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Sobre a noção de classes e grupos subalternos em A. Gramsci

On the notion of classes and subaltern groups in A. Gramsci

Resumo:

O objetivo do artigo é resgatar a concepção de classes e grupos subalternos no pensamento de Antonio Gramsci, demarcando a relação orgânica do tema com suas condições de vida, suas origens sardas e a “questão meridional”. Através de um estudo bibliográfico e teórico-filológico, recupera-se a presença dos conceitos nos escritos pré-carcerários, o aprofundamento nos Cadernos do cárcere, com destaque para os Cadernos 3 e 25, e as mediações com outras categorias desenvolvidas na obra carcerária.

Palavras-chave:
Gramsci; Classes subalternas; Grupos subalternos

Abstract:

The aim of this article is to rescue the conception of subaltern classes and groups in Antonio Gramsci’s thought, demarcating the organic relationship of the theme with their living conditions, their Sardinian origins and the “southern question”. Through a bibliographic and theoretical-philological study, the presence of the concepts in the pre-prison writings is recovered, as well as the deepening of the Prision Notebooks, with emphasis on Notebooks 3 and 25, and the mediations with other categories developed in the prison work.

Keywords:
Gramsci; Subaltern classes; Subaltern groups

Introdução

“Classes e grupos subalternos” estão entre os conceitos gramscianos mais discutidos nas últimas décadas, empregados nos mais variados discursos acadêmicos, científicos e políticos. Seu uso difundiu-se e alastrou-se largamente, em especial a partir dos estudos do coletivo indiano Subalter Studies, surgido nos anos 1980, ganhando popularidade entre os estudiosos de língua inglesa. Essa rápida disseminação, contudo, não raro vem acompanhada de equívocos interpretativos, decorrentes de uma apropriação indireta da obra de Gramsci, sem recorrer às fontes originais. Não é incomum, por exemplo, encontrarmos referência à discussão da subalternidade sem menção ao nome de Gramsci, o qual, mesmo que muito citado, permanece pouco lido na fonte viva de seu pensamento.

Não por acaso, a ideia de “classes subalternas” aparece comumente associada à condição de classes baixas, pobres, inferiores, enfim, desprovidas dos meios necessários para a manutenção da subsistência. Outro “reducionismo” amplamente observado é a falsa percepção de que a expressão “classes subalternas” seria uma espécie de código para o termo “proletariado”, a fim de burlar a censura a que Gramsci supostamente estaria submetido no cárcere. Tal gama de interpretações simplistas não é capaz de expressar a riqueza conceitual da categoria e, geralmente, conduz ao perigoso pressuposto de que Gramsci não teorizou sobre a subalternidade. Assim, o conceito de “classes subalternas” seria autoexplicativo, como se seu significado já estivesse dado a priori pelo adjetivo que o acompanha - subalterna.

Nota-se, por fim, ser impossível estudar e compreender isoladamente as categorias gramscianas retirando-as do contexto e do sentido a partir do qual os Cadernos foram redigidos. Desse modo, através de um estudo bibliográfico e teórico-filológico, o presente artigo coloca-se em tripla direção: recupera a relação orgânica do tema de classes e grupos subalternos com a vivência prático-social de Gramsci, destacando algumas inferências presentes já nos escritos pré-carcerários; resgata como os conceitos em questão nascem, são construídos e se desenvolvem no grande “laboratório” gramsciano dos Cadernos do cárcere, com destaque para os Cadernos 3 e 25; e convida a percorrer as mediações do tema de classes e grupos subalternos com o conjunto geral da obra carcerária.

1. Desde um mundo grande e terrível: as origens de Gramsci na Sardenha e a “questão meridional”

A trajetória pessoal e política de Antonio Gramsci é marcada por sua profunda relação orgânica com os subalternos de sua terra: desde cedo, o interesse pelo universo da cultura popular, da linguagem e do folclore demonstra seu pertencimento à luta e à defesa pela emancipação das classes subalternas contra os bolsões do capital industrial do Norte da Itália, aliados aos latifundiários do Sul. Afinal, como jovem proveniente da Sardenha, Gramsci experiencia em carne e osso as duras contradições a que é submetida sua terra natal, desenvolvendo um intenso sentimento de revolta que desde cedo definirá sua vida e, anos mais tarde, impulsionará sua militância política.

Mais que um dado geográfico, a Sardenha representa uma terra historicamente marcada pela relação periférica e colonial com o Norte, situando-se no panorama geral do Estado italiano como uma espécie de mercado “semicolonial”. Desta mirada, os pressupostos da formação sócio-histórica da Itália e, especialmente, da localização da “questão meridional” não são aspectos marginais ou secundários da biografia de Gramsci, mas auxiliam a compor um retrato em que o intelectual se funde à figura do militante, do político e do humano (Fresu, 2020FRESU, G. Antonio Gramsci, o homem filósofo: uma biografia intelectual. Tradução: Rita Matos Coitinho. São Paulo: Boitempo, 2020.).

Como “sardo”, Gramsci é contemporâneo de um Estado que apenas muito recentemente havia concluído seu processo de unificação. A Itália, ao contrário das demais nações europeias, promoveu a centralização política de seu território de maneira muito tardia: apenas no século XIX, no movimento conhecido como Risorgimento. Muito diverso do processo que originou a formação do Estado Moderno na França, o Risorgimento não foi um evento impulsionado pelos mesmos vetores nacionais franceses. Por esse motivo, à luz da Revolução Francesa, Gramsci adensa sua análise sobre a constituição do Estado unitário em seu país, traduzindo o Risorgimento como um caso de “revolução passiva”, ou seja, uma revolução sem “revolução”, conforme escreve no Caderno 19 (1934-1935).

Mesmo antes de tal extraordinária síntese analítica, presente nas páginas do Caderno 19, durante os anos de juventude, Gramsci também já demonstrava profundo interesse em sua ilha e em seu povo, dadas suas adversas condições objetivas de vida, impostas tanto pela condição de classe quanto pela pauperização a que a Sardenha e as ilhas estavam lançadas no contexto do Estado italiano. A “questão meridional” está, pois, primordialmente entrelaçada às origens e às condições de vida do pequeno Nino, que não aceita passivamente as explicações convencionais sobre o Mezzogiorno, dando visibilidade à relação desigual entre o Norte e o Sul do país.

Impactadas pela penúria dos meios de subsistência, a infância e a adolescência de Gramsci foram marcadas pelas mesmas privações comuns a quase todo o povo sardo. Após a prisão de seu pai, acusado de peculato, teve de interromper os estudos escolares e começar a trabalhar aos 11 anos de idade para ajudar no sustento da família. A necessidade de abandonar os bancos escolares institucionais despertou no pequeno Nino um ardente e precoce sentimento de inconformismo e rebelião contra os ricos e as leis injustas de seu tempo, especialmente por não poder seguir seus estudos, apesar da nota 10 em todas as matérias da escola elementar. “O mesmo” - escreve ele - “não acontecia com o filho do açougueiro, do farmacêutico, do comerciante de tecido” (Gramsci, 1992GRAMSCI, A. Lettere 1908-1926. A cura di Santucci. Torino: Einaudi, 1992., p. 271).

Gramsci fala, portanto, não de um lugar meramente acadêmico, puramente científico e de interesse teórico a respeito da subalternidade, mas, sobretudo, daquele que vivencia as contradições das injustiças sociais, da marginalização e do pauperismo de uma terra criminalizada historicamente pelo Estado italiano, considerada a “bola de chumbo” do país. A descoberta de sua própria ilha, sobretudo nos anos de juventude em Cagliari, marca distintamente o jovem sardo com um forte traço meridionalista, resguardando as reivindicações e os temas da sua terra, que permanece mesmo no período turinense posterior.

Em Cagliari, Gramsci acompanha o debate contemporâneo sobre a “questão meridional”, que reivindicava, naquele momento, a defesa de um “sardismo fechado”, ou seja, a denúncia dos proprietários industriais e dos trabalhadores do Norte, identificados como os responsáveis pela discriminação social e pelo empobrecimento das massas camponesas do Sul. Gramsci certamente amadurecerá mais adiante estas posições, mas sem romper com a centralidade de sua terra natal, delineando “[...] com mais precisão os reais opressores dos camponeses, dos pequenos agricultores e da classe média trabalhadora [...]” (D’Orsi, 2022D’ORSI, A. Gramsci: uma nova biografia. Tradução: Cristina Bezerra. São Paulo: Expressão Popular, 2022., p. 60).

Assim, embora a estadia em Turim tenha, sem dúvida, enriquecido as experiências políticas e intelectuais de Gramsci, o abandono do provincianismo não significou, em absoluto, a rejeição a todo o aprendizado e acúmulo adquiridos nos anos sardos: “[...] não podemos relegar sua educação na Sardenha a um mero fator acidental, definitiva e organicamente superado pela ‘desprovincialização’ [...]” (Fresu, 2020FRESU, G. Antonio Gramsci, o homem filósofo: uma biografia intelectual. Tradução: Rita Matos Coitinho. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 25). Como provinciano da Sardenha, Gramsci leva em sua bagagem a Turim um conjunto de autores partícipes do movimento neoidealista e liberal italiano, como Benedetto Croce e Giovanni Gentile, que o auxiliam, de certo modo, a combater o parasitismo e o oportunismo presentes no socialismo italiano, advindos da Segunda Internacional (Losurdo, 2011LOSURDO, D. Antonio Gramsci: do liberalismo ao “comunismo crítico”. Tradução: Teresa Ottoni. Revisão da tradução: Giovanni Semeraro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.).

As origens de Gramsci no “mundo grande e terrível” derivam deste inusitado, mas também fundamental, arcabouço prático e teórico que recolhe da vivência sarda: as privações e as injustiças sociais desde a infância e a adolescência, a forte característica de revolta, o ódio à indiferença, a defesa de seu povo, o traço meridionalista, o espectro cultural e teórico vinculado a autores que servem de enfrentamento à influência clerical e ao pensamento positivista. Serão estes ensinamentos que o acompanharão quando se direciona a Turim para cursar a Universidade de Letras.

E com esta bagagem, Gramsci irromperá no debate e na militância política, guardando em mente as reivindicações iniciais desde a Sardenha, que na grande Turim assumirão novas dimensões. Não por acaso, quando entra em contato com os operários turinenses, começa a vincular-se à atividade política: ambienta-se à nova cidade, ingressa nas fileiras do Partido Socialista Italiano (PSI), inicia a redação de uma série de artigos, exercendo uma comprometida atividade jornalística, acompanha os eventos internacionais com entusiasmo, especialmente os ecos da Revolução Russa.

Das novas descobertas de Turim, decisivo é, portanto, o contato com o movimento operário e com as reivindicações dos trabalhadores urbanos, permitindo a Gramsci amadurecer aquelas posições iniciais: não para romper com sua terra e seu povo, mas para fortalecer a necessidade de unificação das demandas dos camponeses do Sul e dos trabalhadores industriais do Norte. Amadurece, então, em Gramsci, a “questão meridional”, que se torna objeto de estudos. É ele quem a introduz no seio do socialismo italiano, situando-a como uma questão nacional (Fresu, 2020FRESU, G. Antonio Gramsci, o homem filósofo: uma biografia intelectual. Tradução: Rita Matos Coitinho. São Paulo: Boitempo, 2020.).

É possível acompanhar a centralidade que “a questão meridional” adquire na infinidade de artigos que Gramsci redige para a imprensa socialista e comunista da época, retomando, em inúmeras perspectivas, o debate sobre o Mezzorgiorno e os camponeses do Sul. Em abril de 1916,1 1 “O Mezzogiorno e a guerra”, publicado no Il Grido del Popolo. por exemplo, caracteriza a unificação italiana como uma “centralização bestial”, que colocou em contato duas regiões com desenvolvimento social e cultural bastante distintas: enquanto, de uma parte, veem-se a ascensão de uma audaz burguesia e um desenvolvimento industrial semelhante ao dos demais países da Europa, de outro, predomina uma agricultura ainda bastante primitiva (Gramsci, 2023GRAMSCI, A. Vozes da terra. Tradução: Rita Coitinho e Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Boitempo, 2023.).

O entrelaçamento da condição dos camponeses do Mezzogiorno e dos operários nortistas e a necessidade de unificar seus interesses e lutas passam a se destacar no conjunto das reflexões gramscianas, sobretudo a partir dos eventos da Revolução Russa. Em agosto de 1919,2 2 “Operários e camponeses”, publicado no L’Ordine Nuovo. Gramsci reflete o quanto a dinâmica da guerra no Oriente alterou a psicologia dos camponeses: colocados sob uma mesma vida e disciplina comuns, os sentimentos egoístas e individuais foram dando lugar a um espírito coletivo. Adquirindo consciência de classe e formando os soviets por soldados e camponeses, na Rússia se demonstrou a importância da unidade do campesinato com a classe trabalhadora: a unificação entre operários fabris e camponeses pobres deveria ser, afinal, a espinha dorsal da revolução proletária.

A necessária aliança entre operários e camponeses, sujeitos do processo revolucionário, encontra seu epítome no escrito inacabado Alguns temas da questão meridional,3 3 Título completo do manuscrito dado por Gramsci: Notas sobre o problema meridional e sobre a atitude diante dele dos comunistas, dos socialistas e dos democratas. escrito pouco antes de sua prisão. Como síntese máxima do período pré-carcerário, nele Gramsci realiza uma original e inédita leitura a respeito da “questão meridional”, adensando seu meridionalismo ao conectar o local ao nacional e ao internacional. Refutando as tentativas de explicar a “questão meridional” pela inferioridade biológica dos sulistas, Gramsci insiste na necessidade de dar centralidade ao problema da aliança operário-camponesa, pois é ela que permite afastar a burguesia do poder de Estado (Gramsci, 2004GRAMSCI, A. Escritos políticos. Organização e tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. v. 2 (1921-1926).) e constituir o processo revolucionário.

Os camponeses, apesar de se constituírem na maioria da população, não possuem coesão alguma entre si, configurando-se a sociedade meridional como um grande bloco agrário formado por três camadas ou estratos sociais: “[...] a grande massa camponesa amorfa e desagregada; os intelectuais da pequena e média burguesia rural; e os grandes proprietários agrários e os grandes intelectuais [...]” (Gramsci, 2004GRAMSCI, A. Escritos políticos. Organização e tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. v. 2 (1921-1926)., p. 423). Além de se caracterizar pela incapacidade de centralizar suas aspirações, a grande massa de camponeses sofre com a influência do estrato médio de intelectuais. Estes são típicos dos lugares cujas forças econômicas capitalistas não conseguiram se desenvolver completamente, predominando, assim, o velho tipo intelectual: não aquele vinculado à indústria e ao comércio, mas o que desenvolve papéis mais importantes na vida nacional (Gramsci, 2004GRAMSCI, A. Escritos políticos. Organização e tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. v. 2 (1921-1926).), como Benedetto Croce e Giustino Fortunato.

São eles que ligam o camponês ou agricultor ao grande proprietário, atuando para que as grandes massas camponesas se mantenham distantes da política. Estão personificados na figura do burguês rural, do pequeno e médio proprietário de terras, configurando-se como uma camada parasitária, que espreme o camponês até o osso, aprofundando sua subalternidade. Esses intelectuais não possuem programas ou projetos particulares, mas atuam como intermediários a favor do capitalismo setentrional e cimentam o bloco agrário existente no Sul. Sua principal função é fazer com que a “questão meridional” não assuma proporções verdadeiramente revolucionárias. Gramsci os identifica, assim, como os construtores de consenso mais reacionários da península.

Diante desta inovadora análise da “questão meridional” no panorama italiano, Gramsci demarca as tarefas a serem realizadas por comunistas, socialistas e democratas: a necessidade de desestruturar o bloco agrário do Sul, que une os grandes proprietários de terras e a burguesia industrial do Norte. Tal tarefa, todavia, exige a organização das massas camponesas e a construção de instituições que tornem possível a formação de novos intelectuais no campo da esquerda.

A centralidade da “questão meridional” nas elaborações gramscianas, desde o período da juventude até os anos da prisão, é um importante fio condutor para a incursão no debate sobre a subalternidade. Esta, afinal, não é uma discussão “tardia” no pensamento de Gramsci, apesar de comumente vinculada somente à obra carcerária. Como demonstrado através da centralidade da “questão meridional”, da preocupação com as reivindicações do povo de sua terra, das massas camponesas pobres do Sul submetidas à intensa exploração colonial, todos estes elementos que já estão presentes no universo-mundo de Gramsci são determinantes para a reflexão posterior sobre classes e grupos subalternos, os intelectuais e a hegemonia, temas que receberão atenção já nos primeiros Cadernos, nos quais Gramsci aprofunda toda a experiência anterior em um quadro de profunda continuidade e aprofundamento de reflexões (Fresu, 2020FRESU, G. Antonio Gramsci, o homem filósofo: uma biografia intelectual. Tradução: Rita Matos Coitinho. São Paulo: Boitempo, 2020.). Não por acaso, no início dos Cadernos, os principais tópicos que constituem o primeiro índice, ainda provisório, têm como título “questão meridional” e “questão das ilhas” (Liguori, 2024LIGUORI, G. Nuovi sentieri gramsciani. Roma: Bordeaux, 2024.).

2. Muito citada, pouco lida: as classes e os grupos subalternos na obra Cadernos do cárcere

Na obra carcerária, o Caderno 25, de 1934, é dedicado monograficamente ao tema das classes e dos grupos subalternos. As referências a estas expressões, contudo, estão presentes desde as primeiras notas redigidas no cárcere: na medida do possível, Gramsci amadureceria mais adiante suas reflexões sobre o tema, esboçadas a contar de 1930, no Caderno 3. Buscar as menções ao conceito de “classes subalternas” nos diversos Cadernos torna-se, assim, fundamental para recuperar o ritmo do pensamento de Gramsci na prisão. E para tal, através do método filológico, traçamos o caminho para acompanhar o processo de construção e de elaboração das categorias gramscianas, um verdadeiro retorno ao marxista italiano, colocando-o no centro de suas próprias reflexões.

Nessa perspectiva, ao explorar os Cadernos do cárcere na busca da expressão “classes subalternas”, é possível ver que Gramsci emprega o termo ao longo de 53 passagens. “Grupos subalternos” aparece em mais outras 20 menções, totalizando 73 aparições indicativas do estudo do tema na obra carcerária. Ao investigarmos as diferentes expressões empregadas por Gramsci nos Cadernos para se referir a esse tema, contudo, deparamo-nos com o uso oscilatório de uma série de verbetes, formas e flexões. Além de “classes subalternas” e “grupos subalternos”, podemos encontrar, na totalidade da obra carcerária, nove outras variações que se originam desses termos, a saber: subalterno, subalterna, subalternos, subalternas, classe subalterna, grupos subalternos, grupo social subalterno, grupos sociais subalternos, subalternidade. Assim, se acrescermos “classes subalternas” e “grupos subalternos” a essas expressões, podemos dizer que 11 são os verbetes utilizados na abordagem de Gramsci sobre esse argumento.

Mais especificamente, observa-se que, no decorrer dos Cadernos, tais verbetes estão presentes em 163 passagens e 88 notas de 22 dos Cadernos (miscelâneos e especiais). Dessas passagens e notas, o que podemos constatar é que “classes subalternas” é uma categoria que já está presente no universo de Gramsci desde os primeiros Cadernos, visto que, somente no Caderno 3, a referência a essa expressão aparece em seis parágrafos diferentes.4 4 § 14, § 18, § 48, § 53, § 90, § 117. Se considerarmos ainda os Cadernos 4, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 19, 20, 22, 23, 26, 27 e 29, todos eles são contemplados por notas que, de um modo ou de outro, mencionam o debate da subalternidade. Dessa forma, Gramsci constrói uma teia de relações acerca do tema que se espraia ao longo dos Cadernos. Assim, é na costura da obra carcerária que conseguimos identificar a referência à discussão: antes e mesmo depois do Caderno 25.

Liguori (2015LIGUORI, G. “Classi subalterne” marginale e “classi subalterne” fondamentale in Gramsci. Critica Marxista, Bari: Dedado, n. 4, p. 41-48, jul./ago. 2015.), entretanto, indica que o termo “subalterno” não é exclusivo do período carcerário, uma vez já presente nos escritos anteriores à prisão. Não obstante, tanto o uso nesse período quanto os primeiros usos nos Cadernos adquirem um sentido semelhante: pretendem se referir ao significado “usual”, caracterizando a qualidade de subordinado, visto que, nas primeiras aparições, Gramsci faz referência à linguagem militar, em especial aos oficiais subalternos - aqueles que ocupam a média patente no interior de uma cadeia de comando no exército. Sintomaticamente, termos como “oficiais subalternos”, “comandos subalternos”, “atividade subalterna”, “qualidade subalterna” e “força subalterna” aparecem em várias notas do Caderno 1.

Gramsci utiliza pela primeira vez a expressão “classes subalternas” no § 14 do Caderno 3. Nesse parágrafo, intitulado História da classe dominante e história das classes subalternas, um novo significado passa a acompanhar o uso do termo, uma vez que introduz elementos para pensar as características das classes subalternas, sendo que a grande novidade é a utilização, até então inédita, do adjetivo “subalternas” para se referir às “classes”. A partir daí, Gramsci empregará com maior frequência os verbetes correlatos: ora em referência ao sentido “usual” do termo, ora quanto ao debate efetivo sobre a subalternidade (que, neste caso, não pode ser entendido em seu significado conotativo, por comportar um sentido oculto, menos convencional, figurado, pois teoriza sobre a subalternidade de classes e grupos).

Assim, na busca por tal “sentido” nos Cadernos, num trabalho de distinção e de identificação nas notas carcerárias, pode-se afirmar que Gramsci se refere à subalternidade como dimensão vinculada a classes e grupos (indicando seu sentido figurado) em 51 parágrafos de 15 Cadernos diferentes. Nesse conjunto de notas, uma variedade de elementos aparece: Gramsci registra anotações sobre as características de classes e grupos subalternos e pontua aspectos de sua história; realiza uma análise entre estrutura e superestrutura; registra apontamentos sobre o estudo da filosofia e notas sobre personagens romanos históricos, como são Davide Lazzaretti; discorre sobre os períodos de crise orgânica e aspectos do centralismo orgânico.

Destaca-se especialmente, como observado, a importância do Caderno 3, redigido em 1930, que se constitui num programa de estudo sobre as classes e os grupos subalternos, com diversas notas indicativas. Apesar de parte de seus parágrafos não mencionar explicitamente os verbetes em torno da temática, ou não referenciar diretamente expressões como “grupos subalternos” e “classes subalternas”, como é o caso dos parágrafos § 12, 16, 69, 71, 75, 98, 99 e 113, todos reelaborados nas notas do Caderno 25, pode-se afirmar que, ainda assim, nele se encontram os pressupostos fundamentais acerca do tema, já que Gramsci os reagrupa na forma de um Caderno temático, destacando aspectos que caracterizam a história e a historiografia das classes subalternas.

A rubrica História das classes subalternas, presente no Caderno 3, em especial a tratada no § 90 (e revisada no Q 25 § 5), é um dos parágrafos fundamentais para estruturar o debate sobre o tema. Gramsci abre esta nota anunciando que a unificação histórica das classes dirigentes acontece no Estado, e sua história é sempre a história dos Estados e dos grupos de Estados: sua unidade é o resultado das “[...] relações entre Estado e sociedade civil [...]”. E prossegue: se as classes dirigentes têm sua unificação histórica no Estado, para as classes subalternas, ao contrário, esta unificação não ocorre, uma vez que sua história está entrelaçada à da sociedade civil, “[...] é uma fração desagregada desta” (Gramsci, 2014GRAMSCI, A. Quaderni del carcere. Edizione critica dell’Istituto Gramsci. A cura di Valentino Gerratana. 4. ed. Torino: Einaudi, 2014., Q 3 § 90, p. 372).

Conforme alerta Liguori (2016LIGUORI, G. Subalterno e subalterni nei “Quaderni del Carcere”. Internacional Gramsci Journal, v. 1, n. 2, p. 89-125, 2016.), aqui pela primeira vez aparece a relação orgânica entre Estado e sociedade civil, de maneira que Gramsci opõe “classes subalternas” a “classes dirigentes” e não mais “classes subalternas” à “classe dominante”, como acontece no Q 3 § 14. Gramsci certamente está apostando na capacidade dos subalternos de ascenderem à condição de classe dominante, sem, contudo, deixar de alertar que, para isso, devem também se colocar como dirigentes do processo histórico.

A partir destas abordagens, já iniciadas no Caderno 3, quando observamos a constituição do Caderno 25, pode-se afirmar que o interesse de Gramsci nas classes e nos grupos subalternos é triplo: (a) o processo de constituição dos subalternos se constitui como categoria historicamente determinada e suas representações na literatura, de modo a valorizar a produção de uma história integral das classes subalternas, destacando seus traços de iniciativa autônoma; (b) a busca de uma metodologia para a historiografia subalterna; e (c) a discussão sobre a marginalização a que estão submetidas na vida e na existência concretas (Green, 2002GREEN, M. Gramsci cannot speak: presentations and interpretations of Gramsci’s concept of the subaltern. Rethinking Marxism, v. 14, n. 3, p. 1-24, 2002.). Assim, a reflexão sobre as classes e os grupos subalternos pretende, sobretudo, contribuir para a formulação e a reivindicação de uma estratégia política revolucionária; esta, aliás, é a exata conexão no pensamento entre classes subalternas, Estado, sociedade civil e hegemonia que articula seu núcleo revolucionário (Buttigieg, 1999BUTTIGIEG, Joseph. Sulla categoria gramsciana di “subalterno”. In: BARATTA, Giorgio; LIGUORI, Guido. Gramsci da um secolo all’altro. Roma: Riuniti, 1999, p. 27-38.), de modo que as classes subalternas façam parte não somente de uma reflexão sobre a historiografia, mas, inclusive e principalmente, de uma estratégia política, em diálogo com os polêmicos debates sobre a transição ao socialismo.

Atentando para esta condição, Gramsci dedica o Caderno 25, de 1934, ao tema dos grupos sociais subalternos (às margens da história). Dele é possível extrair uma série de questões para pensar a transformação da sociedade em direção a uma nova civilização: esta tarefa histórica exige, certamente, a construção de uma nova hegemonia e de um novo Estado, em que as classes e os grupos subalternos conquistem sua autonomia e emancipação.

Possivelmente, como demonstra Semeraro (2014SEMERARO, G. Gramsci e os movimentos populares: uma leitura a partir do Caderno 25. Educação e Sociedade, Campinas, v. 35, n. 126, p. 61-76, jan./mar. 2014.), o Caderno 25 configurava-se como um projeto preliminar de estudo por parte de Gramsci, que certamente pretendia ainda adensá-lo, uma vez que reúne uma significativa bibliografia sobre a análise de alguns fatos históricos. Como exemplo, especialmente no § 1, Gramsci inicia a retomada de movimentos e insurgências populares na Itália, abrindo o Caderno com uma nota sobre Davide Lazzaretti, sinalizando a necessidade de uma análise político-histórica do movimento e inaugurando um novo horizonte para o estudo daqueles às margens da história. Não obstante, o projeto parece se esboçar, sobretudo por Gramsci delimitar critérios metodológicos (título do § 2 do Caderno 25) e critérios de método (título do § 5 do Caderno 25) para orientar sua pesquisa. Tratava-se, no entanto, de projeto de não pouca magnitude, por pretender expressar a análise política da conjuntura dos fatos históricos.

Dessa forma, Gramsci realiza no Caderno monográfico 25 uma verdadeira incursão ao universo dos subalternos, recuperando alguns episódios históricos, como os casos de Davide Lazzaretti, das Comunas italianas e dos escravos romanos. Demonstra como os movimentos de classes e grupos subalternos tendem a ser criminalizados e barbarizados pelas classes dominantes: sempre que há uma tentativa de organizar a vontade coletiva dos subalternos, incitando uma reforma intelectual e moral, dar-se-ão “[...] explicações restritivas, individuais, folclóricas, patológicas etc.” (Gramsci, 2014GRAMSCI, A. Quaderni del carcere. Edizione critica dell’Istituto Gramsci. A cura di Valentino Gerratana. 4. ed. Torino: Einaudi, 2014., Q 25 § 1, p. 2280; CC, v. 5, 2002GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Edição e tradução: Luiz Sérgio Henriques. Coedição: Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 5., p. 132). Afinal, “[...] para uma elite social, os elementos dos grupos subalternos têm sempre algo bárbaro ou patológico [...]” (Gramsci, 2014GRAMSCI, A. Quaderni del carcere. Edizione critica dell’Istituto Gramsci. A cura di Valentino Gerratana. 4. ed. Torino: Einaudi, 2014., Q 25 § 1, p. 2279; CC, v. 5, 2002GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Edição e tradução: Luiz Sérgio Henriques. Coedição: Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 5., p. 131, grifos nossos).

Esta reflexão de 1934 recorda em muitos aspectos o artigo inacabado de 1926, “Alguns temas da questão meridional”, pois Gramsci parece estabelecer uma conexão entre o tratamento dado à “questão meridional” e ao episódio lazzarettista - ambos o levam a formular as bases da reflexão sobre a subalternidade, já que esta tanto “[...] descreve a condição dos camponeses meridionais nos anos posteriores ao Risorgimento” quanto “[...] a condição do movimento de Lazzaretti”, sendo justificadas pela tendência natural de “[...] sujeitos anormais, inferiores, bárbaros [...]” (Green, 2009GREEN, M. Subalternità, questione meridionale e funzione degli intellettuali. In: SCHIRRU, G. Gramsci, le culture e il mondo. Roma: Viella, 2009. p. 53-72., p. 65-68).

Afora esta significativa vinculação (de classes e grupos subalternos com a perspectiva revolucionária de Gramsci e os esforços para indicar a possibilidade de sua superação), uma das mais evidentes mudanças em sua redação na prisão é a frequente substituição, gradativamente e sobretudo no Caderno 25, do termo “classes subalternas” por “grupos subalternos”.

Nas primeiras menções ao verbete, o substantivo classes é priorizado, ao preceder o adjetivo subalternas. Já no Caderno 25, observamos uma modificação: Gramsci se utiliza com frequência de grupos subalternos e de grupos sociais subalternos, escolhendo, inclusive, este último verbete para dar título ao próprio Caderno. A expressão “classes subalternas” é mencionada apenas uma única vez, no § 5. Qual o provável significado dessa variação na redação gramsciana? Seria apenas uma questão semântica ou denotaria transformações substantivas?

Galastri (2014GALASTRI, Leandro. Classes sociais e grupos subalternos: distinção teórica e aplicação prática. In: Revista Crítica Marxista, IFCH, Unicamp, v. 39, 2014, p. 35-55., p. 36-37) explica que Gramsci emprega a expressão “grupos subalternos”, com o sentido de abarcar o conjunto “[...] das massas dominadas, mas sem possuir agregação de classe. Os grupos subalternos não estão necessariamente unificados em classes sociais, pois, para que isso ocorresse, deveriam possuir formações, agregados próprios que interviessem politicamente [...]”. Eis o argumento que provavelmente justificaria a mudança na redação gramsciana, observada especialmente no Caderno 25. A substituição gradativa de “classes subalternas” por “grupos subalternos” expressa o amadurecimento na percepção de que os subalternos, na verdade, nem sequer vêm se constituindo e se organizando como classe, e o termo “grupo” seria então a designação que melhor poderia lhes representar. Para Gramsci, os subalternos constituem-se em um conjunto bastante heterogêneo, com diversos graus de subalternidade, não estando unificados (Galastri, 2014GALASTRI, Leandro. Classes sociais e grupos subalternos: distinção teórica e aplicação prática. In: Revista Crítica Marxista, IFCH, Unicamp, v. 39, 2014, p. 35-55.).

Por esse motivo, apontamos que a tendência de Gramsci na escolha de “grupos subalternos” refere-se à compreensão de que “grupos” engloba tanto as classes quanto as não classes, ou seja, tanto aqueles com “grau” de consciência superior e mais avançado na luta de classes como aqueles incapazes de sair sozinhos de sua condição marginal e periférica: “grupos” certamente melhor particulariza a variedade de estratos que compõem o conjunto dos subalternos que, por sua vez, não conseguem ainda formar uma unidade política. Isso significa que a condição de “classe” pressupõe uma já articulada organização política entre as grandes massas. Esta é a aposta de Gramsci: a passagem dos “grupos” dispersos para a condição de “classe social” organizada (Galastri, 2014GALASTRI, Leandro. Classes sociais e grupos subalternos: distinção teórica e aplicação prática. In: Revista Crítica Marxista, IFCH, Unicamp, v. 39, 2014, p. 35-55.).

É a partir de tais considerações, portanto, que a categoria classes e grupos subalternos no pensamento de Gramsci deve ser reivindicada, ou seja, levando-se em conta a vinculação com uma estratégia revolucionária, em que os subalternos possam disputar pela conquista e pela construção de uma nova hegemonia a captação das formas de dominação inscritas na sociedade burguesa moderna e o problema da construção de um novo tipo de Estado. Sem tal fundamentação, a própria questão da subalternidade, tão cara a Gramsci a ponto de fundamentar seus Cadernos, seria irreconhecível e facilmente manipulada.

3. Considerações finais: um convite ao laboratório gramsciano dos Cadernos

Ao (re)compor este itinerário sobre as classes e os grupos subalternos no pensamento de Gramsci, é possível verificar a estreita proximidade entre os Cadernos 3 e 25. Além do Caderno 3 introduzir as “classes subalternas” na redação gramsciana na prisão, fornece grande parte das notas que servirão de estrutura e composição ao Caderno 25. Ambos abordam a questão da subalternidade e registram aspectos centrais a respeito da temática.

É imprescindível, contudo, demarcar que tal reflexão não se limita somente aos Cadernos 3 e 25. Se estes são fundamentais por circunscrever aspectos dessas classes e grupos, o tema se espraia pelo conjunto geral dos Cadernos do cárcere, não podendo a discussão sobre a subalternidade ser explicada e compreendida isoladamente, a partir da leitura arbitrária dos Cadernos monográficos, sem conexão com a totalidade da obra gramsciana.

Destacamos, assim, a necessidade de se realizar um percurso no grande “laboratório” dos Cadernos do cárcere, buscando as articulações entre as classes e os grupos subalternos com outras temáticas e categorias: esta incursão é substancial, pois possibilita recuperar os verdadeiros sentido e lugar com que Gramsci procurou desenvolver os conceitos em seus dias de tormento no cárcere. Surgem, daí, os questionamentos. Como e por onde iniciar, afinal, tal percurso? Como conferir organicidade ao ritmo de pensamento de um prisioneiro que dialogava com leitores ideais? Sugerimos especial atenção aos Cadernos 10, 11, 12 e 13, os quais constituem, nas palavras de Semeraro (2014SEMERARO, G. Gramsci e os movimentos populares: uma leitura a partir do Caderno 25. Educação e Sociedade, Campinas, v. 35, n. 126, p. 61-76, jan./mar. 2014.), o coração da obra gramsciana - foram escritos no ápice da produção carcerária, quando seu autor ainda não passara pelas intensas crises de saúde que posteriormente o acometeriam. Mesmo abordando temas diversos, tais Cadernos (e o conjunto geral da obra carcerária) foram redigidos a partir de uma mesma inspiração unitária: a luta e a defesa da continuidade da revolução mundial, inspirada a partir dos eventos da Revolução Russa.

Consequentemente, a leitura de Gramsci sobre as classes e os grupos subalternos se inscreve a partir de um horizonte emancipatório e revolucionário. Ainda que reconheça que sua história seja marcada por fortes traços de desagregação e espontaneidade, valoriza a necessidade e o protagonismo dos subalternos na luta pela “vitória permanente”: somente ela é capaz de romper, se não de maneira imediata, mas permanentemente com a subalternidade, encerrando um determinado ciclo histórico com sucesso.

Para tanto, as classes e os grupos subalternos precisam “tornar-se Estado”, ou seja, passar da condição de subalternidade à de hegemonia, deixando de se colocar como uma fração desagregada da sociedade civil. A elaboração de uma nova proposta de Estado por parte de classes e grupos subalternos é condição para a conquista de sua unificação e autonomia integral. Este é o esboço de uma estratégia revolucionária para os subalternos às margens da história: devem disputar pelas relações de força no contexto do Estado integral, o que pressupõe a elevação de seu modo de pensar do econômico-corporativo para o “ético-político”. Vê-se aqui a imbricada relação dos conceitos de classes e grupos subalternos com os de filosofia da práxis, intelectuais, Estado e hegemonia, e por isso a centralidade dos Cadernos 10, 11, 12 e 13 no escopo de problematizar, justificar e complementar o debate sobre a subalternidade.

Gramsci, afinal, defende que novas relações orgânicas se coloquem entre sociedade civil e sociedade política, de modo que, se “[...] na noção geral de Estado entram elementos que reportam a noção de sociedade civil no sentido, seria possível dizer, Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção” (Gramsci, 2014GRAMSCI, A. Quaderni del carcere. Edizione critica dell’Istituto Gramsci. A cura di Valentino Gerratana. 4. ed. Torino: Einaudi, 2014., Q 6 § 88, p. 763-764), os subalternos devem se tornar dominantes das forças adversárias e dirigentes dos grupos aliados, para colocarem a si mesmos como “Estado”.

Gramsci inspirou-se certamente na verdadeira ciência-ação que representa a filosofia da práxis: um ensinamento prático de política que incita à luta revolucionária, uma filosofia integral e original que iniciaria uma nova fase no desenvolvimento mundial, decisiva na elevação dos “simples” e na revisão de todo o modo de ser dos subalternos. A filosofia da práxis, para ele, distinguia-se de todas as demais filosofias, ao afirmar a unidade entre teoria e prática, entre pensamento e ação, entre dirigentes e dirigidos. Gramsci, dessa forma, como grande intelectual orgânico, adota a filosofia da práxis como inspiração e mesmo como estilo de vida. Recordemos, finalmente, sua XI Tese sobre Feuerbach, na qual persevera na interpretação marxiana de que “os filósofos interpretaram o mundo, tratava-se agora de transformá-lo”, projeto ao qual se dedicou inteira e intensamente, mesmo nas condições mais adversas do cárcere fascista. Na defesa pela luta e pela emancipação das classes exploradas, Gramsci quer nos lembrar de que o subalterno, se foi subalterno ontem, hoje pode não ser mais. Atualizemos, no século XXI, suas lições, fazendo vivente sua filologia.

Referências

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  • GALASTRI, Leandro. Classes sociais e grupos subalternos: distinção teórica e aplicação prática. In: Revista Crítica Marxista, IFCH, Unicamp, v. 39, 2014, p. 35-55.
  • GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere Edição e tradução: Luiz Sérgio Henriques. Coedição: Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 5.
  • GRAMSCI, A. Escritos políticos Organização e tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. v. 2 (1921-1926).
  • GRAMSCI, A. Lettere 1908-1926. A cura di Santucci. Torino: Einaudi, 1992.
  • GRAMSCI, A. Quaderni del carcere. Edizione critica dell’Istituto Gramsci. A cura di Valentino Gerratana. 4. ed. Torino: Einaudi, 2014.
  • GRAMSCI, A. Vozes da terra Tradução: Rita Coitinho e Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Boitempo, 2023.
  • GREEN, M. Gramsci cannot speak: presentations and interpretations of Gramsci’s concept of the subaltern. Rethinking Marxism, v. 14, n. 3, p. 1-24, 2002.
  • GREEN, M. Subalternità, questione meridionale e funzione degli intellettuali. In: SCHIRRU, G. Gramsci, le culture e il mondo Roma: Viella, 2009. p. 53-72.
  • LIGUORI, G. “Classi subalterne” marginale e “classi subalterne” fondamentale in Gramsci. Critica Marxista, Bari: Dedado, n. 4, p. 41-48, jul./ago. 2015.
  • LIGUORI, G. Subalterno e subalterni nei “Quaderni del Carcere”. Internacional Gramsci Journal, v. 1, n. 2, p. 89-125, 2016.
  • LIGUORI, G. Nuovi sentieri gramsciani Roma: Bordeaux, 2024.
  • LOSURDO, D. Antonio Gramsci: do liberalismo ao “comunismo crítico”. Tradução: Teresa Ottoni. Revisão da tradução: Giovanni Semeraro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
  • SEMERARO, G. Gramsci e os movimentos populares: uma leitura a partir do Caderno 25. Educação e Sociedade, Campinas, v. 35, n. 126, p. 61-76, jan./mar. 2014.
  • 1
    “O Mezzogiorno e a guerra, publicado no Il Grido del Popolo.
  • 2
    “Operários e camponeses”, publicado no L’Ordine Nuovo.
  • 3
    Título completo do manuscrito dado por Gramsci: Notas sobre o problema meridional e sobre a atitude diante dele dos comunistas, dos socialistas e dos democratas.
  • 4
    § 14, § 18, § 48, § 53, § 90, § 117.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2024
  • Aceito
    22 Maio 2024
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