Acessibilidade / Reportar erro

Sistema Único de Assistência Social: impactos da colonialidade e perspectivas de um giro decolonial

Single Social Assistance System: impacts of coloniality and prospects for a decolonial turn

Resumo:

Este artigo analisa as consequências dos desmontes ocorridos no Sistema Único de Assistência Social, sob a ótica do pensamento social decolonial. O estudo se concentra no período de 2016 a 2022, evidenciando um processo de destruição fundamentado em concepções higienistas, conservadoras e ultraneoliberais. Conclui-se pela necessidade de um enfoque decolonial, o que implica o fortalecimento dos projetos coletivos que valorizem a diversidade humana em condições igualitárias.

Palavras-chave:
Assistência social; Colonialidade; Direitos

Abstract:

This article analyzes the consequences of the dismantling that occurred in the Unified Social Assistance System, from the perspective of decolonial social thought. The study focuses on the period from 2016 to 2022, highlighting a process of destruction based on hygienist, conservative and ultra-neoliberal concepts. It is concluded that there is a need for a decolonial approach, which implies the strengthening of collective projects that value human diversity under equal conditions.

Keywords:
Social assistance; Coloniality; Rights

Introdução

“As rosas da resistência nascem no asfalto. A gente recebe rosas, mas vamos estar com o punho cerrado falando de nossa existência contra os mandos e desmandos que afetam nossas vidas.”
Marielle Franco

A crise agravada pela pandemia da covid-19 impôs uma necessidade urgente de respostas por parte dos governos diante do estado de choque, evidenciando de forma incontestável a importância dos sistemas de proteção social em nível global. No entanto, no contexto brasileiro, o que se observou foi a implementação de políticas de cunho residual e de morte, nos termos da necropolítica em Mbembe (2018MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução: Renata Santini. São Paulo: n-1 Edições, 2018.), colocando o país no epicentro da crise sanitária e revelando experiências que, de maneira alarmante, desrespeitaram consistentemente os direitos humanos. É possível, nesse sentido, ressaltar que as contrarreformas, a desestruturação dos serviços públicos, o desfinanciamento, a diminuição da capacidade institucional do Estado para coordenar e adaptar ações, no âmbito de um Sistema de Proteção Social abrangente, destacam de modo inegável a falência do modelo ultraneoliberal.

O sistema de proteção social brasileiro, integrado ao sistema internacional de direitos humanos, foi instituído e implementado historicamente com base em princípios, como a universalidade e a integralidade, diretrizes democratizantes, no pacto federativo e em ordenamentos que demandam governanças deliberativas, sistemas estatais descentralizados e territorializados nas municipalidades. No entanto, as medidas neoliberais adotadas, especialmente as contrarreformas trabalhista e previdenciária, juntamente ao desfinanciamento das políticas sociais, configuraram um cenário de ausência do Estado, levando a uma progressiva inviabilização dos sistemas estatais.

A partir de uma pesquisa-ação, dadas as inserções profissionais e políticas da pesquisadora e o projeto aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),1 1 Produtividade em Pesquisa (PQ2) com o título: “Sistema Único de Assistência Social no Brasil: repercussões da colonialidade, agenda de direitos e reconstrução”. analisa-se o contexto de crise institucional que se agravou, sobremaneira, com o aprofundamento das desigualdades, o aumento das violações e das desproteções sociais, considerando a insuficiência em termos de provisões estatais, num contexto de governo penal-gerencial, dados os traços fascistas e de adoção de políticas neoliberais. Ao mesmo tempo, destacam-se as graves consequências do desmonte das políticas públicas, bem como caminhos na direção do fortalecimento de uma agenda política em direitos e proteção social.

Por fim, são destacados desafios fundamentais no processo de reestruturação do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e dos demais sistemas públicos, que concretizam direitos, bem como viabilizam a oferta de serviços e benefícios, com o objetivo de promover a expansão de direitos e a universalização da proteção social, de forma universal e democrática. O giro decolonial2 2 A expressão “giro decolonial” refere-se a um movimento intelectual e epistemológico que busca questionar e desafiar as estruturas de poder e conhecimento estabelecidas pelo colonialismo e pela modernidade ocidental. Enfatiza a necessidade de um “desprendimento” das epistemologias eurocêntricas, propondo uma revalorização e rearticulação dos conhecimentos subalternizados ou silenciados. O termo “giro decolonial” é associado, principalmente, ao trabalho de um grupo de intelectuais e acadêmicos latino-americanos, muitos dos quais fazem parte do projeto Modernidade/Colonialidade. Entre os principais teóricos estão Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Enrique Dussel, Nelson Maldonado-Torres e Ramón Grosfoguel, entre outros. Embora não haja um consenso absoluto sobre quem cunhou o termo exato “giro decolonial”, Walter Mignolo é frequentemente creditado como um dos principais responsáveis pela popularização e pela articulação do conceito em seus escritos e discursos. Portanto, o termo “giro decolonial” é fruto de um esforço coletivo de vários intelectuais, comprometidos com a crítica e a superação das heranças coloniais, no conhecimento e nas práticas sociais. proposto no presente artigo preconiza análises críticas sobre os efeitos da decolonialidade na vida da população e nas políticas sociais, sobretudo na Assistência Social, ao tempo em que são fomentadas novas possibilidades políticas e institucionais para o Suas, o que demanda, inevitavelmente, a valorização da diversidade e as diversas vozes presentes na agenda política do sistema, e a incorporação de novos sujeitos coletivos com grande potencial transformador.

1. Colonialidade, higienismo e impactos da agenda neoliberal

A crítica à trajetória histórica das políticas sociais no Brasil, com base nos princípios da universalidade do Sistema de Proteção Social e da indivisibilidade dos direitos humanos, parte da identificação de políticas inconsistentes que surgiram em períodos de colonização, de autoritarismo e de ideologias desenvolvimentistas. Essas políticas se somam à incompletude da democracia e da proteção social universal. Historicamente, e de forma particular no Brasil, as políticas sociais revelam a prevalência do controle dos pobres e a moralização da pobreza, ocultando suas reais determinações, bem como mecanismos de ajuste social para aqueles considerados improdutivos e incapazes, diante de padrões hegemônicos. Além disso, observam-se a ineficiência, o alcance social frágil, a sobreposição de competências e a fragilização das instituições democráticas, a fragmentação das políticas sociais e a frágil priorização de orçamento público, o que contribui para a reprodução das desigualdades e da desproteção social. A alocação insuficiente de recursos públicos, a irregularidade nos repasses e a ausência de um pacto federativo verdadeiramente cooperativo, capaz de promover proteção, cuidado e atenção em territórios marcados por profundas desigualdades, são aspectos centrais no processo da colonialidade, na concepção sistematizada por Quijano (2005QUIJANO, A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, E. (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 227-277. Disponível em: Disponível em: http://www.sociologia.uff.br/wp-content/uploads2/2019/08/QUIJANO-An%C3%ADbal.-Colonialidade-do-poder-eurocentrismo-e-Am%C3%A9rica-Latina.pdf . Acesso em: 30 maio 2024.
http://www.sociologia.uff.br/wp-content/...
), operada no âmbito das políticas públicas brasileiras.

As influências das políticas colonizadoras, meritocráticas e eugenistas continuam presentes no desenho e na prestação de serviços no âmbito das políticas públicas brasileiras, refletindo-se e se atualizando na contemporaneidade. Essa hipótese pode ser confirmada por diversas evidências que caracterizam a história das políticas assistenciais no país, e na concepção e no desenho de programas sociais operados no pós-golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Alguns exemplos podem ser destacados: a implantação das Rodas dos Expostos, como o modelo europeu do século XIII; a prestação da assistência às crianças abandonadas promovida pelas Câmaras Municipais e Casas da Irmandade da Misericórdia, em consonância com a experiência europeia (Arantes, 1995ARANTES, E. M. de M. Rostos de crianças no Brasil. In: PILOTTI, F.; RIZZINI, I. (org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Universidade Santa Úrsula, 1995.); a educação colonizadora e o ensino religioso aos povos indígenas a partir de 1549, com a chegada da Companhia de Jesus no Brasil; a implantação da Lei do Ventre Livre em 1871, com o estabelecimento da liberdade condicionada à vontade do senhor, sendo uma das alternativas o envio da crianças para os chamados orfanatos, ou a remuneração baseada na vontade do dono das mães pretas (Rizzini; Pilotti, 2011RIZZINI, I; PILOTTI, F. (org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.); a Lei de Terras que, em 1850, além de impedir que os escravos obtivessem posse de terras através do trabalho, previa subsídios do governo à vinda de colonos do exterior para serem contratados no país; a propagação do higienismo social, com atuação da chamada medicina social no espaço doméstico, voltada ao controle das famílias pobres, resultando na criação do Instituto de Proteção e Assistência à Infância, em 1901, e do Departamento da Criança do Brasil, de caráter higienista, em 1919; a crescente judicialização dos conflitos e moralização da pobreza, com implantação, em 1923, do primeiro Juízo de Menores do Brasil e, em 1924, a regulamentação do Conselho de Assistência e Proteção dos Menores; a promulgação em 1927 do primeiro Código de Menores, voltado às crianças em situação irregular; a instalação do Conselho Nacional de Serviço Social em 1938, junto ao gabinete do presidente da República, Getúlio Vargas, para organizar a filantropia e autorizar subvenções sociais, sem critérios republicanos; a implantação de programas sociais e de aprendizagem que reproduzem a condição de classe dos jovens trabalhadores; a criação do Serviço de Assistência a Menores, subordinado ao Ministério da Justiça, com caráter correcional-repressivo; a implantação, em 1942, da Legião Brasileira de Assistência (LBA), com a finalidade de atender as famílias dos soldados enviados à Segunda Guerra Mundial, mas que passou a ser a principal organização assistencial reprodutora do assistencialismo patrimonialista, dirigida pelas primeiras-damas em âmbito federal e com estruturas no Brasil, especialmente creches e distribuição de auxílios pontuais, como roupas, leites, alimentos e próteses, além de contar com programas reprodutores da pobreza e disciplinadores, como o Pequeno Jornaleiro; entre outros exemplos que expressam a colonialidade nas políticas sociais brasileiras.

O que se constata no processo colonizador e na colonialidade é que as políticas assistenciais assumiram um papel determinante na reprodução e na ampliação da desigualdade, tendo em vista a operacionalização de programas pontuais. Tais políticas prevalecem até a promulgação da Lei Orgânica de Assistência Social - Loas (Lei n. 8.742/1993)3 3 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8742.htm. Acesso em: 10 maio 2024. -, pós-constitucionalização do direito à Assistência Social, resultado do conjunto das lutas sociais pela dignidade humana; e, sobretudo, com a regulação e a implantação do Sistema Único de Assistência Social (Suas), assim como de produção de novos conhecimentos e projetos coletivos, com importante destaque para a pesquisa em Serviço Social.

Uma análise mais apurada sobre as políticas governamentais operadas entre 2016 e 2022, portanto, entre o golpe que destituiu a presidenta Dilma e a hegemonia bolsonarista, permite identificar a desorganização do Suas, que coincide com um contexto de retomada de perspectivas higienistas, de visões racistas, aliadas às narrativas discriminatórias, machistas, misóginas, LGBTfóbicas e autoritárias. É possível identificar a assunção de ações programáticas que se materializam em paradigmas segregadores, disciplinadores e meritocráticos. Algumas evidências podem ser destacadas: (i) políticas voltadas ao controle disciplinar, conservador e biomédico das famílias pobres, por meio do programa Criança Feliz, em detrimento da lógica instituída no Suas de proteção social e de atuação intersetorial; (ii) a investida contra espaços de participação e de democracia deliberativa, por meio do Decreto n. 9.759/2019 que, na prática, fechou conselhos e comissões nacionais; (iii) o incentivo irrestrito, com acesso ao fundo público, de comunidades terapêuticas centradas na lógica proibicionista e de abstinência, em detrimento da atenção psicossocial e comunitária, do cuidado em direitos humanos; (iv) o desmonte da rede de saúde pública e de dispositivos, como consultório de rua; (v) a proposta de uma educação domiciliar, e as narrativas excludentes de pessoas com deficiência das escolas e da convivência comunitária; (vi) o desmonte dos sistemas públicos, sobretudo pela recentralização, concepções de governo e desfinanciamento, que subordinou os direitos ao ajuste fiscal; (vii) a edição da Portaria n. 457/2021, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, com o objetivo de modificar o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3); (viii) o lançamento do Auxílio Brasil e o fim do Bolsa Família, entre outras medidas higienistas conservadoras.

O racismo institucional perpetrado pelo Estado contemporâneo está intrinsecamente ligado ao racismo estrutural, visto que busca reafirmar os laços de poder estatal com o processo colonial de poder, intensificado pela influência conservadora. É importante ressaltar que a legitimação de uma racionalidade hegemônica, que justifica diversas formas de opressão, tem suas raízes na imposição de concepções eurocêntricas, forjadas durante a construção de um paradigma de modernidade imposto a todas as sociedades subjugadas, como é o caso do Brasil. A domesticação dos povos subalternos tem, portanto, efeitos graves na atualidade, posto que o Estado opera mecanismos que agudizam as opressões e as desigualdades, de modo a manter as hierarquias sociais e impactar nas formas de ser, crer e pensar (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, E. (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 227-277. Disponível em: Disponível em: http://www.sociologia.uff.br/wp-content/uploads2/2019/08/QUIJANO-An%C3%ADbal.-Colonialidade-do-poder-eurocentrismo-e-Am%C3%A9rica-Latina.pdf . Acesso em: 30 maio 2024.
http://www.sociologia.uff.br/wp-content/...
).

O que se evidenciou, no período analisado, como afirmam Silveira, Nascimento e Zalambessa (2021SILVEIRA, J. I.; NASCIMENTO, S. L.; ZALAMBESSA, S. Colonialidade e decolonialidade na crítica ao racismo e às violações: para refletir sobre os desafios educação em direitos humanos. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0104-4060.71306. Acesso em: 20 maio 2024.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
, p. 12) é “um ataque sistemático do Estado penal e da sociedade que reproduz o conservadorismo e as ideologias que elegem os inimigos e as vidas passíveis de eliminação”. Com isso, afirma-se que os territórios brasileiros sofrem as consequências do racismo de Estado que afeta os sujeitos sociais com direitos negados. “São territórios que particularizam desigualdades agravadas pelos efeitos da colonialidade, da acumulação da riqueza e poder, com consequente acesso desigual à renda, riqueza e bens produzidos socialmente” (Silveira; Nascimento; Zalambessa, 2021SILVEIRA, J. I.; NASCIMENTO, S. L.; ZALAMBESSA, S. Colonialidade e decolonialidade na crítica ao racismo e às violações: para refletir sobre os desafios educação em direitos humanos. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0104-4060.71306. Acesso em: 20 maio 2024.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
, p. 12).

A partir de uma concepção crítica e decolonial em direitos humanos, é fundamental relacionar as desigualdades sociais, étnico-raciais e de gênero com os processos que reproduzem a colonialidade, que age nas instâncias do ser, do saber, do crer e do poder e, nessa lógica, conduz as estruturas e os sistemas de poder, conforme aponta Quijano (2005QUIJANO, A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, E. (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 227-277. Disponível em: Disponível em: http://www.sociologia.uff.br/wp-content/uploads2/2019/08/QUIJANO-An%C3%ADbal.-Colonialidade-do-poder-eurocentrismo-e-Am%C3%A9rica-Latina.pdf . Acesso em: 30 maio 2024.
http://www.sociologia.uff.br/wp-content/...
). É evidente, nesse sentido, que o cenário que aliou políticas de morte com subordinação dos direitos ao ajuste fiscal explicita as duras consequências do modelo ultraneoliberal que se associa às políticas reacionárias, gerando o aprofundamento da questão social, engendrada nas determinações do padrão moderno-colonial-patriarcal.

Importante, nesse sentido, destacar que o Estado pode operar outros mecanismos de morte, como a redução de recursos orçamentários para serviços essenciais, a partir de uma programática neoliberal, impactando notadamente na saúde, na assistência social, na educação e na segurança alimentar e nutricional. No caso brasileiro é flagrante, ainda, a política de centralização do acesso ao Auxílio Emergencial, que levou milhares de pessoas diariamente às filas da Caixa Econômica Federal e aos Centros de Referência de Assistência Social. Ações que potencialmente geraram contágio do novo coronavírus, aliás, não era uma preocupação do governo Bolsonaro, considerando a ideologia da imunidade rebanho operante na época.

Nesse contexto, as categorias necropolítica e necropoder permitem interpretar as formas contemporâneas de sujeição e subjugação da vida ao poder de morte operado pelo Estado (Mbembe, 2018MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução: Renata Santini. São Paulo: n-1 Edições, 2018.). A vida humana, no contexto do Estado de exceção, reveste-se de fragilidade e se torna objeto de controle, suscetível à suspensão de direitos humanos, tendo em vista a supremacia dos interesses econômicos e políticos hegemônicos, assim como a aplicação de medidas opressoras e violadoras de direitos humanos, o que inclui a Emenda Constitucional n. 95/2016,4 4 A Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016, altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm. Acesso em: 10 maio 2024. cujos efeitos são violadores de direitos humanos.

O Estado, hegemonizado por um projeto político com traços fascistas e neoliberais, operou políticas de morte por meio da inviabilização e do desmonte dos sistemas públicos. Assim, é possível afirmar que a retirada de direitos, o desfinanciamento e a desestruturação dos sistemas estatais, bem como a definição de barreiras excludentes, como é o caso do acesso ao Auxílio Emergencial, disponibilizado por meio de aplicativo, além das regras meritocráticas, como voucher-creche para mães que conseguissem alguma ocupação, são tecnologias de morte, de necrogoverno. Trata-se de uma compreensão que tem como parâmetro a crítica decolonial ao capitalismo-colonial-patriarcal, que se volta, especialmente no caso do Brasil, ao interesse de eliminar vidas consideradas fora do padrão hegemônico, a fim de viabilizar ao capital especulativo o acesso ao fundo público, potencializando manutenção da lucratividade, da produtividade, do trabalho explorado e precarizado, da concentração de renda.

O contexto recente de grave desmonte das políticas sociais brasileiras demonstrou a força e a presença da colonialidade no Estado e na sociedade. Ao mesmo tempo, mostra a urgência de reformas estruturantes e de mecanismos que efetivamente protejam a democracia, os direitos humanos, os sujeitos de direitos, a classe que vive do trabalho; que promovam uma nova cultura, o que implica, inevitavelmente, descolonizar as políticas públicas, na direção emancipatória.

2. Ruptura do pacto federativo e desfinanciamento como política neoliberal de morte

O direito à assistência social foi historicamente constitucionalizado no âmbito da Seguridade Social, por meio da sua inscrição na Constituição Federal de 1988, sendo, portanto, conquistado e reclamável. Como política pública, assume uma função estratégica na proteção social mais ampla, tendo em vista seu caráter distributivo em resposta às demandas sociais de sujeitos de direitos, especialmente aqueles e aquelas que vivenciam desigualdades sociais, raciais e de gênero, além de violações diversas.

O processo de implementação da Loas é revelador de mudanças institucionais e políticas indispensáveis para demarcação do direito à assistência social no âmbito do sistema protetivo brasileiro. A diretriz da descentralização político-administrativa, consubstanciada na instituição de fóruns, conselhos, instâncias de pactuação e regulação de fundos públicos, e organização da política nas três esferas de governo, é potencializada pelo marco fundamental da constituição de um sistema continuado e unificado: o Suas.

Seguindo as diretivas da Constituição Federal e da Loas, o Suas é um sistema público não contributivo, descentralizado e participativo que tem como finalidade primordial a gestão do conteúdo específico da assistência social no campo da proteção social brasileira, como definido na Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social editada em 2005 (NOB/SUAS/05) e atualizada em 2012 (NOB/SUAS/12). Como sistema estatal, possibilita uma nova dinâmica de governança democrática, tendo com diretriz primordial a universalização da cobertura de serviços e ações no âmbito local, com priorização de territórios mais desiguais, e expansão progressiva, visando à cobertura territorializada.

O Suas é, notadamente, uma das principais inovações institucionais do Estado brasileiro, pós-Constituição Federal de 1988, inspirado na experiência do Sistema Único de Saúde, especialmente pelos seguintes avanços e aspectos: (i) construção de dispositivos relacionados à concepção de uma política pública estatal, particularmente, na provisão de seguranças tipificadas e padronizadas em unidades públicas estatais, e referenciadas nos territórios mais desiguais e precarizados quanto à provisão de políticas públicas; (ii) lógica de repasses continuados e permanentes de recursos, fundo a fundo, a partir de critérios técnicos, orientados por princípios fundamentais em gestão pública e sistemas de proteção social, como a plena universalização, a integralidade da proteção, com expansões qualificadas e progressivas; (iii) territorialização de serviços, visando à universalização de acessos; (iv) profissionalização da prestação de serviços, com definição de bases normativas que visam à desprecarização das condições éticas e técnicas e dos vínculos de trabalho, objetivando a qualidade dos serviços prestados; (v) adoção de dispositivos indutores de capacidades de gestão, com definição de parâmetros de avaliação e de ordenamento dos municípios em níveis de gestão; (vi) implantação de novos instrumentos de gestão, especialmente o Pacto de Aprimoramento do Suas, para acelerar os objetivos da assistência social e consolidar o pacto federativo quanto às corresponsabilidades dos entes federados no cofinanciamento, na qualificação e na universalização da cobertura territorial; (vii) primazia da responsabilidade estatal e regulação de novas bases para a relação com as organizações da sociedade civil, na prestação de serviços e na defesa e garantia de direitos, entre outros aspectos que caracterizam a institucionalidade desse sistema de proteção com caráter distributivo e protetivo (Silveira, 2009SILVEIRA, J. I. Sistema Único de Assistência Social: institucionalidade e processos interventivos. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 98, 2009.; 2017SILVEIRA, J. I. Assistência social em risco: conservadorismo e luta social por direito. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 130, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-6628.120. Acesso em: 10 de maio de 2024.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
).

A desorganização e a fragilização do Suas, em oposição a todos os avanços, são flagrantes, e algumas evidências podem ser destacadas, no período analisado (2016/2022): (i) a ausência de pactuações que resultassem em ampliação da cobertura de serviços; (ii) a redução expressiva do financiamento e das transferências do Fundo Nacional de Assistência Social aos demais entes federados, especialmente aos municípios; (iii) a fragilização do comando único, da coordenação em âmbito nacional, comprometendo o pacto federativo baseado nas corresponsabilidades, bem como das instâncias de gestão democrática, participativa e deliberativa, particularmente o Conselho Nacional de Assistência Social e a Comissão Intergestores Tripartite, desrespeitados em suas deliberações e pactuações, a exemplo da implantação do Programa Criança Feliz, num desenho que contrariou as decisões e as proposições, a não realização da Conferência Nacional de Assistência Social em 2019, o congelamento do II Plano Decenal do Suas (2016/2026) e a criação do Auxílio Brasil em substituição do Bolsa Família, rompendo com a gestão descentralizada e o foco no acesso aos serviços essenciais; (iv) morosidade, residualidade e desorganização por parte do governo federal, na gestão das ações de mitigação e enfrentamento da pandemia de covid-19; (v) desmobilização dos recursos institucionais voltados ao desenvolvimento da capacidade de gestão e de transparência no Suas, resultando na descontinuidade em processos de aprimoramento dos sistemas de informação, de monitoramento e avaliação, comprometendo a transparência e a inteligência de dados no Suas, além das alterações no Cadastro Único para programas federais, com imposição de uma lógica de centralização e acesso direto por parte do usuário via smartphone, justificada pela modernização.

A emergência e a situação de choque provocada pela pandemia de covid-19 geraram novos e complexos desafios para o Suas, levando diversas organizações, como a Frente Nacional em Defesa do Suas, a atuarem em novos espaços e construírem novas coalizações em defesa do orçamento público para políticas essenciais,5 5 No âmbito da Coalizão Direitos Valem Mais, as organizações atuam em defesa do orçamento público para a efetivação de direitos humanos. Desde a sua criação como rede que agrega mais de 200 organizações, tem sido a agenda de defesa de medidas revogatórias do teto dos gastos. Nesse sentido, foi proposto o Piso Emergencial para Serviços Essenciais por meio de Nota Técnica debatida com diversos setores e, especialmente, com o legislativo federal. No que se refere ao Piso Emergencial, o que se buscou foi a interrupção do desfinanciamento, além da garantia de condições políticas e institucionais para a sustentabilidade e a ampliação do Sistema Único de Saúde, Sistema Único de Assistência Social e Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, tendo em vista os avanços e os patamares atingidos, bem como os desafios produzidos na pandemia. Confira em: www.direitosvalemmais.org.br. considerando desproteções com corresponsabilidades que deveriam ser pactuadas para a garantia de cofinanciamento e a provisão pública, a exemplo de acolhimentos em Instituições de Longa Permanência para pessoas idosas; acolhimentos para migrantes e famílias; acolhimento para mulheres em situação de violência; regulação e cofinanciamento de benefícios eventuais; novas modalidades de proteção; expansão de serviços tipificados; e desenvolvimento de capacidades de gestão.

No contexto de maior subordinação dos direitos ao ajuste fiscal, é possível identificar a adoção de medidas que colaboram para a inviabilização do Suas, mesmo diante de um grave contexto de pandemia e de reconhecimento da essencialidade da proteção social distributiva, de modo a aprofundar os efeitos da Emenda Constitucional n. 95/2016.

A análise do financiamento do Suas nos últimos anos, com base nos estudos do Portal Assistência Social nos Municípios,6 6 Portal Assistência Social nos Municípios. Disponível em: https://assistenciasocialnosmunicipios.org/. Acesso em: 10 maio 2024. permite identificar uma tendência de instabilidade nos valores e uma redução significativa nos recursos ordinários. O Gráfico 1 totaliza recursos ordinários, extraordinários, regulares e emendas parlamentares em bilhões de reais para o Suas.

Gráfico 1.
Recursos federais para o Suas - R$ bilhões

Ocorre um leve aumento em 2017, uma queda em 2018 e uma recuperação em 2019. Em 2020, observa-se ampliação de 37,7%, tendo em vista os recursos extraordinários para combate à pandemia de covid-19. Já em 2021 ocorre uma queda de 58,1%, dada a descontinuidade dos recursos extraordinários. A elevação apresentada em 2022 acontece devido às execuções das emendas parlamentares, que repetiram a dinâmica em 2023.

O Gráfico 2 demonstra a alocação de valores entre recursos ordinários gerados e pagos no mesmo ano, recursos de anos anteriores, recursos extraordinários sem continuidade e recursos de emendas parlamentares, também sem continuidade garantida.

Gráfico 2.
Recursos federais detalhados - R$ milhões

O que se observa é uma redução dos recursos ordinários, justamente num contexto de maior crise, de retorno do Brasil ao Mapa da Fome, de intensificação das desigualdades e da pobreza. Destaca-se que 40,5% dos recursos totais de 2022 foram obtidos por meio de emendas parlamentares, caracterizadas como recursos não regulares e que não necessariamente se repetem nos exercícios financeiros subsequentes. Houve aumento nos recursos ordinários em 2023, mas ainda assim 37,4% dos recursos são oriundos de emendas.

O Gráfico 3 demostra a trajetória de desfinanciamento do Suas por bloco de financiamento.

Gráfico 3.
Recursos federais detalhados por bloco - R$ milhões

Os dados apurados indicam uma tendência preocupante de redução dos recursos, principalmente para a proteção social básica, o que ensejou diversas ações de mobilização dos atores do Suas. Da mesma forma, a instabilidade nas execuções se observa na proteção especial, notadamente a de alta complexidade, sinalizando a fragilidade na atenção das situações de ruptura dos vínculos familiares e comunitários, de violações diversas, ampliadas na pandemia. Observam-se, ainda, uma redução expressiva para recursos de incentivo do aprimoramento da gestão e um aumento em programas, em particular para o Criança Feliz, e nas emendas parlamentares.

Cabe ressaltar que no cenário pré-pandemia, durante e pós-pandemia, apesar dos recursos extraordinários destinados em 2022, o orçamento ordinário para serviços e ações na Assistência Social, sem considerar os benefícios de renda e os emergenciais, voltou para o patamar da década de 1990, uma vez que reduziu de R$ 3,1 bilhões (2014) para menos de R$ 2 bilhões, em 2021. Para 2022, foi aprovado o orçamento de R$ 1,4 bilhão para recursos ordinários, que foi posteriormente complementado de forma parcial, em especial com emendas parlamentares. Ou seja, 40,5% dos recursos totais de 2022 foram emendas parlamentares, recursos não regulares e que não necessariamente se repetem, totalizando um orçamento de R$ 4 bilhões.

Para o exercício de 2023, houve um corte de aproximadamente 95% na Lei de Orçamentária. Com um orçamento praticamente zerado, seria impossível o governo eleito manter os serviços instalados. Houve uma recuperação quase total do orçamento aprovado pelo Conselho Nacional de Assistência Social, totalizando R$ 2,3 bilhões de recursos ordinários e R$ 4,8 bilhões, considerando as emendas parlamentares. Entretanto, o legislativo não aprovou aumento no orçamento para 2024, totalizando apenas R$ 2.165.776.048,00.

Diversas organizações que atuam em defesa do financiamento público, como a Coalizão Direitos Valem Mais, reconhecem os avanços nos primeiros anos do atual governo, especialmente com a PEC da Transição, que no contexto de sua elaboração abria espaço político e institucional para o fim do teto dos gastos. O novo Arcabouço Fiscal, por sua vez, tem o objetivo de promover a recuperação do orçamento de políticas públicas essenciais, como saúde, educação e pagamento do Bolsa Família, além de retomar investimentos em programas como o Minha Casa, Minha Vida. Entretanto, a política de Assistência Social, ainda que seja uma política imprescindível, persiste nas disputas por fundo público no campo das despesas discricionárias.

É necessário, nesse sentido, restabelecer um novo pacto de aprimoramento do Suas, com as devidas expansões para universalizar e qualificar a cobertura de serviços, considerando a demanda, o quantitativo populacional e o custo das ofertas segundo as realidades locais e regionais; a ampliação e a garantia da regularidade nos repasses; a retomada de programas sociais importantes, como as Ações Estratégicas do Programa de Enfrentamento do Trabalho Infantil (Peti), que atualmente não possui destinação qualquer de recurso, e do cofinanciamento de serviços subfinanciados, como o acolhimento para mulheres em situação de violência e instituições de longa permanência.

É importante destacar que o desfinancimento e o subfinanciamento comprometem totalmente a sustentabilidade de um sistema que está regulado para o repasse regular e automático via fundos, pactuados e deliberados para a plena expansão da proteção social. Romper com esta lógica é urgente. Daí a prioridade, na agenda política do Suas, de imediata aprovação da PEC n. 383/2017, que prevê a aplicação anual de pelo menos 1% da Receita Corrente Líquida (RCL) da União e dos demais entes federados no financiamento do Suas. A vinculação de recursos nas três esferas de governo seria um avanço reestruturante dessa política de Seguridade Social. Ao mesmo tempo, é preciso avançar na adoção de medidas que regulamentem a necessária desvinculação dos recursos orçamentários relativos à assistência social, das restrições de gastos, conforme definição no arcabouço fiscal; e sobre a necessária alteração legislativa do percentual de gastos com pessoal previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/2000), na qual a assistência social é reconhecida como serviço essencial.

As agendas e as ações em defesa dos direitos humanos e das políticas sociais apontam para o pleno funcionamento das suas instâncias; o restabelecimento de suas bases estruturantes (comando único, financiamento público, repasse automático e regular fundo a fundo; pactuações e expansão qualificada; instâncias em pleno funcionamento; serviços territorializados; regulações); a manutenção de serviços e expansões que enfrentem desproteções, violações e desigualdade; a integralidade dos direitos e da proteção social; a revogação de contrarreformas e a implantação de reformas que efetivamente reduzam desigualdades, como uma reforma tributária justa e solidária, com taxação de fortunas; reforma urbana, agrária, na educação, entre outras.

Evidentemente que tais defesas estão engendradas nas lutas mais gerais da classe trabalhadora por direitos e democracia no Brasil, por uma Seguridade Social universal e pública, por sistemas estatais permanentes a amplos, o que implica fortalecimento da democracia e financiamento sustentável. Além dos desafios da estabilidade do orçamento público, é fundamental avançar em outros pontos centrais de uma agenda decolonial.

3. Reconstrução do Suas em perspectiva decolonial

A decolonialidade epistêmica, técnica e institucional significa, sobretudo, aprender a desaprender (Mignolo, 2005MIGNOLO, W. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 34-54.). Desaprender a universalidade do conhecimento científico da cultura europeia, do desenvolvimento linear e unidirecional da humanidade. Tal compreensão cabe perfeitamente para a formulação das políticas públicas. É preciso reaprender o papel epistêmico dos conhecimentos ancestrais e subalternizados, que são subjugados juntamente à população constituída por indígenas, negros, quilombolas, mulheres, idosos, crianças, pessoas LGBTQIAPN+, ou seja, por identidades que não fazem parte da colonização das identidades hegemônicas.

“Descolonizar”, “aquilombar” a Assistência Social e as demais políticas sociais implica a abertura para a escuta e a participação da população subalternizada; requer a correção de rumos que se afastem de epistemologias eurocêntricas e das institucionalidades que não consideram as diversidades e pouco colaboram na tarefa mais ampla de o Estado reduzir as desigualdades. Um desafio urgente para a pesquisa e atuação na área é produzir novos saberes e práticas com base nas lutas da população subalternizada.

Podem-se imaginar alguns caminhos: um Suas efetivamente diverso, democrático, inclusivo, popular e, portanto, decolonial; é possível implantar Centros de Referência de Assistência Social (Cras) indígenas, quilombolas, ribeirinhos; garantir que programas, como o Bolsa Família, e serviços tenham novos arranjos, permeados pelas diversidades, com processos transformadores, em resposta às necessidades específicas vocalizadas pelos sujeitos de direitos nos territórios.

É necessário que sejam adotados processos disruptivos, construídos a partir dos múltiplos saberes subalternos. Podem ser implantadas inovações aderentes às dinâmicas dos territórios, com possibilidades de novas inserções sociais no Suas, a exemplo de agentes comunitários do Suas, de trabalhadoras/es do cuidado no domicílio, nos espaços coletivos e estatais.

As organizações de usuárias/os, movimentos sociais e organizações populares podem se inserir em espaços coletivos populares nas Unidades Públicas no Suas, um novo e potente tipo de participação, o que implica a construção de novos dispositivos de gestão participativa dos territórios de Cras, por exemplo, de modo a coletivizar demandas e processos, além de identificar e avançar em enfrentamentos mais efetivos na superação da fome e da pobreza, na redução das desigualdades e nas desproteções sociais, fortemente atuantes, e participando das definições em cada esfera de governo, para além dos conselhos. Portanto, processos decoloniais são potentes para o redesenho do Suas, para a criação de novas instâncias de participação direta de grupos sociais específicos e tradicionais, especialmente de mulheres, tendo em vista as questões de gênero refletidas no Bolsa Família e no conjunto das políticas sociais. São muitas as possibilidades de uma educação popular que efetivamente qualifique o Suas com novos saberes, e rompa com todas as formas e o racismo institucional, a discriminação e o preconceito.

O Suas em perspectiva decolonical implica valorizar aquelas/es que vivem do trabalho, o que demanda uma forte aliança entre a população usuária e as/os trabalhadoras/es desse sistema. Cenário que requer a efetiva desprecarização das condições de trabalho, a adoção de incentivos e processos que promovam concurso público, carreira, saúde no trabalho, entre outros avanços necessários em gestão do trabalho e educação permanente.

É preciso contribuir para o enfrentamento das estruturas de poder que afetam certos grupos, incluindo populações indígenas, comunidades quilombolas e moradores de periferias urbanas. Ao mesmo tempo, fortalecer a participação comunitária popular e a representatividade. É fundamental envolver ativamente as comunidades afetadas pelas desigualdades, pela pobreza multidimensional, por violações e desproteções, na formulação, implementação e avaliação de políticas públicas, garantindo que suas vozes e saberes sejam respeitados e incorporados. O Suas, assim, pode contribuir muito no fortalecimento de lideranças representativas, na incorporação de coletivos e da agenda em direitos humanos no âmbito dos serviços e das unidades públicas, além de fortalecer as lutas sociais para a materialização dos demais direitos na realidade concreta e no cotidiano de vida da população.

A agenda em defesa do Suas é ampla e precisa ser direcionada por um projeto societário, por uma nova e superior ética, que preconiza a estruturação de um sistema universal e decolonial de proteção social. Daí a importância do protagonismo da sociedade civil e de pesquisas comprometidas com as transformações necessárias, que avaliem cenários e apresentem soluções políticas e institucionais para a efetivação do direito à assistência social.

Não faltam exemplos de moralização e criminalização da população usuária, são muitos os relatórios e os posicionamentos profissionais baseados no conceito de negligência das famílias, das mulheres que não cuidam e, por isso, não merecem ficar com seus filhos. Mas quais são as dificuldades que as famílias possuem no processo de reprodução social? Como é o cotidiano de vida de mulheres que chefiam suas famílias para cumprir as chamadas condicionalidades? Os acessos são suficientes? As estratégias de sobrevivência são compreendidas pelas equipes?

O pensamento decolonial possibilita, por sua vez, a análise e a crítica das relações de poder, a construção de alternativas a partir dos contextos locais, para superar as armadilhas da colonialidade, que reproduzem a desigualdade, especialmente étnico-racial, de gênero e de classe. Permite, também, a construção de novos caminhos, o que implica a forte atuação, a incorporação de saberes e as reivindicações de movimento, da própria população usuária, especialmente povos originários, mulheres, jovens negros e periféricos, de modo a fortalecer processos decoloniais, na direção de uma sociedade em que a vida, a dignidade, os direitos e o bem viver se colocam acima de tudo.

Considerações finais

A efetivação dos Direitos Humanos e do Sistema de Proteção Social implica, dentre outros aspectos, a intervenção em processos normativos, políticos, ideológicos, sociais, culturais e econômicos. Portanto, a materialização dos Direitos demanda a desconstrução da cultura de insensibilidade coletiva, da naturalização da desigualdade e de toda forma de opressão e desigualdades, ao tempo em que as condições políticas e institucionais são produzidas no âmbito do Estado.

A atuação de movimentos sociais, coletivos e de outras formas de organização possui um papel indispensável para a incorporação de demandas e de novos conteúdos ético-políticos no Suas. Assim, superar traços meritocráticos, residuais, eugenistas demanda crítica e inovação democrática, com adoção de práticas populares, plurais e deliberativas, e a adequação de serviços e programas aos contextos sociais diversos, com adoção de dispositivos mais potentes para a redução das desigualdades e promoção da diversidade humana.

A superação da fome, da pobreza e de todas as consequências do capitalismo em sua face moderno-colonial-patriarcal exige compromisso e práticas que construam, democraticamente, um caminho de políticas públicas profundamente informadas por uma perspectiva decolonial. Isso significa reconhecer e valorizar a diversidade e os saberes de todas as comunidades e territórios, desafiando estruturas de poder desiguais e opressoras. Significa adotar mecanismos que de fato permitam avanços na direção de um sistema de proteção social universal, sustentável financeiramente, integrado e democrático, acompanhado de reformas estruturantes, orientadas por uma nova ética que direciona a sociedade que queremos: humanamente justa, ambientalmente sustentável e humanamente diversa.

Referências

  • ARANTES, E. M. de M. Rostos de crianças no Brasil. In: PILOTTI, F.; RIZZINI, I. (org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Universidade Santa Úrsula, 1995.
  • MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução: Renata Santini. São Paulo: n-1 Edições, 2018.
  • QUIJANO, A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, E. (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 227-277. Disponível em: Disponível em: http://www.sociologia.uff.br/wp-content/uploads2/2019/08/QUIJANO-An%C3%ADbal.-Colonialidade-do-poder-eurocentrismo-e-Am%C3%A9rica-Latina.pdf Acesso em: 30 maio 2024.
    » http://www.sociologia.uff.br/wp-content/uploads2/2019/08/QUIJANO-An%C3%ADbal.-Colonialidade-do-poder-eurocentrismo-e-Am%C3%A9rica-Latina.pdf
  • MIGNOLO, W. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 34-54.
  • RIZZINI, I; PILOTTI, F. (org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
  • SILVEIRA, J. I. Sistema Único de Assistência Social: institucionalidade e processos interventivos. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 98, 2009.
  • SILVEIRA, J. I. Assistência social em risco: conservadorismo e luta social por direito. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 130, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-6628.120. Acesso em: 10 de maio de 2024.
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/0101-6628.120
  • SILVEIRA, J. I. Desproteção social, desigualdades e desmonte da proteção social no contexto de pandemia. In: COSTA, L. C.; PREUSS, L. T.; SCHEFFER, S. M. (org.). Seguridade social, territórios e pandemia no Brasil e na Argentina Guarapuava: Editora Unicentro, 2022.
  • SILVEIRA, J. I.; COLIN, D. A proteção social não contributiva no Brasil: processo histórico entre a residualidade e a universalidade. In: COSTA, L.; DEL VALLE, A. H. A seguridade social no Brasil e na América Latina: os direitos sociais em tempos de ajustes fiscais. Guarapuava: Editora Unicentro, 2017.
  • SILVEIRA, J. I.; NASCIMENTO, S. L.; ZALAMBESSA, S. Colonialidade e decolonialidade na crítica ao racismo e às violações: para refletir sobre os desafios educação em direitos humanos. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0104-4060.71306. Acesso em: 20 maio 2024.
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/0104-4060.71306
  • 1
    Produtividade em Pesquisa (PQ2) com o título: “Sistema Único de Assistência Social no Brasil: repercussões da colonialidade, agenda de direitos e reconstrução”.
  • 2
    A expressão “giro decolonial” refere-se a um movimento intelectual e epistemológico que busca questionar e desafiar as estruturas de poder e conhecimento estabelecidas pelo colonialismo e pela modernidade ocidental. Enfatiza a necessidade de um “desprendimento” das epistemologias eurocêntricas, propondo uma revalorização e rearticulação dos conhecimentos subalternizados ou silenciados. O termo “giro decolonial” é associado, principalmente, ao trabalho de um grupo de intelectuais e acadêmicos latino-americanos, muitos dos quais fazem parte do projeto Modernidade/Colonialidade. Entre os principais teóricos estão Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Enrique Dussel, Nelson Maldonado-Torres e Ramón Grosfoguel, entre outros. Embora não haja um consenso absoluto sobre quem cunhou o termo exato “giro decolonial”, Walter Mignolo é frequentemente creditado como um dos principais responsáveis pela popularização e pela articulação do conceito em seus escritos e discursos. Portanto, o termo “giro decolonial” é fruto de um esforço coletivo de vários intelectuais, comprometidos com a crítica e a superação das heranças coloniais, no conhecimento e nas práticas sociais.
  • 3
    Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8742.htm. Acesso em: 10 maio 2024.
  • 4
    A Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016, altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm. Acesso em: 10 maio 2024.
  • 5
    No âmbito da Coalizão Direitos Valem Mais, as organizações atuam em defesa do orçamento público para a efetivação de direitos humanos. Desde a sua criação como rede que agrega mais de 200 organizações, tem sido a agenda de defesa de medidas revogatórias do teto dos gastos. Nesse sentido, foi proposto o Piso Emergencial para Serviços Essenciais por meio de Nota Técnica debatida com diversos setores e, especialmente, com o legislativo federal. No que se refere ao Piso Emergencial, o que se buscou foi a interrupção do desfinanciamento, além da garantia de condições políticas e institucionais para a sustentabilidade e a ampliação do Sistema Único de Saúde, Sistema Único de Assistência Social e Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, tendo em vista os avanços e os patamares atingidos, bem como os desafios produzidos na pandemia. Confira em: www.direitosvalemmais.org.br.
  • 6
    Portal Assistência Social nos Municípios. Disponível em: https://assistenciasocialnosmunicipios.org/. Acesso em: 10 maio 2024.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2024
  • Aceito
    01 Jul 2024
Cortez Editora Ltda Rua Monte Alegre, 1074, 05014-001 - São Paulo - SP, Tel: (55 11) 3864-0111 , Fax: (55 11) 3864-4290 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: servicosocial@cortezeditora.com.br