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Que a universidade se pinte de povo* * O título se refere a um discurso de Ernesto Che Guevara na Universidade de Las Villas, em Cuba, em 28 de dezembro de 1959.

Let the university dress up as people

Resumo:

O artigo busca socializar reflexões sobre uma experiência de extensão universitária junto a um acampamento da reforma agrária organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no estado do Rio de Janeiro.

Palavras-chave:
Formação política; Universidade pública; Movimentos sociais

Abstract:

This article aims at socializing reflections about an experience of university extension at a land reform camp. Such a university extension was organized by the Landless Workers' Movement (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST) in Rio de Janeiro State.

Keywords:
Political training; Public university; Social movements

Introdução

O presente artigo é resultante de trabalho de conclusão de curso em Serviço Social, que teve como objeto os processos de formação política vinculados ao programa de extensão Universidade Itinerante: Formação Político-Cultural em Direitos Humanos Voltada para Comunidades Rurais da Baixada Litorânea e Região Norte do Estado junto ao acampamento Osvaldo de Oliveira (MST/RJ). A escolha desse recorte de investigação foi provocada pelas experiências como bolsista no referido programa de extensão no ano de 2013 e no projeto de extensão Assessoria em Questão de Cidadania a Movimentos Sociais e Populares: "Parcerias Interuniversidades para Gestação de Processos de Formação Política e Humana para Militantes Sociais" no ­período de 2010 a 2012, ambos articulados ao curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense, campus Rio das Ostras.

Nesse sentido, neste texto levantamos algumas questões a respeito do papel dos processos político-formativos na construção da consciência crítica situada no contexto sócio-histórico contemporâneo, buscando chamar a atenção da relevância desse tipo de iniciativa de extensão para além das contribuições unívocas que as universidades podem desempenhar na organização dos movimentos dos trabalhadores, mas também, e talvez sobretudo, para a importância da construção dessas experiências junto aos movimentos sociais, para o redimensionamento crítico da universidade e dos perfis profissionais por ela formados. Diante do acirramento de todas as formas de desigualdades, da criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, da fragmentação da consciência de classe e da luta dos trabalhadores, do decepamento de direitos, do sucateamento e mercantilização dos serviços públicos e tantas outras adversidades características do tempo presente, o Serviço Social é instigado a aprofundar reflexões e compromissos com a luta geral dos trabalhadores.

Processos de formação política em tempos sombrios

Falar de consciência de classe em tempos em que as próprias classes andam questionadas, no contexto de metamorfoses do trabalho, de mudanças nas formas de construção das experiências auto-organizativas, é um desafio de grande dimensão. Na maior parte das circunstâncias que esse modo de vida social nos proporciona, nosso olhar é manipulado para se guiar pelas aparências imediatas e agir pela espontaneidade, sem lançar mão da crítica. É assim, por exemplo, que somos levados a crer que a inserção da iniciativa privada irá melhorar a qualidade dos serviços que antes eram públicos e que ainda irá aumentar o número de empregos. Ou, por exemplo, que o agronegócio é a solução para o enfrentamento da fome e que também garante largas oportunidades de trabalho.

Nesse sentido, autores como Iasi (2011)_____. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo: Expressão Popular, 2011. nos municiam de elementos essenciais para o estudo sobre os processos de formação da consciência, oferecendo bases para a reflexão a respeito do propósito da formação política. Compartilhamos da compreensão de que os processos de formação política junto aos trabalhadores possuem o papel de interferir no movimento contínuo de formação da consciência, ou seja, nas formas de leitura do mundo que, sob o domínio da sociedade burguesa, fundada na exploração do trabalho e na propriedade privada, se apresentam de maneiras mistificadas a fim de garantir a sua reprodução.

O autor destaca que a consciência não "é", mas "torna-se" permanentemente na relação concreta entre os homens e destes com seu meio. Ou seja, não é um processo mecanicamente gradativo, nem linear, mas sim permeado por contradições, avanços e recuos. É necessário frisar que "falamos em processo de consciência, e não apenas consciência, porque não a concebemos como uma coisa que possa ser adquirida e que, portanto, antes de sua posse, poderíamos supor um estado de 'não consciência'" (Iasi, 2011_____. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 12). Toda atividade humana é eminentemente consciente, marcada por uma forma mais ou menos elaborada de explicar o mundo, o que indica a falsidade daquela concepção de consciência tornada questão de "virtude", de forma psicologizada, típica do senso comum, cabendo a alguns esclarecidos a tarefa de "conscientização".

No entanto, não podemos divorciar as formas de consciência das relações sociais que as formam, como se a mesma brotasse de uma suposta força subjetiva. Marx já dizia: "Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência" (2008, p. 47). Ou seja, a razão em si não cria coisa alguma. São as condições de objetivação do ser social - em que o trabalho em seu sentido ontológico tem lugar privilegiado - que criam determinadas formas de consciência social. Sendo assim, é produzida a partir da totalidade de relações que as conformam, podendo ser transformada, ou não, na medida em que se insere em outras formas de vivências. A famosa frase de Paulo Freire, importantíssimo educador e pedagogo brasileiro que diz que "a cabeça pensa onde os pés pisam", deve ser interpretada com um cuidado imprescindível, de não idealizar essa relação de forma determinista. A "cabeça" pode vir a pensar de forma diferente "onde os pés pisam" na medida em que as contradições e outras formas de "ler o mundo" são captadas pelos indivíduos através de diversas mediações, por exemplo, pela inserção na organização política no espaço de trabalho.

A possibilidade de elevação crítica da consciência do âmbito particular ("econômico-corporativo") ao universal, ("ético-político") - usando das formulações gramscianas buscadas principalmente nessa argumentação pela mediação de Coutinho (1999)COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. - constitui o objetivo central dos processos político-formativos, que se relacionam tanto com as condições concretas nas quais a classe se reproduz, quanto pelo desencadeamento de reflexões teóricas que se confrontam com a naturalização e a mistificação dos processos de consciência e seus mecanismos de reprodução. Nessa perspectiva, "as lutas se tornam bases materiais para a construção de formas organizativas, instituídas ou em movimento, e bases materiais para a emergência de novos valores que se chocam com os estabelecidos" (Iasi, 2002IASI, Mauro. O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência. São Paulo: Viramundo, 2002., p. 217).

Liguori (2007)LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. destaca um trecho essencial de Gramsci ao polemizar a "estrutura ideológica" da classe dominante, com a qual se deparam os experimentos de organização dos trabalhadores:

O que se pode contrapor, por parte de uma classe inovadora, a este complexo formidável de trincheiras e fortificações da classe dominante? O espírito de cisão, isto é, a conquista progressiva da consciência da própria personalidade histórica, espírito de cisão que deve tender a se ampliar da classe protagonista às classes aliadas potenciais: tudo isso requer um complexo trabalho ideológico. (Gramsci, Q3, 49, p. 332-333, apud Liguori, 2007LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007., p. 90; grifos nossos)

O investimento na gestação de processos de formação política não é nada novo; inscreve-se na história da formação da classe trabalhadora como movimento social de classe, como instrumento de qualificação e avanço de suas batalhas. Podemos afirmar, a partir de Silveira (2004)SILVEIRA, Maria Lídia. Educação popular:novas traduções para um outro tempo histórico. In: ______; FARAGE, Eblin (Orgs.). Rio de Janeiro: CFCH/UFRJ, 2004., que é uma das tarefas essenciais para as organizações dos trabalhadores que se colocam no horizonte da construção de outra forma de sociedade, como instrumento que visa promover a apropriação de conhecimentos que possibilitem uma leitura crítica da realidade, suas causas e determinações, tendo assim, como "alvo", as formas de consciência social. O termo "formação política"1 1 Entendemos a formação política nos mesmos marcos dos processos de educação popular. Não nos deteremos na polêmica que por vezes ronda essa discussão, a partir da qual a educação popular é usada para fazer o contraponto à formação política identificada como de quadros. Nossa compreensão, pois, está no horizonte da educação popular e a formação política como processos que objetivam potenciar a organização política popular, através da socialização de instrumentos teóricos que permitem uma leitura crítica da realidade. está presente em um cenário bastante amplo de discussões e polêmicas. A leitura de formação política que afirmamos é atrelada a determinada perspectiva teórico-metodológica, que possibilite a leitura da realidade para além das aparências imediatas, direcionada para os horizontes da emancipação humana: a teoria social marxiana. É importante demarcar isso, pois a burguesia também realiza atividades educativas e políticas direcionadas a fortalecer a "ordem" estabelecida.

Merece ser pontuado que não consideramos a formação restrita aos espaços educativos "clássicos" (como cursos e palestras, por exemplo), nem de modo idealista e messiânico, como a única responsável pelo avanço das lutas dos trabalhadores, mas sim situada no conjunto das estratégias de transformação da realidade por parte dos segmentos subalternizados. Assim, concebemos a gestação desses processos como construção de espaços da classe trabalhadora se apropriar do conhecimento crítico socialmente produzido, como importante instrumento de organização política, com a intenção de transformar desde sua realidade próxima até a mais ampla.

Por sua vez, o contexto societário vigente tem acirrado a mercantilização da vida social em todas as suas dimensões. A recomposição contemporânea do ciclo de reprodução do capital, deflagrada desde o final da década de 1960, acionada pela necessidade de recuperação da sua própria crise, impõe mudanças na forma de acumulação, na organização da produção material, nas formas de consumo e gestão da força de trabalho, na reorientação das intervenções estatais na sociedade, significando o acirramento das expressões da "questão social". Implica árduas mudanças na sustentação ideopolítica dessa "ordem", que é concebida como "possibilidade única"; sequência que conseguiu alcançar condições muito favoráveis para a pulverização do desenvolvimento da consciência de classe, das conquistas históricas e das condições objetivas de organização da classe da trabalhadora, significando sua fragmentação e ampla heterogeneidade.

É certo que a crise afeta com rigor as formas "clássicas" de representação dos trabalhadores: desde que partidos e sindicatos se tornaram peças importantes na sociabilidade de luta desses sujeitos, nunca antes eles estiveram tão na defensiva ou deslegitimados socialmente. É um quadro que, consequentemente, redimensiona as lutas sociais, em que temos "a transformação da base objetiva da luta de classes" (Harvey, 2004HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 2004., p. 145), implicando difíceis condições de estabelecer conexões com o passado histórico e, assim, muitas dificuldades de elaboração de projetos alternativos para o futuro. Como nosso pressuposto é de que a história é movimento, procuramos enfatizar que as ofensivas burguesas dificultam, mas não anulam as possibilidades de subversão dos padrões de produção da consciência moldados para legitimar e perpetuar esse modo de vida.

Diversos estudos apontam que data de meados do século XX o surgimento dos chamados "novos movimentos sociais".2 2 Remetemos-nos a esse aspecto com a expressão "movimentos sociais contemporâneos", por não termos condições de debater, nos limites deste trabalho, sobre a polêmica contida na designação de "novos movimentos sociais". Consideramos essa denominação problemática porque homogeniza as experiências organizativas, referindo-se do mesmo modo tanto em relação àquelas que atualizam as lutas dos trabalhadores quanto em relação àquelas que não têm nenhum horizonte de classe. O estudo de Braz (2000)BRAZ, Marcelo. O debate teórico acerca dos "novos movimentos sociais" no Brasil: um balanço crítico. Serviço Social e Movimento Social, São Luís, v. 2, n. 2, jul.-dez. 2000. polemiza que muitas análises se encaminharam na perspectiva de que as lutas sociais se deslocaram da esfera da produção para a da reprodução, o que inclui também o debate sobre o falso deslocamento da centralidade do trabalho nos tempos atuais. É certo que muitos dos movimentos sociais contemporâneos tendem a se situar fora da esfera imediata do trabalho e da produção material do capital (que possui o espaço da fábrica como espaço central), construindo suas experiências predominantemente nos territórios (como os sem-terra, os sem-teto). Todavia, jamais estão deslocados do processo geral de produção e reprodução da vida social. Da mesma forma em que há uma diversidade de conflitos enfrentados, há também diferenças de natureza: vão desde os que se afirmam e agem contra o sistema capitalista aos que reivindicam uma "inclusão" na "ordem".

É característico do leque de insurgências que possuem um horizonte classista o investimento em processos de formação política e educação popular, com o objetivo de provocar a expansão e a qualificação do raio de suas ações. A América Latina tem sido foco referencial nesse sentido. Para o MST, por exemplo, os estudos e os processos de formação são princípios organizativos do Movimento e, nesse sentido, vem se esforçando profundamente na ampliação desses espaços - inclusive construindo uma escola de formação que se tornou referência mundial, a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), e buscando estabelecer diversas parcerias e convênios com universidades públicas brasileiras e latino-americanas.

Vale a pena destacar que desde a gênese do MST, a realidade rural passou por mudanças significativas, e tal aspecto torna muito mais desafiante os processos de formação política junto à sua base. Atualmente, pela predominância do capital financeiro e globalizado, se alastra uma grande ofensiva sobre a natureza, a produção e bens agrícolas nos quais se hegemonizam os mercados do agrobusiness e das commodities. Nesse contexto de domínio do agronegócio (que autores como Porto-Gonçalves (2005) * O título se refere a um discurso de Ernesto Che Guevara na Universidade de Las Villas, em Cuba, em 28 de dezembro de 1959. e Stédile (2013)STÉDILE, João Pedro (Org.). A questão agrária no Brasil: o debate na década de 2000. São Paulo: Expressão Popular, 2013. tecem contribuições fundamentais), a luta pela reforma agrária ganha novos sentidos e configurações, que não cabem mais nos limites da proposta de "reforma agrária clássica".

O próprio perfil da base do Movimento passa por significativas mutações. A profunda ofensiva do capital no campo agrário tem produzido uma tendência cada vez maior de expulsão dos trabalhadores rurais rumo às cidades em busca de melhores condições de vida - o que é profundamente frustrado pela ofensiva do capital também no espaço urbano. Essa questão tem impactado a composição de sua base social, pois é possível observar, em muitos casos, o predomínio de trabalhadores de natureza urbana. Não é casual encontrar grande proporção de trabalhadores desempregados, moradores em situação de rua, ex-operários e sem-teto compondo os acampamentos do MST, como nos indica Machado (2007) * O título se refere a um discurso de Ernesto Che Guevara na Universidade de Las Villas, em Cuba, em 28 de dezembro de 1959. . O assentamento Osvaldo de Oliveira expressa essa realidade, pois boa parte dos sujeitos que o constituem ingressou na ocupação proveniente de cidades próximas da região (Rio das Ostras, Macaé, Cabo Frio etc.), impulsionada pela necessidade econômica de se autossustentar. As trajetórias anteriores deles os remetem às margens do desemprego, de empregos informais degradantes, com condições de vida precárias, inclusive com extrema dificuldade de garantirem suas moradias, alimentação e demais necessidades básicas.

Temos assim que a relação cada vez mais estreita com a tecnificação do mundo do trabalho e de outras esferas da vida social, como a cultura, as relações pessoais e de lazer, trazem novas formas de perceber o mundo. Isso resulta em um leque de desafios estratégicos e didáticos a serem assumidos pelos intelectuais (pensado nos marcos gramscianos) que se comprometem com o fortalecimento e a qualificação dos processos de formação política junto às classes trabalhadoras do nosso tempo histórico.

O programa de extensão Universidade Itinerante e o trabalho junto ao acampamento Osvaldo de Oliveira

A relação universidade-movimentos sociais pode ser considerada bastante reduzida ao longo da história brasileira e sempre tensionada por "fios interrompidos" - usando o termo de Novaes (2012)NOVAES, Henrique. Reatando um fio interrompido: a relação universidade-movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Expressão Popular, 2012. -, desengatados pelas classes dominantes, que impõem formas de reproduzir seu poder. A universidade pública brasileira apartou de seu espaço as classes subalternas, que a financiam pela via dos altos impostos, são produtoras da riqueza social e em grande parte das vezes não conseguem acessá-la. Portanto, a relação da universidade com os movimentos sociais e organizações populares, seja pela via da extensão, pesquisa e afins, constitui uma dívida histórica com os trabalhadores.

Devemos apontar que a ofensiva neoliberal também produz graves rebatimentos para o espaço da universidade pública, já que esta não está descolada da totalidade do movimento da sociedade. Esse cenário tem imposto um recrudescimento da sua submissão à lógica mercadológica, reforçando ainda mais seu histórico descompromisso com as necessidades das classes trabalhadoras. Porém não podemos nos furtar a reconhecer que mesmo que pequenos, há focos de resistência contra a indiferença da universidade com os movimentos sociais. A construção de projetos de extensão e pesquisa que visam reconstruir essa relação é uma das formas de qualificar essa realização e driblar o conservadorismo característico do espaço acadêmico. Sua importância se fundamenta no questionamento da função social da universidade pública no sentido de pautar a socialização do conhecimento produzido e a democratização dos meios para produzi-lo rumo ao fortalecimento da organização dos trabalhadores. Podermos constatar avanços, porém ainda há muito por se fazer, pois as contrapartidas das universidades podem ser consideradas poucas e frágeis.

No entanto, um limite central deve ser demarcado: a universidade se constitui historicamente como espaço marcado pelo conservadorismo, por características próprias da universidade burguesa, elitista, hierárquica e meritocrática. Não tenhamos ilusão: não escapa do velho comprometimento com a reprodução dominante, distante das necessidades das classes trabalhadoras. Os desafios nessa relação (universidade-movimentos sociais) não isentam seus segmentos mais críticos, não sendo raro observar posturas e relações pedagógicas de difícil aproximação com as condições das massas de trabalhadores.

O programa de extensão Universidade Itinerante se situa nesse esforço de construir relações junto aos movimentos sociais. A proposta é fruto de experiências extensionistas no diálogo com movimentos populares da região desde 2010, através do programa de extensão Assessoria Interdisciplinar em Saúde e Cidadania a Movimentos Populares, que articula os cursos de Serviço Social e Enfermagem da UFF de Rio das Ostras. Sua gênese é marcada pela iniciativa de professores do curso de Serviço Social da UFF/Rio das Ostras, cujo perfil se caracteriza pela identidade com as lutas e resistências dos grupos subalternos e por anos de pesquisas e experiências de articulação junto a movimentos sociais e populares urbanos e rurais.

A aproximação com o acampamento Osvaldo de Oliveira3 3 Osvaldo de Oliveira atuou junto ao movimento sindical rural, tendo forte protagonismo na luta pela terra e na gênese do MST na década de 1980, viveu na região Cachoeiras de Macacu (RJ). data desde logo após a ocupação da Fazenda Bom Jardim, em 7 de setembro de 2010, situada na região de Córrego do Ouro, distrito serrano do município de Macaé (RJ) (município vizinho a Rio das Ostras, onde se localiza o campus da UFF). As ações se direcionaram a atividades de assessoria e acompanhamento da organização interna das famílias, desde o processo de construção do acampamento, na perspectiva do acesso ao conjunto de políticas públicas, realização de levantamentos socioeconômicos e epidemiológicos, construção de cursos de formação política e agroecologia etc.

Em 2013 fomos contemplados com recursos do edital PROEXT/MEC/SESu para execução do programa Universidade Itinerante, que consistiu na continuidade das ações de extensão que já vínhamos construindo no acampamento Osvaldo de Oliveira, e então, também estendido junto ao acampamento Luís Maranhão4 4 Luís Maranhão foi militante do PCB, e um dos dez militantes incinerados na usina Cambahyba (local onde se situa o acampamento), em Campos dos Goytacazes (RJ), no período da ditadura civil-militar no Brasil (1964-85). (MST/Campos dos Goytacazes-RJ).

As ações de formação política e cultural planejadas pelo programa Universidade Itinerante, em 2013, se concretizaram na construção de oficinas de formação política, de educação popular em saúde e oficinas culturais, de teatro e capoeira, em um final de semana de cada mês nesses dois acampamentos da região (sendo sábado em um e domingo em outro). Toda a estrutura dessa proposta e das outras precedentes foi pensada para potenciar processos organizativos já existentes, sendo os conteúdos, a metodologia, o cronograma, a periodicidade, a execução e a avaliação construídos junto à coordenação estadual do MST e à coordenação local das áreas em questão.

A aprovação da proposta com a destinação de recursos financeiros para as atividades do programa nos possibilitou potenciar ações como: contar com maior número de bolsas de extensão, bancar passagens, diárias, compra de materiais permanentes e de consumo, serviços de terceiros, como alimentação, serviços gráficos etc. No entanto, é importante ressaltar as dificuldades para operacionalização desses recursos, pelas duras exigências burocráticas e estruturais da universidade. Por isso, ressaltamos que a qualidade alcançada por esses trabalhos se deve a sua natureza essencialmente coletiva.

Atentemos para as contribuições dos próprios protagonistas desses processos, os quais entrevistamos com o objetivo de indagar a respeito da formação política no acampamento Osvaldo de Oliveira. São trabalhadores(as) acampa­dos(as) que construíram e participaram das oficinas de formação desde 2012, sendo identificados para esse fim como (E1), (E2) e (E3). Também contamos com uma entrevista a um membro da coordenação estadual do MST/RJ, identificado como (E4).

Destacamos três eixos que perpassaram as entrevistas: a importância das atividades de formação política para o fortalecimento das lutas dos trabalhadores e pela terra; considerações sobre mudanças na realidade específica do Osvaldo de Oliveira desde o início de atividades de formação e as contribuições para a organização do acampamento; e questões a respeito da formação política na realidade futura enquanto assentamento.

Ao perguntarmos sobre a importância das atividades de formação política para o fortalecimento das lutas dos trabalhadores e pela terra, podemos verificar, de maneiras mais ou menos elaboradas, o avanço no enfrentamento da primeira forma de consciência, em que a chave de leitura do mundo se dá do todo pela parte, característico dos primeiros espaços de inserção dos indivíduos como a família, escola, igreja etc. Iasi (2011)_____. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo: Expressão Popular, 2011. demonstra a interferência no processo de formação de processos de consciência crítica. Vejamos:

Os conteúdos que a gente estudou mostra que tem muita terra parada e muita gente passando fome e muita gente que não tem nem onde morar. Aqui no acampamento, por exemplo, eu acho que essas oficinas contribui para as pessoas terem a visão da importância da luta pela terra porque não é só uma terra, o MST não luta só por uma terra, nós buscamos uma sociedade mais justa, quebrar esse capitalismo que esse povo ainda está agarrado e nisso, tem que cortar esse cordão umbilical do individualismo. (E1)

Acho que traz uma transformação do entendimento da luta porque tem muita gente crua que não sabe o que é o MST, o que é o Incra, porque o Incra para nós é o Incravado. Contribui para vermos que não estamos aqui à toa. Sobre o que a gente estuda, não tem melhor para conhecermos a história da sociedade, porque eu sou da terra, vim da terra, mas não sabia nada disso, a minha cabeça hoje é diferente. (E2)

Terra é sempre bom, mas eu acho que a participação por uma sociedade melhor é mais importante. [...] Como é que você luta sem estar sabendo pelo que você luta? Como é que você vai dar importância a uma luta sem saber a essência dela lá no início? Através dos companheiros que foram tombados, através das injustiças que foram cometidas durante esse tempo, através dos direitos que você tem como cidadão... Como é que você vai lutar sem estar sabendo disso tudo? A formação é para isso. Se você tem uma formação, se você é conhecedor do objetivo a ser tomado, aí essa luta fica muito mais forte, você se fortalece na luta, e com certeza facilita, porque quando você grita "MST, a luta é pra valer!", você tem que saber que esse grito tem que sair de dentro, e se você não entender o porquê desse grito, você não deflagra para todo o mundo ouvir com vontade [...]. (E3)

Ora, tais formulações constituem os "inventários", o "início da elaboração crítica" a que Gramsci se refere, que não são construções "da UFF", mas acionados pela troca de conhecimentos produzidos, pelo protagonismo dos próprios trabalhadores e trabalhadoras nos processos de formação. Notemos o quanto é significativo o depoimento de E2 ao dizer que "eu sou da terra, vim da terra, mas não sabia nada disso, a minha cabeça hoje é diferente", para nos provocar a compreender que a essência dos conflitos presentes na questão agrária (equivalendo para todas as dimensões da luta de classes) não é perceptível de modo "automático" para aqueles que a vivenciam. Podemos identificar, de acordo com as sínteses citadas, que a luta e os espaços de formação vêm estimulando desconstruções de pré-conceitos, de verdades inquestionáveis, naturalizações e construção de outra forma de pensar, de ser e viver.

Em relação às considerações sobre mudanças na realidade específica do Osvaldo de Oliveira desde o início das atividades de formação, os(as) entrevis­tados(as) dizem:

[...] tem fortalecido a união, e também pra forma como se dirigir as pessoas. Avançou também na consciência dos moradores de que é preciso se organizar para fazer pressão para conquista de direitos, no Inea, no Incra, no Ministério Público. Outra coisa é a importância de colocar esse conhecimento em prática, esse trabalho contribui para trazer as pessoas para a realidade das coisas. (E1)

Sobre mudanças, acho que avançou muito, principalmente no sentido dos trabalhos feitos com todos juntos, para aproximação das famílias, na questão do egoísmo e na participação das lutas fora do acampamento, que se "o campo e a cidade se unir, a burguesia não vai resistir". (E2)

Tinham pessoas aqui que nem sabiam o porquê estavam aqui e desde o início das atividades de formação, teve pessoas que não entenderam, que não entrou na cabeça, e que hoje não estão mais aqui. [...] Hoje a consciência não só política, mas dos objetivos aqui de dentro do acampamento, já se tem outra visão. Quando eu cheguei aqui, me deparei com pessoas completamente desmobilizadas, pessoas que eram aquela história "farinha pouca, meu pirão primeiro", egoísmo, então quer dizer, essas coisas aqui dentro começaram a mudar [...] (E3)

Estão presentes questões como a consciência das contradições dessa forma de sociedade e possibilidades de ações concretas (por exemplo, a cobrança ao poder público destacado por E1), para reversão do que está posto a partir das lutas específicas do acampamento até aquelas mais gerais. Evidencia-se a interferência dos processos formativos nas posturas identificadas como individualistas, que dificultam as iniciativas coletivas e a organicidade dos(as) trabalhadores(as).

Para esse "retrato" contamos também com as contribuições da nossa entrevistada da coordenação estadual do MST-RJ:

Eu acho um trabalho bastante ousado, que traz contribuições muito grandes. Mas ele só é possível porque tem uma relação de respeito e cumplicidade, de respeitar bastante as demandas do MST, a intencionalidade do MST com essa formação, quais os temas que o MST acha importante estudar com essas famílias, como, existe por parte da universidade de ouvir e receber isso e também oferecer, o que pode contribuir. Aqui no Osvaldo de Oliveira, as famílias internalizaram esse processo de formação, antes inclusive de ter a parceria específica desse processo [de 2013 com o Universidade Itinerante]. Percebe-se inclusive que algumas pessoas foram se destacando nesse processo, que inclusive foram para a escola de militante posteriormente. Quando eu falo ousado é porque há uma abertura mais ampla, de interlocução com a dinâmica do acampamento, que eu acho que foi possível pela relação de respeito político das duas partes. [...] Acho que a formação provocou que alguns dos problemas fossem discutidos coletivamente, provocou que alguns problemas fossem sanados coletivamente, como a questão do lixo, do galpão, do mutirão. E esse exercício não depende só da formação, é um exercício diário. E houve a compreensão de alguns da luta pela terra, sobre o que é, de onde vem esse processo histórico, em relação ao MST [...]. (E4)

Como podemos notar, (E4), ao destacar o processo específico da Universidade Itinerante, também faz referência à forma que vem tomando essa parceria com o Movimento e ao processo anterior a essa proposta de 2013. É importante quando detectamos o reconhecimento da forma de parceria que estabelecemos, que se direciona na contramão daquelas comumente encontradas nas universidades, caracterizada pelas arbitrariedades e distância orgânica.

Finalmente, sobre o último eixo, destacamos as considerações a respeito da continuidade da formação política na realidade (na época) futura do assentamento:

Acho que tem que continuar e principalmente lá, que teremos a terra, pois ficar só na teoria não adianta. E outra, contribui para ajudarmos a conquista de outras terras por mais companheiros. Por exemplo, eu era assentado no Roseli Nunes e fui deslocado para cá (e acabei ficando) para fazer a luta com o pessoal; então assentado não pode estar parado, tem que contribuir para os que vêm novos também, é assim que o Movimento vai andando. Por exemplo, o Cícero [Guedes]5 5 Cícero Guedes dos Santos foi coordenador do MST na região de Campos dos Goytacazes, com forte protagonismo na luta pela terra e pela reforma agrária no estado do Rio de Janeiro. Foi assassinado pela violência do latifúndio em janeiro de 2013. era assentado há onze anos e contribuiu muito para formação de outros acampamentos. (E2)

Para responder essa questão, vou fazer uma pergunta: quando você começa a plantar, você coloca uma semente não é isso? Se você plantar essa semente e ela germinar, se você não cuidar, o que vai acontecer com ela? Deu pra entender? Tudo o que não tem uma boa continuidade tende a morrer. Então temos a máxima necessidade de manter essa parceria com a formação política. Principalmente lá dentro do assentamento, pois os desafios serão muito maiores, tem toda uma gama de necessidades a serem supridas, e a maioria delas tem relação com o conhecimento. A universidade tem instrumentos na mão que vai nos auxiliar e muito nesse processo, a maneira como fazer a logística lá dentro, a maneira de prover o desenvolvimento da produção lá dentro, a maneira como serão feitas as células de habitação, enfim é uma florzinha que está nascendo e sem essa contribuição é muito mais difícil. (E3)

Contribuições para a formação em Serviço Social: a necessária articulação com os movimentos sociais

No âmbito do Serviço Social, o investimento em projetos de extensão e pesquisa nos horizontes pautados anteriormente e no campo temático sobre os processos de formação política das classes trabalhadoras traz para a reflexão a necessária articulação profissional com os movimentos sociais, tanto pela necessária leitura das expressões da "questão social" desde as lentes dos conflitos e lutas sociais, como ressaltado por Iamamoto (2010)IAMAMOTO, Marilda. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2010., quanto pela sua função pedagógica, nos termos de Abreu (2002)ABREU, Marina Maciel. Serviço Social e a organização da cultura: perfis pedagógicos da prática profissional. São Paulo: Cortez, 2002.. Ainda deve se levar em consideração o pouco investimento na produção acadêmica na área temática sobre os conflitos e movimentos sociais e também sobre a intervenção profissional nesse campo, constatação presente em produções como Abramides e Duriguetto (2014)ABRAMIDES, Maria Beatriz Costa; DURIGUETTO, Maria Lucia (Orgs.). Movimentos sociais e Serviço Social: uma relação necessária. São Paulo: Cortez, 2014.. Afinal, de que forma os diversos conflitos de classe se relacionam com o nosso objeto de trabalho profissional e como podemos qualificar a disputa das possibilidades da dimensão educativa do exercício profissional?

Um projeto profissional que pauta a liberdade como valor ético central, a defesa intransigente dos direitos humanos, a ampliação e consolidação da cidadania, entre outros, mas, sobretudo, que coloca a opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero, não só pode como deve estar intimamente articulado àqueles sujeitos coletivos que constroem a resistência, as lutas e alternativas a esse modo de vida social.

Para reafirmarmos a atualidade do significado da relação profissional com os movimentos sociais, destacamos sumariamente algumas das muitas contribuições que as experiências de extensão que promovem essa articulação podem trazer para o redimensionamento crítico da formação e do perfil profissional, fortalecendo o processo de renovação contínua da profissão, seus horizontes, competências e perspectivas de trabalho:

  • Essa relação possibilita a compreensão das "raízes" das demandas postas à profissão nas implicações do antagonismo entre capital e trabalho, o que significa recuperar as expressões da "questão social" desde os processos de organização coletiva para sua denúncia e enfrentamento. Tal caminho permite-nos ir além das suas manifestações imediatas e de interpretações abstratas, trazendo para o centro do debate a arena da luta de classes, que faz emergir determinados padrões de intervenção, tanto do Estado com as políticas sociais, quanto do empresariado e das iniciativas privadas, para efetivar intervenções profissionais em sintonia com as necessidades das lutas populares.

  • Desafia-nos para a proposição de intervenções na contramão dos procedimentos históricos de intervenção face às expressões da "questão social", caracterizados pela despolitização e o autoritarismo, que reforçam relações de favor, e não dos direitos e da cidadania. Assim, tal relação permite o redimensionamento crítico das dimensões do trabalho profissional - ético-política, técnico-operativa e teórico-metodológica -, possibilitando, por exemplo, outras direções para os estudos socioeconômicos, os laudos, as entrevistas, os pareceres, assim como para o exercício da função pedagógica inerente ao exercício profissional, contribuindo para dar visibilidade às lutas sociais dos trabalhadores, suas demandas sociais e para a ampliação dessas experiências organizativas.

  • Também salientamos a grande importância de atividades profissionais vinculadas à socialização de informações, conhecimentos e formação política, que se transfigurem como instrumentos para a mobilização, constituição de sujeitos coletivos, fortalecimento e qualificação da participação e controle social popular das políticas públicas e das iniciativas organizativas autônomas dos grupos subalternos em torno de suas necessidades, condições de vida e da possibilidade de disputa e ampliação dos espaços públicos e das políticas sociais. No seio da formação profissional, destacamos essa possibilidade em relação à necessária ampliação de experiências com educação popular que envolvam os cursos de Serviço Social das universidades no país, principalmente quando se trata da chamada "formação de base", o que nos possibilita a aproximação com a realidade dos usuários dos serviços públicos.

  • Desse modo, o investimento nesse diálogo é também potencial para tensionar as correlações de forças institucionais, que por muitas vezes dificultam profundamente a autonomia profissional e extirpam a participação popular nas decisões e planejamento de seus rumos.

Assim, experiências como essa podem contribuir para a formação de profissionais que não só saibam abstratamente os valores e princípios defendidos no projeto ético-político do Serviço Social, mas sim possibilidades concretas de intervenção profissional nesse sentido, fortalecendo inclusive as experiências político-organizativas da própria categoria profissional. Portanto, apostar nesse horizonte de pesquisa é uma das formas de fortalecer o processo de renovação contínua da profissão.

Considerações finais

Sintetizamos alguns elementos sobre as contribuições e desafios sobre essa experiência de extensão, os quais, junto ao programa de extensão Universidade Itinerante, nos possibilitaram captar as atividades construídas. Eles estão longe de esgotar a complexidade do tema em questão, mas podem alimentar futuros desdobramentos de pesquisa:

  • Em primeiro lugar cabe refletir sobre o significado desse tipo de articulação: por um lado, essa relação potencializa o debate crítico e desmistificador da realidade, a interferência na cultura institucional universitária e a democratização de seu espaço que, historicamente, é pensado para ser direcionado às elites. É uma possibilidade de crítica à falsa neutralidade das ciências e um contraponto ao determinismo tecnológico. Destacamos também a possibilidade de redimensionamento crítico da formação acadêmica e de profissionais que procuraram articular sua intervenção com as lutas pela garantia de direitos sociais e da cidadania em seu sentido pleno. Por outro, possibilita a qualificação das lutas sociais, na medida em que a apropriação do conhecimento e seus meios de produção podem se traduzir na construção de instrumentos de luta contra a "ordem" e no alargamento dos caminhos na afirmação de uma nova ordem social livre e emancipada. Especificamente, o investimento em processos de formação política pode possibilitar a formação de intelectuais orgânicos aos movimentos, que, oriundos do seio de suas lutas, contribuam para multiplicar o trabalho educativo junto às massas.

  • Para a forma de aproximação e diálogo com os movimentos sociais: principalmente nesse caso pensando a realidade dos acampamentos da reforma agrária, a forma de aproximação da universidade necessita construir um alicerce de confiança e identidade, pois significa obter condições favoráveis para o desenvolvimento das propostas, possibilitando a troca de saberes, a ampliação da participação no planejamento, execução e avaliação das ações.

  • É também um solo fértil para pensarmos sobre os instrumentos e estratégias pedagógicas: a construção e a utilização de diversas linguagens e instrumentos didáticos (como fotografia, vídeo, filme, música, literatura etc.) para o trabalho com movimentos sociais constituem mediações pedagógicas imprescindíveis para a construção de propostas de formação política, possibilitando a potenciação da apropriação dos conteúdos abordados, que não significa torná-los simplórios. São mediações fundamentais entre o arsenal teórico que escolhemos para a leitura de mundo (fundamentado no legado marxiano e na tradição marxista como vertentes privilegiadas capazes de provocar a crítica às relações sociais vigentes) e a realidade concreta dos sujeitos que protagonizam essas experiências de formação. Nesse sentido, a utilização e a construção de instrumentos que retrataram as lutas dos acampamentos, do MST, das lutas pela terra no Brasil, surtiram efeitos profundamente positivos, no sentido de contribuir para a recuperação da memória dos trabalhadores, oferecendo sentido ao protagonismo desses sujeitos no contexto mais abrangente de lutas enquanto classe. Por exemplo, temos a experiência de conexão da memória do Quilombo de Carukango (existente na região no período do século XIX no território onde hoje se localiza o assentamento) com as atuais lutas dos sem-terra, evidenciando significados que não são casuais. Nessa perspectiva de trabalho, foi possível constatar que tais mecanismos foram capazes de contribuir para provocar "saltos" de qualidade no avanço da organicidade interna do então acampamento e sua projeção enquanto assentamento, e também para "o início da elaboração crítica" em relação à realidade social e as especificidades históricas da luta pela terra.

  • Para a perspectiva de posicionamento do educador: as experiências gestadas têm nos possibilitado travar uma crítica aos processos de ensino e aprendizagem marcados por posturas que pouco ou nada favorecem a compreensão dos trabalhadores, indicando a necessidade de um combate aos vícios presentes em algumas experiências de formação, que mesmo situados no campo da esquerda, muitas vezes reproduzem características dogmáticas, verticais, autoritárias, mecânicas e simplistas ou aplicam um divórcio entre conteúdo e forma.

Cabe explicitar que logo depois da apresentação da monografia em questão, o acampamento passou por um avanço central: desde fevereiro de 2014 as famílias acampadas conquistaram a emissão de posse do latifúndio/fazenda Bom Jardim para fins da reforma agrária, constituindo o atual assentamento Osvaldo de Oliveira. Hoje vivem na área cerca de 54 famílias, construindo o primeiro assentamento do estado do Rio de Janeiro sob a modalidade de Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS),6 6 Criado oficialmente pela Portaria/Incra n. 477/99. um modelo alternativo de conservação e recuperação ambiental que prevê legal e criteriosamente, para o seu desenvolvimento, a produção sem agrotóxicos e espaços de organização e gestão coletiva.

Por fim, é importante sinalizar que esse caminho de investigação está sendo levado adiante no processo de mestrado em Serviço Social pela UFRJ, no qual a proposta é nos debruçar sobre as mediações pedagógicas necessárias nos processos de formação política junto aos trabalhadores, relacionadas tanto com a utilização de diversas linguagens e instrumentos didáticos (como fotografia, vídeo, filme, música, literatura etc.), quanto com os processos de construção de consciência protagonizada por esses sujeitos, tendo como foco de reflexão as experiências educativas gestadas na realidade de consolidação do assentamento Osvaldo de Oliveira.

São reflexões situadas no esforço de trazer as experiências de formação política na particularidade do assentamento Osvaldo de Oliveira como uma "fotografia" particular de tendências e experiências atualmente existentes no processo de auto-organização dos trabalhadores. Ou seja, não se trata de um "estudo de caso", mas sim de uma reflexão que busca, "do particular ao geral", elementos para a discussão dos processos político-formativo das classes subalternas na atual configuração societária, persistindo em comprovar a falsidade do propagado "fim da história".

  • *
    O título se refere a um discurso de Ernesto Che Guevara na Universidade de Las Villas, em Cuba, em 28 de dezembro de 1959.
  • 1
    Entendemos a formação política nos mesmos marcos dos processos de educação popular. Não nos deteremos na polêmica que por vezes ronda essa discussão, a partir da qual a educação popular é usada para fazer o contraponto à formação política identificada como de quadros. Nossa compreensão, pois, está no horizonte da educação popular e a formação política como processos que objetivam potenciar a organização política popular, através da socialização de instrumentos teóricos que permitem uma leitura crítica da realidade.
  • 2
    Remetemos-nos a esse aspecto com a expressão "movimentos sociais contemporâneos", por não termos condições de debater, nos limites deste trabalho, sobre a polêmica contida na designação de "novos movimentos sociais". Consideramos essa denominação problemática porque homogeniza as experiências organizativas, referindo-se do mesmo modo tanto em relação àquelas que atualizam as lutas dos trabalhadores quanto em relação àquelas que não têm nenhum horizonte de classe.
  • 3
    Osvaldo de Oliveira atuou junto ao movimento sindical rural, tendo forte protagonismo na luta pela terra e na gênese do MST na década de 1980, viveu na região Cachoeiras de Macacu (RJ).
  • 4
    Luís Maranhão foi militante do PCB, e um dos dez militantes incinerados na usina Cambahyba (local onde se situa o acampamento), em Campos dos Goytacazes (RJ), no período da ditadura civil-militar no Brasil (1964-85).
  • 5
    Cícero Guedes dos Santos foi coordenador do MST na região de Campos dos Goytacazes, com forte protagonismo na luta pela terra e pela reforma agrária no estado do Rio de Janeiro. Foi assassinado pela violência do latifúndio em janeiro de 2013.
  • 6
    Criado oficialmente pela Portaria/Incra n. 477/99.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2016
  • Aceito
    16 Jan 2017
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