Acessibilidade / Reportar erro

Repensando as abstrações: uma convocação da incerteza

Rethinking abstractions: a call for uncertainty

STENGERS, Isabelle. . Civiliser la modernité ? Whitehead et les ruminations du sens commun. Dijon: Les presses du réel, 2017.

Resumo

Nesta obra, Isabelle Stengers retoma mais uma vez as contribuições da filosofia processual de Alfred North Whitehead para discutir a produção de conhecimento na modernidade, tema proeminente da vasta e pouco traduzida ao português obra da filósofa belga. Em diálogo com pensadores contemporâneos, como Anna Tsing, Bruno Latour e Donna Haraway, Civiliser la modernité? nos convoca a ponderar o que podem as Humanidades conhecer frente às contingências e incertezas de nosso tempo. A resenha busca explorar sobretudo as potenciais contribuições da obra para as ciências sociais, articulando a discussão filosófica e desdobramentos metodológicos.

Palavras-chave:
Isabelle Stengers; Modernidade; Abstração; Conhecimento

Abstract

In this work, Isabelle Stengers once more resorts to the contributions of Alfred North Whitehead’s processual philosophy to discuss knowledge production in modernity, a prominent subject in the vast and seldom translated into Portuguese work of the Belgian philosopher. In dialogue with contemporary scholars, such as Anna Tsing, Bruno Latour and Donna Haraway,Civiliser la modernité? invites us to ponder what can the humanities know in the face of the uncertainties of our time. This review seeks to explore above all the potential contributions of this work for the social sciences, articulating the philosophical discussion and methodological developments.

Keywords:
Isabelle Stengers; Modernity; Abstractness; Knowledge

Civiliser la modernité ?, a mais recente obra de Isabelle Stengers (2017STENGERS, Isabelle . Civiliser la modernité ? Whitehead et les ruminations du sens commun. Dijon: Les presses du réel, 2017a.a), anuncia já em seu título a que veio: é sobre a possibilidade de civilizar a modernidade que se debruça a filósofa belga ao longo de pouco mais de 200 páginas. A interrogação, note-se, não é acessória, mas uma marca distintiva do pensamento dessa autora ainda pouco traduzida e publicada no Brasil: se, como propõe Whitehead (1978WHITEHEAD, Alfred N. Process and reality: an essay in cosmology. New York: The Free Press, 1978., p. 17), à filosofia cabe “soldar o senso comum e a imaginação”, Civiliser la modernité ? conclama justamente a nossa capacidade de imaginar e experimentar frente às ameaças de nosso tempo e urgências ambientais. É, portanto, um convite à suspeição das certezas e à experimentação do não dito e (por que não?) do, até então, interdito.

Logo, não interessa a Stengers, nem à própria filosofia, exatamente o que se sabe, mas aquilo que se pode saber: “É mais uma questão de ousar imaginar que o que sabemos, o que insiste e nos faz ruminar apesar das garantias do conhecimento especializado, expressa ‘uma certa apreensão’ da imensidão das coisas” (Stengers, 2017a, p. 13, tradução livre1 1 No original: “Il s’agit plutôt d’oser imaginer que ce que l’on sait , ce qu’insiste sourdement et fait ruminer malgré les assurances des savoirs spécialisés, exprime ‘une certaine saisi’ de l’immensité des choses”. ). E, nesse cenário onde há ausência de garantias, a autora sugere que, mais do que refletir sobre, há que se deixar afetar por. Tal afetação, registre-se, não se dá como pura abstração, mas diz respeito à experiência - conceito caro ao pensamento desta filósofa.

O livro se propõe, como anuncia em seu título, a um resgate das proposições do filósofo e matemático britânico Alfred North Whitehead face ao conhecimento na modernidade. Este entrelaçamento, cabe observar, não é de todo novo nas reflexões de Stengers, cujos esforços teóricos são reconhecidamente dedicados à obra de Whitehead - haja vista Penser avec Whitehead e a própria tese de doutoramento da autora - e à questão das ciências - Cosmopolitiques; A invenção das ciências modernas; entre outros. Entretanto, acredito que mais do que um tributo a Whitehead, Civiliser la modernité ? ganha força justamente quando dialoga com pensadores contemporâneos, sobretudo Donna Haraway, Anna Tsing, Gilles Deleuze e Bruno Latour.

A obra está organizada em cinco partes, cada uma delas desdobrada em quatro seções. Na primeira parte, La question du sens comum, a autora nos convida a retornar ao pensamento de Whitehead a partir da questão da produção e circulação do conhecimento e, especialmente, do “senso comum”, que não pode ser confundido aqui com “opinião pública” ou mesmo “povo”. No bojo das tensões entre a filosofia e as ditas “ciências duras”, Stengers explora temas como abstração e objetividade, os quais seguirão sendo desdobrados nos capítulos subsequentes.

A segunda parte, Arts de la composition, deixa ainda mais explícita a influência da metafísica whiteheadiana para o pensamento da autora, em especial a partir do que ela chama de zigue-zagues. O zigue-zague, aqui, não pode ser afastado da ideia de experiência - o que traz à tona o fato de que a proposição de Stengers é, sempre, de ordem pragmática. É também nesta seção que a filósofa importa da linguística a ideia de “voz média”, a qual comento mais adiante nesta resenha.

A parte três, Pragmatiques sociales, coloca em xeque a forma de produzir conhecimento legitimada pela modernidade, ou seja, a ciência. Se, na seção anterior, a autora relembra a bifurcação da natureza, tal qual apresentada por Whitehead, nesta o foco recai sobre os efeitos disso no fazer científico. Civilizar, até então, dá conta de separar os nossos modos de abstração dos seus poderes bifurcadores.

Na quarta parte, Les vivants et la vie, a autora recoloca a questão que inaugura a obra, debruçando-se sobre o que é possível a um ser vivo saber. Aqui a ideia de vida é, tal qual propõe Whitehead, materialista - visto que implica a experiência do corpo, de explorar de modo variado os sentidos e suas possibilidades. E se a experiência da vida é tal, Stengers convoca a aprender a surpreender-se, a deixar-se tocar: em última análise, resta o convite a animar a sociedade - algo já ensaiado em outras reflexões (Stengers, 2017STENGERS, Isabelle . Reativar o animismo. Caderno de leituras, n. 62, p. 1-15, 2017b. Disponível em: http://chaodafeira.com/cadernos/reativar-o-animismo/.
http://chaodafeira.com/cadernos/reativar...
b).

Na parte final (e visceral), Un cosmos tentaculaire ?, a dimensão ambiental reposiciona as proposições de Whitehead, que, deslocadas pelas leituras da filósofa e pelo diálogo com as obras de Haraway e Latour, ganham certo caráter de urgência. Retomando a expressão de Anna Tsing (2017WHITEHEAD, Alfred N. Process and reality: an essay in cosmology. New York: The Free Press, 1978.; 2019TSING, Anna L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.), Stengers coloca em questão a possibilidade de se viver nas ruínas, isto é, num mundo que tem como marca a ausência de garantias. Nesse cenário de incertezas, o que podem pensar as Humanidades?

Ainda que o mergulho na filosofia whiteheadiana, seus conceitos e proposições seja útil e admirável, gostaria de sugerir que - para as ciências sociais - a reflexão de Stengers pode ser mais bem aproveitada se encarada como um tratado metodológico face às ruínas daquilo que definimos como civilização.

Esta possibilidade de leitura surge já no segundo capítulo, quando Stengers apresenta, em referência ao trabalho do linguista Émile Benveniste (mas também levando em conta as reflexões daí derivadas por Jacques Derrida), a noção de “voz média” ou “voz pronominal” (voix moyenne, no original). A voz média é uma estrutura gramatical própria a línguas indo-europeias como o grego e o sânscrito, mas atualmente inexistente em línguas como português e o francês2 2 Tal questão foge do escopo desta resenha, mas registro que, no campo da linguística, é possível acessar uma discussão acerca da possibilidade da “voz média” em português. Para tanto, sugere-se a leitura de Camacho (2003). . De certa forma, a voz média é próxima da flexão de verbos pronominais, por exemplo, na frase “eu me lavo”, que traz em si o sentido de que ao mesmo tempo o sujeito é ativo e passivo da ação (pois lava e é lavado). A síntese da voz média seria, talvez, o canto entoado pelas bruxas, apresentado pela escritora e ativista Starhawk e já explorado pela filósofa noutras ocasiões: “[e]la muda tudo o que toca, e tudo o que ela toca muda” (Stengers, 2017STENGERS, Isabelle . Reativar o animismo. Caderno de leituras, n. 62, p. 1-15, 2017b. Disponível em: http://chaodafeira.com/cadernos/reativar-o-animismo/.
http://chaodafeira.com/cadernos/reativar...
b, p. 68, tradução livre3 3 No original: “Elle change tout ce qu’elle touche et tout ce qu’elle touche change”. ).

A voz média escancara nossa hesitação quanto a quem é, de fato, o ator - questão esta central, mas pouco pacífica nas ciências sociais, sobretudo naquelas dedicadas a temáticas ditas ambientais4 4 O que configura um ator é um tema recorrente na obra de Stengers e de seus interlocutores. Bruno Latour (2000), aliás, já discutiu este tema mobilizando a noção de voz média. . O que Stengers nos convoca a pensar é que a voz média não é apenas uma estrutura gramatical, mas diz respeito à possibilidade de assumirmos ontologias tentaculares, como já sugerido por Haraway (2016HARAWAY, Donna. Staying with the trouble: making kin in the Cthulhucene. Duke University Press: Durham e Londres, 2016. ): o que está em jogo são as formas pelas quais fazemos conexões e experimentamos as relações, sempre múltiplas e instáveis. Há aqui uma suspeição, portanto, da ideia de Antropoceno5 5 Em linhas gerais, o Antropoceno pode ser definido como uma nova era geológica, na qual a ação humana é assumida como um agente geológico. Em diversas reflexões a respeito, fica latente uma ideia de que a possibilidade de vida (humana) no planeta estaria próxima do fim. Esta paradoxal capacidade de agência humana (que, por um lado, é responsável por uma nova era geológica e, por outro, não consegue revertê-la) tem sido problematizada em diversas esferas. Além das contribuições já citadas de Haraway e Tsing, sugere-se Chakrabarty (2009) e Latour (2014). , que remontaria a um fim próximo; o mundo tentacular, ao contrário, dá conta justamente de, ao assumir as ruínas, afirmar novas formas de existência, sempre parciais e situadas, como também aporta Tsing (2017TSING, Anna L. Le champignon de la fin du monde: sur la possibilité de vie dans les ruines du capitalisme. Paris: La découverte, 2017.). O cosmos tentacular coloca em questão uma Gaia medusa, que nos convoca a engajamentos diversos e instáveis, algo já explorado pela autora em No tempo das catástrofes, publicado no Brasil em 2015.

A intrusão do tipo de transcendência que nomeio Gaia instaura, no seio de nossas vidas, um desconhecido maior, e que veio para ficar. E, aliás, talvez seja isto o mais difícil de conceber: não existe um futuro previsível em que ela nos restituirá a liberdade de ignorá-la; não se trata de “um momento ruim que vai passar, seguido de uma forma qualquer de happy end no sentido pobre de “problema resolvido”. Não seremos mais autorizados a esquecê-la (Stengers, 2015STENGERS, Isabelle . No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Naify, 2015. , p. 41).

A “voz média”, portanto, diz respeito à experiência, à forma como experimentamos o mundo. E isso tem profundas repercussões teóricas e metodológicas: se somos, ao mesmo tempo e cada um a seu modo, produtores e produzidos pelo mundo, como pensar em premissas caras às ciências sociais, como a “neutralidade axiológica”? Aqui, a imagem do tentacular mais uma vez nos ajuda a responder: o corpo tentacular não pode tudo apreender e esta é sua principal vantagem. Esses seres tentaculares, ainda, são sempre corporificados e, por isso, moventes. As relações nas quais se engajam (e são engajados) não são redes infinitas, mas conexões parciais, para utilizar aqui a expressão da antropóloga inglesa Marilyn Strathern (1991STRATHERN, Marilyn. Partial connections. Savage: Rowman and Littlefield, 1991.), com quem Haraway dialoga nesta proposição.

No entanto, há que se considerar que a crítica à neutralidade axiológica de forma alguma resvala no que Stengers chamou “tentação militante”6 6 Comunicação pessoal de Isabelle Stengers no âmbito da jornada de estudos “Civiliser la Modernité”, realizada em 12 de março de 2019, na Universidade Livre de Bruxelas, Bélgica. , a qual, ao seu modo, também engessa os papéis e as potencialidades. Estar vigilante aos nossos próprios modos de abstração, premissa whiteheadiana, encontra-se aqui com as propostas de Haraway (1995HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu. n. 5, p. 7-42, 1995.), para quem a vigilância diz respeito a desfazer premissas que levem à oposição entre “culpados” e “inocentes”, sem jamais incorrer em um “relativismo irônico” para o qual são todos culpados a priori (Stengers, 2017a, p. 30-31). É nesse sentido que a opção pela parcialidade como movimento analítico ganha ainda mais força em ciências sociais, na esteira do que teóricas feministas sugerem há bastante tempo, sobretudo Haraway (1995; 2014HARAWAY, Donna. Anthropocene, Capitalocene, Chthulucene: staying with the trouble. In: Anthropocene: arts of living on a damaged planet (Conferência na Universidade da Califórnia), 2014. Registro eletrônico, Santa Cruz, 2014. Disponível em: https://vimeo.com/97663518.
https://vimeo.com/97663518...
; 2016).

Como se deixar ser tocado, afetado e como conferir àquilo que nos toca o poder de nos fazer pensar? Para que esta questão nos situe, seres humanos civilizados, tão orgulhosos de assumir a solidão do mestre entrincheirado em sua casa, é necessário ousar se deixar ser afetado por sua versão tentacular. (...) o que é que nos toma? O que nos tomou? Que pensamento nos faz pensar nos pensamentos dos outros de uma maneira que nos torna o mestre do significado a ser atribuído à sua experiência? (Stengers, 2017STENGERS, Isabelle . Civiliser la modernité ? Whitehead et les ruminations du sens commun. Dijon: Les presses du réel, 2017a.a, p. 183, tradução livre7 7 No original: “Comment se laisser toucher, affecter, et comment conférer à ce qui nous touche le pouvoir de nous faire penser ? Pour que cette question nous situe, humains civilisés si fiers d’assumer la solitude du maitre retranché dans sa Maison, il faut oser le laisser affecter par sa version tentaculaire. (...) qu’est-ce qui nous prend ? Qu’est-ce qui nous a pris? Quelle pensée nous fait penser les pensées des autres sur un mode qui fait de nous les maitres du sens à attribuer à leur expérience ? ”. ).

A “voz média”, então, dá conta de permitir-se “stay with the trouble” (Haraway, 2016HARAWAY, Donna. Staying with the trouble: making kin in the Cthulhucene. Duke University Press: Durham e Londres, 2016. ; Stengers, 2017STENGERS, Isabelle . Civiliser la modernité ? Whitehead et les ruminations du sens commun. Dijon: Les presses du réel, 2017a.a). Note-se: Stengers não nos convida aqui a resolver problemas, desfazendo os nós e descrevendo redes lineares. Ao contrário, permanecer com o problema dá conta justamente da precariedade e contingência das relações, dos “nós” - sejam estes os emaranhados de fios ou a impossibilidade de se pensar em um “eu” sozinho face às composições provisórias deste mundo.

Tal discussão, que assumo como metodológica, pode ser deslocada a um segundo eixo, que remonta ao subtítulo da obra: as ruminações do senso comum. Aqui, aliás, reside um ponto frágil da obra: o “senso comum”, que a subintitula e é objeto de análise no primeiro capítulo, só é retomado na última seção. O mesmo se dá com as categorias “civilizar” e “modernidade”, conceitos que só são efetivamente definidos nas últimas 40 páginas do livro. Ainda que o caminho percorrido por Stengers seja profícuo e nos coloque muitas questões, por vezes é difícil compreender que modernidade é essa que buscamos civilizar e, mais do que isso, o que de fato significa civilizar.

A questão, inaugurada já na primeira seção, é como podem as humanidades lidar com o dé-faite do senso comum? O jogo de palavras não é fortuito: défaite ora pode assumir uma tradução literal (derrota)8 8 Stengers (2017a, p. 14) justifica que não se trata de uma derrota como se houvesse um campo de batalha ou causa específica a defender. Não estou convencida a este respeito, como fica manifesto na sequência. , o que nos permite a conexão com a possibilidade de se viver nas ruínas conforme colocado por Tsing, ora remonta à própria ideia de ruminação, isto é, de dissolução da capacidade de objetar também presente no subtítulo.

Pois ruminar é recusar-se - de modo contido, talvez, sem mostrar um discurso contraditório - a perder a confiança no valor de uma experiência, mesmo que seja difícil de colocá-la em palavras ou sejam colocadas dificuldades por uma teoria que a desqualifique. O que está desfeito é a possibilidade de uma relação de desconfiança com as próprias teorias (Tsing, 2017TSING, Anna L. Le champignon de la fin du monde: sur la possibilité de vie dans les ruines du capitalisme. Paris: La découverte, 2017., p. 15, tradução livre9 9 No original: “Car ruminer, c’est refuser - sourdement peut-être, sans déployer un discours contradictoire - de perdre confiance dans la valeur d’une expérience, même si celle-ci est difficile à mettre en mots ou est mise en difficulté par une théorie qui la disqualifie. Ce qui est défait est la possibilité d’un rapport de méfiance par rapport aux théories elles-mêmes”. ).

Neste ponto, o que me parece interessante assinalar - e que não é, de todo, um tema novo às ciências sociais, embora adquira novas facetas frente às crises e incertezas (ambiental, tecnológica etc.) contemporâneas - pode ser sintetizado na seguinte questão: se o senso comum perdeu sua capacidade de objetar, é ainda necessário respeitá-lo10 10 Não é exatamente esta a questão explorada por Stengers, embora Civiliser la modernité ? (2017a) traga elementos para uma discussão a este respeito. Por certo, uma discussão desse calibre pode remontar aos próprios fundamentos e limites das ciências humanas, de modo que não cabe no escopo desta resenha. ?

Civiliser la modernité ? (Stengers, 2017STENGERS, Isabelle . Civiliser la modernité ? Whitehead et les ruminations du sens commun. Dijon: Les presses du réel, 2017a.a) soma-se a uma série de reflexões já empreendidas por Stengers acerca do pensamento de Whitehead e de suas contribuições para a produção de conhecimento. Assumindo a contribuição de Whitehead e sua filosofia do processo, para a qual a mudança e a dinamicidade são justamente o objeto a ser considerado, o que podemos nós frente a um cenário de incertezas e arranjos contingentes?

E o fato de que podemos sentir que o mundo moderno não pode mais ser caracterizado em termos de declínio, que podemos questionar o que os historiadores do presente nomeiam de “a grande aceleração”, o crescimento acelerado do impacto em nosso meio do que é chamado de desenvolvimento, que ameaça todos os habitantes da Terra, não é suficiente para colocar em xeque o diagnóstico de Whitehead. O que o desenvolvimento provocou pode até parecer mais uma verificação inegável da natureza formidável de nossos modos de abstração. Whitehead escreveu que toda sociedade depende da paciência de seu ambiente quanto ao modo como ela o afeta. A terra perdeu a paciência11 11 No original: “Et le fait que nous puissions sentir que le monde moderne ne peut plus être caractérisé en termes de déclin, que nous ayons plutôt pour question ce que les historiens du présent nomment ‘la grande accélération’, la croissance accélérée de l’impact sur nous milieux de ce que l’on appelle développement, qui menace tous les habitants de la Terre, n’est pas, en tant que tel, susceptible de mettre en cause le diagnostique de Whitehead. Ce que le développement a provoqué peut même apparaître plutôt comme une vérification indéniable du caractère redoutable de nos modes d’abstraction. Whitehead avait écrit que toute société dépend de la patience de son environnement quant à la manière dont elle l’affecte. La Terre a perdu patience”. (Stengers, 2017STENGERS, Isabelle . Civiliser la modernité ? Whitehead et les ruminations du sens commun. Dijon: Les presses du réel, 2017a.a, p. 163).

Nessa obra, o intenso diálogo teórico da filósofa com Haraway, Latour e Tsing nos convida a pensar sobre a provisoriedade das relações, recusando soluções fatalistas como é a própria ideia de Antropoceno: de fato vivemos um tempo de ruínas, e, talvez por esta mesma razão, civilizar a modernidade seja um pouco civilizar as abstrações. Se à filosofia - e aqui estendo a todas as Humanidades - cabe soldar a imaginação e o senso comum, produzir conhecimento neste contexto, staying with the trouble, talvez finalmente nos permita imaginar mais, especular mais.

Referências

  • CAMACHO, Roberto Gomes. Em defesa da categoria de voz média no português. DELTA, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 91-122, 2003. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-44502003000100004
    » http://dx.doi.org/10.1590/S0102-44502003000100004
  • CHAKRABARTY, Dipesh. The climate of history: four theses. Critical Inquiry, The University of Chicago Press, v. 35, n. 2, p. 197-222, 2009.
  • HARAWAY, Donna. Staying with the trouble: making kin in the Cthulhucene. Duke University Press: Durham e Londres, 2016.
  • HARAWAY, Donna. Anthropocene, Capitalocene, Chthulucene: staying with the trouble. In: Anthropocene: arts of living on a damaged planet (Conferência na Universidade da Califórnia), 2014. Registro eletrônico, Santa Cruz, 2014. Disponível em: https://vimeo.com/97663518
    » https://vimeo.com/97663518
  • HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu. n. 5, p. 7-42, 1995.
  • LATOUR, Bruno. Agency at the time of the Anthropocene. New Literary History, v. 45, p. 1-18, 2014. Disponível em: http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/128-FELSKI-HOLBERG-NLH-FINAL.pdf
    » http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/128-FELSKI-HOLBERG-NLH-FINAL.pdf
  • LATOUR, Bruno. Factures/fractures: de la notion de réseau à celle d’attachement.In: MICOUD, André; PERONI, Michel (Org.). Ce qui nous relie. Paris: Editions de l’Aube, La Tour d’Aigues, 2000. p. 189-208. Disponível em http://bruno-latour.fr/sites/default/files/76-FAKTURA-FR.pdf
    » http://bruno-latour.fr/sites/default/files/76-FAKTURA-FR.pdf
  • STENGERS, Isabelle . Civiliser la modernité ? Whitehead et les ruminations du sens commun. Dijon: Les presses du réel, 2017a.
  • STENGERS, Isabelle . Reativar o animismo. Caderno de leituras, n. 62, p. 1-15, 2017b. Disponível em: http://chaodafeira.com/cadernos/reativar-o-animismo/
    » http://chaodafeira.com/cadernos/reativar-o-animismo/
  • STENGERS, Isabelle . No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
  • STRATHERN, Marilyn. Partial connections. Savage: Rowman and Littlefield, 1991.
  • TSING, Anna L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.
  • TSING, Anna L. Le champignon de la fin du monde: sur la possibilité de vie dans les ruines du capitalisme. Paris: La découverte, 2017.
  • WHITEHEAD, Alfred N. Process and reality: an essay in cosmology. New York: The Free Press, 1978.
  • 1
    No original: “Il s’agit plutôt d’oser imaginer que ce que l’on sait , ce qu’insiste sourdement et fait ruminer malgré les assurances des savoirs spécialisés, exprime ‘une certaine saisi’ de l’immensité des choses”.
  • 2
    Tal questão foge do escopo desta resenha, mas registro que, no campo da linguística, é possível acessar uma discussão acerca da possibilidade da “voz média” em português. Para tanto, sugere-se a leitura de Camacho (2003)CAMACHO, Roberto Gomes. Em defesa da categoria de voz média no português. DELTA, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 91-122, 2003. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-44502003000100004.
    http://dx.doi.org/10.1590/S0102-44502003...
    .
  • 3
    No original: “Elle change tout ce qu’elle touche et tout ce qu’elle touche change”.
  • 4
    O que configura um ator é um tema recorrente na obra de Stengers e de seus interlocutores. Bruno Latour (2000)LATOUR, Bruno. Factures/fractures: de la notion de réseau à celle d’attachement.In: MICOUD, André; PERONI, Michel (Org.). Ce qui nous relie. Paris: Editions de l’Aube, La Tour d’Aigues, 2000. p. 189-208. Disponível em http://bruno-latour.fr/sites/default/files/76-FAKTURA-FR.pdf.
    http://bruno-latour.fr/sites/default/fil...
    , aliás, já discutiu este tema mobilizando a noção de voz média.
  • 5
    Em linhas gerais, o Antropoceno pode ser definido como uma nova era geológica, na qual a ação humana é assumida como um agente geológico. Em diversas reflexões a respeito, fica latente uma ideia de que a possibilidade de vida (humana) no planeta estaria próxima do fim. Esta paradoxal capacidade de agência humana (que, por um lado, é responsável por uma nova era geológica e, por outro, não consegue revertê-la) tem sido problematizada em diversas esferas. Além das contribuições já citadas de Haraway e Tsing, sugere-se Chakrabarty (2009)CHAKRABARTY, Dipesh. The climate of history: four theses. Critical Inquiry, The University of Chicago Press, v. 35, n. 2, p. 197-222, 2009. e Latour (2014)LATOUR, Bruno. Agency at the time of the Anthropocene. New Literary History, v. 45, p. 1-18, 2014. Disponível em: http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/128-FELSKI-HOLBERG-NLH-FINAL.pdf.
    http://www.bruno-latour.fr/sites/default...
    .
  • 6
    Comunicação pessoal de Isabelle Stengers no âmbito da jornada de estudos “Civiliser la Modernité”, realizada em 12 de março de 2019, na Universidade Livre de Bruxelas, Bélgica.
  • 7
    No original: “Comment se laisser toucher, affecter, et comment conférer à ce qui nous touche le pouvoir de nous faire penser ? Pour que cette question nous situe, humains civilisés si fiers d’assumer la solitude du maitre retranché dans sa Maison, il faut oser le laisser affecter par sa version tentaculaire. (...) qu’est-ce qui nous prend ? Qu’est-ce qui nous a pris? Quelle pensée nous fait penser les pensées des autres sur un mode qui fait de nous les maitres du sens à attribuer à leur expérience ? ”.
  • 8
    Stengers (2017a, p. 14) justifica que não se trata de uma derrota como se houvesse um campo de batalha ou causa específica a defender. Não estou convencida a este respeito, como fica manifesto na sequência.
  • 9
    No original: “Car ruminer, c’est refuser - sourdement peut-être, sans déployer un discours contradictoire - de perdre confiance dans la valeur d’une expérience, même si celle-ci est difficile à mettre en mots ou est mise en difficulté par une théorie qui la disqualifie. Ce qui est défait est la possibilité d’un rapport de méfiance par rapport aux théories elles-mêmes”.
  • 10
    Não é exatamente esta a questão explorada por Stengers, embora Civiliser la modernité ? (2017a) traga elementos para uma discussão a este respeito. Por certo, uma discussão desse calibre pode remontar aos próprios fundamentos e limites das ciências humanas, de modo que não cabe no escopo desta resenha.
  • 11
    No original: “Et le fait que nous puissions sentir que le monde moderne ne peut plus être caractérisé en termes de déclin, que nous ayons plutôt pour question ce que les historiens du présent nomment ‘la grande accélération’, la croissance accélérée de l’impact sur nous milieux de ce que l’on appelle développement, qui menace tous les habitants de la Terre, n’est pas, en tant que tel, susceptible de mettre en cause le diagnostique de Whitehead. Ce que le développement a provoqué peut même apparaître plutôt comme une vérification indéniable du caractère redoutable de nos modes d’abstraction. Whitehead avait écrit que toute société dépend de la patience de son environnement quant à la manière dont elle l’affecte. La Terre a perdu patience”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2019
  • Aceito
    14 Jun 2019
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFRGS Av. Bento Gonçalves, 9500 Prédio 43111 sala 103 , 91509-900 Porto Alegre RS Brasil , Tel.: +55 51 3316-6635 / 3308-7008, Fax.: +55 51 3316-6637 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: revsoc@ufrgs.br