Resumos
Nesta pesquisa, delineada como qualitativa e descritiva, objetivou-se conhecer como os docentes de um curso de enfermagem abordam a morte e o morrer na academia e quais as implicações no processo de formação. Dez professores de um curso de graduação em enfermagem, intencionalmente selecionados, foram submetidos à entrevista semiestruturada, gravada. A análise temática dos dados permitiu constatar que a presença do fato provoca insegurança nos entrevistados e retrata a deficiência de preparo na graduação, o que pode indicar certa dificuldade ao se trabalhar com a temática. Apesar disso, os entrevistados evidenciaram a importância do trabalho acerca do processo de morte e morrer. É imprescindível o entendimento da academia, como agente transformadora de sujeitos reflexivos e promotora de condições para que o acadêmico vivencie as experiências envolvidas na assistência, diante da terminalidade.
Enfermagem; Morte; Docentes de enfermagem; Cuidados de enfermagem
This qualitative and descriptive study aimed to identify how nursing course professors approach death and dying in the university and what the implications are on the formation process. Ten professors of the undergraduate nursing course were intentionally selected and underwent semi-structured interviews, which were recorded. The thematic analysis of the data revealed that the presence of the fact caused insecurity in the interviewees and portrayed the lack of preparation in the undergraduate course, which could indicate a certain difficulty working with this theme. Furthermore, the interviewees highlighted the importance of working with death and dying. It is essential to understand the university to be a transforming agent of reflective subjects and a promoter of conditions for the student to experience the aspects involved in the care when faced with death.
Nursing; Death; Faculty; nursing; Nursing care
Estudio cualitativo e descriptivo que formuló como objetivo comprender como los docentes de enfermería abordan a la muerte y el morir en la academia y cuáles son las implicaciones en el proceso de formación. Diez profesores de graduación en enfermería fueron seleccionamos intencionalmente y respondieron las entrevistas semi-estructuradas, grabadas. El análisis temático de los datos reveló que la presencia con la muerte provoca inseguridad y retrata la deficiencia en la formación, lo que puede indicar una cierta dificultad en trabajar con el tema. Sin embargo, el análisis permitió constatar la importancia del trabajo en el proceso de muerte y morir. Es importante, que comprendamos la academia como un agente transformador y promotor de sujetos analíticos y de condiciones para que el estudiante vivencie experiencias asistenciales frente a la etapa terminal.
Enfermería; Muerte; Docentes de enfermería; Cuidados de enfermería
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A morte é um evento presente no cotidiano das pessoas e suscita sentimentos e reações variadas. Apesar de o homem possuir a consciência de que sua existência acontece dentro de um ciclo, que se estende entre o nascimento e a morte.1 O morrer, frequentemente, não é encarado como um processo natural e está rodeado de mistérios e receios.
Sabe-se que as questões inerentes a tal processo vêm sendo discutidas, analisadas e vivenciadas de maneiras diversas no decorrer da história, pelas diferentes áreas do conhecimento. Porém, a área da saúde é a que possui maior contato com este fato e, por isso, necessita de atenção especial. Da mesma maneira que a sociedade lida com a morte, na tentativa de excluí-la do cotidiano, os profissionais da saúde parecem também utilizar esse subterfúgio. Habitualmente observa-se que eles se reconhecem limitados ao trabalhar com pacientes fora de possibilidades terapêuticas de cura e, assim, o cuidar em enfermagem daqueles que morrem, comumente, torna-se um fardo, num cenário composto por sofrimento, angústias e medos. O enfermeiro, à mercê de conflitos íntimos, sente-se fracassado na realização do trabalho, e isto, muitas vezes, contribui para a sua negação do processo de morte e morrer.1 - 2
Diante de uma situação iminente de morte, muitas vezes, a equipe de enfermagem se vê impotente, frustrada, culpada e irritada, não sabendo ao certo como se posicionar frente ao sofrimento e à dor que, na maioria das vezes, não pode ser aliviada, além de, também, ter que vivenciar perdas de pacientes, cuja convivência possibilitou o estabelecimento de vínculos intensos.2 Essas dificuldades se refletem no cuidado, pois não são raros os profissionais de enfermagem que, escalados a cuidar de algum paciente terminal, se esquivam e manifestam atitudes de inquietude. Isso, geralmente, acontece porque eles não estão sendo preparados para trabalhar com esse fato da mesma maneira que o são para a manutenção da vida. Esta falta de preparo e de reflexões sobre a morte deixa os profissionais perplexos frente à tomada de decisões em situações onde eles devem cuidar da pessoa no estágio de morte iminente.2
A partir dessas dificuldades em lidar com a morte e o morrer na assistência aos pacientes fora de possibilidade terapêutica de cura, faz-se necessário refletir sobre o processo de formação dos enfermeiros, para que haja profissionais qualificados para lidar com a terminalidade. Sabe-se que os cursos de enfermagem ainda oferecem poucos espaços para o trabalho da relação enfermeiro/paciente e para o contato com as emoções e sentimentos decorrentes da convivência com os doentes e seus familiares.2
O processo de formação na área da saúde geralmente acontece em momentos que contemplam a teoria e a prática. Na teoria, pouco se fala sobre o assunto e, na prática, o acadêmico é inserido na rotina hospitalar e na convivência diária com as particularidades da profissão e o enfrentamento da morte.1 Neste sentido, esta temática, na maioria das vezes, é pouco discutida na graduação, o que acarreta em um trabalho voltado apenas para a prática e, quase sempre, desqualificado. Entretanto, existem manifestações em diversos cursos para a inclusão de discussões referentes à terminalidade e à tanatologia em seus currículos; a especialidade de medicina paliativa e a criação de disciplinas optativas enfocando essa temática nos cursos de graduação da área da saúde são indicativas disso.
Partindo deste pressuposto, surge a necessidade de inclusão do tema morte e os cuidados com pacientes fora de possibilidades terapêuticas de cura nas disciplinas dos cursos de saúde, em especial na enfermagem. As adversidades que os acadêmicos de enfermagem vivenciam ao enfrentarem tal situação são muitas e contribuem para que haja não apenas uma lacuna na sua formação, mas também uma negação do fato como parte integrante da vida, tendo, como consequência, profissionais pouco preparados a prestar cuidados integrais às pessoas que vivenciam a finitude e a seus familiares. O sistema defensivo baseado na negação de sentimentos e emoções alimenta o paradoxo de que, se por um lado os profissionais da saúde são os que mais lidam com o tema morte, por outro são também os que mais resistem em reconhecê-la como um fato inerente à existência humana.3 Tudo isso acarreta uma fragmentação do trabalho, pois o enfermeiro se depara com seus medos e angústias e vê suas ações de prestação de cuidados limitadas.
Desse modo, é imprescindível o conhecimento de como é abordado o processo de morte e morrer durante a graduação em enfermagem e, com isso, contribuir para discussões acerca da necessidade do preparo formal do enfermeiro frente a esse processo, bem como a qualificação dos professores, já que estes são fomentadores da temática nas disciplinas em que atuam. Logo, este estudo tem como pergunta de pesquisa: "como ocorre a abordagem do tema morte e morrer por docentes de um curso de enfermagem e quais as implicações dessa abordagem no processo de formação acadêmica?"
O objetivo deste estudo foi analisar como os professores de um curso de enfermagem abordam a morte e o morrer na academia e quais as implicações no processo de formação acadêmica.
PERCURSO METODOLÓICO
Trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa do tipo descritiva, realizada no curso de graduação em enfermagem de uma unidade universitária pública, instalada na região Norte do Estado do Rio Grande do Sul (RS), com sede na Região Central. A universidade, fundada em 1970, conta com dez unidades universitárias espalhadas pelo RS, além de quatro estabelecimentos de educação básica, técnica e tecnológica.
Os sujeitos foram dez docentes, escolhidos intencionalmente, por participarem efetivamente no processo de formação dos enfermeiros, considerando-se que cabe a eles o papel de fomentadores das discussões acerca da educação para o cuidado no processo de morrer no cotidiano do curso de enfermagem.
O processo de coleta de dados ocorreu entre os meses de maio e junho de 2011, por meio de entrevista semiestruturada,4 subsidiada por questionamentos inspirados na caracterização dos sujeitos e nos temas norteadores da investigação, ou seja, percepções e experiências com o processo de morte e morrer, abordagem do tema no decorrer da sua própria formação, dificuldades e facilidades para conversar sobre a morte, e influências na vida profissional.
Os dados foram submetidos à análise temática,4 que foi constituída de três fases: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Dessa forma, a análise dos dados deu-se primeiramente pela ordenação dos dados, em que foram transcritas as gravações, com posterior releitura do material e organização dos relatos. Posteriormente, os dados foram classificados, baseados em questões relevantes para a categorização dos mesmos. Na terceira etapa, procedeu-se a análise final, onde foram agrupados os dados e as referências teóricas do estudo para responder aos objetivos propostos.4
Esta pesquisa obteve aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) (parecer n. 0056024300011) e seguiu os preceitos éticos determinados pela Resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde,5 que incluem, entre outros, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o arquivamento das transcrições das entrevistas por um período de cinco anos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Buscando responder a pergunta desta pesquisa, a análise dos dados permitiu a construção de três unidades temáticas. Tema I: experiências dos docentes, quando estudantes, sobre o processo de morte e morrer; Tema II: abordagem da temática morte e morrer, pelos docentes no curso de graduação em enfermagem; e Tema III: relevância da abordagem do processo de morte e morrer.
Dos dez professores entrevistados, oito são enfermeiros, um é psicólogo e outro é biólogo. Quanto ao tempo de formação, quatro concluíram a graduação há menos de 10 anos, um há 10 anos, três há mais de 20 anos e dois há mais de 30 anos. No que diz respeito ao tempo em que atuam como docentes, cinco com menos de 10 anos, um com 10 anos, três com mais de 20 anos e um com tempo de graduação superior a 30 anos.
Experiências dos docentes, quando estudantes, sobre o processo de morte e morrer
Para que se entenda como acontece a abordagem do processo de morte e morrer pelos docentes de enfermagem, é fundamental que se conheça a maneira como esta temática foi trabalhada com eles quando estudantes. A maioria das falas dos entrevistados possibilita identificar que a abordagem do tema foi: [...] de forma fraca e fragmentada [...] em uma aula [...] dentro de uma disciplina, não se discutia além (E1), não havendo uma disciplina específica no currículo para que essa discussão acontecesse, geralmente, esse tema era abordado [...] na disciplina da legislação e ética profissional, de uma forma bem superficial [...]. Não era uma disciplina ou um conteúdo que tivesse uma discussão mais aprofundada (E4).
A melhor maneira de lidar com as emoções que a morte suscita não é reprimindo ou negando-a, mas sim possibilitando sua elaboração,1 sendo, para isso, necessário que o profissional de saúde receba outro tipo de preparo em sua formação. A ausência da abordagem dessa temática na graduação em enfermagem tem contribuído para que haja uma lacuna na formação, bem como uma negação de tal fato como parte integrante da vida, tendo como consequência enfermeiros pouco aptos a estabelecer discussões sobre a morte e morrer ou a prestar cuidados mais abrangentes à pessoas que vivenciam a finitude e as suas famílias.6 - 7
Uma das principais causas do despreparo do próprio docente para trabalhar com o fato, além dos aspectos espirituais, culturais e pessoais, é [...] o ensino tecnicista [...] mais apegado em técnica [...] (E10), que privilegiou sua formação técnicocientífica, impessoal e mecânica, com ênfase em disciplinas que os instrumentalizaram ao cuidado para a preservação da saúde e cura das doenças, mas com pouco respaldo para que pudessem cuidar da pessoa que vivencia o processo de morte,8 - 9 como futuros profissionais de enfermagem.
A partir disso, abre-se um espaço para se questionar: o enfoque tecnicista oferecido nos cursos de enfermagem tem repercutido negativamente na assistência prestada ao paciente que vivencia o processo de morte e morrer e a sua família? Ressalta-se que não se pode desqualificar a formação técnica do futuro profissional de saúde. Contudo, sabe-se que esses profissionais estão frequentemente expostos a situações de enfrentamento da morte de pessoas sob seus cuidados. Por mais que esse confronto no seu cotidiano de trabalho seja uma constante, a dificuldade em encará-lo como parte integrante da vida é notória, considerando-a, com frequência, como resultado de fracasso terapêutico e do esforço pela cura. Neste sentido, a morte suscita desapontamento nos profissionais no que se refere aos ideais de onipotência e eficiência inculcados desde a formação acadêmica, gerando angústias existenciais advindas da projeção da fragilidade no outro e da identificação com o doente.3
Desde a formação, os enfermeiros demonstram dificuldades em se aproximarem de pacientes fora de possibilidades terapêuticas de cura, pois surgem diversos obstáculos ao se depararem com problemas advindos do convívio diário; o primeiro contato com a morte como estudantes geralmente mostra-se [...] traumático e [...] bastante duro (E10), podendo despertar fantasias de ações do cuidado que contribuísse para a morte do paciente (E10). O sentimento despertado nessas situações traduz-se em impotência, frustração, culpa, irritação, entre outros, isto porque tais sentimentos são despertados tanto em quem morre quanto em quem assiste a esse evento.2 , 7 , 10 - 11
Alguns docentes manifestam tranquilidade no enfrentamento da morte/morrer: a primeira experiência, enquanto graduação, com a morte, foi super tranquila e minimizou tudo aquilo [...] de dúvida, de curiosidade, de medo até, porque é um enfrentamento difícil (E2). Assim, a facilidade de alguns professores no enfrentamento de tal fato possivelmente decorre das experiências da sua própria graduação, como por questões pessoais, espirituais e de outras vivências anteriores.
Ao mesmo tempo em que se evidencia a facilidade ao confrontar-se com a temática, a maioria dos entrevistados relata sentimentos variados, de frustração, angústia e culpa. Para tanto, é fundamental a discussão e reflexão sobre os dilemas do conceito da morte que cada um traz e, por meio desses, viabilizar o desenvolvimento de mecanismos que preparem esses futuros profissionais para lidar com essa situação. Logo, é imprescindível a oferta de suporte emocional durante a graduação, salientando a implantação de uma educação tanatológic,a a fim de desenvolver a capacidade de enfrentamento da mesma.
Neste contexto, cabe o seguinte questionamento: como os docentes que vivenciaram diversas situações de desgaste e sofrimento em relação à temática irão abordar com seus alunos essa questão? É necessário, pois, preparar os profissionais da saúde para o cuidado de pacientes fora de possibilidade terapêutica de cura desde sua graduação, já que isso faz parte das habilidades que esses profissionais devem possuir a fim de visualizá-lo como um ser humano que necessita ser ajudado nessa etapa da vida.12
As falas evidenciam, ainda, a [...] dificuldade em relação à situação da família [...] (E2). O diálogo com os familiares do paciente fora de possibilidade terapêutica de cura, bem como o acolhimento, o conforto, o suporte, e até mesmo a própria preparação para comunicar aos familiares a morte de seu ente querido, tornam-se um processo difícil e que muitos profissionais não sabem como lidar, sentindo-se desamparados, temerosos e inseguros.13
Percebe-se que a maneira como cada um encara o fenômeno é distinta para alguns é visto como um processo natural, enquanto para outros é uma experiência difícil de ser superada. Apesar de todas essas conturbações, o que se evidencia é a deficiência de preparo na graduação frente à temática, com priorização das técnicas de enfermagem e do cuidado com o corpo físico do paciente, deixando a mercê pacientes e familiares que vivenciam as dificuldades e incertezas advindas do processo de morte e morrer.
Abordagem da temática morte e morrer, pelos docentes, no curso de graduação em enfermagem
A partir dos dados obtidos nesta pesquisa constata-se que o curso de graduação ofereceu um preparo insuficiente para que os acadêmicos realizem os cuidados frente ao processo de morte/morrer. Estudos sobre a temática afirmam que o despreparo em lidar com tal fenômeno é atribuída, muitas vezes, à formação acadêmica e ressaltam, ainda, que a graduação continua a não preparar os profissionais para refletirem sobre a finitude e vivenciarem esse processo,10 o que também pode ser evidenciado nas manifestações de docentes sobre a abordagem da morte/morrer [...] na disciplina de ética profissional, [...] de uma forma superficial [...] (E4), e mais prática do que teórica [...] (E5).
Os resultados de pesquisas realizadas junto aos profissionais também são unânimes no que se refere às deficiências enfrentadas no decorrer da formação acadêmica. Um estudo aplicou um questionário de "Atitude para a morte" e constatou que 81,53% dos enfermeiros apresentavam uma relação negativa perante a morte, associada a uma preparação avaliada entre pobre e regular, no decorrer do curso de graduação, para lidar com a temática.14
A falta de abordagem do tema nas disciplinas da enfermagem é constantemente evidenciada pelos docentes: [...] eu não trabalho isso no meu cotidiano. Parece-me que tal qual meus professores, eu reproduzo o mesmo comportamento. Se os alunos perguntam, se os alunos provocam a discussão eu não deixo de falar com os alunos. Mas espontaneamente eu não coloco isso no meu rol de disciplinas, nas minhas abordagens durante as minhas aulas, então só vou discutir a questão se vier uma pergunta dos alunos (E6).
Os depoimentos revelam uma insuficiência de preparo dos estudantes de enfermagem para vivenciar o processo de morte/morrer de pessoas que recebem seus cuidados, na maioria das vezes ocorrendo apenas no campo prático, sem subsídios teóricos para tal enfrentamento. Esse fato pode ser atribuído à própria negação dos sentimentos pelo docente, a prevalências de ações técnicas em detrimento de um cuidado humanizado, não só em relação ao paciente e seus familiares, mas também aos estudantes envolvidos.
Considera-se que a não abordagem da temática deve-se as dificuldades enfrentadas pelos docentes em trabalhar com o assunto, dificuldades estas que muitas vezes são advindas do despreparo profissional para o trabalho com a morte/morrer: [...] sinto falta de um embasamento teórico maior, com autores que sustentassem melhor a minha fala [...] eu não sou um estudioso, então não tenho um embasamento teórico que sustente melhor a discussão [...] (E6).
Um estudo realizado com docentes de enfermagem aponta que os professores relatam a necessidade de trabalhar com a morte, mas não sabem como fazê-lo e, ao mesmo tempo, angustiam-se diante da temática, deixando transparecer a ansiedade, solidão e ceticismo em relação à sua capacidade de ação nessa circunstância.15 Esse despreparo por parte deles, na maioria das vezes, é refletido nos acadêmicos de enfermagem, que enfrentam dificuldades ao trabalharem com tal processo: [...] os alunos estão despreparados com isso e [...] os profissionais no campo de estágio e no campo de atividade têm dificuldade de abordar essa temática ou de lidar ou de dar a notícia que veio a óbito até talvez pelo envolvimento que tem com esses pacientes (E5).
Sabe-se que estudar a morte é algo que pode auxiliar a trabalhar com sua presença constante, logo, é necessário que o profissional se familiarize com a morte desde a graduação, com vistas a um preparo pessoal e profissional, de tal maneira a reduzir o estresse e ansiedade ao se deparar com situações de sofrimento, proporcionando ao profissional a elaboração e esclarecimento de suas preocupações frente ao desconhecido.6
Sendo assim, a abordagem do assunto apenas em campo prático não é suficiente para preparar os estudantes de enfermagem para o enfrentamento do cuidado no processo de morte/morrer. Sabe-se que, ao proporcionar ao acadêmico um esclarecimento sobre o que realmente é a morte, o docente enriquece o conhecimento do discente acerca de tal processo, sendo fundamental que cada professor provoque momentos de reflexão e supervisão após as primeiras experiências dos alunos com o fato, para que estes se sintam mais seguros e preparados para conviver futuramente com tal ocorrência, visto que os mesmos demonstram a necessidade de contar com espaços no cotidiano profissional para reflexão e apoio emocional.3 Apesar disso, o que os depoimentos evidenciam é a falta da discussão da temática pelos docentes, ou seja, da mesma maneira que eles não tiveram, na sua formação, uma abordagem qualificada sobre o assunto, como professores, eles reproduzem essa ausência.
Ao mesmo tempo em que há o reconhecimento por parte dos professores da deficiente abordagem da temática morte/morrer nos projetos político-pedagógico dos cursos de enfermagem, bem como da carência de envolvimento dos estudantes de enfermagem nessas situações; a maioria deles relata não abordar o tema, tendo como justificativa o excessivo conteúdo programático em detrimento da carga horária da disciplina: [...] eu acho que o problema do nosso do curso é falta de carga horária. Se tu pensar na disciplina de ética, tem vários conteúdos numa disciplina de 30 horas aula, então eu acho que é por isso, nesse momento é por isso [...] (E4).
Complementa-se a essa concepção, o esquecimento da temática: [...] eu só lembrei da morte quando eu fui para o campo que daí a gente se depara com a prática e lembra desse detalhe (E1), ou até por considerar o assunto como de responsabilidade de outras disciplinas do curso: em razão da especificidade da disciplina, porque eu entendo que esta questão da morte/morrer está mais próxima as disciplinas específicas da enfermagem, e como eu trabalho mais a questão da administração, normalmente isso passa paralelamente, não que não tenha importância, mas passa paralelamente (E6).
A partir disso, cabe o seguinte questionamento: a abordagem da temática na disciplina de ética e legislação é o suficiente para preparar os estudantes para o enfrentamento da morte/morrer? Será que as disciplinas devem ser distribuídas de maneira tal, que não haja a interdisciplinaridade necessária para uma formação mais consistente e coesa no tema? Para que os acadêmicos tenham subsídios para o exercício de suas atividades, que os habilitem gradativamente para as situações de morte, é fundamental que se estabeleça o compromisso de trabalhar o assunto de modo transdisciplinar.16 Desse modo, ressalta-se a importância da abordagem do processo de morte e morrer constantemente, não apenas em uma disciplina específica, mas ao longo da graduação, para que se consiga estabelecer uma discussão mais ampla e profunda frente à temática.
Outro ponto a ser destacado é a falta de carga horária relatada pelos entrevistados, decorrendo a necessidade de reformulação na proposta pedagógica dos cursos de graduação da área da saúde, de modo a contemplar uma visão para além da formação técnicocientífica.12 Neste sentido, uma possível mudança no projeto político-pedagógico poderia contribuir para aprimorar a formação humanística do profissional de saúde e prepará-lo para oferecer uma assistência digna que atenda às necessidades das pessoas que vivenciam o processo de morte e morrer e suas famílias.
Relevância da abordagem do processo de morte e morrer
O enfermeiro necessita compreender a morte e não apenas explicá-la. Para apreender esse conhecimento, é fundamental que a educação esteja para além das considerações biológicas e possibilite aos estudantes refletirem sobre o tema, com uma apropriação maior dos conteúdos da sociologia, antropologia, filosofia, psicologia, bem como autoconhecimento e um permanente trabalho na esfera emocional.16 A enfermagem é uma das principais profissões da área da saúde que lida com a morte, uma vez que presta, aos pacientes, cuidados dos mais simples aos mais complexos, incluindo também os pacientes fora de possibilidade terapêutica de cura.
Neste sentido, é fundamental que a enfermagem saiba trabalhar com esse processo por meio da educação para a morte. Entende-se educação para a morte a que se faz no cotidiano, envolvendo comunicação, relacionamentos, perdas, situações limites, nas quais reviravoltas podem ocorrer em qualquer fase do desenvolvimento e está calcada nos questionamentos, na procura do autoconhecimento e na busca de sentido para a vida.17 A importância da apropriação dessa temática é evidenciada pelos docentes, que a consideram [...] essencial e independente da área de atuação, porque a gente lida com morte em todas as áreas, umas mais, outras menos [...], então, independente da área que a gente atuar, eu acho que a gente precisa desse referencial (E4).
Trabalhar com o processo de morte e morrer na academia significa ofertar subsídios para os estudantes a fim de que compreendam esse fenômeno como um processo no qual o sujeito da ação é o paciente e, por conseguinte, seu familiar.10 Partindo da discussão da importância da abordagem do tema nos currículos da enfermagem, emergiu das falas dos entrevistados a possibilidade da inclusão do assunto como uma Disciplina Complementar de Graduação (DCG), por se tratar de um [...] conteúdo que deve ser transversal no curso e deve ser abordado em todas as disciplinas do curso que tenham uma relação mais íntima com o evento morte [...] (E10). Ressalva-se a importância da criação de uma DCG, já que se tem na maioria das instituições de saúde uma população cada vez mais velha, com doenças crônicas, com famílias pedindo ajuda para trabalhar como lidar da morte. Então acho que nós da enfermagem temos que nos preparar para trabalhar com essa situação [...] (E4).
Em uma revisão integrativa sobre a morte e suas implicações no ensino acadêmico, identificou-se que professores, estudantes e profissionais de saúde se encontram despreparados para lidar com situações em que pacientes estão vivenciando o processo de morrer e morte, evidenciado por sentimentos de medo, sofrimento e estranhamento. Ainda, a mesma referência pontua que os cursos de graduação na área da saúde atribuem pouco ou nenhuma importância a discussões que envolvam a terminalidade humana, o que é preocupante já que esses profissionais se deparam com a morte nos diferentes serviços de saúde.18
Partindo do exposto, na instituição de ensino superior em que ocorreu a pesquisa, foi criada uma DCG de 30 horas, ofertada aos alunos do segundo semestre de enfermagem, intitulada "Morte e morrer: contribuições a assistência de enfermagem", que tem o intento de apropriar-se do referencial teórico e refletir diante desse tema visando à assistência as pessoas que estão morrendo e seus familiares, a fim de minimizar os sofrimentos ocasionados pela temática. Ressalta-se a importância da iniciativa de criação da DCG, visto que são poucos os cursos de enfermagem que possuem a preocupação da inclusão do tema em seus currículos. A criação de uma disciplina não resolverá o problema, fazendo-se necessário, pois, que se estabeleça o compromisso de trabalhar com o assunto de modo interdisciplinar, envolvendo todos os docentes.16
Sugere-se ainda, a criação de grupos de tanatologia, que levem aos acadêmicos subsídios teóricos para a implementação de suas atividades.16 Considera-se que a criação de uma DCG seja de grande valia para a inclusão da temática nos currículos de enfermagem, porém, apenas uma disciplina, comprometida com o tema, não é o suficiente para uma preparação adequada no enfrentamento da morte/morrer. Logo, é necessário que esse assunto seja colocado em pauta durante todo o processo de formação acadêmico, para que se consiga implementar uma educação para a morte, que corresponda aos anseios dos futuros enfermeiros.
Ressalta-se que a educação formal para morte poderia transformar-se em um espaço de construção de novos sentidos e novas maneiras de intervenção sobre a realidade, além de possibilitar a superação da alienação e um desenvolvimento humano mais pleno. Para tanto, não basta a inserção de novos conteúdos, é necessário articular conhecimento teórico e técnico com o desenvolvimento de habilidades e competências que privilegiam o sujeito, a subjetividade e o cuidado de si e do outro que se encontra vivenciando o processo de finitude.19 Além disso, ressalta-se a importância do ensino sensibilizar os profissionais da saúde sobre a prática do assistir no processo da morte e o morrer, estimulando a construção de redes de relações entre as instituições de ensino e os serviços, para que a humanização possa ser adotada como conceito e elemento das metodologias de sistematização da assistência de enfermagem.11
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo não teve a pretensão de esgotar essa temática, principalmente considerando as limitações quando se estuda um tema que envolve a subjetividade dos indivíduos. Porém, pode-se dizer que esses resultados mostram a realidade vivenciada em uma universidade pública do RS.
O profissional da saúde, ao perceber a morte como um processo natural e destinado a todos, deixa de encará-la como um fracasso de sua profissão. Neste sentido, é fundamental o desenvolvimento de estudos que possibilitem a eles, desenvolverem o autoconhecimento e intervenções que auxiliem assistir o paciente e seus familiares diante do processo de morte/morrer, minimizando seu sofrimento psíquico.
A pesquisa aponta certa fragmentação na abordagem da temática no decorrer da graduação em enfermagem, não apresentando um espaço para a discussão das vivências e implicações que o evento suscita nos acadêmicos. Enfatiza-se o papel da academia para habilitar o aluno de modo que este seja capaz de estabelecer relações interpessoais de ajuda aos pacientes que vivenciam tal processo e aos seus familiares. Para tanto, faz-se necessária a criação de espaços para discussões e reflexões, que possam levar o estudante de enfermagem a alcançar uma compreensão mais clara a respeito da morte. Daí a importância da inclusão da temática nos currículos dos cursos de formação de profissionais de enfermagem, bem como a inserção do tema nas instituições hospitalares, por meio da educação permanente, buscando estratégias que promovam mudanças na postura dos profissionais junto ao paciente fora de possibilidade terapêutica de cura.
Para que o acadêmico de enfermagem consiga lidar com as questões do processo de morte/morrer, é fundamental que este receba um preparo no decorrer da sua graduação para tal enfrentamento. Para tanto, faz-se necessária a abordagem durante a academia, sobre as questões da tanatologia. Logo, os docentes devem estar aptos para trabalhar com este tema. Partindo desse pressuposto, torna-se indispensável que esse assunto seja colocado em pauta na academia e sensibilize os professores para o seu aperfeiçoamento, tendo em vista uma melhor abordagem frente à educação para a morte.
Entende-se que não se deve colocar toda a responsabilidade do despreparo profissional para trabalhar com situações de morte iminente, no processo de formação da graduação, pois se compreende que seja fundamental repensar as vivências familiares, espirituais e educacionais, desde o ensino fundamental e médio. Contudo, é imprescindível o entendimento da academia como agente transformador de sujeitos reflexivos e promotora de condições para que o acadêmico vivencie as experiências envolvidas na assistência diante do processo de morte/morrer.
As questões inerentes do processo de morte/morrer perpassam a relação enfermeiro-paciente, englobando também as relações com os familiares. Neste sentido, é compreensível a urgência da discussão e reflexão sobre a questão na formação do enfermeiro, dando enfoque na preparação emocional e nas relações interpessoais desses acadêmicos, ao enfrentarem esse processo. É necessário, pois, a criação de espaços em que se compartilhem experiências que contribuam para o encontro da melhor abordagem com o melhor caminho para a implementação do tema nos cursos de graduação em enfermagem.
A criação de uma DCG que englobe as questões do processo de morte/morrer é um avanço importante para a inclusão da discussão da temática no currículo dos cursos de enfermagem. Porém, entende-se que apenas uma DCG não resolverá as deficiências acadêmicas em relação ao assunto. É necessário ir além, por se tratar de um conteúdo que evidencia a necessidade de ser abordado de maneira transversal no curso e em todas as disciplinas que tenham uma relação íntima com o evento morte.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2014
Histórico
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Recebido
18 Mar 2013 -
Aceito
14 Fev 2014