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Paradigmas, comunidades científicas e os físicos brasileiros

NOTAS E CRÍTICAS

Paradigmas, comunidades científicas e os físicos brasileiros

Antonio Augusto Passos Videira

Professor Adjunto de Filosofia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. guto@cbpb.br

INTRODUÇÃO

A gama de assuntos abordados e comentados por Thomas S. Kuhn em sua obra magna, A estrutura das revoluções científicas (doravante ERC), publicada há exatos cinquenta anos, é enorme, a ponto de um comentador ter dificuldades em escolher um tema, capaz de ser considerado como o mais importante em todo o livro. Uma das características marcantes de ERC é a teia complexa e sutil entre temas, teses e conceitos sobre a ciência. Apesar da complexidade e da sutiliza da estrutura narrativa presente na ERC, é possível verificar que Kuhn defende a natureza da ciência como sendo eminentemente histórica. Em breves palavras, sem o recurso à história - apenas? - da ciência, não se pode saber o que ela é. Tal recurso é obrigatório, na medida em que a ciência, tal como já afirmado desde o final do século XIX, transforma-se, sendo, em princípio, impossível determinar antecipadamente o resultado dessas transformações às quais a ciência está invariavelmente submetida (cf. Videira, 2011). Se o objetivo for compreender a natureza da ciência, torna-se, então, necessário compreender como e por que ela se modifica.

Contudo, mesmo reconhecendo o caráter intrinsecamente transformista da ciência, Kuhn reconhece que ela possui uma identidade própria, capaz de ser determinada. Ou ainda, a inteligibilidade da ciência apoia-se em parte na capacidade de receber uma identidade. Caso contrário, o seu objetivo em ERC seria inalcançável. Para que a transformação da ciência seja uma realidade, é preciso que essa transformação aconteça sobre algo que detém uma identidade, sobre algo que possui uma estabilidade. Já há muito, pressentia-se que a identidade da ciência não poderia ser fixada através de essências. Um exemplo em favor dessa tese é a discussão que o matemático francês Henri Poincaré manteve com o filósofo, também francês, Edouard Le Roy, a respeito de se a ciência poderia ser bem explicada pelo convencionalismo. Os argumentos do primeiro autor podem ser lidos nos dois últimos capítulos de O valor da ciência (Poincaré, 1998).

Por razões de espaço, não vamos discutir os argumentos de Kuhn em favor de uma concepção não essencialista da identidade da ciência. Permitimo-nos lembrar aos nossos leitores das palavras iniciais na introdução à ERC, adequadamente intitulada "Um papel para a história" (Kuhn, 1975 [1962], p. 19-20). A ausência de uma identidade fundada em essências, o que faria que a ciência pudesse ser tomada como definitiva e eterna, não a transforma em algo ininteligível. Também será a história, ainda que não somente ela, que indicará de que modo a ciência adquire identidade, distinguindo-se de outras produções tipicamente humanas. Assim, para Kuhn, compreender a natureza das transformações por que passa a ciência implica entender aquilo que estabiliza os resultados da prática científica.

As considerações acima apontam para um traço muito forte no pensamento de Kuhn. O historiador e filósofo da ciência norte-americano nunca pensou que a ciência seria indistinguível quando comparada a outras práticas. Para chegar a essa conclusão, parece-nos suficiente prestar atenção ao prefácio de ERC, onde Kuhn conta que, ao passar um ano entre cientistas sociais, espantou-se com o comportamento dos seus colegas, os quais discutiam incessantemente assuntos que raramente eram objeto de consideração entre os cientistas naturais. Uma vez mais, parece-nos possível perceber que podem existir diferentes maneiras de fazer ciência. Como, então, explicar essa diferença que dado o tom das palavras de Kuhn, era gritante a ponto de não poder passar despercebida? O elemento chave para entender essa diferença encontra-se na célebre noção de paradigma (cf. Kuhn, 1975 [1962], p. 12-3).

O objetivo desta nota consiste em discutir em que medida a relação constitutiva entre a comunidade científica e o paradigma é realmente aplicável àqueles países que (ainda) não deram à ciência contribuições capazes de serem consideradas como paradigmáticas. Em outras palavras, se uma comunidade científica é definida pela adoção de um paradigma, o qual, como será comentado mais abaixo, é responsável pela concretização do ideal de autonomia, tão cara aos cientistas, como garantir que aquelas comunidades "importadoras" de paradigmas sejam autônomas? Ou ainda: países subdesenvolvidos sob o ponto de vista científico, o são por que não conseguiram desenvolver paradigmas? Apesar de Kuhn vincular estreitamente paradigmas, ou seja, as realizações científicas modelares, e comunidades científicas, ele, ao final da ERC mostra-se cônscio de que, caso essa vinculação torne-se uma exigência, o seu propósito de empregar a noção de paradigma para caracterizar a ciência, ao mesmo tempo em que garante a sua autonomia frente à política, à religião e à filosofia, fracassaria. Assim, o nosso autor como que enfraquece tal exigência, tornando exequível a disseminação da ciência.

1 CONANT E O IDEAL DA AUTONOMIA DA CIÊNCIA

A despeito das dificuldades de apontar, ou melhor, escolher, um tema mais importante que os demais entre aqueles discutidos pelo nosso autor, não nos parece equivocado afirmar que talvez seja à natureza da ciência que se deva outorgar tal lugar. Expliquemo-nos. Se esta fosse a única meta de Kuhn, talvez ele não desfrutasse a fama que merecidamente lhe foi concedida pelos seus comentadores. Ao interessar-se pela natureza da ciência, Kuhn, na verdade, estava preocupado com outro problema, o qual, salvo engano, não é suficientemente discutido por ele. Esse outro problema, que se encontra somente mencionado e de forma marginal em seu livro, é o da autonomia da ciência.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a ciência, devido ao uso de alguns conhecimentos obtidos em investigações a respeito das forças nucleares, tornou possível que tais conhecimentos fossem empregados na fabricação de armas atômicas. O emprego militar do conhecimento científico não era exatamente uma novidade para as sociedades humanas, ao menos para as sociedades ocidentais. Já na Primeira Guerra Mundial, a química tinha dado uma contribuição, igualmente letal, através do célebre gás mostarda, inventado pelo químico alemão Fritz Haber e usado no fronte contra as tropas inimigas. De certo modo, o uso militar da energia nuclear acirrou uma preocupação antiga, não seria o caso de a ciência ser submetida ao controle externo, exercido por pessoas e órgãos situados para além das fronteiras da ciência?

Como relatado pelo próprio Kuhn, ele foi levado à história da ciência pelas mãos de James B. Conant, o qual, como se sabe, preocupava-se, e muito, com as relações entre a ciência e a sociedade (cf. Conant, 1964). O recurso à história da ciência como elemento didático para explicar e transmitir os conteúdos científicos foi uma estratégia que Conant desenvolveu conscientemente para fazer com que a ciência continuasse a desfrutar do prestígio que tinha na sociedade, na qual a ciência era uma presença real e efetiva (cf. Videira, 2004).

É provável que Kuhn, um dos professores reunidos por Conant para ensinar ciência em clave histórica a amplos auditórios constituídos por calouros universitários, tenha adquirido a consciência do alcance da proposta pedagógica do ex-reitor da Universidade de Harvard, a mesma onde o nosso autor cursou física teórica. Para o nosso propósito não é necessário saber se Kuhn tinha, ou não, consciência dos verdadeiros objetivos de Conant. Em nossa opinião, qualquer estudioso da obra de Kuhn deve interessar-se em conhecer o contexto histórico na qual está inserida a ERC. Se a ciência é alguma coisa que tem história, por que a discussão a seu respeito deveria ser imune àquela?

Neste breve trabalho, não vamos nos debruçar sobre o contexto histórico existente no momento em que a ERC foi escrita. Esse trabalho hercúleo já foi realizado pelo sociólogo da ciência Steve Fuller, quem em 2000 publicou um livro em que insere - adequadamente, segundo a nossa própria perspectiva - a ERC no seu próprio tempo (cf. Fuller, 2000). Aqui é suficiente afirmar que, diferentemente de uma certa recepção dada às ideias de Kuhn, a qual vê neste último um autor contra a ciência, concordamos com a conclusão de Fuller, para quem Kuhn procurou defender a autonomia da ciência. Para melhor defender a ciência, Kuhn lança mão daquela que é, muito provavelmente, sua noção mais conhecida, a saber, paradigma. É em torno desse termo, que chegou a ser incorporado ao vocabulário do homem comum, que Kuhn exibiu a autêntica natureza da ciência, ao menos durante o chamado período de ciência normal.

A despeito da equivocidade do termo paradigma, tão bem apontada por Margaret Masterman, é ele que garante à ciência uma identidade própria, tornando-a diferente das outras atividades humanas (cf. Masterman, 1970). É acertado afirmar que a ciência é uma atividade elaborada e praticada por uma coletividade. No jargão kuhniano, a ciência é praticada por comunidades científicas, as quais são o que são porque possuem paradigmas. Como já apontado anteriormente, o nosso foco incidirá sobre os países que não integram aqueles que são produtores de conhecimento científico paradigmático. A bem da verdade, vamos restringir-nos ao caso do Brasil. Antes de prosseguir, é bom esclarecer que não se trata de um estudo de caso. Mais do que analisar o atual estado científico do nosso país à luz da perspectiva dos paradigmas kuhnianos, o nosso interesse está dirigido a uma modificação na definição desse termo, encetada pelo nosso autor, e que contribui para que o paradigma não seja usado como critério para avaliar o grau de maturidade científica dos diferentes países.

2 AS COMUNIDADES CIENTÍFICAS E OS PARADIGMAS

A relação entre as comunidades científicas e os paradigmas é muito forte e estreita, pois estes últimos são condição de possibilidade para a existência das primeiras, estas são o "instrumento" que torna possível o reconhecimento explícito da presença e do funcionamento de um paradigma. Um paradigma é "percebido" através das práticas exercidas pelos membros de uma comunidade científica, na medida em que ele as organiza. Os problemas, as soluções e seus métodos de verificação devem ser permitidos - ou melhor, autorizados - pelos paradigmas. Relembremos uma das primeiras definições de paradigma exposta no prefácio de ERC: "considero 'paradigmas' as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência" (Kuhn 1975 [1962], p. 13; grifo meu). Ao qualificar como universais as realizações científicas que merecem ser denominadas de paradigmáticas, Kuhn está sugerindo que não existem obstáculos relevantes para sua adoção, a implementação e o uso dessas realizações. Como já afirmado pelos seus inúmeros comentadores, Kuhn considera que os paradigmas funcionam como elementos norteadores dos cientistas. Vejamos o que ele diz páginas à frente, corroborando essa conclusão:

uma comunidade científica, ao adquirir um paradigma, adquire igualmente um critério para a escolha de problemas que, enquanto o paradigma for aceito, poderemos considerar como dotados de uma solução possível. Em uma larga medida, esses são os únicos problemas que a comunidade admitirá como científicos ou encorajará seus membros a resolver (Kuhn 1975 [1962], p. 60).

Os paradigmas têm a "propriedade" de restringir o escopo de problemas a serem investigados, uma vez que atuam como normas reguladoras daquilo que deve ser entendido como cientificamente aceitável. Ao disporem de um paradigma, os seus adeptos ingressam no período de ciência normal. Durante a vigência da chamada ciência normal, os desacordos são mínimos e pontuais. Grandes questões atinentes a princípios metafísicos ou metodológicos não atraem a atenção dos cientistas, pois são consideradas como resolvidas, ao menos entre os cientistas naturais.

Uma das muitas ambiguidades presentes na ERC são os seus exemplos de paradigma. Ou bem encontramos referências a teorias como a óptica física e à geologia histórica (cf. Kuhn, 1975 [1962], p. 42) ou bem encontramos - o que aliás é mais frequente - nomes de descobridores geniais como Maxwell, Einstein ou Lavoisier (p. 68). Em outros termos, os exemplos de Kuhn invariavelmente recaem sobre algumas das mais importantes teorias ou personalidades científicas da ciência europeia dos últimos 400 anos. Para aquilo que nos interessa no escopo deste trabalho, as referências de Kuhn nos levam a pensar que, grosso modo, ele entende a ciência como aquilo que foi e é produzido desde o início da chamada Modernidade, a qual se iniciou aproximadamente em meados do século XVI. Desde essa época, aquilo que merece ser qualificado como científico o é por seguir os critérios da ciência moderna, que vem a ser uma entidade abstrata e universal a ponto de desconsiderar as especificidades locais das práticas. Para aqueles que podem possivelmente ver nessas considerações uma interpretação errônea das teses kuhnianas ou mesmo um exagero, recorremos, uma vez mais, às palavras de Kuhn:

Cada uma das civilizações a respeito das quais temos informações possuía uma tecnologia, uma arte, uma religião, um sistema político, leis e assim por diante. Em muitos casos, essas facetas da civilização eram tão desenvolvidas como as nossas. Mas apenas as civilizações que descendem da Grécia helênica possuíram algo mais do que uma ciência rudimentar. A massa dos conhecimentos científicos existentes é um produto europeu, gerado nos últimos quatro séculos. Nenhuma outra civilização ou época manteve essas comunidades muito especiais das quais provêm a produtividade científica (Kuhn 1975 [1962], p. 210; grifo meu).

A universalidade da ciência moderna teria o seu fundamento localizado no fato de que ela, em última instância, estaria preocupada em compreender o comportamento dos fenômenos que regularmente acontecem na natureza. Desse modo, Kuhn adere ao realismo. Para ele, a ciência é realista, o que é constatado pela sua universalidade. O "fato" de a ciência moderna ter sido adotada em locais diferentes de onde ela surgiu originalmente parece corroborar a conclusão de Kuhn. No entanto, não há como negar a centralidade da posição do "paradigma científico moderno", o que significa que aqueles cientistas de regiões não européias ou não ocidentais estão, já à partida, olhando para fora dos locais onde realizam as suas próprias práticas. É bem conhecido que essa posição, que durante muito tempo configurou a historiografia da ciência, foi, como ainda vem sendo, objeto de sérias e procedentes críticas (cf. Videira. 2007).

Não é aqui o lugar mais apropriado para relembrar essas críticas. No nosso caso, é suficiente mencionar que, para países como o nosso, a prática científica - ao menos aquela existente durante boa parte do século passado - aconteceu a partir da vontade explícita de organizar comunidades tal como existiam nos centros científicos de excelência. Em parte, essa organização foi determinada pela implantação de paradigmas científicos, cujos processos de elaboração, seleção e verificação aconteceram algures. Assim, não nos parece despropositado imaginar que, para os cientistas de outras regiões que os adotaram, esses paradigmas poderiam ser comparados a caixas pretas, como veremos adiante.

3 A NOÇÃO KUHNIANA DE COMUNIDADE CIENTÍFICA E O CASO DOS FÍSICOS BRASILEIROS

Uma das notas características da ERC é a preocupação, vivida pelo seu autor, em evitar que a autonomia da ciência migrasse da esfera cognitivo-intelectual para a sociológica. Em se tratando de um autor controverso e polissêmico, é mais prudente nestes casos socorrermo-nos das suas próprias palavras principalmente quando elas são claras e evidentes.

Uma das leis mais fortes, ainda que não escrita, da vida científica é a proibição de apelar a chefes de Estado ou ao povo em geral, quando está em jogo um assunto relativo à ciência. O reconhecimento da existência de um grupo profissional competente e sua aceitação como árbitro exclusivo das realizações profissionais possui outras implicações. Os membros do grupo, enquanto indivíduos e em virtude de seu treino e experiência comuns, devem ser vistos como os únicos conhecedores das regras do jogo ou de algum critério equivalente para julgamentos inequívocos (Kuhn, 1975 [1962], p. 211; grifo meu).

Em nossas próprias palavras, uma comunidade autêntica só pode basear a sua autoridade e, portanto, a sua autonomia nas suas realizações científicas. A obediência estrita a essa "regra de ouro" tornaria inviável a construção e a existência de comunidades científicas em países desprovidos de produções científicas notáveis, donde paradigmáticas, ainda mais que certas partes sutis (isto é, aquelas que sobreviveram às discussões entre os cientistas e que, em geral, dizem respeito às visões de mundo subjacentes às teorias científicas) dos paradigmas poderiam permanecer ocultas, impedindo "reparos" eventualmente necessários.1 1 Como corretamente observado por um dos árbitros, existe toda uma literatura, que apareceu nos últimos 25 anos aproximadamente, dedicada à análise dos processos efetivamente observados na constituição das comunidades científicas em países do "terceiro mundo". Os autores desses livros e artigos agrupam-se, em geral, em um "movimento" autodenominado de "Science and Empires". Uma das características mais importantes desse grupo é a recusa em aceitar modelos descritivos e explicativos que assumem acriticamente a tese da recepção e absorção de teorias científicas, muitos deles derivados das ideias de George Bassala. Tendo em vista a riqueza qualitativa e quantitava dessa literatura, permito-me não indicar nenhuma obra a título de exemplo.

A título de exemplo, consideremos a física no Brasil no século XX. Seremos breves. De acordo com a historiografia corrente, a física em nosso país começou em 1934 com chegada do físico ítalo-ucraniano Gleb Wataghin para chefiar o departamento de física da recém-criada Universidade de São Paulo (USP) (cf. Videira & Bustamente, 1993; Vieira & Videira, 2010). A criação da USP foi decidida por um grupo de políticos e intelectuais que atuavam na cidade de São Paulo como uma medida necessária para tentar evitar o enfraquecimento do estado paulista após a derrota militar sofrida em 1932 diante das forças do governo federal, então chefiado por Getúlio Vargas (cf. Schwartzman, 1979). É inegável que a atuação de Wataghin foi muito bem sucedida, como se pode perceber pelos alunos que formou e pelos resultados científicos que obteve. Contudo, os resultados alcançados por ele e por seus colaboradores não seriam possíveis, se eles não tivessem conseguido receber apoio de diferentes grupos não científicos, entre os quais, deve-se citar aquele fornecido pela Força Aérea Brasileira, que emprestou aviões para a medição de propriedades dos raios cósmicos, talvez o domínio científico mais relevante investigado pelos físicos "paulistanos" (cf. Hamburger & Videira, 1998). Eventos semelhantes aconteceram poucos anos depois no Rio de Janeiro, quando da fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), ainda que nesse caso os físicos "cariocas" dispusessem, nas suas barganhas com as esferas situadas para além da ciência, de dois feitos científicos notáveis - em escala mundial - que contaram com a participação de um dos ex-alunos de Wataghin, Cesar Lattes (cf. Vieira & Videira, 2011; Troper; Videira & Vieira, 2010).

A descoberta do méson pi, primeiro em Chacaltaya nos Andes bolivianos em 1947 e, logo depois, a confirmação da sua existência no acelerador de Berkeley (EUA) no ano seguinte, fizeram, no cenário internacional, com que a física de partículas elementares (ou de altas energias) passasse a ser uma realidade e, no cenário local, estabeleceu o ambiente para que os físicos conseguissem ser ouvidos pelos políticos nacionais. Nos EUA, os aceleradores ganharam progressivamente importância frente aos métodos mais tradicionais de detecção, contadores Geiger e emulsões fotográficas, as quais foram usadas por Lattes, Cecil Powell, Giuseppe Ochhialini e mesmo Eugen Gardner para comprovar a existência do méson pi. Em nosso país, e a partir da fama alcançada por Lattes, tentou-se realizar um duplo salto: ao mesmo tempo em que fundavam um centro de pesquisas (CBPF), de modo a poder dispor de autonomia e controle em suas próprias pesquisas científicas, compravam um acelerador sofisticado a fim de fazerem-se competitivos no cenário internacional. Se a primeira medida deu certo, a segunda não logrou resultado algum, apesar de as muitas verbas recebidas e que foram tornadas possíveis devido à aliança que se estabeleceu entre os cientistas do CBPF, o CNPq e setores nacionalistas das forças armadas (cf. Andrade, 1998).

A mera menção desses fatos parece conflitar com as considerações de Kuhn lembradas anteriormente. Se estudados mais pormenorizadamente, eles, acreditamos, invalidam a relação entre aspectos cognitivos e epistêmicos tal como defendida por Kuhn. Assim, a pergunta a ser respondida nesta nota, após uma ligeira reformulação, passa a ser: como se organiza - ou deve ser organizada - uma comunidade caso se adote, não mais as considerações sobre a natureza dos paradigmas feitas ao longo de toda a ERC, mas, sim, uma outra, feita por Kuhn em meio às suas ponderações sobre a natureza do progresso científico?

Em se tratando de um texto a ser publicado em um número comemorativo dos 50 anos de a ERC, pensamos não ser deslocado afirmar a nossa admiração pela capacidade intelectual do seu autor. Se conscientemente ou não, pouco importa, o fato é que Kuhn, no último capítulo de seu livro, dedica-se a analisar a natureza do progresso científico. A força de suas análises é tal que elas nos levam a considerar que, premido pela radicalidade da sua estratégia em favor da autonomia epistêmica da ciência baseada em paradigmas, ele percebe que talvez a noção de progresso sirva melhor a esse propósito. Kuhn (cf. 1975 [1962], p. 213), ao questionar a validade da noção teleológica de progresso, formula uma série de questões, as quais podem ser entendidas como amenizando o rigor com que se deveria aceitar a anterioridade "lógica" da noção de paradigma.

Estamos muito acostumados a ver a ciência como um empreendimento que se aproxima cada vez mais de um objetivo estabelecido de antemão pela natureza.

Mas tal objetivo é necessário? Não podemos explicar tanto a existência da ciência como seu sucesso na evolução do estado dos conhecimentos da comunidade em um dado momento? Será realmente útil conceber a existência de uma explicação completa, objetiva e verdadeira da natureza, julgando as realizações científicas de acordo com sua capacidade para nos aproximar daquele objetivo último? Se pudermos aprender a substituir a evolução-a-partir-do-que-sabemos pela evolução-em-direção-ao-que-queremos-saber, diversos problemas aflitivos poderão desaparecer nesse processo (Kuhn, 1975 [1962], p. 213-4; grifo meu).

Abusando um pouco do jargão filosófico, a citação acima pode ser entendida como enfraquecendo a noção de paradigma enquanto condição de possibilidade para a existência da comunidade científica. A ciência se faz não mais a partir de um passado verificado e conhecido, mas, sim, em direção a um futuro aberto e imprevisível, justamente por isso, com abertura suficiente para acomodar personagens, critérios e objetivos formulados e divulgados por grupos constituídos por cientistas e não cientistas. Além disso, torna-se mais fácil de aprender uma das mais importantes lições que o século XX retirou de uma de suas mais amargas experiências, a Segunda Guerra Mundial, os cientistas também fazem política (cf. Videira, 2006). Se há o que aprender com o estudo da história da ciência em países considerados periféricos é que, sem política, a ciência não passa de uma quimera ou, ao menos, sofre de uma anemia congênita (cf. Videira, 2010).

CONCLUSÃO

De forma resumida, a nossa crítica a Kuhn pode ser expressa da seguinte maneira. O maior problema da adoção de sua resposta clássica é que ela exige como pressuposto que a comunidade em formação adote um paradigma como se este fosse uma caixa preta, na medida em que ele foi elaborado em outro local. Caso o paradigma apresente problemas, como pode a comunidade, que o "adquiriu", consertá-lo? Como saber que ele foi "consertado"? A rigor, a comunidade não tem como saber, pois falta-lhe autonomia cognitiva para tanto, na medida em que ela, por exemplo, não pode saber quais são os elementos subjacentes (ou sutis) ao paradigma, como os metafísicos e ontológicos. A rigor, a proposta kuhniana de associar a possibilidade de existência de uma comunidade à adoção e à manipulação de um paradigma é falha. Os países considerados como periféricos não poderiam ser vistos como possuindo comunidades pelas razões acima apontadas.

Como vimos acima, ao final da ERC, Kuhn parece reconhecer isso, na medida em que propõe uma substituição de modo a resolver esse problema. A substituição se dá pela troca de conhecimento acumulado, presente em paradigmas, por um objetivo que se situa no futuro, como algo a ser ainda conquistado. A troca de conhecimento-sabido por conhecimento-a-saber - isto é, a ser no futuro elaborado, verificado e adotado - abre espaço para uma dimensão institucional, posto que será preciso elaborar e construir as estruturas institucionais responsáveis pela criação e disseminação desse conhecimento-a-saber. No caso brasileiro, a criação de publicações científicas, a realização de simpósios especializados, a luta pelo tempo integral - nos dias de hoje, a dedicação exclusiva - , a criação de agências de fomento, entre outras medidas, merecem ser lembradas.

Essa solução, formulada praticamente ao final da sua obra prima, não é discutida em pormenores por Kuhn, uma vez que ela comporta uma dimensão sociológica explícita e que ele sempre procurou evitar. Como é bem conhecido, Kuhn nunca deixou de privilegiar a dimensão cognitiva frente à dimensão sociológica, a qual, se devidamente inserida nas discussões a respeito da natureza da ciência, talvez permitisse o enfraquecimento daquela. No entanto, e somente nesse segundo caso, é que seria factível aos países considerados como periféricos possuir comunidades científicas.

Se Kuhn "errou" foi, provavelmente, por não ter querido lembrar de que, na modernidade, tão respeitada por ele, o cientista ou, antes dele, o filósofo natural, transformava-se sem muitas dificuldades em homem político, sem que essa transformação significasse o enfraquecimento da relevância cognitiva da ciência. No caso desta última, a boa política deve sempre - ao menos, em tese - vir acompanhada de resultados científicos bons, sólidos e profícuos.

AGRADEÇO

Os comentários e as sugestões pertinentes de André Luís de Oliveira Mendonça e dos dois árbitros que leram este texto, bem como os apoios financeiros do Programa Prociência (FAPERJ/UERJ) e de uma bolsa de produtividade do CNPq.

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    Como corretamente observado por um dos árbitros, existe toda uma literatura, que apareceu nos últimos 25 anos aproximadamente, dedicada à análise dos processos efetivamente observados na constituição das comunidades científicas em países do "terceiro mundo". Os autores desses livros e artigos agrupam-se, em geral, em um "movimento" autodenominado de "Science and Empires". Uma das características mais importantes desse grupo é a recusa em aceitar modelos descritivos e explicativos que assumem acriticamente a tese da recepção e absorção de teorias científicas, muitos deles derivados das ideias de George Bassala. Tendo em vista a riqueza qualitativa e quantitava dessa literatura, permito-me não indicar nenhuma obra a título de exemplo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      2012
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