Resumo
Em Sex Dolls at Sea: Imagined Histories of Sexual Technologies, Bo Ruberg assume a genealogia foucaultiana e a leitura feminista como método para esmiuçar a nebulosa intersecção entre fabulação, história e ciência que paira as dames de voyage. A partir de análise bibliográfica e investigação em arquivos, filmes, jornais, relatos e uma diversidade de outros documentos, a pesquisadora não só desvela práticas acadêmicas viciosas e misóginas no século XX e XXI, mas também, como o imaginário em torno das bonecas de viagem moldaram a indústria do mercado sexual a criar uma série de tecnologias sexuais como bonecas infláveis, vibradores e brinquedos de borracha. Nesse processo, o limiar entre bonecas, bonecas sexuais, “ser mulher”, profissional do sexo, santas, vai sendo borrado, modelizando visões de posse, uso, descarte, pureza às corporalidades feminilizadas, ao mesmo tempo em que narrativas e estruturas de poder masculinas, colonizadoras e eurocêntricas vão condicionando as práticas sexuais, o imaginário sobre o sexo e os produtos que consumimos. Os robôs sexuais são apresentados como o futuro, e, diante de uma sociedade solidificada em discursos que segregam mulheres, pessoas queer e negras do âmbito da produção e consumo de tecnologias, sobretudo as digitais, é importante desestabilizar essas narrativas dominantes, identificando como as tecnologias sexuais foram imaginadas e agenciam as práticas sociais contemporâneas, para que possamos produzir outras perspectivas para o futuro em que a inclusão e o prazer sejam centrais.
Palavras-chave gênero; teoria queer; tecnologias sexuais; bonecas sexuais; mercado do sexo
Abstract
In Sex Dolls at Sea: Imagined Histories of Sexual Technologies, Bo Ruberg takes Foucauldian genealogy and feminist reading as a method to unravel the nebulous intersection between fabulation, history and science that hovers over the dames de voyage. From a bibliographic analysis and investigation of archives, films, newspapers, reports and a variety of other documents, the researcher not only reveals vicious and misogynistic academic practices in the 20th and 21st centuries, but also, how the imagery around traveling dolls shaped the sex market indust ry to create a range of sex technologies such as inflatable dolls, vibrators and rubber toys. In this process, the threshold between dolls, sex dolls, “being a woman”, sex worker, saints, is blurred, modeling visions of possession, use, disposal, purity to feminized corporeality at the same time as masculine narratives and power structures, colonizing and Eurocentric are conditioning sexual practices, the imagery about sex and the products we consume. Sex robots are presented as the future, and, in the face of a society solidified in discourses that segregate women, queer and black people from the production and consumption of technologies, especially digital ones, it is important to destabilize these dominant narratives, identifying how sexual technologies were imagined and how they manage contemporary social practices, so that we can produce other perspectives for the future in which inclusion and pleasure are central.
Keywords genre; queer theory; sexual technologies; sex dolls; sex market
As bonecas sexuais cada vez mais fazem parte das práticas sexuais contemporâneas, não só porque eventualmente possam ser utilizadas como um artificio do gozo, mas porque permeiam – há muito – o imaginário social: dos livros de ficção cientifica às variadas mídias como games, desenhos animados, pornografia, cinema. Para atender ao mercado, e, sobretudo, à diversidade de consumidores, vislumbram-se sex dolls que apresentam corporeidade completa, às vezes só o torso ou simplesmente apenas o órgão sexual. Por vezes, são bonecas-robôs imbuídas e introjetadas de parafernálias tecnológicas, como conexão Wi-Fi e multitelas. No entanto, a boneca sexual, que pode ser considerada um assunto inócuo, serve a Bo Ruberg1 para pensar o passado, o presente e o futuro de como as tecnologias sexuais operam no tecido social.
Nesse caminho, o lançamento, em 2022, de Sex Dolls at Sea: Imagined Histories of Sexual Technologies se insere dentro de um percurso acadêmico que já vinha, de uma forma similar a Donna Haraway (1994), a derrubar dicotomias como real/ficcional, prazer/dor e heteronormativo/não normativo em obras como Video games have always been queer e The queer games avant-garde, que alargaram a discussão das vivências queer nos circuitos sociais gaming e digital na web. Para Ruberg (2019, 2020), o lúdico é compreendido como potência para a narração de si, possibilitando imaginar outros futuros e ver, na dimensão do desvio, das falhas, erros, do não enquadre social que permeia existências queer, um olhar analítico “estranho”, isto é, que desloca o pesquisador. Partindo desse ponto de vista desviante, Bonnie Ruberg assume a genealogia foucaultiana e a leitura feminista como método para montar esse quebra-cabeça histórico das bonecas sexuais, revisitando arquivos, filmes, jornais, relatos e uma diversidade de outros documentos.
Eu desnudo uma teia de preocupações relacionadas a gênero, sexualidade, raça e colonialismo que perguntam: por que certas histórias de origem sobre tecnologias sexuais são contadas em detrimento de outras? Para que trabalho cultural essas histórias são empregadas? A quem essas histórias servem e a quem elas apagam?
(Ruberg, 2022, p. 4).2
Cada vez mais, o digital medeia as práticas sexuais por meio de aplicativos de paquera, telessexo (transmissões ao vivo de sexo, exibicionismo, sadomasoquismo) e mídias que advêm desde as revistas pornográficas, filmes e piratarias em VHS e CD’s dos anos 1990 e 2000 aos contemporâneos canais na internet como Xvideos.com e Pornhub.com. As feiras de conteúdo adulto apresentam, ano após ano, as suas “novidades”, com uma recente expansão das realidades virtuais e gameworlds criados para transar, beijar, realizar fetiches e jogos sexuais. Porém, a autora afirma que as práticas sexuais, apesar de serem agenciadas pelo discurso dos avanços tecnológicos, sobretudo de novos apetrechos que chegam ao mercado, sofrem ao mesmo tempo com discursos conservadores que recriminam e engessam os modus de se viver a sexualidade de mulheres, pessoas queer e trans.
O ponto crucial para Ruberg é desarticular a ideia de tecnologias sexuais vinculada à corrente instrumentalista de considerar apenas artefatos mecânicos e digitais como tecnologia. Isto é, é preciso compreender o próprio sexo como uma tecnologia, sobretudo, uma rede de tecnologias que agencia os sujeitos a partir de governança, resistências e opressão.3 Muito mais do que inteligências artificiais, a própria capa de Sex Dolls at Sea (Figura 1) nos introduz uma série de artefatos tecnológicos que foram utilizados ao longo dos séculos para inibir ou estimular prazer, tais como conchas, abanadores, esponjas, cordas, cintos de castidade, anéis penianos e até tecnologias zumbis (que não deram certo, mas ainda permeiam o imaginário social).
A autora introduz o conceito de sex tech, definindo-o como: “um conjunto de conversas culturais contemporâneas sobre tecnologias sexuais” (p. 8).4 Na leitura do livro, o que fica evidente é a importância que a autora dá ao tempo e à História, adotando justamente uma posição não linear e destemporalizada como método para fazer a crítica de como as tecnologias sexuais foram pensadas, ainda o são e como poderiam ser. Em suas palavras, sex tech é “uma visão de como o sexo poderia ser mais sexy e a tecnologia poderia ser ‘mais tecnológica’, aumentando nossos envolvimentos eróticos com as máquinas” (p. 9).5 Tal ruptura e olhar estranho com o convencional, permite perceber como uma “origem” calcada no vibrador pode ao mesmo tempo ser considerada um avanço, mas também um apagamento histórico de várias práticas e estruturas sociais. O mesmo objeto pode ser hegemônico e contra-hegemônico: os estudos sobre vibradores, por exemplo, aportam-se em uma história do prazer feminino, mas desconsideram que homens, lésbicas e trans também usam vibradores, desconsideram outros artefatos fálicos e usos que não sejam os de penetração, associam um ar “primitivo” e “selvagem” na investigação de povos orientais ou do sul global. Quando nos defrontamos com uma “história do vibrador”, veremos que sua origem em nada se relaciona com o prazer ou com a libertação pós-política ou pós-identitária a que as sex techs estão associadas; pelo contrário, emergem de um contexto médico-científico, para tratar histerias e controlar a sexualidade aflorada das mulheres.
É possível falar em uma origem das tecnologias sexuais? Quando começa? Qual o primeiro artefato sexual? Bonnie Ruberg não está interessada em criar marcos teóricos. Sua questão é que o futuro das tecnologias sexuais tem uma relação intrínseca com a forma como olhamos e reimaginamos o passado. Por isso, ela parte do enfoque nas dames de voyage, bonecas que eram costuradas para a companhia em viagens de navios e trens da Europa. A boneca por si só é um artefato de fascinação em diferentes esferas sociais, generificadas e erotizadas ao ponto do limiar entre bonecas e bonecas sexuais ser borrado em certa medida. Ruberg revela a linha de interligação entre essas antigas bonecas e o fetiche contemporâneo com os robôs sexuais, imbricando-se em uma série de problemas e discursos acerca dessas inteligências artificiais: medo e perigo da “dominação das máquinas”, liberdade e democratização sexual, possibilidade da customização sexual, impossibilidade de um “amor verdadeiro”, satisfazer desejos ao bel-prazer. No entanto, a autora adota um posicionamento de crítica à ideia de que a relação sexual ou sentimental com os robôs seja o futuro, pois devemos nos ater a como essas tecnologias são produzidas e por quem. Dessa forma, desvelamos desde os estereótipos nos quais os robôs são baseados, às tonalidades de sexualização e sentimentalismo que ganham, à própria estrutura tecnológica e algorítmica de aquisição da linguagem que os fazem por vezes racistas, homofóbicos, sexistas, pensados a partir de ideais como perfeição, impossibilidade de erro, corporalidades simétricas, caucasianas e “ridículas noções de beleza feminina” (p. 27).6 Esse futuro, portanto, está sendo projetado por velhas estruturas normativas de poder, matando o que há de mais divertido, sensual e prazeroso no sexo.
Logo, Ruberg se embrenha na literatura científica contemporânea para encontrar base de sustentação acerca das dames de voyage. A autora se defronta com um campo controverso, marcado pela falta de evidências concretas e com um amplo espaço fabulatório acerca de como eram essas bonecas. Os relatos de origem destoam entre 1600 e 1900; os países de origem e os relatos se proliferam entre França, Espanha, Portugal e Inglaterra; as descrições distintivas e de indumentária também são múltiplas e abstratas. Nesse estado da arte, Ruberg vai desmontando o fio acadêmico de autores, periódicos, artigos, teses e dissertações, citações, que, ao longo do século XX e XXI, foram dando corpo e modelizando como verídicas as dames de voyage. Embora a dimensão do ato de fabular dos jogos seja percuciente à Ciência, fica evidente nesse “anel acadêmico” o problema no campo científico de inserir as fantasias no lugar dos fatos, algo que Hannah Arendt (1977) já nos alertava em Verdade e Política. Portanto, nessa construção fictícia – empacotada como ciência – há a predominância da visão masculina direcionando o olhar para as dames de voyage como um artefato que serve apenas para afanar os desejos dos homens. Ruberg nos mostra como o academicismo se funde com outros espaços sociais e culturais que foram remediando a “veridicidade” das dames de voyage, revelando a nós o imaginário social de cada um desses cortes socio temporais. A pseudociência dos anos 1960 e 1970 surge de um contexto de efervescência americana interligada à revolução sexual, com ampla promessa de liberação sexual, mas que na verdade atuou para criar matrizes, classificações e estruturalidades no campo da sexualidade. Se, por um lado, as dakimakuras (almofadas japonesas para fornicação) não entram na linha do tempo desses estudos, por outro, a ideia de dame de voyage vai sendo reelaborada em produtos concretos e agenciando o mercado industrial do sexo, dando origem às bonecas infláveis, bonecas capazes de amar, bellys, vulvas e orifícios protéticos com engenhosidades capazes de simular mucos e lubrificantes corporais.
Dois insights são importantes:
Primeiro, mostra que muito antes de a história das dames de voyage se envolver nas histórias do sexo high-tech do século XXI, as referências a bonecas sexuais já estavam sendo expressas dentro de um interesse mais amplo nas interações entre sexo e tecnologia. Ou seja, pelo menos nos últimos cinquenta anos [...] as próprias bonecas sexuais foram entendidas tanto como em conjunto com as tecnologias quanto como tecnologia em si. Em segundo lugar, essa ênfase no fascínio erótico da tecnologia, bugigangas e dispositivos que emerge nesses textos nos mostra que o fascínio pela tecnologia sexual que prevalece hoje tem sua própria história cíclica
(Ruberg, 2022, p. 64, grifo da autora).7
Marshall McLuhan já discutia a conexão entre tecnologia e sexo nos anos 1950, em obras como The mechanical bride: folklore of industrial man. No entanto, a questão que se sobressai é justamente de indagar até que ponto esses apetrechos são extensões da corporalidade humana (McLuhan, 1969). Em Manifesto Ciborgue, Haraway (1994) já problematizava a separação entre máquina e organismo, entre o artificial e o natural, entre ficção e realidade. Na contemporaneidade, tais tecnologias sexuais não são apenas extensões, mas também acopladas e introjetadas dentro do próprio organismo. Preciado (2018) nos mostra por exemplo como os fármacos e componentes protéticos tais como hormônios, botox, cirurgias plásticas, silicones, perucas, seios postiços, entre outros, são importantes para a construção de identidade, corpo, ser/estar no mundo, narração de si, de sujeitos queer e não queer. Como conexão inerente entre o real e o ficcional, Ruberg sugere uma ideia de “high femme”: “um estilo específico de feminilidade que valoriza essa performance autoconsciente através do uso intencionalmente exagerado de maquiagem, cabelo, estilo e roupas” (p. 168).8
Sex Dolls at Sea condiciona a fabulação das dames de voyage e a remediação destas em todo tipo de boneca sexual à falta de arquivos. Iwan Bloch, por exemplo, vai se basear em um catálogo de 1907 para teorizar sobre homens e damas de viagem, construindo uma ideia desses artefatos como um tipo de mimese do corpo humano – sendo reutilizado como a principal referência por mais de 110 anos. Mesmo que haja algumas bonecas sexuais em museus ou que catálogos desse tipo existam, a datação e a veridicidade desses documentos são frágeis. De 1910 a 1920, a Alemanha foi um reduto importante para pesquisas sobre sexualidade, a partir do Institut für Sexualwissenschaft, porém, o local foi invadido e queimado em 1933 pelos nazistas – destruindo todo tipo de documento. Nos cartuns e sátiras dos jornais parisienses do início do século XX, vamos nos deparar com as dames de voyage sendo sinônimo da profissional do sexo (prostitutas, acompanhantes), inserindo-se dentro de um processo capitalista de explosão dos anúncios publicitários nos jornais, em que pequenas notas (com ou sem foto) nos dão as principais informações da profissional. Tal tematização é importante, porque demonstra como “bonecas”, “bonecas sexuais”, “prostitutas”, “mulheres” vão de certa forma tendo o seu limiar borrado socialmente, subvertendo o feminino a ideais de posse, uso, descarte. Tal visão contamina espaços sociais como as prisões, em que alguns presos são escolhidos para – de forma similar às sex dolls – serem objetos de uso.
Ruberg também visita o contexto dos marinheiros. As regiões portuárias sempre foram um reduto do comércio e exploração sexual – seja porque abrigam pontos de prostituição, seja porque foram o ponto de partida e chegada de escravos que alimentavam o mercado sexual e doméstico. Discursos acerca de bonecas que eram dispostas no navio para o uso coletivo (satisfazer a frustração/solidão dos marinheiros) não passam de uma visão contemporânea de fetichização do imaginário marítimo. Nesse universo, a autora encontra a sacralização da boneca; com dados mais concretos, encontramos as damas de proas e as artes e tatuagens de baleeiros. O desejo e sana pela imagem feminina aqui não é carnal, mas sim, de ordem religiosa, agouro para boas fortunas, proteção, boa viagem. Nesse caminho, a ingenuidade, a delicadeza, a pureza da boneca passam a agenciar os comportamentos femininos e a visão normativa do que é feminino.
A pesquisadora também atravessa a materialidade dessas bonecas sexuais, sobretudo as que são vendidas hoje em feiras e sex shops. Não é por acaso que a maioria dos produtos sexuais são feitos de borracha em detrimento de outros materiais como silicone, vidro, plástico. Há uma associação da borracha em diferentes níveis com as tecnologias sexuais: produtos de borracha são valorados como de alta qualidade, discursivizados como estimuladores da aderência, maciez, conforto, fruto de uma internalização social e histórica da interligação sexo-borracha que também aflora diversos tipos de fetiches com látex. Não é necessário expulsar a borracha da indústria sexual, mas o que Ruberg provoca é que pensemos também em outros materiais, formas, cores, designs – reimaginando também produtos para pessoas queer, mulheres e para vidas negras (ainda ignoradas pelo mercado). Ao constatar a modelização das bonecas sexuais por um tipo de material como a borracha, revelam-se práticas coloniais e históricas vinculadas, inclusive, com o Ciclo da Borracha no Brasil do século XIX, que alimentou o mercado internacional na Revolução Industrial, ao mesmo tempo que regiões amazônicas e povos indígenas eram explorados.
O que Bonnie Ruberg argumenta é que as tecnologias sexuais e as narrativas que as permeiam são colonizadoras ao apagarem e excluírem todo tipo de sujeição que não seja eurocêntrica, masculina ou instituída socialmente como padrão (padrão do corpo, padrão de beleza, o que é “normal”). O homem sempre foi predominantemente associado à tecnologia, em especial, às tecnologias de ordem computacional, descartando sobretudo mulheres e pessoas negras, algo que Kishonna L. Gray (2020) também aponta em Intersectional tech: black users in digital gaming. Foi criada uma imagem do homem que sente desejo pela tecnologia como afirmação da própria masculinidade; isto é, uma tecnofilia. Se somente o masculino é visto como “inventor”, “criador”, “cientista”, e, de certa forma, passível de acessar, ocupar espaços de poder e ter a oportunidade de criar as tecnologias digitais e sexuais que usamos, então estamos inseridos em um tipo de tecnocultura tóxica em que prevalecem as visões branca, cis e heteronormativa. Acontecimentos como o #Gamergate9 nos Estados Unidos, em 2014, e vários incidentes semelhantes no Brasil, como a censura à exposição Queermuseu em Porto Alegre, em 2017, e a recente discussão da proibição da Barbie Trans pelo Congresso Nacional em 2022, expõem não só um conservadorismo, posição política reacionária e tentativa de controle da sexualidade, mas nos revelam a tentativa de grupos sociais e atores de manter certas estruturas e posições de poder. As narrativas que orbitam os discursos hegemônicos se sustentam no Mito de Pigmaleão da obra Metamorfoses de Ovídio: um rei que esculpe uma estátua e, de tão bela, acaba se apaixonando por ela. Aqui as noções de perfeição, idealização do amor e “fazer a mulher/ser uma criação em si” se associam não só à falsa ideia de superioridade masculina, tal como Michel Bozon (2004) já apontava em Sociologia da Sexualidade, apresentando os marcadores da mulher entendida como inferior ou o inverso do homem, mas também à tecnologia e às histórias que prevalecem para moldar as práticas sociais e sexuais.
Sim, a história das dames de voyage é uma história falsa que surgiu através de práticas acadêmicas problemáticas e da codificação da fantasia em fato; sim, o conto das dames de voyage apresenta uma versão da história que sobrescreve as pessoas marginalizadas e obscurece histórias reais, incluindo histórias de violência e opressão
(Ruberg, 2022, p. 213).10
Nesse caminho, a autora advoga que passemos a desestabilizar essas narrativas dominantes. Para Bonnie Ruberg não precisamos descartar tais narrativas, mas podemos reimaginá-las e refazê-las de dentro. Assim, poder-se-á realizar a crítica de como as tecnologias remedeiam os corpos feminilizados a partir das variadas transmutações da boneca. A pesquisadora argumenta que não é intenção fazer uma reconstituição da história da mulher, pois essa “mulher” já é um conceito contaminado por visões hegemônicas, mas sim de toda existência feminilizada, um feminino que é constantemente remodelado, reordenado, e até mesmo visitado e abandonado por existências queer, hibridizando-se às vezes com a própria masculinidade, como bem coloca Jack Halberstam (1998) em Female Masculinity.
Ruberg diz evocar uma femme theory e uma femme expressão. O mar que aparece no título surge como potente metáfora para vislumbrar esse processo à deriva e de como as tecnologias podem ser repensadas por um viés de gênero. Outras conjunturas, como a do artesanato, a do afrofuturismo, a do olhar feminista e queer, podem nos ajudar a reconfigurar esse futuro sexual. Olhar para o passado de outra forma implica em não sexualizar tais contextos, mas também em encontrar elementos transgressores e grotescos que nos aclarem acerca de processos sociais com a sexualidade. Vislumbra-se assim os piratas como sujeitos de transgressão, busca-se anedotas, contos como Les Détraquées de Paris de 1904, acerca da relação amorosa de mulheres com bonecas e outras narrativas e histórias sobre gays, lésbicas, trans, drags e outras queernesses para além da hipersexualização erótica e pornográfica. “O lugar real de um povo queer e transgênero na formação da história das tecnologias sexuais é um assunto rico que merece muito mais estudo” (p. 159-160).11 Timidamente, as obras de Bonnie Ruberg vão adentrando pesquisas nas Ciências Sociais e Humanas.12 Suas preocupações são contemporâneas e potentes ao ponto de estarem prontas para serem postas em diálogo com Judith Butler, Rita Segato, Paul Preciado, Sarah Ahmed, entre outros, que vêm se debruçando sobre a temática do gênero em diversas frentes e problemas sociais. A questão que se coloca é: qual o futuro das práticas sexuais que queremos?
-
1
Bonnie Ruberg tem assinado em obras e artigos mais recentes com a abreviação “Bo” Ruberg, de forma que as duas grafias serão encontradas em seus textos.
-
2
No original: “I lay bare a web of concerns relating to gender, sexuality, race, and colonialism that asking: Why are certain origin stories about sexual technologies told over others? What cultural work are these stories deployed to do? Whom do these stories serve and whom do they erase?”. As traduções de trechos da obra são de nossa responsabilidade.
-
3
Fica evidente a leitura foucaultiana nessa afirmação que vai sustentar boa parte da argumentação de Bonnie Ruberg. Tal argumentação sobre o poder, a genealogia, a sexualidade vai permear toda a obra de Michel Foucault, de História da Loucura a História da Sexualidade.
-
4
No original: “a set of contemporary cultural conversations around sexual technologies”.
-
5
No original: “a vision of how sex could be sexier and tech could be “techier” by increasing our erotic entanglements with machines”.
-
6
No original: “ridiculous notions of female beauty”.
-
7
No original: “First, it shows that long before the tale of the dames de voyage became wrapped up in twenty-first-century histories of high-tech sex, references to sex dolls were already being couched within a broader interest in the interplays between sex and technology. That is, for at least the last fifty years […] sex dolls themselves have been understood both in conjunction with and indeed as technology. Second, this emphasis on the erotic allure of technology, gadgets, and devices that emerges within these texts show us that the fascination with sex tech that is prevalent today itself has its own cyclical history”.
-
8
No original: “a specific style of femininity that play up this self-aware performance through the intentionally exaggerated use of make up, hair, styling, and clothing”.
-
9
O
-
10
No original: “Yes, the tale of the dames de voyage is a false history that has emerged through problematic scholarly practices and the codification of fantasy into fact; yes, the tale of the dames de voyage presents a version of history that overwrites marginalized people and obscures actual histories, including histories of violence and oppression”.
-
11
No original: “The actual place of queer a transgender people in shaping the history of sexual technologies is a rich subject that itself merits much more study”
- 12
Referências
- 1ARENDT, Hannah. Truth and politics. In: ARENDT, H. Between past and future: eight exercises in political thought. Nova York: Penguin, 1977. p. 227-264.
- 2 BOZON, Michel. Sociologia da Sexualidade Rio de Janeiro: FGV, 2004.
- 3 GOULART, Lucas A. Jogos vivos para pessoas vivas: Composições queer-contrapúblicas nas culturas de jogos digitais. 2017. Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.
- 4 GRAY, Kishonna L. Intersectional tech: black users in digital gaming. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2020.
- 5 HALBERSTAM, Jack. Female Masculinity Durham: Duke University Press, 1998.
- 6 HARAWAY, Donna. A manifesto for cyborgs: Science, technology, and socialist feminism in the 80’s. In: SEIDMAN, S. (ed.). The postmodern turn: news perspectives on social theory. Nova York: Cambridge University Press, 1994. p. 82-118.
- 7 MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem São Paulo: Editora Cultrix, 1969.
- 8 MONTARGIL, Gilmar. Loopando e barbarizando com streamers queers: precarização do trabalho, audiovisualidade tecnogendrada e hackeamentos do corpo-mídia. 2023. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2023.
-
9 MORTENSEN, Elvira T. Anger, fear and games: the long event of #Gamergate. Games and Culture, v. 13, n. 8, p. 787-806, 2018. https://doi.org/10.1177/1555412016640408
» https://doi.org/10.1177/1555412016640408 - 10 PRECIADO, Paul B. Pornotopia: PLAYBOY e a invenção da sexualidade multimídia. São Paulo: n-1 edições, 2020.
- 11 PRECIADO, Paul B. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. 1. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.
- 12 RODRIGUES, Letícia. Questões de gênero em jogos digitais: uma coleção de recursos educacionais abertos em apoio à mobilização. 2017. Dissertação (Mestrado em Tecnologia e Sociedade) – Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, 2017.
- 13 RUBERG, Bo. Sex dolls at sea: imagined histories of sexual technologies. Cambridge, MA: The MIT Press, 2022.
- 14 RUBERG, Bonnie. The queer games avant-garde: how LGBTQ game makers are reimagining the medium of video games. Durham: Duke University Press Books, 2020.
- 15 RUBERG, Bonnie. Video games have always been queer Nova York: NYU Press, 2019.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Jul 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
18 Jul 2022 -
Aceito
06 Fev 2023