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A política de promoção da primeira infância, sob a perspectiva neoliberal, e o seu impacto sobre o trabalho infantil

Early childhood promotion policy, from a neoliberal perspective, and its impact on child labor

Resumo:

O artigo trata sobre os direitos da criança e do adolescente, e parte da questão: a política pública de primeira infância, no Brasil, contribui para o combate ao trabalho infantil? O objetivo é refletir sobre a política pública de primeira infância e o seu impacto no trabalho infantil. Utilizou-se na abordagem do método dialético, e o principal resultado é no sentido de que a atual política de primeira infância fragiliza a atuação do Estado e o combate ao trabalho infantil.

Palavras-chave:
Primeira infância; Trabalho infantil; Neoliberalismo

Abstract:

This article, addressing the rights of children and adolescents, starts from the following question: does early childhood public policies in Brazil contribute to the fight against child labor? The objective is to reflect on early childhood public policy and its impacts on child labor. The dialectical method was used and the main result is that the current early childhood policy weakens the State’s actions and the fight against child labor.

Keywords:
Early childhood; Child labor; Neoliberalism

Introdução

A reflexão que segue visa enfrentar a seguinte questão: a política pública de primeira infância, na forma em que é recomendada pelo Banco Mundial e adotada no Brasil, contribui para o combate ao trabalho infantil?

A pergunta de partida é posta em face da priorização dos recursos destinados à política pública de primeira infância, em contraste com o desfinanciamento nos últimos anos da política pública de combate ao trabalho infantil, conforme descrevem os relatórios do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em relação aos orçamentos dos anos de 2022 e 2023 (Inesc, 2023INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS (INESC). Depois do desmonte: balanço do orçamento geral da União 2022. Brasília: Inesc, 2023.; 2024INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS (INESC). Balanço do orçamento da União 2023: Brasil em reconstrução? Brasília: Inesc, 2024.). O trabalho infantil consiste na atividade que, diante dos riscos envolvidos, é considerada inadequada à criança e ao adolescente por comprometer o pleno desenvolvimento destes.

O presente trabalho, elaborado sob a inspiração do método dialético, considera que a realidade do ser social, em suas múltiplas mediações, deve ser compreendida segundo as contradições e as totalidades que consubstanciam a dinâmica da lógica capitalista. A atuação do governo federal na última década, na perspectiva neoliberal, restringiu o orçamento referente às políticas públicas, voltadas para crianças e adolescentes, e elegeu a primeira infância como a prioridade da prioridade. Tal fato representou o desfinanciamento e a fragilização da política de enfrentamento ao trabalho infantil, e contribuiu diretamente para a precarização e o rebaixamento do custo da força de trabalho. Tal escolha, analisada sob a ótica do método dialético, leva a compreender a contradição contida na política pública de primeira infância que, por um lado, apregoa a proteção às crianças e, por outro, admite pela mediação do silêncio que meninos e meninas, a partir dos sete anos de idade, continuem sendo explorados por meio do trabalho infantil.

As observações que seguem devem ser interpretadas não como um libelo contra a primeira infância, fase da vida em que o cuidado é imprescindível para a existência humana, mas como uma crítica ao modo como ela foi apropriada e manipulada pelo neoliberalismo, com os objetivos de redução de custos, de focalização das políticas públicas voltadas para a criança e de retirada gradativa da atuação do Estado como agente central na promoção das políticas públicas referentes à infância e à adolescência.

A ciência hegemônica, ao fragmentar os estudos sobre a infância, criou especializações e subespecializações sobre a temática. Atualmente, além da primeira infância, que compreende o período de existência da criança de zero a seis anos, existe também a primeiríssima infância, que envolve o período de vida entre zero e três anos. Nessa escala hierárquica, marcada pelo espectro evolucionista da análise econômica das políticas públicas, não será surpresa se, num futuro próximo, a primeira e a primeiríssima infância vierem a perder o status de precedência, de modo que a prioridade passe a ser considerada a etapa intrauterina, já antevista como o momento-chave e constitutivo da estrutura neurocerebral e, em consequência, como o mais determinante lapso temporal da existência humana.

A política pública específica para a primeira infância vem sendo defendida com base em fatores de ordem neuronal e, também, sob a alegação de que meninos e meninas, submetidos a cuidados na idade mencionada, tornar-se-ão no futuro exitosos investimentos de capital humano, de modo a influenciar a qualificação e a integração destas no mercado de trabalho.

A estratégia citada, como diz Dalila Oliveira (2020OLIVEIRA, D. A. Da promessa de futuro à suspensão do presente: a teoria do capital humano e o Pisa na educação brasileira. Petrópolis: Vozes, 2020.), implica a sutil promessa de futuro como meio para se obter a suspensão do presente. Desde as duas últimas décadas do século XX, tem chamado a atenção a quantidade de economistas neoliberais que passaram a se preocupar com a educação e o futuro das crianças. Não se pode negar que, no atual contexto da totalidade capitalista, a tarefa política de trabalhar com a previsibilidade do futuro impõe explorar um campo fértil de expectativas para ganhar tempo com promessas e se esquivar à pressão que exige soluções às questões do presente.

Registre-se que não é possível entender a primeira infância como um bloco unitário de reflexões ou estudos. É preciso perceber que a visão hegemônica sobre a primeira infância desafia compreender o que é o neoliberalismo e como este empreendeu uma abordagem utilitarista sobre a aludida temática.

O neoliberalismo é a expressão histórica do capitalismo que, diante das crises fiscais do século XX, buscou se legitimar na gestão pública e retomar os níveis estratosféricos de superlucros pela mediação de receitas de austeridade fiscal, desregulamentação de direitos sociais, mercantilização e privatização dos bens sociais. Como bem resumiu Perry Anderson (1995ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, E.; GENTILI, P. (org.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 9-23., p. 9), o neoliberalismo “foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar”. A quebra da universalidade, para o neoliberalismo, significou disseminar a política pública focalizada e condicionada a critérios que empurravam os trabalhadores precarizados a vender a baixíssimo custo a sua força de trabalho no mercado.

Nos países centrais, a reação neoliberal a partir da década de 1980 foi inicialmente centrada no combate à universalidade do acesso aos bens sociais, tais como saúde, assistência social, previdência social, educação e outros. Essa reação do capital significou uma forte oposição ao sistema tributário até então vigente, haja vista que este representava um elevado custo para a reprodução da força de trabalho e dificultava a intensificação dos níveis de acumulação capitalista, principalmente num quadro de crise econômica e sociopolítica.

Economistas da Universidade de Chicago, capitaneados por James Heckman (2008HECKMAN, J. Schools, skills, and synapses. Economic Inquiry, Oregon, v. 46, n. 3, p. 289-324, jul. 2008.), ganhador do Prêmio Nobel em Economia em 2000, tentam disfarçar um suposto incômodo em relação ao conceito alargado de infância contido na CDC - Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) -, a qual considera a infância o período de vida de todo indivíduo com idade até 18 anos incompletos. Ademais, os referidos acadêmicos compartilham das preocupações economicistas dos neoliberais de reduzir o déficit fiscal e de desidratar os investimentos estatais, inclusive os relacionados aos cuidados da criança na concepção alargada da CDC. Para isso, foi utilizada a estratégia de se propor uma visão reconceitualizada de infância ao se tentar reduzir, fragmentar, hierarquizar e dissociar a noção de proteção à criança.

Para James Heckman, é fundamental concentrar os investimentos da educação na primeira infância, disponibilizando-se creches e pré-escolas com professores bem preparados, dando a entender que isso seria suficiente para se obter um retorno garantido, porque supostamente haveria menos criminalidade para a sociedade. Não se pode negar que as intenções de Heckman coincidem com os interesses do mercado, não necessariamente com o interesse superior das crianças (Heckman, 2008HECKMAN, J. Schools, skills, and synapses. Economic Inquiry, Oregon, v. 46, n. 3, p. 289-324, jul. 2008.). Heckman e a Escola de Chicago enxergaram uma janela de oportunidades nos estudos sobre o capital humano de Theodore Shultz (1973SHULTZ, T. W. O capital humano: investimentos em educação e pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.), realizados nas décadas de 1960 e 1970, e nas teses sobre a primeira infância defendidas pela psicologia cognitiva.

1. O Banco Mundial e o Brasil: a pauta neoliberal da primeira infância em ação

O Banco Mundial, em seus relatórios do início do século XXI (World Bank, 2000WORLD BANK. What is the World Bank’s mission. Washington: World Bank Social Protection Human Development Network, 2000.; 2001WORLD BANK. Relatório sobre o desenvolvimento mundial: a luta contra a pobreza. Washington: World Bank, 2001.), propõe a substituição da expressão proteção social pelo termo “risco”, para enfatizar a necessidade de responsabilidade dos pobres pela gestão dos riscos, aos quais estão submetidos, de modo que a proteção social venha a ser encarada como algo residual. A aludida instituição financeira, ao chancelar os estudos da neurociência e da psicologia cognitiva, dissemina a tese de que a formação cerebral da criança na primeira infância é determinante para o sucesso ou o fracasso dela no futuro, e recomenda a centralidade da educação infantil como forma mais direta para se ampliar a oferta do chamado “capital humano” entre os pobres. Nesse contexto, o Banco Mundial defende que a maior tarefa na primeira infância é permitir que, no futuro, haja um adulto produtivo e com alto potencial de capital humano (World Bank, 1999WORLD BANK. Annual report. Washington: World Bank, 1999.; 2014WORLD BANK. Intensificando o desenvolvimento da primeira infância. Washington, D. C.: World Bank Group; São Paulo: Fundação Maria Cecilia de Souto Vidigal, out. 2014. Disponível em: Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/pt/672591468329077347/pdf/929880PORTUGUE0CD0Oct20140PRT0FINAL.pdf . Acesso em: 5 mar. 2023.
https://documents1.worldbank.org/curated...
; 2015WORLD BANK. World Bank support to early childhood development: an independent evaluation. Washington, D. C.: World Bank Group, 2015. Disponível em: Disponível em: https://ieg.worldbankgroup.org/sites/default/files/Data/Evaluation/files/early_child_dev_eval.pdf . Acesso em: 3 abr. 2024.
https://ieg.worldbankgroup.org/sites/def...
).

Uma crítica à análise adotada pelo Banco Mundial, em relação à primeira infância, é que a aludida instituição financeira, inspirada em pedagogos dos Estados Unidos da América, a exemplo de Katz, dissemina um receituário como se os problemas das crianças fossem os mesmos em todas as partes do mundo. Talvez esse determinismo, na leitura do Banco Mundial sobre a primeira infância, seja decorrente da crença que a instituição citada deposita na tese de que a capacidade cerebral da criança é que define o sucesso ou o fracasso desta.

A diretora do Banco Mundial, Paloma Anós Casero, em entrevista concedida a Érica Fraga, da Folha de S.Paulo, publicada na edição de 31 de outubro de 2020, disse que o Brasil desperdiçava 55% do potencial produtivo das crianças nascidas a partir de 2019 (Casero, 2020CASERO, P. A. Brasil desperdiça metade do talento das crianças, diz diretora do Banco Mundial. Entrevistadora: Érica Fraga. Folha de S.Paulo, São Paulo, 31 out. 2020. Caderno Mercado.). Intrigante a precisão da métrica utilizada pela dirigente do Banco Mundial e como os membros de tal instituição, por um lado, dão visibilidade e tornam a primeira infância um tema gerador, ao mesmo tempo que, por outro, invisibilizam e silenciam os problemas relacionados às crianças que estão fora da primeira infância. No silêncio eloquente dos documentos do Banco Mundial, resta a implícita afirmação de que as crianças fora da faixa da primeira infância são uma causa inútil, uma espécie de perdedores ou geração perdida, pois teriam supostamente desperdiçado a etapa das possibilidades de um desenvolvimento adequado.

A preocupação com a primeira infância, que ganhou notoriedade na psicologia cognitiva e na economia neoliberal, teve acentuado destaque no Chile, sob a presidência de Pinochet, como espaço da primeira experiência na América Latina. Na década de 1970, apesar do incentivo do Banco Mundial e do Unicef, o Brasil passa a ter experimentos localizados e precários, dentre os quais se destacam dois programas de primeira infância conhecidos por mães crecheiras e projeto casulo.

O médico Osmar Terra implementou, em 2004, a primeira política estruturada de primeira infância quando foi secretário estadual de saúde do Rio Grande do Sul, no governo de Germano Rigotto, ocasião em que criou o PIM - Programa Primeira Infância Melhor. Como parlamentar, Osmar Terra teve uma participação destacada na constituição da chamada Frente Parlamentar da Primeira Infância, na disseminação da Rede Nacional da Primeira Infância e na construção do Marco Legal da Primeira Infância.

Em 23 de março de 2011, Osmar Terra, já na qualidade de deputado federal e na condição de presidente da Comissão de Seguridade Social e Família, organizou a primeira grande audiência pública sobre o tema. Na ocasião, foram tomados depoimentos, dentre outros, da psiquiatra Liliane Penello, Coordenadora do Programa Brasileirinhos e Brasileirinhas Saudáveis, e de Mary Young, médica e pesquisadora da Universidade de Havard e ex-coordenadora do Banco Mundial na área das políticas para a primeira infância.

Na reunião mencionada no parlamento brasileiro, a pesquisadora Mary Young afirmou que o desenvolvimento da primeira infância era necessário para a América Latina enfrentar os altos índices de pobreza e desigualdade, bem como para a região ter acesso a um capital humano de alta qualidade; ainda, para permitir que as crianças vencessem em face dos novos desafios do mundo do trabalho. Young deixou evidente que não adiantava mais investir em determinada parcela da infância diante das remotas chances de obtenção de resultados positivos. Nessa perspectiva, ela disse que, pelo fato de a primeira infância ter impacto sobre a arquitetura cerebral, o ideal seria investir na criança até três anos para “fechar o gap” (sic), enfatizando o seguinte: “[...] aos três anos, o gap já é muito grande. Esse gap não se fecha mais, continuando quando as crianças entram na educação primária” (Young, 2011YOUNG, M. Depoimento à Comissão de Seguridade Social e Família. Convidada. Audiência Pública n. 0156/2011. Brasília: Câmara dos Deputados Federais, 23 mar. 2011., n. p.). Posteriormente, na mesma fala, dizendo que a desigualdade para cada criança é estabelecida muito tempo antes de esta entrar na escola e, ainda, que é urgente o cuidado com as mães lactantes e com a qualificação de profissionais envolvidos diretamente com a primeira infância, Young concluiu: “Se formos esperar o jardim de Infância, o primário, pode ser tarde demais para intervirmos” (Young, 2011YOUNG, M. Depoimento à Comissão de Seguridade Social e Família. Convidada. Audiência Pública n. 0156/2011. Brasília: Câmara dos Deputados Federais, 23 mar. 2011., n.ºp.).

Na mencionada audiência pública, a psiquiatra Liliane Penello, da Fiocruz, além de afirmar que as politicas de primeira infância são determinantes sociais da saúde, disse: “investir nos primeiros anos de vida [...] determina de forma decisiva as oportunidades na vida de uma pessoa [...]” (Penello, 2011PENELLO, L. Depoimento à Comissão de Seguridade Social e Família. Convidada. Audiência Pública n. 0156/2011. Brasília: Câmara dos Deputados Federais, 23 mar. 2011., n. p.).

O chamado Marco Legal da “Primeira Infância” tomou impulso com a aprovação da Lei n. 13.257/2016 (Brasil, 2016BRASIL. Lei n. 13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, a Lei n. 11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Lei n. 12.662, de 5 de junho de 2012. Brasília, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm . Acesso em: 25 mar. 2024.
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), sancionada pela presidente Dilma Rousseff, que dispôs sobre políticas públicas, alterando vários dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei n. 8.069/1990 (Brasil, 1990BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm . Acesso em: 25 mar. 2024.
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) - e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) (Brasil, 1943BRASIL. Decreto-lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Rio de Janeiro, 1943. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm . Acesso em: 25 mar. 2024.
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). Todavia, segundo as pesquisadoras Demarzo, Lima e Tebet (2018DEMARZO, M. D.; LIMA, D.; TEBET, G. G. de C. Um golpe contra a infância: direitos das crianças e cidadania em risco no Brasil contemporâneo. Ensino e Tecnologia em Revista , Londrina, v. 2, n. 1, p. 84-108, jan./jun. 2018. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.utfpr.edu.br/etr/article/view/8240 . Acesso em: 3 jun. 2023.
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), foi sob Michel Temer, a partir de 2016, que a política do governo federal para a primeira infância ganhou força, sob uma perspectiva neoliberal, principalmente com a adoção da Emenda Constitucional n. 95, que congelou por 20 anos os investimentos em bens primários, afetando, assim, o custeio da educação para crianças e adolescentes.

Que consequências, estruturais e individuais, a curto, médio e longo prazo se poderão sentir a partir desta medida? Na área da educação, presume-se, menos profissionais qualificados, menor infraestrutura escolar, maior número de crianças fora da escola, maior índice de analfabetismo, maior incidência de trabalho infantil, aumento de drogadição precoce, mais violência e pobreza, dentre outras mazelas sociais que a categoria infância enquanto estrutura perde no jogo do poder das decisões políticas (Demarzo; Lima; Tebet, 2018DEMARZO, M. D.; LIMA, D.; TEBET, G. G. de C. Um golpe contra a infância: direitos das crianças e cidadania em risco no Brasil contemporâneo. Ensino e Tecnologia em Revista , Londrina, v. 2, n. 1, p. 84-108, jan./jun. 2018. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.utfpr.edu.br/etr/article/view/8240 . Acesso em: 3 jun. 2023.
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, p. 94).

Em 5 de outubro de 2016, o governo Temer, por meio do Decreto n. 8.869, instituiu o Programa Criança Feliz, voltado integralmente para a primeira infância. Temer utilizou a estratégia de fragmentar a concepção de infância, como elemento geracional, e disseminou a categoria da primeira infância como critério seletivo para definir que a política pública do seu governo levaria em conta os estudos de Heckman. Um dos mentores do citado decreto foi o médico Osmar Terra, então ministro do Desenvolvimento e que, posteriormente, veio a assumir o cargo de ministro da Cidadania no governo de Jair Bolsonaro.

Em relação à política para a primeira infância, Michel Temer tentou colocar o Estado no campo das parcerias ao instituir o Programa Criança Feliz, sob a liderança da sua mulher, Marcela Temer. Com a chegada de Bolsonaro ao poder, o citado programa passou a ser executado sob a responsabilidade da pasta da então ministra Damares Alves.

2. O PNPI como o plano das ausências e da despriorização de outras infâncias

O Plano Nacional pela Primeira Infância (PNPI), instituído em 2020, aprovado pelo Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), é apresentado como um documento político e técnico, elaborado pela RNPI (Rede Nacional Primeira Infância), que orienta decisões, investimentos e ações na promoção da política de primeira infância. O PNPI foi formulado com uma estrutura orgânica e articulada de temáticas, principalmente com o tópico referente a “políticas e ações para infâncias diversas”, no qual está dito que a primeira infância deve ser concebida de forma “mais elástica para os povos e comunidades tradicionais, não se restringindo à idade” (RNPI; Andi, 2020REDE NACIONAL PRIMEIRA INFÂNCIA (RNPI); ANDI - COMUNICAÇÃO E DIREITOS. Plano Nacional Primeira Infância (PNPI): 2010-2022/2020-2030. 2. ed. rev. e atual. Brasília: RNPI; Andi, 2020., p. 119).

No PNPI, está dito que a prioridade absoluta é a primeira infância, por tal motivo é para esta que deve ser a “destinação privilegiada de recursos, aos programas e às ações para as crianças socialmente mais vulneráveis” (RNPI; Andi, 2020REDE NACIONAL PRIMEIRA INFÂNCIA (RNPI); ANDI - COMUNICAÇÃO E DIREITOS. Plano Nacional Primeira Infância (PNPI): 2010-2022/2020-2030. 2. ed. rev. e atual. Brasília: RNPI; Andi, 2020., p. 177). Na perspectiva do PNPI, a educação, em vez de ser vista como um direito fundamental da criança, é concebida como um capital a ser investido, desde que haja a suposta garantia de taxa de retorno. O PNPI dá a impressão de que o Estado, ao cuidar da primeira infância, estará dando conta da totalidade dos problemas da infância, quando na realidade ele provoca uma despriorização da criança a partir dos sete anos de idade. Não sem razão, o documento termina com uma frase que resume a ideologia seletiva e fatalista do Banco Mundial: “cuidar da primeira infância é cuidar da vida toda”.

Uma evidência de que o PNPI foi utilizado como pretexto para o governo federal praticar o orçamento predatório está nos relatórios do Inesc. Eles apontam que os 97% e 85%, respectivamente, dos orçamentos de 2022 e 2023, referentes à criança e ao adolescente, foram destinados exclusivamente ao Programa Criança Feliz, que é voltado para a primeira infância, fato reiterado que em parte explica a razão do desfinanciamento do programa de combate ao trabalho infantil (Inesc, 2023INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS (INESC). Depois do desmonte: balanço do orçamento geral da União 2022. Brasília: Inesc, 2023.; 2024INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS (INESC). Balanço do orçamento da União 2023: Brasil em reconstrução? Brasília: Inesc, 2024.).

Se o lugar das infâncias, no plural, é no orçamento, não deve haver uma infância que precede em privilégio para excluir as outras. Ao invocar a prioridade absoluta somente para a primeira infância, o PNPI está afirmando implicitamente que o princípio da proteção integral não é aplicável a toda infância. A propósito, uma forma de negar algo não ocorre apenas quando se opta taxativamente pela negação, mas também quando se oculta do discurso aquilo que deve ser negado na prática. O signo “prioridade absoluta” foi carregado na estrutura do PNPI para se promover uma fratura semiótica, conforme a percepção desse termo na obra A estrutura ausente, de Umberto Eco. Para Eco, a função sígnica de um termo pode ocultar o que ele nega, bem como negar o que ele oculta (Eco, 1986ECO, U. La estructura ausente. Barcelona: Editorial Lumen, 1986.).

3. A primeira infância ou a hierarquização da infância?

No circuito histórico recente do neoliberalismo, parece não ter fim a hierarquização da infância. À medida que esta se torna mais fragmentada, eleva-se a tendência de que parte da infância seja “adultizada” ou desprezada. Essa visibilidade, dada a uma reduzida faixa de desenvolvimento da infância, tem sido um meio dissimulado para o neoliberalismo enxergar janelas de oportunidades para reduzir aquilo que o capitalista qualifica como custos, além de ser um pretexto para continuar a promover uma disjunção discriminatória do conceito de infância.

O problema não está em se diferenciar as complexas fases da infância, mas partir de uma engenhosa pitada de determinismo cientificista para estabelecer a redução de prioridades, estilhaçando a proteção integral, sem levar em conta as singularidades de cada etapa das crianças e dos adolescentes. A julgar pelo modo como são interpretadas as idas e vindas da neurociência, não tardará o tempo em que o cérebro humano será visto por alguns como quase um tribunal cármico, no qual homens e mulheres terão que pagar na vida real uma forma de expiação pelo que fizeram ou deixaram de fazer com a primeiríssima infância.

A consequência imediata de segmentação da política pública voltada para a primeira infância consiste na centralidade de políticas seletivas, focalistas e, ainda, no abandono da universalidade do acesso e da educação infantil como um direito. Acrescente-se, ainda, a contradição entre o imediatismo da redução de custos e o descontrole capitalista que a medida provoca em relação à crescente superpopulação relativa que não está no universo coberto pela chamada primeira infância. Com efeito, a principal contradição explicitada nessa política seletiva de primeira infância, sob inspiração neoliberal, consiste no fato de que os representantes do capital, a pretexto de realizarem a redução dos investimentos sociais e o rebaixamento dos custos da reprodução da força de trabalho, estão a precarizar e a destruir não apenas a fonte de produção de mais-valor, mas sobretudo estão contraditoriamente a dilacerar os fundamentos da dinâmica do processo de acumulação do modo de produção vigente.

Para além das contradições envolvidas na política de primeira infância, há subliminarmente uma mensagem de desresponsabilização do capitalismo em relação às demais fases da infância. Isso se traduz pelo modo de produção que, pela atuação de seus representantes, declara taxativamente ser tempo perdido investir naqueles que não tiveram a oportunidade de terem sido cuidados na primeira infância. Assim, tirando as pessoas que o capitalismo trata como casos perdidos, resta ao modo de produção vigente, sob a versão neoliberal, somente o interesse imediatista pela primeira infância.

No tocante ao imediatismo mencionado, em 10 de julho de 2023, o governo Lula sancionou a Lei n. 14.617 (Brasil, 2023BRASIL. Lei n. 14.617, de 10 de julho de 2023. Institui o mês de agosto como o Mês da Primeira Infância. Brasília, 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm . Acesso em: 25 mar. 2024.
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), instituindo agosto como o mês da primeira infância, estabelecendo que, além de “garantir prioridade e efetivação dos direitos ao público da primeira infância” (artigo 2º, inciso VII), deve ser ofertado o atendimento integral e multiprofissional à criança na primeira infância e à sua família, especialmente nos primeiros mil dias de vida, o que denota uma hierarquização mais seletiva ainda no tocante ao atendimento.

4. A primeira infância e a perspectiva neoliberal

O neoliberalismo chancela a prática de austeridade fiscal não apenas como forma para reduzir os cuidados com a educação da criança, mas também como meio para disseminar a visão empreendedorista ou economicista que contribui para mercantilizar a infância como um campo de oportunidades, do qual se espera um alto retorno ou lucro no futuro. Essa austeridade, segundo Clara Mattei, não é algo acidental, não tem como fim a mera supressão de gastos, a retomada do crescimento ou a redução do tamanho do Estado. Ela é, sobretudo, um projeto para intensificar a expropriação e as desigualdades de classe, pois esta é a condição principal para alimentar a engrenagem da acumulação capitalista (Mattei, 2023MATTEI, C. E. A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo. São Paulo: Boitempo, 2023.).

A educação, no aludido contexto teórico-político, é considerada uma aplicação mercantil ou uma conta bancária, e a criança é enxergada como um animal a ser adestrado e submetido a um regime capaz de render dividendos. Esse modelo, além criar uma pressão sobre a própria criança, desvia a finalidade civilizatória da educação, transformando-a numa ferramenta para o mercado.

Sem pretender desconsiderar que os primeiros anos de vida são importantes para a existência de qualquer ser social, é preciso perceber que o suporte ideológico do neoliberalismo sobre a infância é sutilmente sedutor, seja pela sofisticação do uso da teoria do apego, seja pelo deslumbramento do argumento de cuidado que, embora recortado de forma seletiva e reducionista, é apresentado diante da promessa metonímica de conferir uma solução para a totalidade dos problemas da infância.

Um exemplo do deslumbramento do argumento de cuidado está posto no documentário “O começo da vida“ (FMCSV, 2016aFUNDAÇÃO MARIA CECÍLIA SOUTO VIDIGAL (FMCSV). O começo da vida . Documentário. Direção: Estela Renner. Produção: Maria Farinha Filmes. São Paulo: Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, 2016a. (96 min.) Disponível em: Disponível em: https://ocomecodavida.com.br/filme-completo/ . Acesso em: 13 fev. 2024.
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). Na citada produção, fica evidente que há um foco na teoria do apego, o qual parte da premissa de que as crianças se desenvolvem de forma adequada e comportam-se de maneira segura quando estão sendo cuidadas por pais ou responsáveis. Nesse sentido, o vídeo tem a intencionalidade de revelar que creches e abrigos para crianças, por melhores que sejam, não substituem nem dispensam os cuidados da relação de parentesco, sobretudo da mãe. No aludido filme, transparece que o orgulho de algumas mães é ter tido a coragem de deixar a carreira profissional para cuidar da sua criança. Subliminarmente está a mensagem de que o lugar da mulher é onde ela quiser, mas, no capitalismo, se a mulher pobre não tiver como atuar como agente da força de trabalho, inserida diretamente no sistema produtivo, ela deverá assumir a missão “quase-cívica” de reproduzir biologicamente e de cuidar dos pequenos da família, pois assim estará contribuindo para estruturar e proporcionar as mentes e os músculos da futura formação da população economicamente ativa ou mesmo do futuro exército de reserva.

A Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que utiliza em seus relatórios o slogan “primeira infância primeiro” (FMCSV, 2016aFUNDAÇÃO MARIA CECÍLIA SOUTO VIDIGAL (FMCSV). O começo da vida . Documentário. Direção: Estela Renner. Produção: Maria Farinha Filmes. São Paulo: Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, 2016a. (96 min.) Disponível em: Disponível em: https://ocomecodavida.com.br/filme-completo/ . Acesso em: 13 fev. 2024.
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), apoiou financeiramente a produção do documentário mencionado, e elaborou a cartilha denominada Empreendedorismo e negócios de impacto social para a primeira infância (FMCSV, 2016bFUNDAÇÃO MARIA CECÍLIA SOUTO VIDIGAL (FMCSV) (org.). Empreendedorismo e negócios de impacto social para a primeira infância. São Paulo: Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, 2016b. Disponível em: Disponível em: https://issuu.com/fmcsv/docs/empreendedorismo_e_nis_para_pi_ver . Acesso: 8 out. 2019.
https://issuu.com/fmcsv/docs/empreendedo...
). A ideia central contida na cartilha é canalizar a força de trabalho feminina sobrante para viabilizar, a um baixíssimo custo, um empreendedorismo social que possibilite a produção de bens e serviços a serem comercializados para atender às famílias que tenham crianças, nas distintas fases que se relacionam à primeira infância, a começar com a produção e a comercialização de tudo que poderá ser utilizado na esfera de uma creche ou pré-escola, tais como: mobiliário; alimentação; espaços lúdicos; aplicativos de gestão; aplicativos de anamnese e acompanhamento de crianças; ferramentas tecnológicas voltadas à gestão etc.

Os serviços envolvidos com essa força de trabalho feminina sobrante devem contemplar os seguintes aspectos: parto; construção, funcionamento e gestão de creches e pré-escolas; oferta de serviços de nutrição, saúde, educação, bem como a qualificação de profissionais das aludidas áreas; produção e comercialização de brinquedos, softwares e serviços de monitoramento remoto relacionados ao cuidado etc. Embora a cartilha da citada fundação tente o tempo todo passar a ideia de que a proposta é viabilizar uma espécie de “empreendedorismo do bem”, ficam evidentes os seguintes aspectos:

  • Primeiro, estriba-se no fato de que produzir bens e serviços para atender às necessidades da primeira infância é um negócio muito lucrativo;

  • Segundo, vale-se da tese de que o ente estatal, em vez de ser provedor de bens e serviços na primeira infância, deve ser um parceiro ou apoiador, fato que desloca a responsabilidade do poder público, justificando a atuação estatal como Estado mínimo, ou seja, como aquele ente que não precisa aumentar as suas receitas para manter uma estrutura grandiosa de atendimento às demandas da infância, haja vista a suposta desnecessidade de atuar como o provedor dos bens sociais;

  • Terceiro, que educar e cuidar de uma criança na primeira infância não é uma mera escolha ou tarefa que esteja ao alcance de todas as famílias.

A educação infantil de qualidade é responsabilidade e meta do Estado, conforme prevê o PNE - Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Brasil, 2014BRASIL. Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE 2014-2024 e dá outras providências. Brasília, 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm . Acesso em: 25 mar. 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
). Segundo o aludido documento, a educação infantil não é uma escolha deliberada por qualquer família.

Rosania Campos (2013CAMPOS, R. As indicações dos organismos internacionais para as políticas nacionais de educação infantil: do direito à focalização. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 195-209, jan./mar. 2013. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1517-97022013000100013 . Acesso em: 5 fev. 2023.
https://doi.org/10.1590/S1517-9702201300...
), inspirando-se nos textos de Roger Dale, analisou a posição da Unesco e do Unicef, no tocante a políticas públicas que seletivamente criam uma segmentação e instituem uma escala hierárquica de prioridades. A autora enfatiza que o constituinte de 1988 não faz a distinção entre as crianças, de modo que não disse em nenhum momento que umas eram superiores ou deveriam ser mais protegidas do que as outras. A propósito, o artigo 227 da Constituição Federal de 1988 consagrou o chamado princípio da proteção integral, que consiste no dever de assegurar a crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 25 mar. 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
).

As políticas públicas concentradas na hipercentralidade da primeira infância são instituídas sob o argumento de uma lógica de equidade e baseadas na tese de que para superar a pobreza é bastante investir na educação infantil. Essa visão expressa uma disjunção entre universalidade/particularidade e entre qualidade/quantidade ao se focar num recorte político mercantilizado e ao buscar restringir o atendimento às crianças pobres em matéria de educação infantil. Cuida-se de solução paliativa, celebrada como útil e necessária na esfera neoliberal, porque gera a redução e a seletividade dos gastos estatais na área social.

Segundo as pesquisadoras Moraes e Viana (2020MORAES, D. F. L.; VIANA, T. C. O faz de conta tem que prestar contas no neoliberalismo? Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 72, n. 3, p. 67-79, dez. 2020. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672020000400006&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 3 jun. 2023.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
), não há como conceber o cuidado na infância, como condição para se obter desta resultados futuros, sem levar em consideração os possíveis custos psíquicos que envolvem tal espécie de processo de cobrança. Ao se reportarem às experiências iniciais de implantação da política de primeira infância, Moraes e Viana (2020MORAES, D. F. L.; VIANA, T. C. O faz de conta tem que prestar contas no neoliberalismo? Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 72, n. 3, p. 67-79, dez. 2020. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672020000400006&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 3 jun. 2023.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
) destacam que, sob a perspectiva da psicanálise, é irracional que o Programa Criança Feliz prometa uma vitória futura à criança a partir das técnicas de coaching apresentadas na escola. “Não há garantia dos dividendos já que existe uma imprevisibilidade inerente ao campo, sempre incerto da subjetividade” (Moraes; Viana, 2020MORAES, D. F. L.; VIANA, T. C. O faz de conta tem que prestar contas no neoliberalismo? Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 72, n. 3, p. 67-79, dez. 2020. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672020000400006&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 3 jun. 2023.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 76).

Considerações Finais

No presente texto, não se intenta questionar a importância dos anos iniciais de vida, mesmo porque o ser humano em sua trajetória tende a reproduzir aquilo que vivencia em suas diferentes etapas existenciais. Assim, o presente artigo buscou demonstrar que o envolvimento com a primeira infância, sob uma perspectiva reducionista, determinista e economicista, gera entorpecimento para o que está além da primeira infância. Portanto, as principais conclusões são no sentido de que a primeira infância:

  • Articula-se com o neoliberalismo, visando fragilizar a atuação do Estado como provedor de bens sociais; fragmenta a concepção da infância como unidade complexa; e reduz a faixa de idade dos destinatários da proteção da criança;

  • Confere visibilidade a uma estreita faixa etária de desenvolvimento da infância, como forma de ocultar a intenção de redução de custos nas políticas públicas e de gerar a despriorização da pauta do combate ao trabalho infantil;

  • Enfoca a proteção sob uma perspectiva economicista e redutora de custos, bem como tenta transformar a infância em capital humano e os pais em coaches, tudo visando assegurar uma atuação competitiva e meritocrática da criança.

O método histórico-dialético, utilizado na presente abordagem, foi importante para identificar como o capitalismo, ao adotar a narrativa da primeira infância pela mediação da forma jurídica, visa simultânea e contraditoriamente, por um lado, encobrir e simplificar uma realidade complexa e, por outro, realizar a disjunção entre diferentes infâncias, consideradas totalidades parciais, que são interdependentes e afetadas pela dinâmica do modo de produção vigente.

Por fim, a presente reflexão gera um alerta conclusivo para dois aspectos: o primeiro é no sentido de se recuperar a concepção não discriminatória da infância; o segundo é a urgência requisitada para refletir sobre como as diretrizes economicistas do Banco Mundial, aplicadas no Brasil, estão a invisibilizar e a esvaziar a política de combate ao trabalho infantil, provocando a hierarquização entre crianças e adolescentes, de modo a violar a aplicação do princípio da proteção integral e a desconsiderar os contextos históricos e culturais da infância.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2024
  • Aceito
    02 Ago 2024
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