Open-access Conduzindo o bastão: a pertinência de Norbert Elias em tempos conturbados

Leading the torch: the relevance of Norbert Elias in troubled times

DELMOTTE, Florence; GÓRNICKA, Barbara. Norbert Elias in troubled times. Figurational approaches to the problems of the twenty-first century. Cham: Palgrave Macmillan, 2021. Série “Palgrave Studies on Norbert Elias”, v. 3

Resumo

A presente resenha apresenta a obra Norbert Elias in troubled times, publicada em 2021 pela Palgrave McMillan, ainda inédita em português. Trata-se de um volume da coleção Palgrave Studies on Norbert Elias, que vem sendo publicada pela mesma editora e ganhando papel de destaque para os estudos da teoria do autor. A obra reúne capítulos que propõem leituras de questões atuais a partir da sociologia figuracional e processual de Elias, escritos por autores de diferentes partes do mundo que tratam de problemas locais e globais e que guardam em comum a característica de serem parte do que pode ser lido como um momento de crise civilizatória que atinge o mundo como um todo, embora se expresse de formas variadas em cada lugar. Trata-se de um volume cuidadosamente escrito e organizado para cumprir o principal propósito da sociologia e do sociólogo, de acordo com o próprio Elias, que é fornecer análises congruentes com a realidade dos fatos para que a humanidade possa conhecer melhor a si mesma e, a partir disso, ter melhores condições de orientar as próprias ações – portanto, uma contribuição fundamental em uma época como a nossa.

Palavras-chave Norbert Elias; teoria sociológica; diagnóstico do presente; figuração; processo social

Abstract

Norbert Elias in troubled times, published in 2021 by Palgrave McMillan and still unpublished in Portuguese, is a volume in the Palgrave Studies on Norbert Elias collection, which has been gaining a prominent role for studies of the author’s theory. The work brings together articles proposing readings of current issues based on Elias’s figurational and process sociology, written by authors from different parts of the world who deal with local and global problems, and who share the experience of being part of what can be read as a moment of civilizational crisis that affects the world as a whole, although expressed in different ways in each place. This volume is carefully written and organized to fulfill the main purpose of sociology and the sociologist, according to Elias himself, which is to provide a reality-congruent understanding of the facts, so that humanity can better know itself and, based on this, have better conditions to guide its own actions – therefore, a fundamental contribution in times such as ours.

Keywords Norbert Elias; sociological theory; diagnosis of time; figuration; social process

Entre os autores que podem ser considerados grandes expoentes da teoria social no século XX, Norbert Elias provavelmente é um daqueles cujas teorias foram menos exploradas em suas potencialidades. O mesmo se pode dizer dos possíveis desdobramentos dessa teoria e, principalmente, das ferramentas desenvolvidas pelo sociólogo alemão para observar a realidade social. Há muitas razões para isso – algumas de ordem histórico-biográfica, outras de ordem teórica. Elas começam junto com o próprio nascimento de sua obra, devido à infeliz coincidência que fez com que sua magnum opus, O Processo civilizador, tenha sido finalizada em um momento muito pouco propício para sua recepção. Afinal, uma análise de manuais de etiqueta e outras fontes históricas de longuíssimo prazo que tenha diagnosticado uma redução radical da presença da violência física no entretecer de relações sociais e interpessoais na sociedade ocidental por volta de 1939, no exato momento em que a barbárie nazista se aproximava de seu apogeu e em que se iniciava a guerra que contabilizou o maior número de mortes da história, parecia, no mínimo, ter pouco a dizer sobre o tempo presente – ao menos para leitores menos atentos. Mas essa é apenas uma das inúmeras razões pelas quais Elias foi, na maior parte de sua vida, como continua a ser até hoje em certa medida, um outsider (ver, por exemplo, Elias, 2001, p. 76).

Elias não se filiou a nenhuma tradição de pensamento específica e não deixou uma escola estabelecida em torno de seu programa de pesquisa. Falava de ideias como “desenvolvimento” e “progresso” num momento em que tais noções haviam caído em descrédito, associadas a uma ideologia evolucionista (Rousseaux; Verreycken, 2021, p. 140; Elias, 2011, p. 218); propôs uma sociologia processual, que interpretava o movimento e a mudança como elementos da condição “normal” da sociedade quando Parsons reinava soberano na sociologia com sua teoria sistemática dos estados estáticos e imutáveis das organizações sociais – relacionando momentos de mudança a crises transitórias (Elias, 2011, p. 212). Elias negou o caráter a priori das categorias kantianas enquanto ainda era estudioso de filosofia em um meio em que não se permitia questionar Kant, rejeitou o marxismo e a crítica totalizante da razão em uma Frankfurt que dava lugar ao Institut fur Sozialwissenschaft em seus dias áureos e jamais fez qualquer concessão a modismos ou a qualquer tipo de ideia que não estivesse em profunda consonância com suas fortes convicções (Elias, 2011, p. 215) – convicções estas que foram nutridas desde muito cedo em sua trajetória intelectual e que ele nunca abandonou.

Assim, seu esquema teórico quase autóctone pode dar a impressão de ter nascido e se encerrado com ele, mesmo que sua concepção do conhecimento fosse completamente incompatível com a ideia de um sistema fechado e pronto. Pelo contrário: em diversas ocasiões, Elias comparou o conhecimento da humanidade a uma corrida de revezamento,1 em que cada pessoa que contribui para o fundo comum dos conhecimentos (Elias, 2011, p. 211), que é compartilhado por toda a sociedade, carrega o bastão até determinado ponto, entregando-o a outro pensador para que este possa partir dali para fazer sua própria corrida em busca de mais conhecimentos a serem adicionados àquele fundo.

Levar adiante o bastão do pensamento eliasiano é o propósito que faz com que a obra que aqui será apresentada seja tão importante. Norbert Elias in troubled times (“Norbert Elias em tempos conturbados”, ainda inédito no Brasil), publicado em 2021 pela Palgrave Macmillan, com organização das sociólogas Florence Delmotte e Barbara Górnicka, é o terceiro volume da Palgrave Studies on Norbert Elias – série organizada pela brasileira Tatiana Landini. A série foi concebida a partir da percepção de uma lacuna significante no mercado de publicações, que é a falta de obras a respeito do sociólogo, de sua teoria e dos possíveis desdobramentos de sua proposta de abordagem. Assim sendo, o volume em questão foi organizado com o intuito de reunir estudos interdisciplinares que tenham a sociologia eliasiana como base e traz contribuições importantes para diversos debates contemporâneos, mostrando que o pensamento do sociólogo continua pertinente e segue sendo um manancial de possibilidades de abordagem das mais variadas realidades sociais.

A obra traz análises de temas atuais, cuja interpretação pode ser beneficiada por uma sociologia que integra a perspectiva figuracional com as perspectivas relacionais de longo prazo, como a que Elias propôs (Delmotte; Górnicka, 2021, p. 2). Escritos antes mesmo do início da pandemia de Covid-19 (embora o assunto tenha sido incorporado posteriormente em alguns textos), os dezoito capítulos, assinados por autores de diferentes regiões do mundo, partem de uma mesma proposta: oferecer chaves de interpretação para os tempos conturbados pelos quais o mundo vinha e vem passando até hoje. Embora reconheçam que qualquer época pode ser interpretada dessa forma de algum ponto de vista, as organizadoras reforçam que há razões para considerar extremamente crítico o momento em que vivemos, com problemas sociais e políticos profundos que demandam compreensão. Eis algumas das razões mencionadas:

A reemergência de populismos nos quatro cantos do mundo; uma administração dramaticamente hesitante, para não dizer calamitosa, das ameaças a nossos ecossistemas; a deterioração das condições de migração e políticas que permanecem desumanas em sua maioria ou que vêm piorando cada vez mais; a manutenção ou até renovação da divisão do mundo em nações; as dificuldades das transições democráticas e até a contenção efetiva da luta contra as desigualdades; o ressurgimento, associado a estas dificuldades, de exclusões de todos os tipos e em todos os níveis; a relativa, mas inegável falha em domesticar a violência pelos Estados, entre eles e no interior de cada um

(Delmotte; Górnicka, 2021, p. 2). 2

As análises aqui dispostas, portanto, partem da proposição de elucidar aspectos de uma época “conturbada”, abrangendo um amplo leque temático (embora, é claro, seja ainda bem restrito diante do espectro de problemas que a nossa época enfrenta). Assim, os autores de cada texto não possuem apenas a incumbência de adaptar ferramentas teóricas a problemas concretos, mas também, e talvez principalmente, a de manter o pensamento eliasiano sempre vivo e em constante reconstrução, contribuindo para enriquecer o aparato teórico-conceitual desse programa de abordagem da realidade e propondo releituras a partir de novos métodos e técnicas de pesquisa (Delmotte; Górnicka, 2021, p. 5-6).

Os capítulos são organizados em três unidades principais, de acordo com o campo temático. São elas: “I – Revisitando temas clássicos”, “II – Violência e faces da guerra” e “III – Relações entre estabelecidos e outsiders e questões do habitus”. Ao final, há ainda uma quarta parte, em que Stephen Mennell – um dos maiores especialistas no pensamento de Norbert Elias da atualidade – propõe reflexões acerca de possíveis implicações políticas de sua teoria.

Na primeira unidade, Renewing classical themes, temos a oportunidade de encontrar com novas formas de abordagem da realidade a partir de conceitos clássicos da teoria de Elias. Os autores dos capítulos que compõem esta unidade se propuseram a renovar o sistema teórico de Elias com capítulos que, embora resultem de análises feitas a partir de uma chave eliasiana, trazem temas dos quais o próprio Elias não chegou a tratar. Assim, seus conceitos e teses são revisitados à luz do momento histórico presente, ao mesmo tempo em que algumas das potencialidades pouco exploradas de sua obra encontram expressão em alguns desses capítulos.

As principais preocupações teóricas de Elias são usadas como lente para observar as questões que são caras aos autores. A importância fundamental que ele dava a uma concepção da sociologia como uma ferramenta de desconstrução de mitos, por exemplo, aparece no capítulo de Matt Clement, que parte dessa premissa para abordar o tema do populismo, reconstruindo a gênese do conceito para tratar das crises vividas por diversos países na última década a partir de lições que Elias extraiu de sua própria experiência na República de Weimar e buscou aplicar ao longo de sua obra (Clement, 2021, p. 58). Aqui, a questão do mito aparece na ascensão de líderes populistas e em acontecimentos motivados por discursos populistas, usando como exemplo a eleição de Donald Trump – mencionando também a de Bolsonaro – e o Brexit, entre outros.

Outra máxima eliasiana, a de que a história é o resultado não planejado de um conjunto de ações deliberadas e não coordenadas, se faz presente no capítulo de Alexander Mack, que propõe reinterpretar a sociologia ecológica do risco de Ulrich Beck e Elizabeth Beck-Gernsheim à luz dessa premissa. O autor propõe uma abordagem do tema que leva em conta a incerteza das ações humanas – e as inevitáveis consequências não planejadas dessas ações –, as interdependências e relações de poder globais e os processos de conhecimento a partir dos quais as pessoas se orientam. Há também capítulos que partem de outra noção central na teoria de Elias. O controle social (especialmente exercido pelo Estado enquanto detentor do uso legítimo da violência), um dos pilares do processo civilizador, é o fio condutor de textos que tratam de temas mais recentes do cenário político mundial, como os processos de corrosão da democracia ou da formação de Estados nacionais pós-dissolução da União Soviética, além do debate a respeito do significado e do enraizamento histórico dos direitos humanos.

A segunda e a terceira unidades do livro são dedicadas a dois dos principais assuntos que organizaram as formulações e a teoria de Elias. A unidade II, “Violência e faces da guerra”, trata dessa que é, talvez, a principal questão que baliza suas investigações e observações históricas e seu diagnóstico do processo civilizador. Alguns dos capítulos desta unidade também contribuem para reforçar um aspecto da teoria de Elias que, embora apareça de forma clara em suas obras, necessita ser constantemente reiterado: o de que o autor não tratou o desenvolvimento histórico de longo prazo da humanidade como se fosse um processo contínuo, linear e irreversível na direção da supressão completa da violência – como alegam alguns críticos, com o intuito de apontar uma suposta ingenuidade em seu diagnóstico. Sua leitura da realidade social sempre tratou do frágil equilíbrio de tensões entre pressões conflituais, inevitavelmente permeado por forças civilizatórias e descivilizatórias (Mennell, 2010, p. 163). Portanto, episódios de violência extrema de curto ou médio prazo não significam a anulação da tendência de longuíssimo prazo do processo civilizador, e muito menos representam uma refutação das teses de Elias. Essa premissa se faz presente principalmente no capítulo de Xavier Rousseaux e Quentin Verreycken, por exemplo, no qual os autores a demonstram a partir da explicação do que eles chamam de ciclos de civilização, descivilização e recivilização – esta última ocorrendo após momentos de violência extrema, como foi o caso do Holocausto (Rousseaux; Verreycken, p. 140).

Um desdobramento possível desse aspecto da teoria de Elias, defendido por alguns de seus intérpretes, é o de que dinâmicas tidas como descivilizatórias não necessariamente representam regressões no processo civilizador. Pelo contrário: elas podem ser produto desse mesmo processo, de modo que manifestações de violência não representem um retorno a estágios pré-civilizatórios de barbárie, mas sejam expressão de novas formas de barbárie que surgem como efeito colateral do próprio processo civilizador. Essa interpretação é defendida no capítulo “Throwback to violence? Outline for a process-sociological approach to ‘terror’ and ‘terrorism’”, no qual os autores abordam o tema do terrorismo, aqui interpretado como uma espécie de “barbárie secundária” – ou seja, não como um desarranjo regressivo, mas sim como uma expressão de negação do processo civilizador. Dito de outro modo, trata-se de uma reação violenta a um fenômeno produzido pelo processo civilizador mas que, para se perpetrar, se vale de ferramentas produzidas nele e em função dele.

Há também uma importante contribuição que trata da questão indígena no Brasil. No capítulo “Violence and power: the Kaiowá and Guarani indigenous peoples”, as autoras Maria Beatriz Ferreira, Marina Vinha e Veronice Rossato abordam a violência sofrida pelos povos indígenas Guarani e Kaiowá que habitam a Reserva Indígena de Dourados, dando destaque à correlação de forças extremamente desproporcional que caracteriza a disputa de poder entre esses povos e aqueles que vêm colonizando seu território e sua cultura desde a chegada dos primeiros europeus até os dias atuais. Ao mesmo tempo, esse capítulo também concorre para o fortalecimento do programa de pesquisa eliasiano, uma vez que demonstra que a teoria de Elias pode ajudar a elucidar aspectos de organizações sociais não ocidentais sem que, com isso, se esteja querendo encaixá-las em um modelo europeu de processo civilizador.

Por fim, há a unidade III, cujos capítulos tratam de outra temática central do pensamento de Elias: a relação entre estabelecidos e outsiders em configurações sociais diversas. Como ressaltam as organizadoras, a teoria de Elias sobre a forma como se dão essas dinâmicas é de extrema utilidade quando se pretende entender como relações de poder, especialmente aquelas correlações muito assimétricas entre grupos distintos, foram e vêm sendo moldadas, e de que formas elas podem evoluir (Delmotte; Górnicka, 2021, p. 10). Os textos reunidos na terceira unidade são exemplos da pertinência e do alcance dessa teoria, que aqui ilumina a interpretação de casos tão diversos como o de imigrantes que solicitam asilo na Irlanda, da relação entre gerações distintas do povo palestino e da formação do Estado de Israel, entre outras. Cabe, finalmente, mencionar o primeiro capítulo da unidade, no qual as autoras propõem uma aproximação ontológica e epistemológica entre o pensamento de Elias e perspectivas indígenas (mais especificamente do povo Anishinaabeg, que vive em um território dividido entre os Estados Unidos e o Canadá), indicando diálogos possíveis e ressaltando de que modo uma visão pode enriquecer a outra.

A quarta parte, composta apenas pelo capítulo de Stephen Mennell, que encerra a obra, é a representação mais direta do espírito que anima o livro como um todo – o de produzir sociologia como Elias imaginava que ela deveria ser. Ele costumava dizer que o objetivo maior de sua obra era ajudar a remover o véu das fantasias que a humanidade cria para si mesma para não encarar de frente realidades que podem, às vezes, ser dolorosas demais (ver, por exemplo, Elias, 1994 e 2001), e é nesse sentido que ele defendia que o sociólogo é, acima de tudo, um caçador de mitos (Elias, 2008). Por isso, suas formulações epistemológicas tinham como leitmotiv o entendimento de que a fundamental compreensão da humanidade de si mesma seria viabilizada apenas por uma observação radicalmente realista dos fatos da vida social, ou seja, a partir de uma abordagem mais “congruente com a realidade” e menos conduzida por emoções (Delmotte; Górnicka, 2021, p. 4). Disso decorre a necessidade de que o sociólogo evite, tanto quanto possível, deixar-se influenciar por um dever ser inerente ao envolvimento com questões urgentes do presente – uma postura intelectual que, segundo ele, permite que ideais formulados com base nesse envolvimento e emoções decorrentes dele interfiram na observação da realidade e na formulação de suas explicações – o que, consequentemente, prejudicaria a capacidade de dominar as situações (Elias, 1998). Para ele, essa postura avessa ao envolvimento era o caminho pelo qual a sociologia poderia realizar sua vocação mais fundamental: a de disponibilizar conhecimentos que possam servir como meio de orientação para as ações. Mennell cita uma das passagens em que Elias defende esse ponto de vista em seu capítulo “Some political implications of Sociology from an Eliasian point of view”:

O mundo humano ainda é, em grande medida, um mundo desconhecido. Nós não nos conhecemos bem. E esta é, a meu ver, a principal tarefa da sociologia: obter conhecimento acurado a respeito do nível humano do universo, que nós formamos uns com os outros. Vejamos: a minha impressão é que nós devemos ser capazes de produzir mais conhecimentos que se prestem a aplicações práticas do que o que temos hoje

(Elias apud Mennell, 2021, p. 336, tradução própria).3

De certo ponto de vista, podemos então considerar que os capítulos do livro também fornecem, cada um a seu modo, substrato de conhecimento para que as pessoas orientem suas ações de acordo com o contexto em que estão vivendo – o que também é elemento basilar do processo civilizador. Isso porque, além de ter demonstrado que o desenvolvimento desse processo no sentido da civilização depende do equilíbrio entre as três formas de controle, Elias ressaltou que isso depende não apenas do devido funcionamento das instituições e mecanismos próprios de cada uma dessas esferas, mas também de que haja, por parte dos agentes, certo grau de conhecimento em relação ao modo como eles funcionam (Elias, 1997, p. 280). Sem esse conhecimento – e a disposição para aplicá-lo por parte dos que têm poder para fazê-lo – a humanidade não poderá agir de nenhuma forma no sentido de manter esses mecanismos em funcionamento, e estará sempre sujeita a desarranjos que, a seus olhos, parecerão incompreensíveis (Elias, 1997). E mais ainda estará sujeita a ameaças que representa para si mesma e aos ciclos de medo e irracionalidade que o autor descreveu para caracterizar os processos de colapso da civilização (Elias, 1998, p. 41). Daí a importância da sociologia e de livros como este, que propõem uma abordagem realista dos problemas.

Por isso, o último capítulo serve de corolário para o fio condutor da obra como um todo. O problema tratado por Mennell transcende contextos específicos e abrange o cenário político mundial da época presente. Seu texto tem como proposta oferecer uma avaliação das condições de possibilidade da democracia a partir de uma perspectiva relacional e figuracional.

Se a democracia é também um jogo de poder – onde, num modelo ideal, todos teriam o direito aos mesmos meios para jogar e influenciar seus rumos – não há como pensar a respeito dela sem ferramentas sólidas de avaliação dos meios para o exercício desse poder e das dinâmicas sociais que o determinam. Como Mennell demonstra em seu capítulo, os modelos de jogo desenvolvidos por Elias funcionam como uma excelente forma de iluminar essas disputas. O autor argumenta que o equilíbrio de forças sobre o qual se sustenta o processo civilizador depende de uma organização política que favoreça a diminuição de disparidades de poder – disparidades estas que podem ser causadoras de instabilidades e, consequentemente, tornar determinada sociedade mais vulnerável a dinâmicas descivilizatórias. Quanto maior for o poder de determinado agente para definir os rumos do jogo ou do processo social, menor será a estabilidade. Por outro lado, se as estruturas de poder forem menos desiguais, o pilar do controle social se torna cada vez mais um exercício coletivo, e cada vez menos uma imposição autoritária. Portanto, o que Mennell descreve são ciclos virtuosos e viciosos de civilização e descivilização, como os que Elias descreveu, mas no campo político. Desse modo, o autor pretende demonstrar que interdependência, equilíbrio de poder e democracia caminham juntas.

É nesse sentido que o modelo de abordagem proposto por Mennell pode ajudar a compreender diversos processos de corrosão das estruturas democráticas pelo mundo. E, para cada etapa de sua argumentação, o autor recorre a algum importante princípio da teoria de Elias, demonstrando também uma pertinência – raramente notada – de suas ideias para tratar de temas políticos. Dessa forma, serve também como demonstração de que os processos de construção das democracias, assim como o processo civilizador, estão sempre sujeitos à reversão – e, nos dois casos, os tipos de dinâmica impulsionadora de reversões são bastante similares.

Mennell nos conduz cuidadosamente à conclusão de que a salvaguarda da democracia, portanto, está contida principalmente no modo como estão organizadas as interdependências entre indivíduos e grupos. Quanto mais os indivíduos e grupos dependerem uns dos outros, menor será a disparidade de poder e, consequentemente, mais estável será a democracia em determinada sociedade. Porém, como Elias explicou algumas vezes, esse maior equilíbrio depende do esclarecimento cada vez maior e mais distribuído a respeito dessas dinâmicas. A sociologia eliasiana pretende ser um meio pelo qual a humanidade possa olhar para si mesma de forma realista, podendo dessa forma enfrentar ameaças como as que enfrentamos atualmente, especialmente no que diz respeito a abalos profundos nas estruturas de democracias mundo afora. Demonstrar essa necessidade, portanto, é a função que o livro como um todo acaba por cumprir a partir de contribuições que se complementam e que propõem que o leitor olhe para a própria realidade de formas variadas, tendo sempre a própria humanidade como ponto de referência.

  • 1
    Work in the human sciences, as in other sciences, is a torch race: we take over the torch from the preceding generations, carry it a distance further and hand it over to the following generation, so that it can go beyond us. The work of the preceding generations is not abolished by this; it is the precondition of the ability of later generations to go beyond it. [...] I should like my example to give coming generations the courage to combine awareness of the continuity of their own lives with the strength and boldness that are needed for innovation. For the discipline of thinking for themselves, forgoing beyond the older generations” (Elias, 2009, p. 91).
  • 2
    These include in particular the reemergence of populisms in the four corners of the globe; a dramatically hesitant, not to say calamitous, management of threats to our ecosystems; the deterioration of the conditions of migration and policies that remain mostly inhuman or have become more and more inhumane; the maintenance or even renewal of a division of the world into nations; the difficulties of democratic transitions or even the effective curbing of the fight against inequalities; the correlated resurgence of exclusion of all kinds and at all levels; and the relative, but undeniable, failure of the domestication of violence by, within, and between states”.
  • 3
    Our human world is still to a large extent an undiscovered world. We do not really understand ourselves. And that is the central task, as I understand it, of sociology — to gain more certain knowledge of the human level of the universe which we form with each other. Let us try: my own feeling is that we shall be able to produce more knowledge that has practical applications than we have today.”

Referências

  • 1CLEMENT, Matt. Vox Populi then and now. In: DELMOTTE, F. GÓRNICKA, B. (org.). Norbert Elias in troubled times Figurational approaches to the problems of the twenty-first century. Cham: Palgrave Macmillan, 2021.
  • 2 DELMOTTE, Florence; GÓRNICKA, Barbara (org.). Norbert Elias in troubled times Figurational approaches to the problems of the twenty-first century. Cham: Palgrave Macmillan, 2021. (Série “Palgrave Studies on Norbert Elias”, v. 3).
  • 3 ELIAS, Norbert. Address on Adorno: respect and critique. In: KILMINSTER, R.; MENNELL, S. (ed.); ELIAS, N. The collected works of Norbert Elias Dublim: University College Dublin Press, 2009. p. 82-93. (Vol. 16: Essays III: On sociology and the humanities).
  • 4 ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia Lisboa: Edições 70, 2008.
  • 5 ELIAS, Norbert. Norbert Elias por ele mesmo Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
  • 6 ELIAS, Norbert. Envolvimento e alienação Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
  • 7 MENNELL, Stephen. Some political implications of Sociology from an Eliasian point of view. In: DELMOTTE, F.; GÓRNICKA, B. (org.). Norbert Elias in troubled times Figurational approaches to the problems of the twenty-first century. Cham: Palgrave Macmillan, 2021.
  • 8 MENNELL, Stephen. O reverso da moeda: Os processos de descivilização. In: GARRIGOU, A.; LACROIX, B. Norbert Elias: a política e a história. São Paulo: Perspectiva, 2010.
  • 9 ROUSSEAUX, Xavier; VERREYCKEN, Quentin. The civilising process, Decline of homicide, and Mass murder societies: Norbert Elias and the History of Violence. In: DELMOTTE, F.; GÓRNICKA, B. (org.). Norbert Elias in troubled times Figurational approaches to the problems of the twenty-first century. Cham: Palgrave Macmillan, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2022
  • Aceito
    28 Jul 2022
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