros censos nacionais na região neste período pelo tom celebrativo da leitura de estatísticas que pretendiam mostrar o desaparecimento de distintos grupos negros e indígenas. O texto destaca-se também por seu excêntrico e problemático recurso a vertentes, já na época anacrônicas, da “ciência racial”. Mas o argumento principal, no ensaio de Vianna, é aquele que ecoa, em linguagem um tanto mais neutra e com variações específicas do contexto, em muitos censos nacionais desse período. Um tema comum aos relatórios do censo nacional foi a ênfase na mistura gradual e no desaparecimento demográfico de grupos étnicos e raciais específicos, à medida que a população nacional se tornasse “mista” e, idealmente, “mais branca”.

Notavelmente, até os anos 1960, esse tipo de narrativa era apresentado em resultados oficiais de censos quando dados sobre populações indígenas e afrodescendentes eram coletados e, também, muitas vezes, quando não o eram. Assim, a presença ou ausência de questões sobre raça ou etnia, aproximadamente no primeiro século de recenseamento nacional na América Latina não é, em si, um sinal direto ou claro de quando, se, ou quanto os produtores de estatísticas demográficas oficiais estavam focados nas trajetórias demográficas raciais de suas populações. O Brasil é novamente modelo. Após incluir uma questão de raça/cor no censo nacional de 1872 e 1890, a questão foi omitida em 1900 e 1920. No entanto, o relatório oficial do censo de 1920 concentrou-se muito mais atentamente nas tendências demográficas de composição racial da população do que em qualquer uma das décadas anteriores (Loveman, 200942 LOVEMAN, Mara. The race to progress: census-taking and nation-making in Brazil, 1870-1920. Hispanic American Historical Review, v. 89, n. 3, p. 435-470, 2009.; Camargo, 20108 CAMARGO, Alexandre de P. R. Classificações raciais e formação do campo estatístico no Brasil (1872-1940). In: SENRA, Nelson de C.; CAMARGO, Alexandre de P. R. (orgs). Estatísticas nas Américas: por uma agenda de estudos históricos comparados. (Estudos & Análises). Rio de Janeiro: IBGE, 2010. p. 229-264.; Piza; Rosemberg, 199957 PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fulvia. Color in the Brazilian census. In: REICHMANN, Rebecca (ed.). Race in contemporary Brazil: from indifference to inequality. University Park: Pennsylvania State University Press, 1999. p. 37-52.; Nobles, 200050 NOBLES, Melissa. Shades of citizenship: race and the census in modern politics. Stanford: Stanford University Press, 2000.).

No Brasil, assim como no resto da região, os censos nacionais foram um ponto estratégico, e as estatísticas demográficas oficiais constituíram uma linguagem científica legítima para construir e disseminar narrativas de progresso nacional através do “progresso racial”. Estas narrativas estavam baseadas na suposta objetividade e autoridade da ciência demográfica e eram sancionadas com a chancela do Estado (Loveman, 201441 LOVEMAN, Mara. National colors: racial classification and the state in Latin America. Oxford: Oxford University Press, 2014.; Desrosières, 199817 DESROSIÈRES, Alain. The politics of large numbers: a history of statistical reasoning. Cambridge: Harvard University Press, 1998.). As ficções científico-demográficas nacionais-raciais complementavam histórias de progresso nacional através do branqueamento sendo contadas através de outros meios. Para além do mundo da produção oficial de dados demográficos, na literatura e na arte, por exemplo, a ideia do progresso nacional como, e através do, progresso racial tornou-se tema dominante. Mais uma vez, essa ampla generalização se sobrepõe a enormes variações nas especificidades dessas narrativas através dos e nos países ao longo do tempo. Ainda assim, como sabemos pela ampla e rica historiografia, narrativas e construções artísticas de mitologias nacionais que celebravam a dissolução ou desaparecimento da diferença etnorracial ou etnocultural tornaram-se um gênero comum em toda a região, tendo início sobretudo nas últimas décadas do século XIX e no século XX.6 6 A historiografia sobre esse tema é demasiadamente longa para ser citada de forma abrangente aqui. Uma importante contribuição recente para este grande conjunto de trabalhos é encontrada em Vejo e Yankelevich (2017); também, Sommer (1991) e Martinez-Echazábel (1998; 1996).

A mais conhecida versão brasileira desse gênero cristalizou-se como uma narrativa de branqueamento através da mistura racial, concebida como um processo pacífico através do qual a nação acabaria se tornando um tipo nacional mais homogêneo e mais branco. A noção demográfica central do branqueamento através da mistura é capturada na famosa e frequentemente citada pintura (Figura 2) A Redenção de Cam, de Modesto Brocos (1895), que retrata a mistura racial como um processo intergeracional pelo qual a nação brasileira se formou, e também como um processo através do qual a população foi e seria, contínua e milagrosamente, branqueada. É claro que houve vozes dissidentes, tanto científicas quanto artísticas.7 7 Sobre as vozes dissidentes, veja por exemplo a opinião de um médico militar que usou dados coletados de soldados para argumentar contra a tese de evolução de Vianna direcionada a um “tipo” brasileiro singular, branqueado e nacional (Loveman, 2009). Ver também Skidmore (1993), Schwarcz (1993) e Borges (1993). Mas a narrativa nacional do Brasil como uma nação racialmente mista e gradualmente branqueada, selecionada a partir de meados do século XIX, tornou-se uma âncora para variações posteriores sobre o tema. No período que antecedeu o censo de 1920, por exemplo, uma caricatura política que divulgava o evento retratava o Brasil com um tipo nacional (masculino) único e branco – como se fosse o bebê da pintura de Modesto Brocos, já crescido (Figura 3).

Figura 2
A Redenção de Cam, de Modesto Brocos, 1895
Figura 3
Ilustração de 1920 na revista brasileira A Careta

No século XX, as elites políticas, científicas e artísticas no Brasil, e em grande parte da América Latina, desenvolveram versões de narrativas nacionais que explícita ou implicitamente equiparavam o progresso nacional ao desaparecimento de populações indígenas ou afrodescendentes específicas dentro da nação. Ideologias nacionais que defendiam a mistura racial como ingrediente alquímico da “democracia racial” (Freyre) ou “uma nação para todos” (Martí) ou uma raza cosmica (Vasconcelos) reconheciam e até valorizavam alguns aspectos da diferença racial, mas apenas no contexto de assumir seu eventual desaparecimento demográfico e diluição cultural – processos concebidos quase sempre em direção à brancura.

A partir da década de 1930, e especialmente após a Segunda Guerra Mundial, a legitimidade política, científica e moral do conceito de raça tornou-se internacionalmente suspeita. Essa mudança no contexto normativo e científico internacional perturbou e minou a equação explícita de progresso nacional com progresso racial – e a definição de progresso racial como movimento demográfico em direção à brancura. Nesse contexto alterado, os funcionários do censo latino-americano buscaram formas de conciliar seus compromissos com a busca contínua pelo progresso nacional com a deslegitimação global da “raça” como conceito científico e do “aperfeiçoamento racial” como projeto político (Loveman, 201441 LOVEMAN, Mara. National colors: racial classification and the state in Latin America. Oxford: Oxford University Press, 2014., cap. 6). Em muitos países, esta conciliação envolveu a omissão de questões raciais nos censos nacionais. Os países que continuaram a enumerar a “diferença” étnica no contexto do censo nacional voltaram-se cada vez mais para questões sobre traços e comportamentos culturais; questões que permitem a contínua visibilidade estatística das populações indígenas em vários países, enquanto contribuem para a invisibilização estatística dos afrodescendentes em grande parte da região. Brasil e Cuba tornaram-se casos atípicos na região pela continuidade das questões sobre “raça” ou “cor” em seus censos nacionais – com exceção do Brasil na década de 1970, discutido abaixo. Por quase toda a América Latina, a segunda metade do século XX tornou-se uma era de cegueira estatística oficial para a cor.

Em 2000, Brasil e Cuba já não eram mais casos atípicos. Quase todos os países latino-americanos haviam introduzido, ou reintroduzido, uma pergunta no censo para tornar as populações afrodescendentes estatisticamente visíveis. O mesmo valia para a visibilidade estatística das populações indígenas em toda a região. Comparada à longa história da América Latina de utilização de dados demográficos oficiais para registrar o apagamento das distinções etnorraciais e para marcar, e até mesmo celebrar, o desaparecimento de diferentes populações afrodescendentes ou indígenas dentro da nação, a recente adoção regional da coleta de dados etnorraciais nos censos nacionais surge como uma mudança cultural e política extraordinária. Em vez de insistir na mistura e no desaparecimento de distinções etnorraciais em suas populações, os atores estatais latino-americanos agora reconhecem oficialmente diferenças etnorraciais perenes em suas populações e, cada vez mais, proclamam a composição pluriétnica de suas nações.8 8 Uma análise ampliada da recente mudança nas práticas estatais de classificação étnica e racial na América Latina pode ser encontrada em Loveman (2014).

Essa mudança regional nos censos da América Latina é o produto de uma luta política. Ao mesmo tempo, o cenário de dados transformado é, por si só, politicamente produtivo: produz novas subjetividades, novas configurações organizacionais e novos desafios políticos. Nas duas seções seguintes, desenvolvo este argumento. Primeiro, descrevo brevemente como a transformação do cenário de dados estatísticos etnorraciais da América Latina foi resultado da luta política, concentrando-me na articulação entre os atores inseridos no movimento social, nas ciências sociais e nas agências governamentais em nível local, nacional, regional e internacional. Em seguida, volto-me para uma análise de algumas dos efeitos que a geração de estatísticas etnorraciais passou a produzir, enfatizando as formas como os novos dados estão transformando o terreno político que levou à sua produção, e nem sempre da maneira almejada por aqueles que lutaram por sua produção.

Como a política transformou o cenário de dados

Os relatos existentes sobre as lutas políticas que levaram à mudança regional nas práticas de recenseamento na América Latina apontam para o papel crítico da mobilização de ativistas afrodescendentes e indígenas, da colaboração estratégica com aliados acadêmicos e do apoio e pressão de organizações internacionais interessadas.9 9 Ver Nobles (2000), Htun (2004), Hooker (2005; 2009), Paschel (2010; 2016), Del Popolo (2008) e Loveman (2014). No Brasil, onde a continuidade da classificação racial nos censos nacionais foi interrompida pela remoção da questão pelo governo militar em 1970, a ação política direcionada por um pequeno número de ativistas do movimento negro, cientistas sociais e tecnocratas conseguiu fazer com que a questão fosse reintroduzida no censo de 1980.10 10 Cf. Nobles (2000, p. 98-110; 116-119). O censo brasileiro quase omitiu a questão racial em 1940, mas esta acabou sendo mantida com a justificativa e a expectativa de que permitiria ao Brasil mostrar ao mundo seu progresso contínuo em direção ao branqueamento (Camargo, 2010, p. 255-266). Fora do Brasil, os defensores da reforma do censo tiveram que persuadir as agências de estatística nacionais a introduzir questões de raça ou etnia pela primeira vez em décadas ou, em alguns países, pela primeira vez em sua história. Com a experiência brasileira como exemplo crucial, a inclusão de perguntas nos censos nacionais consolidou-se como um objetivo concreto dos ativistas, que se mobilizaram pelo reconhecimento etnorracial, por direitos e reparação dentro das lutas políticas mais amplas por democratização e direitos humanos na América Latina, a partir dos anos 1980 e até o início dos anos 2000.

Do ponto de vista dos ativistas que trabalham para mobilizar apoiadores para os movimentos de massa no país e para aumentar a visibilidade internacional de suas lutas, fazia sentido o foco no censo nacional como alvo político estratégico. Os ativistas identificaram corretamente o censo nacional como uma aposta política prioritária para promover objetivos tanto simbólicos como concretos. Novas questões nos censos nacionais, por si sós, repudiam as narrativas nacionais que negavam continuamente diferenças etnorraciais ou discriminação – narrativas que as próprias práticas históricas de recenseamento tinham ajudado a naturalizar. Ser nomeado e contabilizado no censo nacional era ganhar o reconhecimento oficial da existência social de uma identidade coletiva ou comunidade. O reconhecimento oficial, por sua vez, fortaleceu a realidade social dos grupos identificados. O censo tornou-se um alvo fundamental dos ativistas, uma vez que a classificação oficial foi corretamente considerada como a chave para enfraquecer a violência simbólica do passado e abrir novos caminhos para a efetivação de reivindicações no futuro.

Os ativistas também visaram o censo nacional por causa do valor prático e político dos dados, os quais poderiam demonstrar as condições materiais das populações minoritárias. Os dados do censo não são quaisquer dados; são dados politicamente confiáveis, precisamente porque sua produção, supostamente, está acima e fora da política. Sua objetividade é legitimada através de sua produção pela expertise institucionalizada que combina a autoridade (supostamente neutra) da ciência e do Estado. Investidos dessa dupla legitimidade, os ativistas acertadamente reconheceram que as estatísticas etnodemográficas poderiam ser utilizadas como perfeitas “ferramentas dos fracos” (Porter, 198658 PORTER, Theodore M. The rise of statistical thinking, 1820-1900. Princeton: Princeton University Press, 1986.); a mesma ferramenta utilizada na construção e naturalização da injusta ordem social poderia ser usada para expor a existência de injustiças e para “fornecer argumentos” para contestá-las (Desrosières, 201416 DESROSIÈRES, Alain. Statistics and social critique. Partecipazione e conflitto, v. 7, n. 2, p. 348-359, 2014., p. 351). Na maioria dos países da América Latina, os censos nacionais continuam sendo a principal fonte de informações estatísticas sobre a população. Mesmo em países que realizam pesquisas domiciliares regulares, o censo nacional fornece dados populacionais confiáveis que servem como uma base de comparação para outras pesquisas. Os ativistas reconheceram que a inclusão de novas questões sobre identidade racial ou étnica ou filiação a grupos geraria dados oficiais e cientificamente confiáveis para documentar a existência das desigualdades entre grupos étnicos distintos dentro da nação.

O Brasil forneceu um modelo que ativistas em outros lugares da região procuraram repetir e adaptar aos seus próprios contextos nacionais. A experiência brasileira sugeriu uma trajetória política mais ou menos linear: da inclusão de uma questão no censo, à produção de estudos estatísticos documentando as desigualdades entre os grupos, ao desenvolvimento e implementação de políticas para combater essas desigualdades.11 11 Para ilustrar, a agência de estatísticas da Argentina explicou em seu site que a pergunta sobre afrodescendentes no censo de 2010 ajudaria na “...elaboração de futuros estudos e investigações... com vistas à realização de políticas públicas específicas”. Na realidade, é claro, a história brasileira foi muito mais complicada e conjuntural, e repleta de particularidades e tensões que a deixam longe de ser um simples modelo a ser seguido pelos ativistas de outros lugares.

O ponto de partida dos ativistas brasileiros para essa trajetória política foi bastante distinto da posição de ativistas em outros lugares da região. Como observado acima, os censos nacionais brasileiros há muito tempo incluíam uma questão racial. Sua remoção em 1970 foi um desvio; portanto, os ativistas defendiam um retorno ao status quo ante e não uma inovação radical, como era o caso de vários outros países. Também, ao contrário da situação em muitos outros países, no Brasil, os ativistas desenvolveram suas ações apoiando-se em uma longa história de ativismo negro (Mitchell, 199247 MITCHELL, Michael. Racial identity and political vision in the black press of São Paulo, Brazil, 1930-1947. Contributions in Black Studies, v. 9, art. 3, 1992.; Andrews, 19911 ANDREWS, George. Blacks and whites in São Paulo, Brazil, 1888-1988. Madison: University of Wisconsin Press, 1991.; Hanchard, 199431 HANCHARD, Michael. Orpheus and power: the Movimento Negro of Rio de Janeiro and São Paulo, Brazil, 1945-1988. Princeton: Princeton University Press, 1994.). Embora o movimento negro, nos anos 1970, fosse relativamente pequeno e geograficamente concentrado, e embora um de seus principais desafios fosse “elevar a consciência” da negritude entre setores mais amplos da população brasileira afrodescendente, o fato social da negritude no Brasil era amplamente reconhecido (ninguém questionaria que alguém que se identifica como brasileiro também pudesse se identificar como, ou ser, negro). Este estado de coisas contrastava com a situação enfrentada por ativistas negros em países como Argentina, Chile, México, ou Peru, por exemplo. Consequentemente, nos anos 1970, já havia um interesse científico social e estatal estabelecido em investigar questões de desigualdade racial no Brasil – um ambiente intelectual e político muito distinto da maior parte do resto da região nessa década.

A existência de cientistas sociais proeminentes, engajados na reintrodução de uma questão racial no censo de 1980 possibilitou uma articulação de interesses que se mostrou politicamente eficaz.12 12 Nobles (2000, p. 98-110; 116-119) argumenta que, sem a pressão organizada de acadêmicos e ativistas, o censo brasileiro de 1980 teria sido realizado sem uma questão de cor. Nos anos 1970, os sociólogos Carlos Hasenbalg (1979)32 HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Graal, 1979. e Nelson do Valle Silva (1978)62 SILVA, Nelson do V. Black-white income differentials in Brazil. Tese de Doutorado em Sociologia. Universidade de Michigan, Michigan, 1978. publicaram estudos de referência que mostravam a desigualdade racial na mobilidade social no Brasil. Suas análises foram baseadas em estatísticas nacionais representativas coletadas na PNAD de 1976 e usaram métodos estatísticos avançados para documentar que os brasileiros que se autoidentificavam como “brancos” experimentavam mais mobilidade social intergeracional do que os brasileiros “não brancos”. A descoberta de uma desigualdade racial “estatisticamente significante” no Brasil não era novidade. Nas décadas de 1940 e 1950, pesquisadores patrocinados pela UNESCO analisaram as dinâmicas raciais brasileiras como parte da malfadada busca da organização no Pós II Guerra Mundial por exemplos de “relações raciais harmoniosas” que servissem de modelo para o mundo (Maio, 199944 MAIO, Marcos C. O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41, p. 141-158, 1999.; Azevedo, 1955; Fernandes, 197224 FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1972.; Ianni, 198739 IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987.). Esses estudos documentaram grave desigualdade racial, interpretada, porém, como um legado da escravidão que seria resolvido com (e pela) modernização do Brasil. Os modelos de estratificação utilizados por Hasenbalg e Silva (1988)33 HASENBALG, Carlos; SILVA, Nelson do V. Notes on racial and political inequality in Brazil. In: HANCHARD, Michael (ed.). Racial politics in contemporary Brazil. Durham: Duke University Press, 1999. p. 154-178. refutaram esta interpretação, ao “controlar” as origens sociais para isolar as dinâmicas sociais contemporâneas e “revelar” a existência generalizada e atual da discriminação racial.

As principais conclusões desses estudos estão alinhadas com o diagnóstico e a visão política dos líderes do movimento negro (Campos, 201309 CAMPOS, Luiz A. O pardo como dilema político. Insight Inteligência, n. 63 [online], 2013.). Além de fornecer provas científicas do preconceito racial contemporâneo no Brasil, eles utilizaram uma comparação categórica dicotômica para realizar e interpretar as descobertas. Hasenbalg e Silva (1988)34 HASENBALG, Carlos; SILVA, Nelson do V. Estrutura social, mobilidade e raça. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988. optaram por “agrupar” pardos e pretos em uma categoria não branca para fins de sua análise. Eles o fizeram, em parte, porque o número de pretos era pequeno para que seus métodos estatísticos os analisassem produtivamente como um grupo separado e, em parte, porque seus modelos funcionavam melhor com dados dicotômicos.13 13 Mais tarde, eles também argumentaram que o agrupamento de pardos e pretos fazia muito sentido, dada sua proximidade em status social em comparação com os “brancos”. Até hoje, os acadêmicos debatem sobre a conveniência de usar uma dicotomia, uma tricotomia, uma combinação analítica de ambas, ou nenhuma dessas para analisar as desigualdades raciais no Brasil. A visão de uma população brasileira dividida em brancos e não-brancos correspondeu aos argumentos do movimento negro da época de que todos os brasileiros de qualquer afrodescendência deveriam se reconhecer como negros. Embora o rótulo preferido para a categoria variasse, a demarcação da fronteira racial estava perfeitamente alinhada. Como Campos (2013)09 CAMPOS, Luiz A. O pardo como dilema político. Insight Inteligência, n. 63 [online], 2013. argumenta, esse alinhamento epistemológico fundamental pavimentou o caminho para o alinhamento político. Este último garantiu a reintrodução de uma questão racial no censo e seguiu sendo importante quando chegou o momento de colocar as estatísticas raciais em uso no domínio das políticas públicas. É desnecessário dizer que este alinhamento epistemológico e político central (e temporalmente circunscrito) entre ativistas e cientistas sociais não foi facilmente replicado em outros países da região (nem, como veremos mais adiante, permaneceu estável ao longo do tempo no Brasil).

Apesar de suas situações muito distintas, ativistas de outros países usaram o exemplo da experiência brasileira para formular projetos políticos de combate à desigualdade racial nos anos 1990 e 2000. Inspirados, em parte, pelo sucesso dos ativistas afro-brasileiros, a partir do início dos anos 1990, organizações afro-colombianas e indígenas fizeram lobby junto à Agência Nacional de Estatísticas (DANE) para acrescentar novas perguntas ao censo nacional da Colômbia (Buvinic; Mazza, 20047 BUVINIC, Mayra; MAZZA, Jacqueline. Social inclusion and economic development in Latin America. Nova York: Inter American Development Bank, 2004.). Ativistas demandaram novas perguntas no censo por razões éticas, argumentando que a invisibilidade estatística das populações indígenas e afrodescendentes da Colômbia no censo nacional perpetuava a violência cultural contra esses segmentos da população colombiana. Como explicaram os ativistas, a inclusão de novas questões no censo foi necessária para garantir que as populações indígenas e afrodescendentes obtivessem reconhecimento oficial de sua existência, proteção de seus direitos e reparação por sua marginalização histórica (Paschel, 201055 PASCHEL, Tianna. The right to difference: explaining Colombia’s shift from color-blindness to the law of black communities. American Journal of Sociology, v. 116, n. 3, p. 729-769, 2010.).

As demandas dos ativistas pela reforma do censo foram apoiadas pela mudança de postura do Estado colombiano sobre o reconhecimento das populações minoritárias domésticas. A Colômbia tornou-se signatária da Convenção ILO 169, em 1991, e novos dados foram necessários para o seu cumprimento. Espera-se dos signatários da Convenção ILO 169 que rastreiem e informem muitos indicadores do bem-estar dos povos indígenas em comparação com a população em geral. Os Estados precisam fornecer dados sobre condições socioeconômicas, educação, saúde, terra, condições de trabalho e emprego, impactos de grandes projetos de desenvolvimento, infraestrutura e violações dos direitos humanos (Rodríguez-Piñero, 200559 RODRÍGUEZ-PIÑERO, Luis. Indigenous peoples, postcolonialism and international law. The ILO regime (1919-1989). Oxford: Oxford University Press, 2005.). O Estado colombiano também precisava de informações sobre o tamanho das reservas indígenas (resguardos) para realizar a descentralização planejada. As reformas constitucionais que concediam direitos especiais às comunidades afro-colombianas, por sua vez, tornaram conveniente a coleta de novas informações sobre o tamanho e a situação dessas comunidades. Assim, o impulso para a democratização, internamente, a crescente pressão para o reconhecimento oficial da diversidade, internacionalmente, e as demandas específicas das organizações indígenas e afrodescendentes convergiram para uma mudança histórica no censo nacional da Colômbia.

A partir de seu sucesso, ativistas afro-colombianos e seus aliados dentro da DANE se concentraram em capacitar seus homólogos em outros países latino-americanos para introduzir reformas análogas. O ativismo “a partir das bases” visando as agências nacionais de estatística, pioneiro no Brasil e depois na Colômbia, colocou a questão da visibilidade estatística das populações minoritárias nas agendas políticas de um número crescente de países latino-americanos. No início dos anos 2000, a pressão para adotar novas perguntas no censo havia se espalhado pela América Latina através dos esforços deliberados e coordenados de ativistas nacionais e seus aliados nas agências de estatística e organizações regionais e internacionais. Na maioria dos casos, os apelos dos ativistas domésticos não foram suficientes para convencer as agências de estatística a introduzirem novas questões nos censos nacionais. Além do Brasil e da Colômbia, foi a convergência de tais apelos com novas iniciativas e reivindicações de organizações regionais e internacionais que deu início às reformas censitárias em grande parte da região.14 14 Para mais informações sobre o papel das organizações internacionais, ver Loveman (2014, cap. 7).

Ativistas no Brasil e na Colômbia assumiram a liderança em fazer das perguntas e categorias censitárias um ponto crucial das lutas políticas por reconhecimento, direitos e reparação. Em países onde elites políticas nacionais resistiram aos apelos dos ativistas para introduzir a coleta de dados raciais ou étnicos, redes de ativistas internacionais e organizações internacionais desempenharam papéis decisivos pressionando as agências nacionais de estatística a introduzir reformas. A pressão sobre as agências nacionais de estatísticas para acrescentar novas questões étnicas ou raciais aos censos assumiu formas variadas. Em alguns países, a pressão assumiu a forma de incentivo indireto, mas apoiado institucionalmente, para adotar voluntariamente novas questões. Conferências e oficinas internacionais reuniram líderes de grupos comunitários, especialistas no desenvolvimento de indicadores econômicos e sociais comparativos de organizações regionais, como a CEPAL, e acadêmicos com expertise comparativa internacional para aconselhar as agências nacionais de estatística sobre como projetar e implementar as novas questões. Em outros contextos, a pressão foi mais direta e coercitiva, tais como as condicionantes ligadas aos empréstimos por parte de instituições de empréstimo multilaterais para financiar as operações de censo em andamento.15 15 Um exemplo do primeiro tipo é a conferência internacional em Lima, Peru 2016, que reuniu porta-vozes do movimento social, representantes da agência nacional de estatísticas, funcionários governamentais, cientistas sociais de institutos de pesquisa e universidades independentes, representantes da ONU e “especialistas acadêmicos internacionais” para discutir a adoção de novas questões no censo de 2017. Para um exemplo do último, veja o relato do censo de 2005 da Nicarágua em Loveman (2014, p. 290-293).

Em resumo: as agências nacionais de estatística tornaram-se cada vez mais engajadas na coleta de dados etnorraciais em resposta à pressão política das coalizões de ativistas de base, cientistas sociais e organizações internacionais de desenvolvimento, com o peso combinado desses atores e os meios e modos de suas alianças variando substancialmente nos diferentes contextos nacionais da região. As coalizões políticas específicas que conseguiram acrescentar novas questões de raça e etnia aos censos na América Latina são contrastantes entre diferentes países latino-americanos, refletindo histórias distintas de ativismo negro e indígena, relações dos ativistas com acadêmicos, tecnocratas e partidos políticos no poder em nível nacional e o status relativo dos governos nacionais no sistema regional e internacional de Estados.

Ainda assim, nos anos 2010, com poucas exceções, o resultado dessas lutas políticas em quase toda a região caminhou num mesmo sentido: negros e povos indígenas foram contabilizados como tais nos censos nacionais. Para a maioria dos países latino-americanos, a visibilidade estatística de raça, cor e identidade étnica no censo nacional destoa de décadas de insistência de facto e de jure na ausência ou irrelevância de distinções étnicas ou raciais em populações nacionais. Nas primeiras décadas do século XXI, as reivindicações políticas populares e sua bem-sucedida articulação com as agendas de pesquisa das ciências sociais e com os projetos políticos nacionais e internacionais puseram fim a uma longa era de cegueira de cor oficial na América Latina.

Como o cenário de dados transformou a política

O fato de que quase todos os países da América Latina agora produzem dados etnorraciais da população a partir do censo nacional representa um feito político importante. Em vários países, a inclusão de novas questões e categorias nos censos nacionais tornou indivíduos indígenas e afrodescendentes estatisticamente “visíveis” pela primeira vez em décadas ou, em alguns contextos, pela primeira vez na história. Essa visibilidade estatística, por si só, marca uma vitória para as comunidades que há muito lutam para obter o reconhecimento oficial. Ela também fornece as condições para reescrever as narrativas latino-americanas de nacionalidade, redefinindo parâmetros discursivos para lutas políticas subsequentes. Nesse terreno político alterado, os processos de produção e utilização de estatísticas etnorraciais oficiais criam novas frentes e facetas de contestação política, incorporadas aos contínuos esforços para combater desigualdades e injustiças contemporâneas. As estatísticas etnorraciais não são meras ferramentas para o engajamento político, elas contribuem para a constituição de novos espaços, sujeitos e demandas de luta política.

A produção de espaços políticos

Uma característica marcante do terreno político transformado para a produção de estatísticas etnorraciais oficiais em algumas partes da América Latina é que ele abriu novos espaços para participação política. Em uma ruptura com precedentes históricos, em alguns países da região, os grupos contabilizados conquistaram um lugar à mesa para discutir as questões e categorias que o censo utiliza para sua contabilização. Em alguns contextos, os contabilizados também foram convidados a adquirir a formação necessária para analisar os dados que são produzidos.

Por exemplo, como parte das oficinas regionais Todos Contamos, agências estatísticas do governo foram encorajadas a facilitar a participação de representantes de organizações indígenas e afrodescendentes no processo de produção de dados etnorraciais. A Organização das Nações Unidas (ONU), o Banco Mundial, o Centro Latinoamericano y Caribeño de Demografía (CELADE13 CELADE - Centro Latinoamericano y Caribeño de Demografía. Pueblos Indígenas y afrodescendientes de América Latina y el Caribe: relevancia y pertinencia de la información sociodemográfica para políticas y programas. CEPAL, 27 de abril al 29 de abril de 2005.) e outras agências apoiaram a criação de programas de treinamento para fornecer aos indivíduos indígenas e afrodescendentes acesso aos métodos e softwares usados por estatísticos, analistas de políticas e funcionários do governo para examinar os dados do censo. Como exemplo, um acordo de cooperação técnica entre o Ministério da Saúde do Chile (MINSAL) e o CELADE, para produzir um relatório sociodemográfico sobre a população indígena metropolitana utilizando dados do censo, incluiu “oficinas de treinamento para pessoal técnico indígena sobre o software REDATAM e o uso de censos” (ECLAC, 200918 ECLAC - Economic Commission for Latin America and the Caribbean. Progress report on the biennial programme of regional and international cooperation activities of the Statistical Conference of the Americas of the Economic Commission for Latin America and the Caribbean (ECLAC) 2007-2009. Santiago: ECLAC, 2009.). O apoio financeiro e logístico para tais oficinas demonstrou que os apelos das agências de desenvolvimento para processos de produção de dados mais inclusivos não eram meramente retóricos.

Algumas agências demandaram projetos que fossem além do treinamento técnico para análise de dados, e que incorporassem contribuições de grupos comunitários na criação de questionários. O Fórum Permanente sobre Questões Indígenas, da ONU, por exemplo, indicou a necessidade de mais informações sobre se as perguntas da pesquisa abordavam adequadamente as necessidades das comunidades indígenas: “[...] o entendimento dos povos indígenas sobre pobreza, ou direitos à terra, muitas vezes difere consideravelmente do entendimento das populações dominantes ou de massa. Isso raramente é levado em consideração na coleta de dados relevantes” (UN, 200466 UN - United Nations. Secretariat of the Permanent Forum on Indigenous Issues. Workshop on Data Collection and Disaggregation for Indigenous Peoples. (Relatório). Nova York, 19-21 de janeiro de 2004. http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/workshop_data_ilo.doc
http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/docu...
, p. 9). No período que antecedeu o censo de 2010, a ONU patrocinou conferências e seminários para garantir a participação de representantes de grupos indígenas e afrodescendentes. Este foi um dos principais objetivos da conferência CELADE/ECLAC 2008, realizada em Santiago do Chile, com financiamento da UNICEF, UNFPA, UNIFEM e OMS. A conferência reuniu “mais de cem especialistas de mais de vinte países, inclusive de organizações governamentais e não governamentais, representantes de organizações indígenas e afrodescendentes, acadêmicos e especialistas técnicos de agências internacionais”.

A reunião enfatizou, de maneira significativa, a importância de gerar estatísticas que seriam reconhecidas como válidas não apenas pelos governos e agências de desenvolvimento, mas também pelas comunidades indígenas e afrodescendentes. Para tanto, um relatório da conferência recomendou que “[...] devemos visar a obtenção dessas informações com a participação dos povos (pueblos) e comunidades, que é o que as tornará legítimas aos olhos de toda a população”. Os participantes da conferência ressaltaram que a participação deve ser interpretada nos termos mais amplos possíveis. A recomendação final do relatório da conferência foi que “a participação dos pueblos [indígenas e afrodescendentes] na criação das perguntas e na coleta e análise dos dados que se referem a eles deve ser institucionalizada”. O relatório da conferência CELADE denota uma mudança decisiva na forma como as organizações internacionais interpretam publicamente a relação entre os produtores de dados demográficos, os indivíduos dos quais os dados são coletados e os usos aplicados aos dados.

Na prática, os esforços para garantir que as vozes daqueles que serão contabilizados sejam realmente levadas em conta na elaboração de instrumentos de contabilização continuam sendo a exceção e não a regra. Com o tempo, é possível que a legitimidade do censo nacional aos olhos dos cidadãos venha a depender da existência de espaços formais para a contribuição do público nas operações do censo. Em teoria, tais fóruns poderiam se tornar arenas de substantiva democratização na prática – onde os objetos históricos de investigação estatística se tornam sujeitos capacitados, com autoridade, conhecimento e recursos para investigar a si mesmos. Um cenário muito mais provável, entretanto, é que os tecnocratas de agências estatísticas nacionais, em colaboração com especialistas que trabalham para agências internacionais de desenvolvimento, mantenham o controle de facto sobre a concepção e execução de pesquisas nacionais, enquanto encorajam a participação popular em questões cuidadosamente delimitadas, com uma gama de resultados aceitáveis mais ou menos predeterminada.

A inclusão dos contabilizados na criação de ferramentas de contabilização abriu novos espaços de luta política antes inteiramente internos às burocracias administrativo-tecnocráticas do censo. Essas são discussões em que as demandas por reconhecimento – quais linhas de distinção etnorracial terão sanção oficial e quais permanecerão estatisticamente invisíveis – estão ligadas a lutas por representação – quem pode falar em nome de quem? Embora essas facetas da produção estatística oficial sempre tenham sido políticas, esta realidade tem sido historicamente obscurecida através do controle dos meios de contabilização nas mãos de uma pequena elite. De fato, historicamente, a autoridade simbólica do censo como fonte de conhecimentos demográficos objetivos baseava-se na bem-sucedida ofuscação da política de produção desses conhecimentos. Desenvolvimentos recentes na região trouxeram políticas que informam cada etapa da produção de dados de forma aberta.

Na medida em que a natureza inerentemente política da produção de estatísticas etnorraciais oficiais se torne amplamente reconhecida, a autoridade do censo como fonte de informações objetivas corre o risco de ser minada. Esta erosão de legitimidade, por sua vez, pode enfraquecer o que resta da capacidade dos Estados de apresentar as categorias censitárias oficiais como mera descrição das realidades demográficas. A democratização do processo de produção de dados, por mais limitada e circunscrita que seja, provavelmente provocará críticas crescentes às próprias operações do censo nacional.

A produção de subjetividades políticas

A política que produziu a transformação do cenário de dados das populações etnorraciais também produziu mudanças nas subjetividades das pessoas. Não quero dizer com isso que as categorias do censo criam novas identidades a partir do zero ou de um vácuo. O poder constitutivo das categorias do censo sobre as identidades não é tão direto ou automático quanto seus críticos mais fervorosos acreditam. Ao contrário, as categorias censitárias derivam de e interagem com subjetividades e entendimentos pré-existentes de distinção etnorracial na sociedade (Emigh; Riley; Ahmed, 201619 EMIGH, Rebecca J.; RILEY, Dylan; AHMED, Patricia. Changes in censuses from imperialist to welfare states. How societies and states count. Nova York: Palgrave Macmillan, 2016.). Seus efeitos específicos sobre a autocompreensão dependem de suas interações com muitos outros fatores em jogo. Sua influência depende, especialmente, das formas específicas em que são usadas – na mídia, na pesquisa, na governança administrativa, nas políticas públicas etc. Assim, a influência das categorias oficiais do censo sobre a identidade dos indivíduos é, muitas vezes, indireta e difusa, ao invés de direta e instrumental. E seus efeitos produtivos sobre a autocompreensão coletiva nem sempre estão perfeitamente alinhados com o que seus produtores pretendem.

Uma maneira notável de produção de mudanças nas subjetividades etnorraciais com a introdução de novas questões raciais e étnicas nos censos latino-americanos foi através de campanhas organizadas na mídia, voltadas para este objetivo. Em vários países, ativistas colaboraram com equipes das agências de censo e agências internacionais para realizar campanhas que visavam persuadir pessoas possivelmente índias ou negras a se identificarem como tais nos censos nacionais. Dando testemunho dos sucessos anteriores dos projetos de assimilação ideológica e política dos Estados, muitos latino-americanos que, através dos diversos critérios utilizados pelos ativistas, cientistas sociais e outros, “se qualificam” como indígena ou afrodescendente optam, no entanto, por não se identificar como tal quando lhes é dada uma escolha. Por exemplo, enquanto muitos observadores sugerem que aproximadamente um quarto da população colombiana é afrodescendente, no censo de 2005, “apenas 11% da população se autoidentificou como afro-colombiana”. Assim, em preparação para a contabilização do censo, campanhas organizadas tentaram persuadir aqueles que seriam contabilizados a adotar novas classificações.

Ativistas em vários países trabalharam para fortalecer a demanda interna por ações governamentais em favor de populações etnorracialmente definidas, aumentando o número de seus concidadãos que se identificam como indígenas ou afrodescendentes. Em uma das primeiras ações desse tipo, no período que antecedeu o censo de 1990 no Brasil, ativistas do movimento negro lançaram uma campanha publicitária com o apoio da Fundação Ford para persuadir brasileiros de qualquer ascendência africana a marcar “preto” em vez de “pardo” ou “branco” no censo (Nobles, 200050 NOBLES, Melissa. Shades of citizenship: race and the census in modern politics. Stanford: Stanford University Press, 2000.). O slogan da campanha advertia: não deixe sua cor passar em branco. Antes do censo de 2005, na Colômbia, para dar outro exemplo, organizações afro-colombianas lançaram uma campanha para encorajar os colombianos a reconhecerem as “las caras lindas de mi gente negra” (Estupiñón, 200620 ESTUPIÑÓN, Juan P. Afrocolombianos y el Censo 2005. IB - Revista de la Información Básica, v. 1, n. 1, art. 7, 2006. http://www.dane.gov.co/revista_ib/html_r1/articulo7_r1.htm
http://www.dane.gov.co/revista_ib/html_r...
; Paschel, 201354 PASCHEL, Tianna. The beautiful faces of my place people: race, ethnicity and the politics of Colombia’s 2005 census. Ethnic and Racial Studies, n. 36, p. 1544-1563, 2013.). As organizações produziram um comercial de televisão com indivíduos que se identificavam como moreno, negro, mulato, zamba ou raizal, e concluindo com o slogan: “neste censo, faça-se contar. Orgulhosamente afrodescendente”. O anúncio foi veiculado por meio de um acordo com a agência nacional de estatísticas (DANE) e também divulgado através das mídias sociais. No Panamá, antes do censo de 2010, uma campanha com o mesmo slogan cumpriu dupla função ao comemorar as mulheres afrodescendentes no Dia Internacional da Mulher. O comercial de trinta segundos apresentou homens afrodescendentes desempenhando trabalhos tradicionalmente femininos (passar a ferro, cozinhar, pendurar roupa) e apelou aos telespectadores para comemorar o Dia Internacional da Mulher e mostrar gratidão às mulheres panamenhas afrodescendentes, particularmente relatando com orgulho sua afrodescendência no censo.

As campanhas para educar as populações latino-americanas sobre a importância de responder a perguntas sobre herança étnica ou racial e como respondê-las aumentaram significativamente durante a preparação para a rodada do censo de 2010. Ativistas nacionais, funcionários do censo, meios de comunicação nacionais e organizações regionais e internacionais trabalharam juntos para lançar grandes campanhas publicitárias que informassem os latino-americanos de origem africana sobre as novas questões do censo e para encorajá-los a reconhecer sua herança africana na seleção de uma resposta. Por exemplo, um grupo de trabalho regional do Censo 2010, composto por líderes afrodescendentes, em parceria com o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher e com uma empresa brasileira de comunicação, produziu uma série de televisão em quatro partes chamada “As Américas têm cor: afrodescendentes nos censos do século XXI”. Segundo um comunicado de imprensa, a série foi “criada para informar a população das Américas sobre o censo 2010-12” e cobria “as condições de vida de homens e mulheres negros, a resistência negra ao longo da história e um panorama das políticas públicas para enfrentar o racismo”. A série descreveu as condições de vida das populações afrodescendentes no Brasil, Equador, Panamá e Uruguai e ressaltou a importância da autoidentificação como afrodescendente no censo.

A publicidade para novas questões de ascendência étnica e racial muitas vezes mencionava explicitamente o preconceito racial, a discriminação e a desigualdade como males sociais que as novas estatísticas ajudariam a combater. No Brasil, por exemplo, a série documental “As Américas têm cor” estreou com um episódio especial em um programa semanal de notícias, Cenas do Brasil, no qual a jornalista Lúcia Abreu discutiu “a importância de declarar a própria cor no Censo 2010, a evolução dos dados demográficos que se referem a cor ou raça, e sua contribuição para a criação de políticas públicas”. Campanhas públicas incentivando os latino-americanos a reconhecerem e acolherem a parte africana de sua herança, juntamente com a crescente cobertura da mídia sobre discriminação racial e preconceito, representam uma ruptura significativa com décadas de silêncio público em torno dessa questão.

Mesmo sendo difícil isolar o desfecho das campanhas de informação pública nos resultados do censo das outras fontes de influência sobre as subjetividades coletivas e individuais, o Brasil e a Colômbia viram um crescimento no tamanho relativo das populações afrodescendentes autoidentificadas nas últimas duas décadas. Demógrafos e outros cientistas sociais têm avaliado como a mudança na autoidentificação racial entre os censos vem moldando essas transformações.16 16 Por exemplo, Carvalho, Wood e Andrade (2004). Alguns observadores atribuem essas tendências a campanhas de divulgação do censo no contexto de mudanças culturais mais amplas na valorização da negritude, especialmente entre os grupos mais jovens; outros notam a provável influência do crescente uso de categorias oficiais do censo em políticas públicas com foco etnorracial. Como discutido mais adiante, quando as categorias etnorraciais do censo são usadas para criar, implementar ou monitorar programas de ação afirmativa, os incentivos instrumentais também podem desempenhar um papel na mudança nas autoidentificações (Muniz, 201049 MUNIZ, Jerônimo. Sobre o uso da variável raça-cor em estudos quantitativos. Rev. Sociol. Política. v. 18, n. 36, p. 277-291, 2010.; Canessa, 200710 CANESSA, Andrew. Who is indigenous? Self-identification, indigeneity, and claims to justice in contemporary Bolivia. Urban Anthropology, v. 36, n. 3, p. 195-237, 2007.; Bailey; Fialho; Loveman, 20184 BAILEY, Stanley R.; LOVEMAN, Mara; MUNIZ, Jeronimo. Measures of ‘race’ and the analysis of racial inequality in Brazil. Social Science Research, v. 42, n. 1, p. 106-119, 2013.).

Quando os Estados coletam e utilizam dados étnicos e raciais, isso molda as subjetividades, em parte ao desencadear discussões públicas e renegociações sobre o significado de determinadas categorias raciais, quem pertence a elas e quais os critérios de pertencimento (Mora, 201448 MORA, G. Cristina. Cross-field effects and ethnic classification: the institutionalization of Hispanic panethnicity, 1965 to 1990. American Sociological Review, v. 79, n. 2, p. 183-210, 2014.). Até o presente, no Brasil, há um debate frequente entre ativistas, acadêmicos, tecnocratas, políticos e, cada vez mais, muitas outras figuras públicas, sobre o significado das categorias raciais que, por si sós, contribuem indiretamente para os efeitos constitutivos dessas categorias. Os estudantes universitários entrevistados no Rio de Janeiro, no início dos anos 2000, nem sempre estavam seguros da forma “correta” de responder a uma pergunta sobre sua raça ou cor. Eles frequentemente se referiam à sua aparência e ao seu histórico familiar para discutir se deveriam ou não se identificar como pardo ou preto (Schwartzman, 200961 SCHWARTZMAN, Luisa F. Seeing like citizens: unofficial understandings of official racial categories in a Brazilian university. Journal of Latin American Studies, v. 41, n. 2, p. 221-250, 2009.). Nos anos seguintes, há indícios de que a resposta baseada em entendimentos de origem ou ancestralidade ganhou terreno (Guimarães, 201126 GUIMARÃES, Antônio S. Raça, cor, cor da pele e etnia. Revista Cadernos de Campo, n. 20, p. 1265-1271, 2011.). Além disso, há evidências de que, entre 1995 e 2008 (antes da implementação de políticas de cotas, e alguns anos após a implementação), os brasileiros tornaram-se cada vez mais propensos a escolher uma das categorias de raça/cor do censo para se identificarem em uma pesquisa de formato aberto (Bailey et al., 20184 BAILEY, Stanley R.; LOVEMAN, Mara; MUNIZ, Jeronimo. Measures of ‘race’ and the analysis of racial inequality in Brazil. Social Science Research, v. 42, n. 1, p. 106-119, 2013.). Isto sugere a recursividade das perguntas e categorias utilizadas no censo e nas políticas públicas para moldar o fenômeno social que elas pretendem descrever.

É importante ressaltar que as campanhas nacionais de mídia e os debates públicos sobre as categorias etnorraciais do censo e seus usos influenciam a autocompreensão subjetiva tanto daqueles que não são os principais alvos das campanhas ou políticas públicas, quanto daqueles que o são. Nos últimos anos, em vários países da América Latina, surgiram grupos para defender o reconhecimento oficial dos mestiços, usando muitos dos mesmos argumentos invocados por grupos afrodescendentes e indígenas para exigir visibilidade nos censos. Para esses críticos, a classificação etnorracial oficial não é inerentemente problemática; é a depreciação ou negação de categorias “mistas” em favor de categorias “absolutas” ou “puras” que causa preocupação. No Brasil, por exemplo, em meados dos anos 2000, uma ONG sediada na Amazônia com o nome “Nação Mestiça” tentou promover “a valorização do processo de miscigenação (mistura) entre os diversos grupos étnicos que criaram a nacionalidade brasileira, a promoção e defesa da identidade pardo-mestiça e o reconhecimento dos pardo-mestiços como herdeiros culturais e territoriais do povo do qual são descendentes”. Protestando contra campanhas para “desmisturar” brasileiros e ecoando os nacionalistas do passado, o slogan do grupo anunciava: “a miscigenação une a nação”.

Tais slogans prenunciavam a hábil utilização por Jair Bolsonaro da mesma metáfora nacionalista para fomentar ressentimento contra políticas de ação afirmativa, como parte de sua campanha presidencial, conforme mostra a Figura 4.

Figura 4
Jair Bolsonaro: “Minha cor é o Brasil!”

Como é de conhecimento geral, as políticas sociais com foco racial no Brasil produziram intenso debate acadêmico, público e político.17 17 Sobre esses debates ver: Guimarães (1999), Feres Jr., Campos e Daflon (2011), Fry, Maggie, Maio e Monteiro (2007), Bailey e Peria (2010), Heringer e Johnson (2015) e Teixeira (2003). Para além dos interesses imediatos e argumentos específicos desses debates, pode-se afirmar que sua própria existência e teor têm tido efeitos modeladores sobre as subjetividades dos brasileiros. De particular importância, as controvérsias públicas ajudaram a catalisar a proeminência e ampla ressonância popular de uma identidade nacionalista ressurgente que insiste na (re)subordinação de identidades etnorraciais distintas à identificação como brasileira.

Assim, a produção e uso de estatísticas etnorraciais oficiais podem produzir subjetividades que tendem a conformar-se às categorias oficiais e, simultaneamente, produzir subjetividades reativas, que se configuram como alternativas às categorias oficiais ou em oposição à própria categorização oficial. A recursividade das categorias do censo – sua capacidade de produzir um “efeito circular” na fraseologia de Hacking – é ativamente contestada e, portanto, politicamente contingente. Os efeitos produtores de novas questões do censo sobre as subjetividades podem não ressoar dentro de ciclos fechados. Mas podem, em vez disso, reverberar, como em uma espiral aberta. De certa forma, o crescente uso de categorias etnorraciais oficiais na América Latina está moldando as subjetividades de maneira padronizada e (mais ou menos) previsível. De outras formas, as consequências essenciais da classificação etnorracial oficial estão se espalhando de modos e em direções não previstas.

A produção de demandas políticas

A forma como os indivíduos respondem às perguntas do censo sobre sua identidade racial ou étnica reflete, em parte, suas percepções do que o censo está realmente perguntando, com base no entendimento social predominante sobre os termos utilizados, o motivo da pergunta e o que se espera que eles levem em conta ao responder. Suas respostas refletem, também, entendimentos variáveis do que exatamente está em jogo.

Na segunda metade dos anos 2000, as lutas políticas para fazer com que os Estados latino-americanos coletassem estatísticas etnorraciais em seus censos nacionais deram lugar, em sua maioria, a crescentes demandas por utilizar os novos dados. À medida que os dados eram analisados e “colocados em uso” para motivar, desenvolver, implementar e monitorar as políticas públicas, surgiam novas demandas políticas – demandas que estavam diretamente ligadas à classificação etnorracial oficial. A existência de novas demandas associadas às categorias etnorraciais reverberou no terreno político, alterando identidades, alianças e alinhamentos (epistemológicos e políticos) que tinham alimentado o sucesso das lutas políticas para, primeiramente, transformar o cenário de dados.

Antes que os novos dados coletados nos censos latino-americanos pudessem se tornar “ferramentas dos fracos”, no sentido de Porter (1986)58 PORTER, Theodore M. The rise of statistical thinking, 1820-1900. Princeton: Princeton University Press, 1986., a avalanche de números brutos precisava ser transformada em conhecimento útil/usável. Como os autores de um relatório patrocinado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento apontaram, “a inclusão da variável étnica nos censos e pesquisas é inútil se ela não for utilizada em análises” (BID, 200040 IDB - Interamerican Development Bank. BID, Banco Mundial y Colombia auspician seminario internacional sobre factores raciales y étnicos en censos de América Latina. Press release, 7 nov., 2000.http://www.iadb.org/es/noticias/comunicados-de-prensa/2000-11-07/bid-banco-mundial-y-colombia-auspician-seminario-internacional-sobre-factores-raciales-y-etnicos-en-censos-de-america-latina,799.html
http://www.iadb.org/es/noticias/comunica...
). Assim, seguiu-se a produção de uma onda de estudos científicos sociais e relatórios governamentais. Esses reuniam estatísticas descritivas e análises estatísticas para documentar desigualdades entre categorias étnicas em vários indicadores de bem-estar material, incluindo estudos de disparidades na expectativa de vida, no desempenho educacional, no acesso à eletricidade e saneamento, na renda, entre outros “resultados” estatísticos.18 18 Por exemplo, ver estudos produzidos pela CEPAL e o Banco Mundial. Agências de desenvolvimento internacionais e regionais também começaram a gerar relatórios abrangentes sobre as condições das comunidades afrodescendentes ou indígenas em determinados países da América Latina e em perspectiva comparativa. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, por exemplo, destinou recursos para a produção de relatórios estatísticos sobre a situação dos jovens indígenas e afrodescendentes na América Latina, com base nos resultados dos censos de 2000. O Banco Mundial e agências das Nações Unidas também patrocinaram a produção de relatórios sobre diversos aspectos da saúde, educação e condições de vida das populações minoritárias em várias partes da América Latina.

Equipados com um corpo crescente de evidências estatísticas de desigualdade etnorracial, ativistas e seus aliados dentro dos governos começaram a pressionar por políticas sociais direcionadas. O registro estatístico da desigualdade etnorracial foi base para os apelos aos Estados para complementarem promessas de proteção legal contra a discriminação, com medidas proativas, corretivas e reparadoras para reduzir as disparidades existentes de condição e oportunidade. Em contextos em que os atores dos movimentos sociais ou seus aliados ocupavam posições dentro do Estado, políticas direcionadas diretamente à desigualdade etnorracial tornaram-se uma prioridade visível.

O Brasil foi pioneiro em tais políticas na região e, até hoje, tem ido mais longe em seu uso, com uma ampla gama de iniciativas de ação afirmativa em agências governamentais, acesso à universidade e em indústrias, como da moda e da televisão.19 19 Para uma descrição e análise detalhadas desses programas e de suas políticas, veja por exemplo: Feres Jr. (2007; 2008); Fry et al. (2007) e Petruccelli (2015). No Brasil, as políticas de ação afirmativa passaram a contar com estatísticas etnorraciais oficiais para justificar sua introdução, orientar sua implementação e monitorar resultados. A implementação de programas de ação afirmativa criou novos parâmetros de classificação racial, e assim chamou forte atenção para as categorias utilizadas no censo, nas ciências sociais e na política social.

A produção de novas demandas políticas introduziu fissuras no terreno político que acentuaram, e em alguns contextos fragmentaram, alianças outrora fortes na luta política por, antes de tudo, aprovar uma legislação de ação afirmativa. De maneiras diferentes, essas fissuras percorreram as ciências sociais, os movimentos sociais, as universidades como instituições e o domínio político (Bailey; Peria, 20103 BAILEY, Stanley R.; PERIA, Michelle. Racial quotas and the culture war in Brazilian academia. Sociology Compass, v. 4, n. 8, p. 592-604, 2010.; Carvalho, 200512 CARVALHO, José Jorge de. Usos e abusos da antropologia em um contexto de tensão racial: o caso das cotas para negros na UnB. Horizontes Antropológicos, v. 11, n. 23, p. 237-246, 2005.). Como um exemplo apenas de tais fissuras, é útil considerar como a política e a prática de delimitar a população não branca sofreram mudanças desde o período de mobilização por políticas de ação afirmativa, até o de sua implementação. Como discutido acima, a pesquisa em ciências sociais nos anos 1970 e 1980 favoreceu o uso de uma comparação analítica dicotômica entre brancos e não brancos, com estes últimos agrupando os pardos e os pretos censitários. Esse esquema foi facilmente traduzido como comparações entre brancos e negros, usando o enquadramento preferido pelos ativistas do movimento negro naquela época, que defendia uma definição expansiva de negro que incluísse pretos e pardos censitários e qualquer um que se identificasse como afrodescendente (Campos, 201309 CAMPOS, Luiz A. O pardo como dilema político. Insight Inteligência, n. 63 [online], 2013.). Em um estudo sobre desigualdade racial no Brasil, escrito em inglês, esta tradução era ainda mais direta, já que, nesta língua, a mesma palavra – negro – é usada para traduzir tanto preto como negro.

No período de mobilização política que culminou na aprovação das políticas de cotas raciais, métodos que minimizavam as distinções dentro da população não branca eram preferidos pelos cientistas sociais, assim como eram importantes para a meta dos ativistas de construir uma base o mais ampla possível para pressionar por políticas sociais de combate à desigualdade racial. Alguns anos depois, já há um debate muito mais ativo entre os cientistas sociais sobre se é apropriado ou enganoso agrupar pretos e pardos em análises estatísticas.20 20 Houve vozes divergentes sobre o uso de esquemas analíticos dicotômicos anteriormente, e alguns acadêmicos continuaram a produzir análises que mantiveram pardos e pretos separados ao longo desses anos. Mas a abordagem que foi vista e apresentada como mais alinhada com a política de justiça racial foi a de adotar uma lente dicotômica. Citando evidências de heterogeneidade socioeconômica dentro da categoria pardo, variação nas percepções de discriminação por status de classe e variação regional de seu significado, alguns pesquisadores defendem evitar modelos binários porque eles obscurecem a classe e a desigualdade regional dentro da categoria pardo e a gravidade da desvantagem sofrida por pretos.21 21 Ver Bailey, Loveman e Muniz (2013), Loveman, Muniz e Bailey (2012); Daflon, Carvalhães e Feres Jr. (2017), Muniz (2010) e Bailey e Telles (2006). Juntamente dessas linhas emergentes de pesquisa, existem realinhamentos políticos dentro das coalizões de ativistas e acadêmicos que apoiam as políticas de ação afirmativa. Os programas que vinculavam as oportunidades de admissão em universidades ou emprego público à identificação etnorracial categórica levantaram questões polêmicas sobre quem se qualifica para tais programas e quem não se qualifica. Essa questão abriu a porta para debates sobre quem decide quem se qualifica e com base em quê? Os riscos distributivos dos programas de ação afirmativa produziram uma reavaliação e revisão de visões preliminares de como as fronteiras raciais deveriam ser traçadas no Brasil.

Enquanto, em um momento de mobilização política, a abordagem preferida pelos ativistas e acadêmicos aliados era a de agrupar pardos e pretos, já no momento distributivo da política, a abordagem favorecida mudou para uma que diferenciasse pardos de pretos, “iluminando” um limite que anteriormente eles deixaram nebuloso. Isso é especialmente evidente em alguns dos discursos e práticas das campanhas de “fraude antirracial”.

Figura 5
Cartaz “Quem são os novos cotistas negros da UFES?”

A figura 5 é um cartaz retirado de um website de um grupo de estudantes negros de uma universidade brasileira. O cartaz aponta que 51% da população brasileira é negra, e que a outra metade tem o dobro das oportunidades. Para chegar a 51%, eles devem incluir pretos e pardos censitários, já que só os pretos censitários autoidentificados seriam menos 7,6% (de acordo com o censo de 2010). No entanto, o quadro representa claramente o Brasil como uma população composta por negros e brancos. Na parte inferior, observa-se que a falsa autoidentificação é um crime. A maior parte da cobertura da mídia sobre esta campanha, bem como a legislação, concentra-se nas pessoas acusadas de falsamente afirmar que não são brancas quando “realmente” (socialmente) são brancas. Entretanto, também foram feitas acusações de fraude racial contra pardos autoidentificados, vistos como não sendo suficientemente negros. Um artigo publicado na imprensa inglesa, em 2017, na revista Foreign Policy, contou a história de uma mulher que foi acusada de fraude racial por se identificar como parda no processo de candidatura a um cargo de promotora pública. Alguns ativistas criticam as pessoas falsamente autoidentificadas como pardas por utilizarem programas que, de fato, foram criados para pardos e pretos, argumentando que esses espaços, na realidade, não se destinavam a “pessoas com avós negras”; ao contrário, destinam-se àqueles com “pele muito escura” (Oliveira, 201751 OLIVEIRA, Cleuci de. One woman’s fight to claim her ‘blackness’ in Brazil. Foreign Policy, 24 jul. 2017.). Os critérios usados para traçar distinções dentro da categoria negra – distinções que eram menosprezadas ou mesmo negadas em uma fase de mobilização política –, estavam sendo ressuscitados e redesenhados para delimitar mais estritamente os beneficiários no contexto de determinar a distribuição dos recursos escassos. Uma consequência não intencional das políticas de cotas raciais do Brasil, e das variadas reações a elas, tem sido a (re)introdução de divisões políticas e sociológicas no âmbito da população não branca, refinando o limite entre pretos e pardos, que antes era deliberadamente indistinto.

Programas de ação afirmativa com diversos tipos de focos etnorraciais estão em vigor ou nas agendas políticas de vários outros países latino-americanos. Essas iniciativas vão desde políticas focadas em serviços de saúde, nutrição, moradia, redução da pobreza e titulação de terras, até benefícios educacionais e representação política garantida. À medida que os programas sociais com foco etnorracial se espalham pela América Latina, aumentam as controvérsias sobre por que e como os Estados classificam suas populações em termos de raça ou etnia. Como ocorreu no Brasil, os críticos desses programas apontam para uma autoidentificação oportunista; eles observam como as categorias oficiais criarão ou aumentarão integrantes ao longo dessas linhas categóricas; e advertem sobre as consequências involuntárias de políticas bem-intencionadas, incluindo a consolidação de delimitações grupais mais rígidas e a consequente polarização ou fragmentação das sociedades nacionais.

Aqueles que apoiam os objetivos de políticas sociais direcionadas provavelmente também manifestarão receios sobre a classificação etnorracial oficial. Formuladores de políticas, cientistas sociais e ativistas debaterão se as categorias utilizadas para a implementação efetivamente canalizam recursos ou oportunidades para os beneficiários-alvo que mais necessitam. As categorias étnicas ou raciais utilizadas para implementar políticas sociais específicas nunca corresponderão perfeitamente a todas as distinções categóricas operantes na vida dos indivíduos e comunidades. Em alguns contextos, as categorias etnorraciais oficiais podem, inadvertidamente, excluir indivíduos que merecem ser incluídos com base na intenção dos formuladores de políticas. Em outros, as categorias oficiais serão consideradas amplas demais, abrandando o impacto das iniciativas que pretendem abordar explicitamente as facetas de raça/cor e etnia da pobreza e da desigualdade. Há uma tensão inerente entre os formatos das perguntas do censo ou métodos analíticos das ciências sociais que visam maximizar o número total daqueles que contam como indígenas ou negros, e a criação de políticas sociais que utilizam tais categorias para focar naqueles que são mais desfavorecidos.

O cenário de dados transformado para a coleta, produção e uso de estatísticas etnorraciais oficiais na América Latina pode ser usado tanto como informação quanto como munição em disputas políticas sobre políticas sociais direcionadas e visões concorrentes sobre progresso social. Nas décadas anteriores, a desagregação das estatísticas de pobreza e saúde por sexo revelou a característica de gênero da desigualdade na América Latina. Tais estatísticas ajudaram a apoiar uma mudança orientada para estratégias de desenvolvimento focadas no papel da mulher na distribuição de recursos escassos dentro de famílias e comunidades. A avalanche emergente de estatísticas raciais e étnicas também continuará a expor severas desigualdades étnicas e raciais em algumas regiões e apoiará intervenções governamentais que pretendam reduzi-las. Em alguns contextos, esses projetos podem atender a necessidades reais e urgentes de populações historicamente negligenciadas. Em outros, eles podem equivaler ao que o antropólogo Charles Hale (2002)30 HALE, Charles. Does multiculturalism menace? Governance, cultural rights, and the politics of identity in Guatemala. Journal of Latin American Studies, v. 34, n. 3, p. 485-524, 2002. denomina “neoliberalismo multicultural", servindo primordialmente para parecer abordar desigualdades enquanto, de fato, dissipam as “pressões sociais” por estratégias de desenvolvimento que implicariam em mudanças estruturais mais substantivas. De qualquer forma, a produção e o uso de estatísticas etnorraciais oficiais geram novas demandas políticas que são, por sua vez, produtoras de mudanças: ao serem utilizados na administração e nas políticas públicas, produzem abalos, fissuras e fraturas que podem fundir-se em movimentos que alteram fundamentalmente o terreno político.

Conclusão

Efeitos circulares ou espirais? Navegando em um cenário de dados transformado

A inclusão de novas questões sobre raça, etnia e cor nos censos nacionais e nas pesquisas domiciliares representativas em âmbito nacional na América Latina nas últimas décadas é uma realização política importante. Este cenário de dados transformado para a coleta, produção e uso de estatísticas étnicas e raciais, por sua vez, produziu novos espaços, subjetividades e participação políticos.

A nova política de produção de dados etnorraciais semeou novas lutas dentro do campo político do ativismo popular, dos cientistas sociais, atores estatais e organizações internacionais. Isto é especialmente evidente em contextos em que a inclusão de novas questões ou a revisão da redação das perguntas ou opções de resposta permanecem abertas para discussão.

Lutas sobre os termos do reconhecimento oficial – quais categorias etnorraciais e limites serão oficialmente sancionados e quais permanecerão oficialmente invisíveis – cedem facilmente às lutas por representação – quem pode falar em nome de quem? Esses esforços recentes moldaram o campo de organização do movimento social e os laços entre ONGs, ativistas, partidos políticos e atores nacionais e internacionais (Paschel, 201653 PASCHEL, Tianna. Becoming black political subjects. Princeton: Princeton University Press, 2016.).

Como previsto, a disponibilidade sem precedentes de dados étnicos e raciais sobre a população desencadeou uma avalanche de novas descrições e análises estatísticas sobre desigualdades étnicas e raciais. Na maioria dos países da região, permanece em aberto a questão de se, ou como, o acúmulo de estudos quantitativos documentando disparidades decorrentes de raça/cor ou etnia, generalizadas em indicadores de renda, saúde e educação, virá a traduzir-se em lutas políticas bem-sucedidas por mudanças incrementais ou mais transformadoras. A nova disponibilidade de dados etnorraciais da população reforçou as demandas dos ativistas por maiores benefícios de cidadania social, incluindo demandas por benefícios sociais direcionados como meio de reparação da marginalização histórica e/ou da discriminação contemporânea. Como observado acima, políticas de ação afirmativa para grupos etnorracialmente definidos já estão em vigor em vários países da América Latina e há pressão sobre os Estados, tanto por parte de ativistas nacionais quanto de organizações internacionais, pela introdução de mais iniciativas desse tipo no futuro. Tais políticas concentram-se na entrega direcionada de benefícios que vão desde serviços de saúde até moradia, alívio da pobreza até representação política. Entre as iniciativas mais visíveis e controversas estão aquelas focadas em ações afirmativas no campo da educação superior.

No Brasil, a proliferação de estudos sociais estatísticos sobre disparidades raciais no final dos anos 1980 e 1990 sustentou as reivindicações feitas pelo movimento negro e seus aliados para intervenções políticas específicas; o Brasil tornou-se líder na introdução de ações afirmativas no funcionalismo público e na educação superior. Mais recentemente, no entanto, o Brasil também se tornou um exemplo importante de reação organizada. O país tinha sido visto como um modelo regional de como a mobilização política poderia produzir mudanças no censo que, por sua vez, produziriam estatísticas etnorraciais, as quais, então, poderiam ser usadas para gerar pesquisas em ciências sociais sobre as desigualdades racializadas, que serviriam para orientar políticas públicas visando abordar essas desigualdades. Mesmo que este exemplo permaneça, a experiência brasileira mais recente de retrocesso reacionário a esse projeto político – e seus vínculos entre ativistas, cientistas sociais e atores estatais – é agora avaliada por seus vizinhos também como um exemplo de precaução.

Como a experiência brasileira demonstra muito bem, as políticas sociais que visam explicitamente abordar as desigualdades etnorraciais através de intervenções direcionadas a beneficiários definidos de acordo com sua etnia ou raça/cor, muitas vezes, chamam a atenção, primeiramente, para os processos políticos que informam a produção de dados desagregados por raça/cor e etnia. As batalhas políticas alimentadas, em parte, pelo registro estatístico dessas desigualdades tendem a reverter-se em batalhas políticas sobre a própria produção de estatísticas etnorraciais. Assim, à medida que os programas sociais com foco em tais desigualdades se espalham, as controvérsias sobre por que e como os Estados classificam os cidadãos por raça ou etnia provavelmente aumentarão. Assim como os Estados Unidos, também o Brasil, a Bolívia e uma crescente lista de países nas Américas provavelmente testemunharão uma oposição crescente à ideia de que os Estados podem legitimamente produzir estatísticas etnorraciais.

O futuro da produção de dados demográficos etnorraciais na América Latina permanece incerto. De fato, é possível que os desafios à legitimidade da produção desses dados desestabilizem a legitimidade da própria coleta e análise governamental de dados demográficos. Desrosières (2014, p. 352)16 DESROSIÈRES, Alain. Statistics and social critique. Partecipazione e conflitto, v. 7, n. 2, p. 348-359, 2014. argumenta que “para que uma estatística desempenhe seu papel social como referência neutra, acima dos conflitos de grupos sociais, ela deve ser instituída, garantida, por procedimentos democráticos, eles próprios legítimos. Ela, então, contribui para produzir a realidade e não simplesmente refletir a realidade”. Embora a análise deste artigo possa apoiar a primeira parte desta afirmação, ela questiona a segunda: é evidente que as estatísticas demográficas etnorraciais podem contribuir para constituir as realidades que pretendem medir, mesmo quando sua legitimidade é contestada. Na verdade, isso ocorre mesmo quando sua legitimidade é contestada em todos os estágios de sua produção, institucionalização, análise e uso. O poder transformador de uma estatística e a aceitação democrática de seus meios de produção e institucionalização não estão estritamente ligados.

Se as estatísticas populacionais referidas a raça e etnia contribuem para (re)fazer a realidade da maneira como seus defensores e produtores pretendem é outra questão completamente diferente. As categorias etnorraciais oficiais, institucionalizadas em estatísticas e operacionalizadas através de políticas públicas, são constitutivas de subjetividades, mas não de uma forma tão controlada como podemos imaginar invocando a metáfora do “efeito circular” de Ian Hacking (1995)28 HACKING, Ian. The looping effect of human kinds. In: SPERBER, Dan; PREMACK, David; PREMACK, Ann J. (eds.). Causal cognition: a multidisciplinary debate. Nova York: Clarendon, 1995.. Ao invés de um ciclo fechado, as reverberações produtoras das categorias estatísticas oficiais para raça e etnia se reproduzem em uma espiral aberta, com forma mais ou menos encolhida e com a extremidade apontando para dentro ou para fora em relação aos movimentos dos atores políticos e às mudanças no terreno político. Como sugere a metáfora de um “efeito espiral”, a análise deste artigo e a crescente evidência na região ratificam que os efeitos transformadores das estatísticas etnorraciais podem ser tanto previsíveis quanto imprevisíveis; assim, a criação e o uso desses dados podem ser politicamente transformadores de modo simultaneamente producente e contraproducente para os objetivos daqueles que os produzem.

A transformação do cenário de dados não está apenas alimentando a criação de novos conhecimentos sobre as desigualdades decorrentes de raça e etnia na América Latina; está também ajudando a definir novos espaços, subjetividades e demandas na luta política por reconhecimento, direitos e reparação para indivíduos e comunidades historicamente marginalizados – ao mesmo tempo em que alimenta a oposição nacionalista reacionária. Assim, enquanto no início do século XXI o boom da produção de estatísticas etnorraciais sobre as populações da América Latina é uma conquista política e sociocientífica histórica, é simultaneamente uma conquista politicamente controversa e tênue que pode muito bem ter uma vida curta.

Novos dados geraram novos conhecimentos sobre as desigualdades étnicas, raciais e de cor nas sociedades latino-americanas; esses novos conhecimentos, por sua vez, juntamente com o processo e a política de sua produção, alimentaram novos espaços, subjetividades e demandas da política. Estes contribuíram para a constituição política de identidades e fronteiras etnorraciais, para o avanço das reivindicações por maior igualdade e reconhecimento dos indivíduos e comunidades étnica e racialmente definidas, e para fomentar o surgimento de uma oposição reacionária organizada. Assim, no contexto do desdobramento das lutas políticas para desafiar as relações existentes entre Estados, cientistas e (não)cidadãos, ao se debaterem com a avalanche de dados populacionais referidos a raça e etnia na América Latina, com o intuito de avançar na compreensão das desigualdades etnorraciais, os cientistas sociais também devem manter a política da produção de tais dados, e seus efeitos transformadores sobre a política, dentro do quadro de análise.

  • 1
    O uso do termo “avalanche” neste contexto refere-se ao ensaio de Ian Hacking (1982), “Biopower and the avalanche of printed numbers”. Embora Hacking analise um contexto e um momento muito diferentes na história das estatísticas demográficas, os ecos dessa prévia avalanche ainda hoje reverberam.
  • 2
    A Tabela 1 fornece uma visão geral resumida da mudança na visibilidade estatística das populações indígenas e afrodescendentes, mas também obscurece a variação considerável nas particularidades dos formatos das perguntas do censo e opções de resposta entre os países, que fazem distinções visíveis dentro dessas categorias. A Tabela 1 também omite a consideração de outras linhas de distinção etnorracial contabilizadas em alguns censos nacionais na região (por exemplo, alguns censos permitem respostas para “brancos” ou “asiáticos”, enquanto alguns omitem deliberadamente essas opções de resposta). Para mais informações sobre essas variações e suas justificativas e consequências, consulte Loveman (2014, cap. 7)41 LOVEMAN, Mara. National colors: racial classification and the state in Latin America. Oxford: Oxford University Press, 2014. e Del Popolo (2008)15 DEL POPOLO, Fabiana. Los pueblos indígenas y afrodescendientes en las fuentes de datos: experiencias en América Latina. Santiago de Chile: Comisión Económica para América Latina y el Caribe, CEPAL, 2008..
  • 3
    Para uma visão geral da classificação etnorracial nos censos na América Latina nesse período, ver tabelas em Loveman (2014, p. 233 e p. 241)41 LOVEMAN, Mara. National colors: racial classification and the state in Latin America. Oxford: Oxford University Press, 2014..
  • 4
    Essas generalizações são desenvolvidas mais extensamente e com muitos exemplos em Loveman (2014, cap. 4-6)41 LOVEMAN, Mara. National colors: racial classification and the state in Latin America. Oxford: Oxford University Press, 2014.. Existem também muitos estudos excelentes dessas práticas para países e anos censitários específicos – são muitos para citá-los todos aqui, mas ver, por exemplo, Otero (2006)52 OTERO, Hernan. Estadística y nación: una historia conceptual del pensamiento censal de la Argentina moderna 1896-1914. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006. e Camargo (2010)8 CAMARGO, Alexandre de P. R. Classificações raciais e formação do campo estatístico no Brasil (1872-1940). In: SENRA, Nelson de C.; CAMARGO, Alexandre de P. R. (orgs). Estatísticas nas Américas: por uma agenda de estudos históricos comparados. (Estudos & Análises). Rio de Janeiro: IBGE, 2010. p. 229-264..
  • 5
    Brasil. Directoria Geral de Estatística, Recenseamento do Brasil, p. 344.
  • 6
    A historiografia sobre esse tema é demasiadamente longa para ser citada de forma abrangente aqui. Uma importante contribuição recente para este grande conjunto de trabalhos é encontrada em Vejo e Yankelevich (2017)67 VEJO, Tomás P.; YANKELEVICH, Pablo (orgs.). Raza y política en Hispanoamérica. Diásporas. Madrid: Iberoamericana Vervuert; Mexico City: Bonilla Artigas Editores; Mexico City: El Colegio de México, 2017.; também, Sommer (1991)64 SOMMER, Doris. Foundational fictions: the national romances of Latin America. Berkeley: University of California Press, 1991. e Martinez-Echazábel (199845 MARTINEZ-ECHAZÁBAL, Lourdes. Mestizaje and the discourse of national/cultural identity in Latin American 1845-1959. Latin American Perspectives, v. 25, n. 100, p. 21-42, 1998.; 1996)46 MARTINEZ-ECHAZÁBAL, Lourdes. O culturalismo dos anos 30 no Brasil e na América Latina: deslocamento retórico ou mudança conceitual? In: MAIO, Marcos C.; SANTOS, Ricardo V. (orgs.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1996. p. 107-124..
  • 7
    Sobre as vozes dissidentes, veja por exemplo a opinião de um médico militar que usou dados coletados de soldados para argumentar contra a tese de evolução de Vianna direcionada a um “tipo” brasileiro singular, branqueado e nacional (Loveman, 200942 LOVEMAN, Mara. The race to progress: census-taking and nation-making in Brazil, 1870-1920. Hispanic American Historical Review, v. 89, n. 3, p. 435-470, 2009.). Ver também Skidmore (1993)63 SKIDMORE, Thomas. Black into white: race and nationality in brazilian thought. Oxford: Oxford University Press, 1993., Schwarcz (1993)60 SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições, e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. e Borges (1993)5 BORGES, Dain. Puffy, ugly, slothful and inert’: degeneration in Brazilian social thought, 1880-1940. Journal of Latin American Studies, n. 25, p. 235-256, 1993..
  • 8
    Uma análise ampliada da recente mudança nas práticas estatais de classificação étnica e racial na América Latina pode ser encontrada em Loveman (2014)41 LOVEMAN, Mara. National colors: racial classification and the state in Latin America. Oxford: Oxford University Press, 2014..
  • 9
    Ver Nobles (2000)50 NOBLES, Melissa. Shades of citizenship: race and the census in modern politics. Stanford: Stanford University Press, 2000., Htun (2004)38 HTUN, Mala. From ‘racial democracy’ to affirmative action: changing state policy on race in Brazil. Latin American Research Review, v. 39, n. 1, p. 60-89, 2004., Hooker (200537 HOOKER, Juliet. Indigenous Inclusion/black exclusion: race, ethnicity and multicultural citizenship in Latin America. Journal of Latin American Studies, v. 37, n. 2, p. 285-310, 2005.; 2009)36 HOOKER, Juliet. Race and the politics of solidarity. Oxford University Press, 2009., Paschel (201055 PASCHEL, Tianna. The right to difference: explaining Colombia’s shift from color-blindness to the law of black communities. American Journal of Sociology, v. 116, n. 3, p. 729-769, 2010.; 2016)53 PASCHEL, Tianna. Becoming black political subjects. Princeton: Princeton University Press, 2016., Del Popolo (2008)15 DEL POPOLO, Fabiana. Los pueblos indígenas y afrodescendientes en las fuentes de datos: experiencias en América Latina. Santiago de Chile: Comisión Económica para América Latina y el Caribe, CEPAL, 2008. e Loveman (2014)41 LOVEMAN, Mara. National colors: racial classification and the state in Latin America. Oxford: Oxford University Press, 2014..
  • 10
    Cf. Nobles (2000, p. 98-110; 116-119)50 NOBLES, Melissa. Shades of citizenship: race and the census in modern politics. Stanford: Stanford University Press, 2000.. O censo brasileiro quase omitiu a questão racial em 1940, mas esta acabou sendo mantida com a justificativa e a expectativa de que permitiria ao Brasil mostrar ao mundo seu progresso contínuo em direção ao branqueamento (Camargo, 20108 CAMARGO, Alexandre de P. R. Classificações raciais e formação do campo estatístico no Brasil (1872-1940). In: SENRA, Nelson de C.; CAMARGO, Alexandre de P. R. (orgs). Estatísticas nas Américas: por uma agenda de estudos históricos comparados. (Estudos & Análises). Rio de Janeiro: IBGE, 2010. p. 229-264., p. 255-266).
  • 11
    Para ilustrar, a agência de estatísticas da Argentina explicou em seu site que a pergunta sobre afrodescendentes no censo de 2010 ajudaria na “...elaboração de futuros estudos e investigações... com vistas à realização de políticas públicas específicas”.
  • 12
    Nobles (2000, p. 98-110; 116-119)50 NOBLES, Melissa. Shades of citizenship: race and the census in modern politics. Stanford: Stanford University Press, 2000. argumenta que, sem a pressão organizada de acadêmicos e ativistas, o censo brasileiro de 1980 teria sido realizado sem uma questão de cor.
  • 13
    Mais tarde, eles também argumentaram que o agrupamento de pardos e pretos fazia muito sentido, dada sua proximidade em status social em comparação com os “brancos”. Até hoje, os acadêmicos debatem sobre a conveniência de usar uma dicotomia, uma tricotomia, uma combinação analítica de ambas, ou nenhuma dessas para analisar as desigualdades raciais no Brasil.
  • 14
    Para mais informações sobre o papel das organizações internacionais, ver Loveman (2014, cap. 7)41 LOVEMAN, Mara. National colors: racial classification and the state in Latin America. Oxford: Oxford University Press, 2014..
  • 15
    Um exemplo do primeiro tipo é a conferência internacional em Lima, Peru 2016, que reuniu porta-vozes do movimento social, representantes da agência nacional de estatísticas, funcionários governamentais, cientistas sociais de institutos de pesquisa e universidades independentes, representantes da ONU e “especialistas acadêmicos internacionais” para discutir a adoção de novas questões no censo de 2017. Para um exemplo do último, veja o relato do censo de 2005 da Nicarágua em Loveman (2014, p. 290-293)41 LOVEMAN, Mara. National colors: racial classification and the state in Latin America. Oxford: Oxford University Press, 2014..
  • 16
    Por exemplo, Carvalho, Wood e Andrade (2004)11 CARVALHO, José A. M. de; WOOD, Charles; ANDRADE, Flávia. Estimating the stability of census-based racial/ethnic classifications: the case of Brazil. Population Studies, v. 58, n. 3, p. 331-343, 2004..
  • 17
    Sobre esses debates ver: Guimarães (1999)27 GUIMARÃES, Antônio Sergio. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1999., Feres Jr., Campos e Daflon (2011)23 FERES JÚNIOR, João; CAMPOS, Luiz A.; DAFLON, Veronica T. Fora de quadro: a ação afirmativa nas páginas d’O Globo. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, v. 1, n. 2, p. 61-83, 2011., Fry, Maggie, Maio e Monteiro (2007)25 FRY, Peter; MAGGIE, Yvonne; MAIO, Marcos C.; MONTEIRO, Simone; SANTOS, Ricardo V. (Orgs.). Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2007., Bailey e Peria (2010)3 BAILEY, Stanley R.; PERIA, Michelle. Racial quotas and the culture war in Brazilian academia. Sociology Compass, v. 4, n. 8, p. 592-604, 2010., Heringer e Johnson (2015)35 HERINGER, Rosana; JOHNSON, Ollie; JOHNSON III, Ollie A. (orgs.). Race, politics and education in Brazil: affirmative action in higher education. Londres: Palgrave Macmillan, 2015. e Teixeira (2003)65 TEIXEIRA, Moema de P. Negros na universidade: identidade e trajetoórias de ascensaão social no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Pallas, 2003..
  • 18
    Por exemplo, ver estudos produzidos pela CEPAL e o Banco Mundial.
  • 19
    Para uma descrição e análise detalhadas desses programas e de suas políticas, veja por exemplo: Feres Jr. (200722 FERES JÚNIOR, João. Comparando justificações das políticas de ação afirmativa: Estados Unidos e Brasil. Estudos Afro-Asiáticos, v. 29, n. 1-3, p. 63-84, 2007.; 2008)21 FERES JÚNIOR, João. Ação afirmativa: política pública e opinião. Sinais Sociais, v. 3, n. 8, p. 38-77, 2008.; Fry et al. (2007)25 FRY, Peter; MAGGIE, Yvonne; MAIO, Marcos C.; MONTEIRO, Simone; SANTOS, Ricardo V. (Orgs.). Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2007. e Petruccelli (2015)56 PETRUCCELLI, Jose L. Brazilian ethnoracial classificaiton and affirmative action policies: where are we and where do we go? In: SIMON, Patrick; PICHE, Victor; GAGNON, Amelie A. (orgs.). Social statistics and ethnic diversity: cross-national perspectives in classifications and identity politics. Londres: Springer, IMISCOE Research Series, 2015..
  • 20
    Houve vozes divergentes sobre o uso de esquemas analíticos dicotômicos anteriormente, e alguns acadêmicos continuaram a produzir análises que mantiveram pardos e pretos separados ao longo desses anos. Mas a abordagem que foi vista e apresentada como mais alinhada com a política de justiça racial foi a de adotar uma lente dicotômica.
  • 21
    Ver Bailey, Loveman e Muniz (2013)4 BAILEY, Stanley R.; LOVEMAN, Mara; MUNIZ, Jeronimo. Measures of ‘race’ and the analysis of racial inequality in Brazil. Social Science Research, v. 42, n. 1, p. 106-119, 2013., Loveman, Muniz e Bailey (2012)43 LOVEMAN, Mara; MUNIZ, Jeronimo; BAILEY, Stanley. Brazil in black and white? Race categories, the census, and the study of inequality. Ethnic and Racial Studies, v. 1, n. 18, p. 1466-1483, 2011.; Daflon, Carvalhães e Feres Jr. (2017)14 DAFLON, Verônica T.; CARVALHAES, Flávio; FERES JÚNIOR, João. Sentindo na pele: percepções de discriminação cotidiana de pretos e pardos no Brasil. Dados, v. 60, n. 2, p. 293-330, 2017., Muniz (2010)49 MUNIZ, Jerônimo. Sobre o uso da variável raça-cor em estudos quantitativos. Rev. Sociol. Política. v. 18, n. 36, p. 277-291, 2010. e Bailey e Telles (2006)2 BAILEY, Stanley R.; TELLES, Edward. Multiracial versus collective black categories: examining census classification debates in Brazil. Ethnicities, v. 6, n. 1, p. 74-101, 2006..
  • Traduzido para o português por Carolina Fernandes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2020
  • Aceito
    22 Mar 2021
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