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Decisões judiciais da Vara das Execuções Criminais: punindo sempre mais

Resumos

O texto apresenta os resultados da pesquisa desenvolvida pela Fundação Seade dos processos de execução penal do Estado de São Paulo em 2002. Os resultados apontaram para o baixo percentual de presos que obtêm benefícios e para o fato de que as concessões destes benefícios ocorrem em lapso de tempo do cumprimento da pena muito acima do legal.

execução penal; sistema de justiça criminal; benefícios prisionais


This text presents the results of a study undertaken by Fundação Seade of criminal cases in the State of São Paulo in 2002. The results reveal the low percentage of inmates who receive privileges and the fact that these privileges are granted with unlawful delay.

penal execution; criminal justice system; inmate privileges


Decisões judiciais da Vara das Execuções Criminais: punindo sempre mais

Alessandra TeixeiraI; Eliana Blumer Trindade BordiniII

IAdvogada, Consultora da Fundação Seade, Coordenadora do Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (san27@uol.com.br)

IIEstatística, Analista da Fundação Seade (ebordini@seade.gov.br)

RESUMO

O texto apresenta os resultados da pesquisa desenvolvida pela Fundação Seade dos processos de execução penal do Estado de São Paulo em 2002. Os resultados apontaram para o baixo percentual de presos que obtêm benefícios e para o fato de que as concessões destes benefícios ocorrem em lapso de tempo do cumprimento da pena muito acima do legal.

Palavras-chave: execução penal; sistema de justiça criminal; benefícios prisionais.

ABSTRACT

This text presents the results of a study undertaken by Fundação Seade of criminal cases in the State of São Paulo in 2002. The results reveal the low percentage of inmates who receive privileges and the fact that these privileges are granted with unlawful delay.

Key words: penal execution; criminal justice system; inmate privileges.

O artigo que aqui se apresenta é fruto de reflexões acumuladas a partir dos resultados da pesquisa realizada pela Fundação Seade no universo dos processos de execução criminal na Vara das Execuções Criminais da Capital — VEC no ano de 2002, de caráter quantitativo.

O objeto dessa pesquisa nasceu do desafio de testar teses difundidas no senso comum no sentido de que a ineficácia da pena de prisão e o aumento da criminalidade se deveriam ao fato de o sistema de execução ser por demais "benevolente", onde o preso cumpriria apenas uma pequena parte de sua pena em regime fechado, sendo contemplado pela concessão de benefícios legais que o levariam à liberdade precocemente.

A reforçar tais teses, uma série de projetos de lei tem irrompido a cada dia propondo o endurecimento penal, e, no que toca à execução criminal, a proibição de benefícios prisionais ou aumento do prazo para sua concessão. Nesse intento, a metodologia do presente estudo foi desenvolvida no sentido de, a partir da investigação da realidade — no caso os processos de execução penal em curso — aferir se — e em que medida — as intercorrências1 1 . Por benefícios prisionais ou intercorrências entendem-se as progressões de regime, o livramento condicional, a autorização de saída temporária, entre outros, todos previstos na Lei de Execução Penal. previstas na Lei se realizavam no universo das execuções criminais. Pode-se observar, assim, a funcionalidade do sistema: se de fato atua com menor severidade — o que tornaria ao menos de difícil explicação o cenário de alto crescimento da população carcerária nas últimas décadas — ou se, ao contrário, operaria como um mecanismo de reforço à punição, ainda que em dissonância com a legislação.

Tratou-se, desse modo, de estudar o sistema de justiça penal, a partir de uma de suas faces menos investigada: o cotidiano dos processos de execução criminal presididos por juízes em seus gabinetes, via de regra, distantes fisicamente do cárcere e dos encarcerados sobre quem decidem cotidianamente. Empreendimento diverso daquele que vem sendo mais comumente realizado, a investigação do cárcere, do funcionamento das instituições totais, sua mistificação, seus efeitos criminógenos, a presente pesquisa voltou-se à compreensão da funcionalidade do sistema a partir de sua esfera jurisdicional, universo até então de escassa investigação, para aferir como operam os mecanismos punitivos desde uma ótica dos operadores da justiça.

O PODER DE PUNIR

A execução da pena no sistema brasileiro se dá de modo jurisdicionalizado, o que implica dizer que cabe ao juiz das execuções, sobrepondo-se à administração prisional, presidir e fiscalizar o cumprimento da pena. Essa concepção quanto ao modelo de cumprimento da pena foi sistematizada pela Lei de Execução Penal — LEP (Lei nº 7.210, de 1984), que veio a adotar uma tendência mais democrática neste campo do conhecimento, a exemplo de países como Alemanha, Portugal, Espanha, afinando-se ainda, de forma mais contundente, a Tratados e Pactos Internacionais que dispõem sobre a preservação de direitos para as pessoas condenadas a alguma forma de sanção penal.

Nesse sentido, é possível compreender que, em termos ideais, a jurisdicionalização da execução penal tenderia a operar a partir de um paradigma traduzido na preservação dos direitos humanos — em especial das pessoas submetidas à pena de prisão — uma vez que estaria na essência da constituição desta espécie de Poder (Judiciário), em sua configuração moderna, a finalidade histórica de garantia e combate às violações de direitos humanos, sendo ainda aquele que melhor disporia do aparato técnico para o cumprimento dessa função.

Em termos de execução penal, afirmar que um sistema é jurisdicionalizado equivale dizer que toda a sua dinâmica insere-se na ordem jurídica processual, subordinando-se a procedimentos legais determinados. As decisões, por serem judiciais e não administrativas, sujeitam-se a princípios como o acesso à justiça, o duplo grau de jurisdição, isonomia entre as partes e a necessidade de fundamentação, além do contraditório e ampla defesa.

Em contraposição, identificam-se os sistemas administrativos puros, onde a decisão condenatória final é o termo da atividade jurisdicional, sujeitando-se o apenado, a partir de então, às normas e regulamentos infra-legais e à figura do administrador do presídio, com esfera de atuação mais discricionária. Esses sistemas são adotados em diversos países na América Latina, no Reino Unido e, mais intensamente, nos Estados Unidos, onde o chamado modelo hands off propaga o distanciamento do sistema de justiça das questões relativas ao cárcere e aos encarcerados, deixando a cargo do Poder Executivo a presidência e a administração do sistema, o que pode explicar ainda o incremento do discurso e da adoção da política privatizadora em presídios. Essas tendências não têm escapado às críticas de estudiosos que identificam a dimensão excludente e escravizante nesta forma de aprisionamento, denunciando ainda a lógica do lucro a que estão atrelados tais processos, bem como sua repercussão no aumento vertiginoso dos índices de encarceramento (Christie, 1998; Wacquant, 2000).

Desse modo, pensando o sistema de execução penal brasileiro a partir da matriz ideológica da ressocialização e do discurso oficial da terapêutica, estabeleceu-se a questão basilar para o presente estudo: em que medida o sistema de justiça, valendo-se, na execução penal, de mecanismos como os prognósticos de não reincidência e reabilitação, exerce o poder de punir? Tomando-se por base esse tipo especial de processo penal, que não mais objetiva reconstruir os fatos e atribuir culpabilidade, mas sim projetar-se ao futuro, atribuindo ou não direitos a benefícios ou agravando sanções,2 2 . Os procedimentos disciplinares referem-se a apurações e eventuais condenações de faltas cometidas por presos e têm caráter investigativo e repressivo, podendo atribuir sanções acessórias à prisão como o isolamento celular, por tempo determinado. como estaria então esse sistema realizando os ideários e princípios constitucionais e legais previstos para a matéria, como a individualização da pena e a sua progressividade?

Essa projeção ao futuro, com atribuição ou negação de direitos, se dá a partir de prognósticos de não reincidência, cura, reabilitação, etc., que são "obtidos" por procedimentos de avaliação, classificação e até punição dos condenados segundo critérios de mérito, disciplina, personalidade, desempenho e comportamento carcerário (balizados pelas previsões legais). Para tanto, serve-se o sistema punitivo de todo um corpo técnico que, como bem notou Foucault (1997), passa a compartilhar o poder de aplicação das penas.

Em nosso sistema, as comissões técnicas de classificação, compostas por psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais, representam esse corpo técnico, sendo responsáveis pela elaboração dos laudos que instruem os pedidos de benefício, como também pela garantia do caráter individualizador da pena ao classificarem os presos. O caráter disciplinar, correspondente ao "mérito" do condenado aos benefícios, também está presente na composição desse aparelho técnico-jurídico, na figura dos diretores e agentes penitenciários.

A relevância dos pareceres desse corpo técnico na determinação das decisões judiciais revelou-se igualmente, ao lado dos resultados dessas últimas, um ponto importante a ser investigado, que também é do objeto do presente trabalho.

METODOLOGIA

O principal objetivo da pesquisa foi obter um retrato do funcionamento do sistema de execução penal, no que toca às decisões judiciais. Para delimitar o objeto de investigação, tomou-se por base os principais pontos das propostas de mudança da LEP que tramitavam no Congresso Nacional.

Os projetos versavam essencialmente sobre aumento do lapso para obtenção dos benefícios de progressão de regime e livramento condicional, e ainda sobre a supressão do laudo criminológico que instrui tais pedidos. Assumindo tais alterações como basilares, construiu-se o principal ponto de investigação da pesquisa: a aferição dos lapsos reais em que os benefícios prisionais seriam concedidos e a relevância dos laudos elaborados pela Comissão Técnica de Classificação — CTC nas decisões judiciais.

O universo de investigação foi constituído dos 7.960 processos de execução referentes aos condenados em cumprimento de pena nos estabelecimentos prisionais sob competência da Vara das Execuções Criminais da Capital, em junho de 2002.

A base de dados que serviu de referência para a seleção da amostra foi construída a partir da junção dos Sistemas da Coordenadoria dos Estabelecimentos Penitenciários do Estado de São Paulo — Coespe e da Vara das Execuções Criminais, desenvolvidos pela Empresa de Processamento de Dados do Estado de São Paulo — Prodesp, fornecidos à Fundação Seade mediante autorização da Secretaria da Administração Penitenciária e do Tribunal de Justiça.

Foram definidos os parâmetros P como: a proporção de condenados que tiveram progressão da pena, a proporção de condenados que obtiveram a concessão de livramento condicional e as proporções de presos que solicitaram cada um dos benefícios, utilizando a hipótese de que os P fossem iguais a 10%. Admitiu-se uma margem de erro K = 3% na proporção estimada P e um nível de significância a = 5%.

Deste modo, chegou-se inicialmente a uma amostra de 366 processos. A amostra foi selecionada de forma aleatória para o universo, a partir da listagem de presos dos estabelecimentos prisionais sob competência da Vara das Execuções Criminais da Capital. O trabalho de coleta resultou numa amostra final de 339 processos.

RESULTADOS

Progressão de Regime

O instituto da progressão de regime, previsto na LEP (Lei nº 7.201/84, art. 112), estabelece o direito do condenado progredir do regime mais rigoroso para o menos (fechado para o semi-aberto e deste para o aberto), uma vez cumprido um sexto da pena e quando o mérito indicar o benefício. O termo mérito é compreendido na acepção das condições indicadas mediante parecer da CTC nos laudos criminológicos e pelo comportamento disciplinar e desempenho carcerário.3 3 . A Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) passou a vedar a progressão de regime para os delitos nela previstos.

Com referência à progressão de regime, o primeiro resultado obtido indica que 22,1% de presos obtiveram a progressão de regime (com margem de erro 4%). Deste modo, apenas uma pequena parte da população carcerária logra cumprir sua pena de modo progressivo, muito embora a progressividade seja o modelo geral adotado pela LEP e pela Constituição Federal.

Outra informação reveladora é que 72,5% das pessoas que obtiveram a progressão haviam cumprido mais de um terço da pena. Por este dado infere-se que, da pequena parte dos presos que obtém a progressão de regime, a maioria só a alcança com o cumprimento do prazo muito acima do legal (um sexto), o que demonstra que este não é balizador das decisões dos juízes.

É importante esclarecer que, na rotina da formulação de benefícios, o preso depende que o presídio elabore o devido expediente (com os laudos e demais informações) para a instrução e o envio do pedido à VEC. Assim, pela dinâmica, o preso só consegue encaminhar seu pedido, uma vez passando pelo crivo do presídio. Este avaliará se o mesmo já tem lapso para a postulação e, em muitos casos, se não cometeu nenhuma falta disciplinar num período que varia em função de cada estabelecimento, posto não haver previsão legal para tal triagem. O resultado da pesquisa indica que apenas 54% dos presos pediram a progressão (com margem de erro 5%), portanto, somente este percentual de presos preenchia as condições formais para a postulação.

Considerando-se apenas o universo de presos que formularam pedidos de progressão de regime, uma ou mais vezes, 41% obtiveram a concessão, em algum de seus pedidos.

Tomando-se por base a totalidade de pedidos de progressão formulados pelos presos, constatou-se que 26,4% foram deferidos (Tabela 1). É importante esclarecer que um mesmo preso pode formular vários pedidos de benefícios.4 4 . A média de pedidos de progressão por presos é de 2,1. Assim, buscou-se trabalhar com os pedidos a fim de aferir o percentual de deferimentos e o cruzamento dos resultados dos laudos com as decisões.

A partir das informações apresentadas na Tabela 1, tem-se que: do total de pedidos de progressão com laudos favoráveis, 45% corresponderam a decisões de progressão e 36,7% de não-concessão do benefício; com relação aos laudos desfavoráveis, 87,4% corresponderam a decisões de não-progressão e apenas 4,9% a de progressão. Estes dados trazem à tona uma importante e atual discussão: o papel desempenhado pelos laudos criminológicos e sua validade. Estão, em tramitação no Congresso Nacional alguns projetos de lei visando sua extinção sob diversos argumentos, como a má elaboração dos mesmos e sua ineficácia no processo individualizador da pena; tanto os mais conservadores como aqueles que se filiam ao direito penal mínimo têm defendido esta idéia.

É possível discutir não a qualidade dos laudos, mas sua utilização ideológica pelos operadores do direito (juízes especialmente). Observe-se que, quando os laudos apontam a conclusões desfavoráveis, são quase inteiramente acompanhados pelos juízes com decisões de indeferimento (87,4%). Já quando suas conclusões são opostas, ou seja, favoráveis à progressão pelo condenado, apenas 45% das decisões os acompanham.

Livramento Condicional

O Livramento Condicional — LC é um instituto previsto no Código Penal e na LEP, pelo qual o condenado cumpre o restante de sua pena em liberdade, mediante certas condições a serem fixadas na sentença. O lapso temporal exigido por lei varia de acordo com a natureza do crime da condenação e com a reincidência.5 5 . Para os primários é exigido o cumprimento de um terço da pena, para os reincidentes metade e para aqueles que foram condenados por crimes hediondos e assemelhados dois terços da pena. Aos reincidentes em delitos dessa espécie é vedado o benefício.

Assim como na progressão de regime, a apresentação dos laudos criminológicos indica o "mérito" do preso à concessão do benefício, bem como o comportamento carcerário e o parecer do Conselho Penitenciário.

Na sistemática de execução penal, o Livramento Condicional foi idealizado como o último estágio do modelo progressivo de cumprimento da pena, em que o condenado, uma vez tendo já obtido a progressão para regimes menos gravosos, cumpriria o restante de sua pena em liberdade condicional, apresentando-se regularmente ao Poder Público, como encerramento de um processo de reinserção social, iniciado com a primeira etapa de execução de sua pena.

Em relação ao LC, observou-se que 8% de presos obtiveram este benefício (margem de erro 3%). Não obstante o erro relativo apresentado por esta estimativa seja alto (36,1%), esse dado aponta para uma parcela muito pouco significativa da massa carcerária que realmente chega a alcançar o benefício. Note-se que seu percentual é ainda inferior ao dos que obtêm a progressão de regime.

Do total de presos analisados, 24% pediram o LC (margem de erro 5%). Cabem aí as mesmas observações já tecidas em relação à progressão. Note-se que o percentual é inferior à metade dos que formulam pedidos de progressão de regime.

Observe-se que, assim como nos demais resultados, os dados referentes ao livramento condicional indicam um menor requerimento e deferimento comparado aos de progressão; dessa maneira, 33% dos presos, entre os que pediram o benefício, obtiveram a concessão do livramento condicional.

Como foi já exposto, procurou-se trabalhar com o universo de pedidos formulados.6 6 . A média de pedidos de LC por preso é de 1,3. Quanto aos resultados, é possível observar um percentual ligeiramente maior de deferimentos de pedidos em relação à progressão, ou seja, dos pedidos de livramento condicional, 31,1% foram deferidos (Tabela 2). Acredita-se que isso ocorra porque, como já exposto, o LC seria a última fase do cumprimento da pena, deduzindo-se que aqueles que o requerem se encontrariam em regimes mais brandos como o semi-aberto e o aberto, o que favoreceria o deferimento do benefício.

A análise da Tabela 2 permite verificar que do total de pedidos de LC com laudos favoráveis, 47,5% corresponderam a decisões de concessão do benefício e 27,1% a decisões de não-concessão; do total de laudos desfavoráveis, 68% corresponderam a decisões de não-concessão do benefício e apenas 10,5% a decisões de concessão. Cabem nesse caso as mesmas considerações feitas com relação aos laudos em pedidos de progressão de regime.

CONCLUSÕES

Quando o Direito Penal passou a deslocar seu objeto de intervenção do crime para a criminalidade, a partir das reformas do século XVIII que propugnavam punições mais racionais e humanitárias, deslocou também o ideário da punição para aquilo que se consolidou como sendo a defesa da sociedade (Foucault, 1997). O criminoso passou a personificar toda a ofensa a um corpo social estabelecido, e sua punição a simbolizar a restauração de uma ordem ferida, a coibição de um perigo social.

Concomitantemente, os processos de prisionalização iniciados no mesmo período, a exemplo dos de criminalização, foram determinados a partir de mecanismos econômicos e políticos, cumprindo eficazmente interesses específicos de classe: a eliminação de indivíduos socialmente dispensáveis, perigosos, impróprios ao trabalho e à disciplina, figurando tais processos como os principais vetores para a realização do escoamento de mão-de-obra excedente e desqualificada, e para a consolidação de padrões morais de valorização do trabalho e de perseguição à pobreza (Rusche; Kirchheimer, 1999).

Tal configuração paradigmática do direito de punir, bem como os processos que determinaram sua efetivação, permanecem atuais, encontrando-se presentes ainda hoje nas dimensões do heterogêneo universo que é o sistema de justiça criminal e, em especial, o que aqui se trata, o de execução penal. Os resultados apresentados pela pesquisa permitem aferir o quanto essa ideologia tende a reproduzir-se, ora revelada a partir de um retrato da atuação dos juízes da execução criminal.

Pelo que se constata, o sistema de justiça criminal, notadamente enquanto executor da pena, opera na qualidade de aplicador de um plus punitivo, ao relativizar ao máximo os direitos previstos em lei para os condenados, adotando uma postura altamente repressiva, revelada pelos ínfimos percentuais de benefícios concedidos.

No mesmo sentido, a utilização ideológica dos laudos criminológicos pelo aparelho judicial, na medida em que se tornam efetivamente aproveitáveis tão somente enquanto importam em não recomendação pelos benefícios, também dão dimensão do caráter político que tais decisões assumem.

Por certo, o caráter ideológico encontra-se presente na atuação dos juízes, sendo impossível conceber que as decisões não reflitam os valores e interesses por eles compartilhados, sobretudo de classe. A imparcialidade, propugnada como um valor para a atividade jurisdicional nos regimes democráticos, pode ser alcançada de maneira aproximada por critérios de maior pluralidade — no recrutamento de juízes e na natureza das decisões — (Zaffaroni, 1995), mas não de modo a produzir um Judiciário neutro, com total ausência da dimensão política em sua atuação. Ainda quando o formalismo jurídico e o apelo extremado à lei são preponderantes, não deixam eles próprios de representar traços de uma filiação política e ideológica por um sistema que não contempla, com absoluta igualdade, todos os cidadãos.

Como bem observou Joaquim Falcão (2001), ao comentar os dados de uma pesquisa realizada junto a magistrados no país,7 7 . Pesquisa "O Judiciário e a Economia na Visão dos Magistrados" promovida pelo Idesp (Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo), que consultou 738 magistrados em 12 estados sobre a reforma do Judiciário, no ano de 2001. a politização — sobretudo econômica — das sentenças é um valor a ser exigido em uma democracia, denotando a responsabilidade do Judiciário para com os rumos e conseqüências das políticas econômicas adotadas pelos poderes Executivo e Legislativo. A pesquisa revela que os juízes tendem ao formalismo em matéria comercial, de crédito e de locação, mas adotam a flexibilização da lei e dos contratos, na busca de maior "justiça social" quando se trata de matéria trabalhista e de direitos do consumidor, previdenciário e ambiental.

No que diz respeito ao universo criminal, contudo, o que se observa é que esta dimensão política remonta à lógica dos já aludidos mecanismos de eliminação de pessoas socialmente "perigosas" pela via da segregação penal, assumindo o Judiciário teses do senso comum e dos setores mais conservadores da sociedade (como o movimento de política criminal "Lei e Ordem") que conclamam a maior punição como meio legítimo de controle social. Esse discurso furta-se, certamente, da reflexão crítica sobre os processos que operam na criminalização de setores menos privilegiados da sociedade — e, conseqüentemente, na imunização de condutas de classes mais favorecidas, como a criminalidade econômica — ou sobre a violência promovida nos cárceres.

É sabido, no entanto, que tais medidas de recrudescimento legal e jurisdicional não vêm conseguindo frear a criminalidade. Ao contrário, ao aumentar o contingente das prisões,8 8 . No Estado de São Paulo, a Secretaria de Administração Penitenciária tem divulgado saldos positivos de até 1.000 presos por mês no Estado. diante do não "escoamento" de grande parte desta população confinada, vêm contribuindo para aumentar os efeitos criminógenos do cárcere, o que certamente pode ser corroborado por estudos científicos e pela reincidência observada.

O aumento vertiginoso no número de presos — fenômeno observável em todo o país — confronta-se com um cenário de restrições orçamentárias, políticas e administrativas que, obviamente, tendem a dificultar a ocupação e a presença do Estado no interior desses espaços institucionais. Esse vácuo de poder acaba por propiciar que outras formas de exercício do mesmo se realizem a partir da formação de grupos que se constituem através de relações "informais" de mando, estabelecendo códigos específicos que operam com uma normatização própria, por mecanismos punitivos severos e à margem do Estado. Esse processo está certamente na gênese do recrudescimento das organizações criminosas constituídas no interior dos presídios, sendo intrigante ainda o fato de que a história de sua formação acabe remontando a espaços onde justamente o sistema de justiça rege e propaga como mais inflexíveis.9 9 . É digno de nota o fato de que a organização criminosa paulista PCC (Primeiro Comando da Capital) tenha surgido na década de 80, no presídio de Taubaté, conhecido como "Piranhão". Como o nome sugere, este era o estabelecimento mais rígido do sistema, onde a violência difusa encontrava-se mais latente, a partir da flexibilização dos direitos dos presos. Exemplo semelhante é encontrado no Comando Vermelho, no Rio de Janeiro, que remonta sua origem ao Presídio de Segurança Máxima de Dois Rios/Ilha Grande.

No que toca aos projetos de lei atualmente em trâmite no Congresso, é possível concluir que ao estabelecerem o foco de suas propostas no endurecimento legal, responsabilizam o que consideram "modelo legal permissivo" pela falência do sistema, demonstrando assim um grande desconhecimento da realidade, bem como reforçando crenças generalizadas da população e propagadas pela mídia em tal sentido.

Por fim, acredita-se que a divulgação de um trabalho como o presente permita aprimorar o debate sobre a crise do sistema punitivo, a partir da atividade desempenhada pela justiça criminal, e questionar o desempenho de seu papel como principal ator na aplicação da pena.

NOTAS

  • BENETI, S.A. Execução Penal. São Paulo: Saraiva, 1996.
  • CHRISTIE, N. A indústria do controle do crime: a caminho dos Gulags em estilo ocidental. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1998.
  • FALCÃO, J. A política econômica dos juízes Rio de Janeiro, 2001 Disponível em: <http://www.femperj.org.br>. Acesso em: 27 out. 2003.
  • FOUCAULT, M. Vigiar e Punir Nascimento da prisão. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
  • FRANCO, A.S. Jurisdicionalização da Execução. In: Temas de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1986.
  • RUSCHE, G.; KIRCHHEIMER, O. Punição e estrutura social Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.
  • SADEK, M.T. O sistema de justiça. In: SADEK, M.T. (Org.). O sistema de justiça. São Paulo: Idesp, Ed. Sumaré, 1999. p.7-18.
  • WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.
  • ZAFFARONI, E.R. Poder Judiciário São Paulo: RT, 1995.
  • 1
    . Por benefícios prisionais ou intercorrências entendem-se as progressões de regime, o livramento condicional, a autorização de saída temporária, entre outros, todos previstos na Lei de Execução Penal.
  • 2
    . Os procedimentos disciplinares referem-se a apurações e eventuais condenações de faltas cometidas por presos e têm caráter investigativo e repressivo, podendo atribuir sanções acessórias à prisão como o isolamento celular, por tempo determinado.
  • 3
    . A Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) passou a vedar a progressão de regime para os delitos nela previstos.
  • 4
    . A média de pedidos de progressão por presos é de 2,1.
  • 5
    . Para os primários é exigido o cumprimento de um terço da pena, para os reincidentes metade e para aqueles que foram condenados por crimes hediondos e assemelhados dois terços da pena. Aos reincidentes em delitos dessa espécie é vedado o benefício.
  • 6
    . A média de pedidos de LC por preso é de 1,3.
  • 7
    . Pesquisa "O Judiciário e a Economia na Visão dos Magistrados" promovida pelo Idesp (Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo), que consultou 738 magistrados em 12 estados sobre a reforma do Judiciário, no ano de 2001.
  • 8
    . No Estado de São Paulo, a Secretaria de Administração Penitenciária tem divulgado saldos positivos de até 1.000 presos por mês no Estado.
  • 9
    . É digno de nota o fato de que a organização criminosa paulista PCC (Primeiro Comando da Capital) tenha surgido na década de 80, no presídio de Taubaté, conhecido como "Piranhão". Como o nome sugere, este era o estabelecimento mais rígido do sistema, onde a violência difusa encontrava-se mais latente, a partir da flexibilização dos direitos dos presos. Exemplo semelhante é encontrado no Comando Vermelho, no Rio de Janeiro, que remonta sua origem ao Presídio de Segurança Máxima de Dois Rios/Ilha Grande.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Maio 2005
    • Data do Fascículo
      Mar 2004
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