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"Ganchos, Tachos e Biscates": os desenrascanços epistemológicos e metodológicos de uma jovem Sociologia da Juventude

Ganchos, tachos e biscates: the epistemological and methodological unfoldings of a young sociology of Youth

RESENHA

"Ganchos, Tachos e Biscates": os desenrascanços1 1 Os termos "ganchos, tachos e biscates são expressões idiomáticas utilizadas em Portugal para se referir a estratégias de trabalho precário. O termo"desenrascanços" faz parte deste mesmo campo paradigmático e designa o conjunto geral das estratégias de sobrevivência utilizadas pelos jovens. epistemológicos e metodológicos de uma jovem Sociologia da Juventude

Ganchos, tachos e biscates: the epistemological and methodological unfoldings of a young sociology of Youth

Fábio Dal Molin

Psicólogo, mestre em Psicologia Social e Institucional e doutorando em Sociologia -UFRGS, bolsista CAPES. Brasil

RESUMO

Este artigo é um comentário crítico sobre o livro "Ganchos, Tachos e Biscates: Jovens, Trabalho e Futuro", do Economista e Doutor em Sociologia português José Machado Pais. São abordados aspectos interessantes a respeito da metodologia utilizada, constituída de entrevistas em profundidade, individuais e em grupos, etnografia, e análise teórica heterogênea e contemporânea. Ressalta-se a importância do trabalho no estudo da juventude contemporânea considerando as trajetórias complexas e não-lineares de jovens que se utilizam das mais variadas estratégias de sobrevivência em um contexto de trabalho precário ou até mesmo ilegal, em Portugal.

Palavras-chave: juventude, pesquisa qualitativa, sociologia, complexidade, trabalho.

ABSTRACT

This work is a critical commentary on the book "Ganchos, Tachos e Biscates: Jovens, Trabalho e Futuro", by Portuguese Economist and Sociology Doctor José Machado Pais. Interesting aspects are approached regarding the methodology used, which includes individual and group in-depth interviews, ethnography, and heterogeneous and contemporary theoretical analysis. The relevance of the work for the study of today's youth is underscored, considering the complex and nonlinear trajectories of youths that use several distinct survival strategies in a precarious or even illegal labor context in Portugal.

Key words: youth, qualitative research, sociology, complexity, labor.

Ganchos, tachos e biscates: jovens, trabalho e futuro

PAIS, José Machado. Porto: Ambar, 2001.

Introdução

A temática da juventude, ainda que não seja uma novidade, ocupa um território cada vez maior nas ciências humanas no séc XXI. Universidades, centros de pesquisa e organizações da sociedade civil têm mobilizado cada vez mais recursos humanos e financeiros em pesquisas que envolvem a juventude, em inúmeras temáticas: violência, trabalho, sexualidade, cultura, e suas decorrentes interligações. Em países com problemáticas sociais diversas como Brasil, Canadá e Portugal são criados observatórios da juventude, cujo objetivo é mobilizar redes e construir bases de dados. Os dados sobre a juventude têm sido fornecidos predominantemente por estudos quantitativos que revelam hábitos de consumo, lazer, perfis socioeconômicos, fatores de vulnerabilidade social, emprego e saúde. O jovem como campo de investigação surge na contemporaneidade pesquisado por antropólogos, psicólogos, psiquiatras, sociólogos, educadores e assistentes sociais. Como afirma Novaes2 2 Juventude e participação social: apontamentos sobre a reinvenção da política in Abramo, Helena W. Freitas, Maria V., Sposito, Marília P.: juventude em debate, São Paulo: Cortez (2002) (2002), é difícil abstrair uma categoria geral da "juventude" sendo mais adequado pensar em "juventudes". É nesta perspectiva que surge a necessidade de estudos que adentrem a complexidade dos jovens e acompanhem suas trajetórias de vida, pois a amplitude dos dados quantitativos adquire perspectiva e consistência na especificidade dos qualitativos. Este artigo comenta, em um viés epistemológico (construção do objeto complexo) e metodológico (estratégias de captação da realidade), a obra de um dos maiores expoentes da Sociologia da Juventude na atualidade, o português José Machado Pais.3 3 Licenciado em Economia e Doutorado em Sociologia, é Investigador Coordenador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa e Professor Convidado do ISCTE, onde tem lecionado Sociologia da Vida Quotidiana O livro "Ganchos Tachos e Biscates: jovens, trabalho e futuro" é uma preciosa contribuição aos estudos qualitativos sobre a juventude, apresentando uma metodologia formada por entrevistas profundas e etnografias detalhadas em um cenário de largo alcance temático e precisão analítica.

Por uma Sociologia transdisciplinar e estética

Há aqueles sociólogos que são reféns de seus encantamentos. Se uma hipótese é sedutora e uma teoria é bela, deleitam-se sem pensar na realidade. Há, por outro lado, os que se perdem nesta mesma realidade à falta de hipóteses e teorias que a ajudem a explicar. Desgraçadamente, o acto de teorizar é cada vez mais um modo de submeter grupos de acontecimentos a alguma legitimidade e cada vez menos uma tentativa de os enfrentar através de questionamentos e problematizações. A Sociologia está aí, não para criar problemas, mas para suscitar reflexões. (Machado Pais, 2001, p.12).

Otavio Ianni, em um dos seus últimos congressos, o XII Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, em uma efusiva homenagem aos grandes autores da Sociologia, proferiu veemente as seguintes palavras: a Sociologia é uma arte. Enigmática, porém contundente, a afirmação parecia referir-se a uma função do pensamento esquecida em alguns ambientes acadêmicos: a contemplação. Se, no meio artístico, existe a arte conceitual por que a Sociologia não pode ser, em alguns momentos, uma ciência artística? Os autores de ficção, que projetaram mundos e sociedades, arriscaram-se como cientistas sociais ou psicólogos e partiram da realidade de onde vivem para projetar cenários mundiais com consistência e riqueza de detalhes. Não caberia a nós, das Ciências Sociais, aproveitar nossos dados e análises para provocar um pouco o senso estético de nosso público? E há também que levar em conta a relação do pesquisador-escritor com o leitor contemporâneo, inserido na rede sociocognitiva na qual a multimídia e o hipertexto são elementos cotidianos, cuja demanda de leitura é sedenta por imaginação e propostas inovadoras. Talvez os investigadores sociais ou psicológicos precisem usar da ficção, da narrativa, da imaginação para que seus mundos "reais" sejam também inteligíveis e consistentes como os mundos da ficção.

É neste espírito que José Machado Pais ocupa uma posição de dobra deleuziana4 4 O conceito de dobra é relativo à quebra que Deleuze faz das dicotomias "indivíduo-sociedade" , "arte-ciência", etc. É importante visitar a obra Diálogos (1992). entre o artista e o cientista social e também se arrisca como psicólogo social, não daqueles amarrados a pesquisas experimentais, mas os preocupados com a produção polifônica de subjetividades pulsantes, territórios que se formam na precariedade, no processo de inserção do Caos que é o estudo da subjetividade, na reversibilidade entre ordem e desordem, ou Caosmose.5 5 Caosmose: um novo paradigma ético estético é o título de uma obra de Félix Guattari, psicanalista, crítico de arte e analista institucional. Este autor é citado mais de uma vez no livro). Diz Guattari: Minhas atividades profissionais no campo da psicopatologia e da psicoterapia, assim como meus engajamentos político e cultural levaram-me a enfatizar cada vez mais a subjetividade enquanto produzida por instâncias individuais, coletivas e institucionais (1998, p.11)

Esta é a barreira quebrada na obra aqui comentada: a caixa preta6 6 A caixa preta é uma alegoria referente às impossibilidades de alcance do objeto. No behaviorismo, por exemplo, a caixa preta seria a dimensão interna da mente, apenas acessível pela observação do comportamento. Apresenta-se aqui a idéia de que, para as ciências sociais, a dimensão aumenta, e a categoria "indivíduo" é tratada como caixa preta. é virada do avesso, sendo utilizadas teorias pós-lineares que se despojam um pouco do estatuto de "teoria" e dão conta de uma subjetividade que não guarda lugar fixo no "indivíduo" nem é a mera marca da "socialização". Machado Pais segue a tradição fenomenológica de Husserl de retornar ao objeto, no caso, a "juventude" e esquecer-se por um momento de matrizes disciplinares, ainda avançando no sentido de explicar como é possível em um estudo qualitativo e subjetivo obter categorias e análises sociológicas.

Nesta perspectiva, o Capitalismo é visto como um regime de signos produtor de subjetividades, e tais signos produzem e são produzidos por sujeitos desejantes que encontram sua expressão nos meios de comunicação e nos grandes espaços de convivência. A explosão populacional no século XX gerou demandas de produção coletiva de tecnologia e símbolos, sendo a juventude seu grande motor. Tive oportunidade de conhecer Machado Pais no I Simpósio Internacional Sobre a Juventude Brasileira. Na ocasião, na mesa redonda em que foi palestrante, ele apresentou um conceito de identidade que transcende o objetivo e o subjetivo, a transjetividade. A transjetividade dá conta da análise do fenômeno da juventude pela cartografia de suas redes sociais e subjetivas. Quer dizer, as instituições fornecem um topos (a casa, a sala de aula, a igreja, etc.) onde se opera a produção da subjectividade. Cada instituição tem as suas regras próprias de subjectivação. (Machado Pais, 2001, p.405)

As juventudes e as transjetividades capitalistas

A história da juventude começa conjuntamente com o breve século XX7 7 Ver Eric Hobsbawn A era dos extremos, Rio de Janeiro: Paz e Terra(1994)_. , o século da globalização e da cultura pop, que veio a explodir neste início do século XXI, com a total liquidez do dinheiro pela via das agências de crédito fácil e da maior flexibilidade de endividamento de classes de desempregados e subempregados. Para os cidadãos consumidores da contemporaneidade, não possuir emprego ou salário não impede mais o consumo, a conta sempre é cobrada e gera a busca desenfreada de trabalho para pagar não só a comida, mas as dívidas. Tudo pode ser produzido em escala industrial: roupas, aparelhos eletrônicos, automóveis, armas, música e drogas psicoativas, e é fundamental que haja consumo. Se, por um lado, o maior acesso ao consumo trouxe benefícios inestimáveis, por outro, alimenta a geração daquilo que a Sociologia contemporânea chama de trabalho precário. Basta imaginar que, há vinte anos, abrir uma conta em um banco e obter talão de cheques era uma operação que requeria comprovações de idoneidade, renda e uma série de garantias e, quando o saldo dessa conta zerava, era necessário conversar com o gerente, pedir empréstimo ou até mesmo cancelar a conta. Hoje proliferam as promoções de contas para universitários com isenções de tarifas, mas com outros produtos do tipo "cheque especial" ou cartões de crédito, que criam a ilusão de que, mesmo com o saldo estourado, ainda há dinheiro, e possibilitam a compra imediata de bens a serem pagos a posteriori. Como uma parte dos jovens de classe média-baixa são público-alvo do mercado e vivem de "mesada" ou de biscates e estágios de baixa remuneração, rapidamente tornam-se devedores do banco, recorrendo aos pais para quitarem as dívidas ou protelarem a inclusão no Serviço de Proteção ao Crédito, e acabam sendo forçados a trabalhar para cobrir o saldo negativo ou a amortização dos juros. Em uma situação de ameaça jurídica e perda da credibilidade, qualquer maneira de ganhar dinheiro pode ser aceita. E, além disso, o consumo é algo fundamental em nossa sociedade, pois somos todos consumidores de comida, de lazer, de aparelhos eletrônicos, de drogas, de terapias, de afetos. O mundo jovem, jovem mundo, ou mundo dos jovens no século XXI passa justamente por ampla circulação de capital simbólico atravessada principalmente pelo capital financeiro, entidade abstrata, mas que se atualiza em modos de consumir.

Uma população cada vez maior de jovens entra no mundo do consumo, em especial do entretenimento. É preciso que as Ciências Humanas saiam do século XIX, do evolucionismo e das etapas do desenvolvimento, e prestem mais atenção às etnografias de uma grande cultura massiva de multiplicidades atravessadas pelo questionamento do suposto papel da Escola, do Trabalho ou da Família como reguladores sociais. Os conceitos de modernidade tardia (Giddens, 1991), modernidade líquida (Bauman, 2001) e sociedade de controle (Deleuze, 1992), exprimem um mundo contemporâneo em que as instituições disciplinares diluem-se em máquinas subjetivadoras abstratas. A prisão retorna aos tempos do suplício, os hospitais privados funcionam como empresas cujo objetivo é o lucro, e os públicos como máquinas higienistas, sendo a alternativa viável os programas preventivos, e na prevenção operam os conceitos de risco (Giddens, 1991). As empresas, em geral, montam-se e se desmontam aos blocos, terceirizam os serviços e flexibilizam a contratação de mão de obra. O trabalho é, paradoxalmente, autônomo e precário, sendo que esta autonomia é relativa porque sempre está sujeita a fluxos. A estabilidade das relações trabalhistas e a proteção social tendem a decair, mesmo nos países mais desenvolvidos, e não atinge o vasto contingente populacional, embora o consumo se universalize na proporção inversa. Milhares de jovens do meio urbano encontram como alternativa o mercado ilícito, ou irregular. A busca pelo emprego é uma trajetória não-linear e acidentada de ganchos, tachos e biscates.

José Machado Pais adentra esta complexidade do trabalho precário na população jovem, em um estudo qualitativo, no qual a rastreia em seus caminhos de redes simbólicas e "transjetivas".

As histórias contadas pelos jovens portugueses reverberam em análises polifônicas e polimórficas do autor, e, de forma transdisciplinar, o social é espremido do subjetivo, e, reversivamente, o subjetivo do social, e cenários múltiplos e complexos estão acessíveis para o cientista social, seja ele antropólogo, psicólogo, sociólogo ou cientista político. O tema do trabalho precário entre os jovens serve como receptáculo para todas as áreas de investigação: a sociologia do trabalho e das profissões naqueles jovens que pingam em contratos temporários, a sociologia da violência e da saúde entre aqueles jovens toxicodependentes que "arrumam" carros,8 8 Os "arrumadores de carros" são os aqui chamados guardadores de carros ou "flanelinhas". ou que mendigam alguns cobres em supermercados e os que percorreram caminhos ilícitos, desenvolvendo a milenar arte de roubar.

Machado Pais demonstra, nesta obra, que o rigor metodológico e a clareza conceitual não são em nada prejudicados quando a eles se acrescenta uma ordem difusa e um linguajar de primor estético. Afinal, no desafio de biografar jovens na contemporaneidade, Pais depara-se com o avesso das histórias de vida, do tipo "nasceu, freqüentou a escola, chegou à universidade, publicou sua primeira obra", ou, pelo contrário, "nasceu pobre, desde cedo entrou para as drogas e o crime". Não há psicólogos, médicos, filósofos, políticos, heróis ou "bandidões" na amostra da pesquisa, mas jovens e suas estratégias de desenrascanços, que lutam para ter dinheiro, consumir, fugir do fantasma paterno, cada vez mais distantes daquele sistema ideal de emprego, estudo e família, ou dos maniqueísmos vendidos em políticas de inclusão social. Na concepção do autor, é perigoso falar em inclusão em uma sociedade que exclui. Neste aspecto, a realidade é, ao mesmo, tempo sombria e animadora; sombria pela presença constante da ineficácia da Escola em produzir perspectivas, na precariedade e perversidade das relações de trabalho e emprego. O fio de esperança parece justamente refletido na grande energia inventiva dos jovens em batalhar por ideais que quase sempre são incertos ou inexistentes, ou na luta pela própria sobrevivência. A metodologia de pesquisa rigorosa e aberta percorre discursos e percursos, permitindo ao leitor vivenciar o processo desejante das trajetórias de vida.

Ora os jovens vivem predominantemente numa espacialidade antropológica que é fractal por natureza, dando guarida ao mítico, ao sonho, ao desejo, à ilusão, ao inesperado, ao indefinido, ao enigmático, ao especulativo, à indeterminação (Machado Pais, 2001 p.11).

Encruzilhadas

O livro chama atenção em seu aspecto formal, tanto como entretenimento quanto como trabalho científico, ocupando uma posição intermediária entre a sisudez das teses acadêmicas e a imersão ficcional das obras literárias. As categorias e subcategorias são pontuadas por pequenos títulos sintéticos oscilantes entre a seriedade conceitual e uma leve jocosidade, transcritos a seguir.

1.Trabalho precário, 1.1Encontrar trabalho: uma lotaria , 1.2 mistério dos jovens desaparecidos nas teias das estatísticas do desemprego, 1.3 A formação profissional: as profecias também se abatem. 2. Labirintos de vida e trajetórias yô-yô, 3.Por uma sociologia da pós-linearidade 4- Dos relatos aos conteúdos de vida.

O autor também não sonega a si mesmo a oportunidade de forjar frases fortes, extremamente conclusivas e raramente vistas em trabalhos acadêmicos, até porque seu campo de observação é, como se espera de um estudo qualitativo, repleto de nuances e surpresas. Como na frase abaixo, referente à pesquisa com duas prostitutas universitárias:

Ao contrário do que, por vezes, sucede no mercado de trabalho convencional, onde os títulos universitários de pouco valem, no mercado da prostituição o título universitário valoriza uma puta, dá-lhe estatuto, e logo, o pretexto de cobrar mais... (Machado Pais, 2001, p.270):

No primeiro capítulo, Machado Pais forja conceitos híbridos e discute a sociologia da pós-linearidade, pois seu objetivo é cartografar a precarização do trabalho em uma categoria jovem e precária, os jovens. A linha de pesquisa em questão, Sociologia da Juventude, apresenta estudos ainda mais jovens do que as recém-nascidas Infância e Adolescência. O autor realiza um estudo etnográfico e biográfico com jovens portugueses, em sua maioria próximos aos trinta anos, e parece revelar que, nesta idade, as temporalidades entrecruzam-se, a adolescência ainda parece próxima, pois ainda o futuro é incerto, e as influências paternas e sociais parecem ambivalentes, ora muito próximas e repressoras, ora muito distantes: prostitutas universitárias, arrumadores de carros, jovens que vivem intensamente a busca por trabalhos múltiplos (ganchos e biscates), em setores da economia informal, empregos sem contrato, e até mesmo os que buscam na política alguma maneira de construir a vida.

As trajetórias Yo-yô, metáfora extraída do brinquedo que sobe e desce, vai e vem, mostram que a vida dos jovens, explícitas em seus discursos coloridos de gírias e incongruências, apresenta uma característica hipertextual como a de navegarmos em páginas da Internet, que nos levam a outras páginas e, por vezes a caminhos muito diferentes em relação ao ponto de partida. Entre o movimento vai-e-vem, as transjetividades buscam modos de deslocamento, alguns desenvolvendo estratégias refinadas, utilizando-se de guias, mapas, bússolas, outros deixando-se levar à deriva. No espaço estriado das etapas da vida – infância, escola, adolescência, trabalho –, os jovens percorrem espaços lisos e subvertem as linhas temporais. A adolescência pode começar ou terminar aos 18 ou aos 30. A metáfora do liso e do estriado aparece na obra da dupla Deleuze & Guattari, pensadores franceses que, não por acaso, iniciaram sua parceria do mítico ano de 1968.9 9 DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia vol 5. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996 A idéia do liso está conectada ao plano das intensidades, dos fluxos e das concepções abstratas, ao passo que o estriado representa as segmentaridades, divisões espaço-temporais. Ao espaço estriado da relação escola-universidade-trabalho, os jovens contemporâneos, segundo Machado Pais, opõem o espaço liso do trabalho informal, das ilegalidades, das estratégias de sobrevivência, e a busca de autonomia.

Fazer pela vida: percursos e discursos

Nesta segunda etapa, Machado Pais conduz o leitor pela sua "etnocartografia", colocando-se de espírito aberto, como a curiosa passagem na qual vai ao bairro de prostituição pela primeira vez ou quando marca o encontro com suas entrevistadas e se depara com seu preconceito ingênuo de sociólogo, ao afirmar que elas não têm cara de "putas". Ou quando resolve quebrar a sisudez e ir à discoteca onde trabalha seu entrevistado, um disc-jóquei angolano. São variadas as categorizações e análises feitas no decorrer dos capítulos, tanto em termos paradigmáticos (contextuais e interpretativas) que vão de Max Weber a Richard Sennet quanto em termos sintagmáticos (intrínsecas ao texto), quando Pais observa a etimologia de certas palavras ou propõe análises semióticas das gírias.

1-Distribuindo pizas: 10 10 Pizzas vida estafada a de estafeta,

2-Um modo de vida original: Ninó para aqui, Ninó para ali 3- Até cair de baixa. 4- Vida de disc-jóquei: das obras à discoteca

Estes três primeiros casos mostram jovens envolvidos nas teias do mercado de trabalho precário, a descrença na formação escolar como possibilitadora de emprego, os trabalhos na entrega de pizzas, nas prateleiras de supermercados, na construção civil. O jovem que, entre muitos trabalhos, territorializa-se no de "moto-boy" e acaba por constituir-se como "patrão de si mesmo"; a jovem que estuda agronomia, mas chega a exercer três tipos de ganchos diferentes; o rapaz cujo pai arruma um serviço no qual não há o que fazer, e ele se sente preso, quase a enlouquecer, e o trabalho posterior em uma firma de pesquisa de mercado acaba por dar-lhe baixa por stress laboral. Onde estão os empregos sedentários, cronológicos, estáveis? Onde está a identidade do trabalho em um jovem angolano que sofre pelo preconceito racial e, para alimentar seu sonho de ser disc-jóquei faz biscates na construção civil? É inquietante e complicada a relação entre satisfação pessoal e realização profissional desenrolada em desenrascanços dentro de desenrascanços, nas encruzilhadas do sonho de ter uma banda ou de ganhar dinheiro para separar-se dos pais.

5 - Mendigando carrinhos, 6 - Um tacho na política? 7- Jovens acompanhantes: "puta da vida que me fez puta", 8 - Arrumadores de carros, 9 - Ganchos ilícitos

Há uma marcante preocupação metalingüística na obra, já que aparecem labirintos e percursos de vida ainda menos convencionais que, além de precários, flertam com o obscuro e o ilícito. E é curioso como aqui está incluído o gancho na política, nas ambivalências do caminho político-profissional de um rapaz iniciado no movimento estudantil.

Com as prostitutas, aparecem a cautela e a autoproteção, os critérios rígidos na seleção de clientes, a prostituição como maneira de pagar as dívidas ou custear os estudos, tendo como presente o futuro de largar a profissão e as ambivalências do prazer no trabalho de dar prazer, a relação com a culpa, a vergonha, as relações amistosas e profissionais. No estudo sobre arrumadores de carros, é feita uma complexa cartografia das relações de poder, estratégias de saber, de conhecimento e liberdade, das relações solidárias ou de animosidade com clientes e "colegas de profissão". Afinal, que tipo de profissão é a de guardador de carro?

Em Ganchos Ilícitos, Machado Pais nos conduz à arte de roubar e de traficar, na extrema dependência do vício de heroína e também do brilhantismo nos golpes astuciosos e cada vez mais arriscados. Aliás, risco é um conceito caro aqui no capítulo que revisa algumas concepções criminológicas, de Sutherland a Stanley Cohen.

Um jovem DJ angolano que faz biscates como pedreiro e três jovens presidiários completam o quadro complexo e heterogêneo. Fora algumas gírias e especificidades locais, o leitor poderia encaixar essas realidades jovens à de cidades como Porto Alegre, Curitiba ou São Paulo. O capítulo Arrumadores de Carros é o ponto alto do livro, pois mostra uma minuciosa etnografia (cartografia) dos guardadores portugueses de carros, com suas segmentarizações, rotinas, estratégias de organização e sobrevivência: conquista de clientes e suas classificações por tipos, escolha do local certo, disputas entre gerações de guardadores, relações com a dependência química de heroína. Aparece no estudo o duplo vínculo entre o lícito e o ilícito simbolizado pela curiosa introdução dos parquímetros, que extorquem o dinheiro do motorista, mas não o ajudam a manobrar nem cuidam do carro.

Uma importante inversão encontra-se em diversas passagens, semelhante à questão acima descrita, das prostitutas universitárias: a ambivalência da licitude e da ilicitude de certas trajetórias. Os jovens que fazem ganchos, tachos e biscates chamados legais relatam experiências opressoras e traumáticas de excesso de trabalho, trabalho alienante ou de pagamento irrisório, do mesmo modo que guardadores de carros relatam, pagar por vezes, as multas dos automóveis que estacionam em lugar proibido ou de motoristas que lhes confiam as chaves para que manobrem. Há também relato de um trabalho de estafeta, no qual era necessário ficar 12 horas por dia em um escritório sem fazer nada, enquanto jovens golpistas e traficantes esmiúçam suas habilidades na arte de roubar e enganar com orgulho e galhardia. No caso da prostituta que trabalha para pagar dívidas, aparece o fato de que as redes frias da ilicitude são alimentadas por supostas redes quentes de agências financiadoras, ou vendedores de jóias e carros.

Conclusões entre os múltiplos futuros

As conclusões do livro tentam aproximar-se de um futuro incerto, visto que construído em trajetórias não-lineares, complexas e caóticas. A linha que parte da vida e se encerra na morte é preenchida, como na geometria analítica, por infinitos pontos, e, entre cada ponto, podemos enxergar outros infinitos. O passado torna-se futuro porque só está acessível no presente e é apenas no presente que podemos planejar o futuro. Nesta tarefa de temporalizar está também a de espacializar. A juventude é vista como uma etapa de transição, mas afinal, qual etapa não o é? A não-linearidade pode ser desespero para alguns, mas também implica liberdade e esperança.

Não há fuga possível ao labirinto da vida; o que importa é saber viver a vida no labirinto que a constitui. Não vale a pena projectar futuros instáveis, espelhos da instabilidade do presente. È preferível utopizar o futuro e uma forma possível é imaginando futuros múltiplos. Para se criarem condições de possibilidade da utopia, o melhor é não tomar opções comprometedoras, para quem as toma e para as utopias idealizadas. Os compromissos do presente comprometem o futuro, inscrevem-no numa ordem geométrica, contestatória de um presente que se pretende vivido. Então, é preferível especular sobre o futuro (futuro fantasiado ou aberto) ou imaginá-lo como banalidade ou ausência para que, desse modo, o presente seja possível no labirinto da vida (Machado Pais, 2001, p.424).

Ganchos, tachos e Biscates11 11 Seria interessante que esta obra ganhasse uma edição brasileira, para facilitar o acesso a pesquisadores da área, e também para que se pudesse elaborar um glossário de gírias e expressões idiomáticas é um livro corajoso no seu enfrentamento ao tédio acadêmico, às narrativas racionais e monótonas. O autor desfila de maneira literário-científica histórias não sobre, mas de jovens e sua busca por algo que não sabemos direito o que é, mas sabemos que é múltiplo e costurado pelo tênue fio da incerteza. Estudar a juventude e suas estratégias de sobrevivência envolve projetar cenários de precariedade e de ilusão, mas também é dar visibilidade a modos de existência que se territorializam e permitem que políticas públicas possam ser elaboradas com mais consistência e insistência.

Referências

BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001,

DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia vol 5. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996

GIDDENS, Anthony. As consequëncias da modernidade. São Paulo: Ed. da UNESP, 1991

GUATTARI, Félix, Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora 34,1998.

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1994

NOVAES, R. Juventude e participação social: apontamentos sobre a reinvenção da política Em:0Abramo Helena W. Freitas, Maria V., Sposito, Marília P.: Juventude em Debate: São Paulo: 2002, Cortez.

PAIS, José Machado. Ganchos, tachos e biscates: jovens, trabalho e futuro. Porto: AMBAR, 2001

Recebido: 12/11/2004

Aceite final: 21/06/2005

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    Os termos "ganchos, tachos e biscates são expressões idiomáticas utilizadas em Portugal para se referir a estratégias de trabalho precário. O termo"desenrascanços" faz parte deste mesmo campo paradigmático e designa o conjunto geral das estratégias de sobrevivência utilizadas pelos jovens.
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    Juventude e participação social: apontamentos sobre a reinvenção da política in Abramo, Helena W. Freitas, Maria V., Sposito, Marília P.: juventude em debate, São Paulo: Cortez (2002)
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    Licenciado em Economia e Doutorado em Sociologia, é Investigador Coordenador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa e Professor Convidado do ISCTE, onde tem lecionado Sociologia da Vida Quotidiana
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    O conceito de dobra é relativo à quebra que Deleuze faz das dicotomias "indivíduo-sociedade" , "arte-ciência", etc. É importante visitar a obra
    Diálogos (1992).
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    Caosmose: um novo paradigma ético estético é o título de uma obra de Félix Guattari, psicanalista, crítico de arte e analista institucional. Este autor é citado mais de uma vez no livro). Diz Guattari:
    Minhas atividades profissionais no campo da psicopatologia e da psicoterapia, assim como meus engajamentos político e cultural levaram-me a enfatizar cada vez mais a subjetividade enquanto produzida por instâncias individuais, coletivas e institucionais (1998, p.11)
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    A
    caixa preta é uma alegoria referente às impossibilidades de alcance do objeto. No behaviorismo, por exemplo, a caixa preta seria a dimensão interna da mente, apenas acessível pela observação do comportamento. Apresenta-se aqui a idéia de que, para as ciências sociais, a dimensão aumenta, e a categoria "indivíduo" é tratada como
    caixa preta.
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    Ver Eric Hobsbawn A era dos extremos, Rio de Janeiro: Paz e Terra(1994)_.
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    Os "arrumadores de carros" são os aqui chamados guardadores de carros ou "flanelinhas".
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    DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia vol 5. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996
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    Pizzas
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    Seria interessante que esta obra ganhasse uma edição brasileira, para facilitar o acesso a pesquisadores da área, e também para que se pudesse elaborar um glossário de gírias e expressões idiomáticas
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Set 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006
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