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Soberania nacional, patriotismo e identidade brasileira em três monólogos de Francisco Correa Vasques (1860-1865)

National sovereignty, patriotism and Brazilian identity in three monologues by Francisco Correa Vasques (1860-1865)

Resumo:

Partindo do pressuposto de que o teatro foi o principal entretenimento coletivo do século XIX e funcionou como uma caixa de ressonância de questões que mobilizavam a atenção das sociedades em que estava inserido, o texto explora as relações entre teatro, soberania nacional, patriotismo e identidade brasileira, assunto pouco abordado pela historiografia brasileira. São utilizadas como fontes principais três monólogos de autoria do ator e dramaturgo fluminense Francisco Correa Vasques, escritos, publicados e encenados entre 1860 e 1865, e como fontes adicionais textos de outros dramaturgos e notícias publicadas em jornais fluminenses no recorte temporal delimitado.

Palavras-chave:
História; Teatro; Século XIX

Abstract:

Starting from the assumption that theater was the main collective entertainment of the 19th century and functioned as a sounding board for issues that mobilized the attention of the societies in which it was inserted, the text explores the relationships between theater, national sovereignty, patriotism and Brazilian identity, a subject little addressed by Brazilian historiography. Three monologues written by Rio de Janeiro actor and playwright Francisco Correa Vasques, written, published and performed between 1860 and 1865, are used as main sources, and as additional sources texts by other playwrights and news published in Rio de Janeiro newspapers in the delimited time frame.

Keywords:
History; Theater; 19th century

A historiografia brasileira sobre a Guerra do Paraguai vem passando por transformações ao longo do tempo. Se as primeiras interpretações sobre a guerra tiveram um caráter personalista e atribuíram a eclosão do conflito ao perfil considerado ditatorial de Lopez, outra interpretação, que emergiu e ganhou força nos anos 1970, defendeu que a posição imperialista inglesa explicaria o conflito. Uma terceira linhagem de trabalhos, que começou a surgir em 1990, vem enfatizando a importância de considerar outros elementos que ajudam na compreensão do episódio, tais como a dinâmica política e social específica de cada um dos países envolvidos no conflito e as relações de interesses geopolíticos e econômicos que estavam em jogo na bacia do Prata. Os avanços alcançados por esta última vertente historiográfica são fruto de um diálogo travado com outros campos da história, para além da política (notadamente as histórias social e cultural), e pela utilização de fontes e abordagens variadas que têm permitido lançar novos olhares sobre temas já conhecidos e explorar outros (Motta, 1995MOTTA, Carlos Guilherme. História de um silêncio: a guerra contra o Paraguai (1864-1870) 130 anos depois. Estudos Avançados, v. 9, n. 24, p. 243-254, 1995.).

Dentre os temas que passaram a chamar a atenção dos historiadores, um é mencionado por José Murilo de Carvalho no seu Cidadania no Brasil: um longo caminho. Para Carvalho, a Guerra do Paraguai foi o primeiro episódio da história que chamou a atenção e mobilizou a população brasileira:

As guerras são fatores importantes na criação de identidades nacionais. A do Paraguai teve sem dúvida este efeito. Para muitos brasileiros, a ideia de pátria não tinha materialidade, mesmo após a independência. [...] A guerra veio alterar a situação. De repente havia um estrangeiro inimigo que, por oposição, gerava o sentimento de identidade brasileira. São abundantes as indicações do surgimento dessa nova identidade, mesmo que ainda em esboço. Podem-se mencionar a apresentação de milhares de voluntários no início da guerra, a valorização do hino e da bandeira, as canções e poesias populares (Carvalho, 2002CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002., p. 80-81).

De acordo com Christopher Charle (2012CHARLE, Christopher. A gênese da sociedade do espetáculo: teatro em Paris, Berlim, Londres e Viena. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 15-32), por ser o principal entretenimento coletivo das capitais ocidentais do século XIX, o teatro foi capaz de alcançar uma ampla gama de categorias sociais e apresentava uma vantagem em relação ao livro e ao jornal, uma vez que não requeria competência em termos de leitura e atingia um público não alfabetizado. Foi isso que transformou os tablados em “sismógrafos particularmente sensíveis” das transformações e questões prementes das sociedades em que estavam inseridos.

No Brasil este fenômeno começou a tomar corpo no Rio de Janeiro, a partir na segunda metade do século XIX. Ainda que peças que tivessem guerras como fonte de inspiração não fossem uma novidade nos teatros da capital do Império, elas eram traduções de textos franceses, que se inspiravam em conflitos travados por países estrangeiros. Mas nos anos 1860 começaram a aparecer peças de autores brasileiros ou portugueses aqui residentes ou de passagem, tratando da Guerra do Paraguai, tais como Os voluntários da pátria, de Manoel de Araújo Porto Alegre, O veterano da independência ou Os voluntários da Pátria, de João Plácido Martins Vianna e Os voluntários, de Ernesto Cibrão.

Embora as relações entre teatro e guerra fossem uma realidade conhecida dos dramaturgos e audiências brasileiros no século XIX, entre os historiadores elas ainda são um assunto pouco explorado. É em torno dessa questão que se organiza o presente texto no qual procuramos mostrar que a emergência dos sentimentos de identidade brasileira e patriotismo, e da noção de soberania nacional, de que fala José Murilo de Carvalho, foram fruto de um processo que pode ser acompanhado não apenas por meio de canções e poesias populares, mas também pelo teatro produzido, impresso e encenado no Rio de Janeiro entre os anos 1860 e 1865. Para alcançar nossos objetivos, escolhemos como fontes principais três monólogos de autoria do ator e dramaturgo fluminense Francisco Correa Vasques nos quais tais questões aparecem, a saber, Sr. Joaquim da Costa Brasil, A questão anglo-brasileira comentada pelo Sr. Joaquim da Costa Brasil e O Brasil e o Paraguai, e como fontes adicionais peças de outros dramaturgos e notícias publicadas em jornais tratando de teatro e guerra.

Essas três peças já foram analisadas por Andrea Marzano no seu livro Cidade em cena: o ator Vasques, o teatro e o Rio de Janeiro (1839-1892), o que torna necessário apontar o motivo de revisitá-las neste artigo. Tal retomada, que em nada desmerece a interpretação de Marzano, justifica-se pelo fato de acreditarmos que uma análise que privilegie não apenas o texto dramático e busque recuperar, ainda que de forma fragmentária, as reações dos críticos, a interação de efeitos provocados pelas encenações nas audiências e a dimensão comercial do teatro pode contribuir para iluminar zonas opacas dos debates em torno de ideias como soberania nacional, patriotismo e identidade brasileira presentes nessas peças.

Comecemos, então, apresentando o autor desses monólogos.1 1 Todas as informações biográficas sobre o Vasques foram retiradas de Marzano (2012) e Souza (2017a). Vasques foi um mestiço livre, pobre, nascido no Rio de Janeiro em 1839, que recebeu parca educação formal. Ele estudou no Colégio Marinho até os 10 anos, quando foi trabalhar na Alfândega do Rio para ajudar nas despesas da casa, supridas por seu irmão Martinho, ator na companhia dramática de João Caetano, que funcionava no teatro São Pedro de Alcântara. Com 18 anos, Vasques ingressou nessa companhia onde iniciou uma dupla carreira de ator e dramaturgo que durou 35 anos, durante os quais ele fez parte do elenco de várias empresas teatrais e alcançou notabilidade como o ator cômico mais famoso do seu tempo.

Além de ator, Vasques foi folhetinista e dramaturgo. Sua primeira cena cômica foi escrita e encenada em 1858. Muitos dos seus textos teatrais foram publicados em edições baratas, e sua atuação como dramaturgo resultou em mais de sessenta peças teatrais, a maior parte delas explorando um gênero teatral específico, que lhe rendeu o título de “rei das cenas cômicas”.2 2 Cabrião, 8 set. 1867, p. 381. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000033275&bbm/7056page/380/mode/2up. Acesso em: 12 mar. 2023. Algumas de suas peças alcançaram tamanho sucesso de vendagem que permaneceram nos catálogos de algumas livrarias por mais de uma década. Como folhetinista, ele assinou a série “Cenas cômicas” (de outubro de 1883 a julho de 1884), composta por 27 folhetins publicados na Gazeta da Tarde, cujo título sugere a continuidade, na imprensa, do trabalho que ele realizava nos palcos.

Cenas cômicas era o nome dado aos monólogos dramáticos ou cômicos em ato único representados nos intervalos dos espetáculos, entremeados por poesias e músicas de conhecimento público e abordando assuntos que, por meio do humor, chamavam atenção no cotidiano. Por se centrar mais nos efeitos teatrais e na performance do intérprete do que no texto literário, este foi um gênero explorado nos teatros e circos (Silva, 2022SILVA, Ermínia. Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. São Paulo: Itaú Cultural, 2022., p. 63) por pessoas que tinham mais conhecimento da maquinaria do palco do que domínio da palavra escrita. Embora fizessem sucesso junto ao público, as cenas cômicas receberam críticas negativas dos homens de letras brasileiros, sobretudo dos adeptos da estética realista.3 3 O realismo teatral procurou revestir o palco de uma ação utilitária e pedagógica, transformando-o numa espécie de tribuna na qual o espectador era confrontado com uma tese e uma lição que lhe era apresentada pelo dramaturgo por meio de um personagem intitulado raisonneur. Foi essa função didática que levou o realismo a ser considerado um canal de iniciação das sociedades sobre as quais os dramaturgos procuravam intervir. Para o assunto ver Faria (1993). Para eles, o teatro devia ter como finalidade ensinar, doutrinar e educar as plateias, apresentando-lhes exemplos dignificantes a serem seguidos, em vez de sucumbir ao gosto considerado pouco apurado das audiências, supostamente mais voltado para o entretenimento e o riso. Das plateias, por sua vez, as interferências reconhecidas pelos críticos eram os aplausos, se a encenação fosse boa, ou o silêncio, no caso contrário, mas não as pateadas, comuns à época, uma vez que eram desaprovadas por serem vistas como uma manifestação que reafirmava a natureza pouco civilizada das audiências.4 4 Pateada era o ruído que nos teatros se fazia “com os pés ou com as bengalas para mostrar o desagrado a qualquer peça ou a qualquer artista” (Bastos, 1908, p. 110).

Nas suas cenas cômicas, Vasques tratou de assuntos variados, que diziam respeito ao cotidiano da cidade do Rio de Janeiro, e de assuntos mais amplos, como os conflitos em que o Brasil se envolveu com outros países, dentre eles a Guerra do Paraguai.

Nos meses iniciais do conflito na bacia do Prata, não faltaram demonstrações de patriotismo na capital e nas províncias do Império perceptíveis nas letras de poesias, hinos e recitativos, escritos por encomenda ou por iniciativa própria, os quais apelavam para o sentimento de patriotismo da população com o objetivo de incentivar o alistamento de voluntários e arrecadar fundos para a guerra (Chernavsky, 2009CHERNAVSKY, Anália. A construção dos mitos e heróis do Brasil nos hinos esquecidos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2009.; Souza, 2015SOUZA, Silvia Cristina Martins de. “Capenga não forma” e “Corcunda não perfila”: O recrutamento para a Guerra do Paraguai nas letras de lundus, polcas e recitativos. In: BOTELHO, Denilson(org.). História e cultura urbana: a cidade como arena de conflitos. Rio de Janeiro: Multifoco, 2015.).

A concentração dessa produção poética e musical naquele momento tinha uma explicação. Com o início da Guerra do Paraguai tornou-se necessário organizar às pressas um exército regular. A guerra, tal como se podia ler nas páginas do Correio Mercantil, veio “abrir os olhos, até então cerrados a uma das mais vivas necessidades de um país constituído [...] [a] organização de um exército, com que se pudesse contar, dada qualquer emergência que o reclamasse”.5 5 Correio Mercantil, 12 jun. 1868, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/217280/per217280_1868_00162.pdf. Acesso em: 12 mar. 2023. Procurou-se reforçar os efetivos com contingentes da polícia e da Guarda Nacional das províncias, com civis dispostos a empunharem armas e, para tanto, foram criados os Corpos de Voluntários da Pátria pelo Decreto n. 3.371, de 7 de janeiro de 1865. Os termos desse decreto eram claros: ele visava atender “às graves e extraordinárias circunstâncias em que se acha[va] o país, e a urgente e indeclinável necessidade de tomar [...] todas as providências para a sustentação, no exterior, da honra e integridade do Império”.6 6 Decreto n. 3.371, 7 jan. 1865. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-3371-7-janeiro-1865-554492-publicacaooriginal-73111-pe.html. Acesso em: 10 out. 2023.

As formas de preencher o corpo militar eram complexas e foram estabelecidas a partir de três possibilidades: o alistamento voluntário, o engajamento (por meio de contratos por tempo determinado) e o recrutamento. Tanto no Exército quanto na Marinha, adquirir pessoal preparado ou com alguma habilitação foi uma questão difícil de contornar, que provocou polêmica e alimentou muitos atritos e negociações entre as esferas de poder provincial e central (Santos Júnior, 2020SANTOS JÚNIOR, Edilson Nunes dos. Uma “floresta” de conflitos, disputas e negociações: a Capitania do Porto da Corte e da Província do Rio de Janeiro e a sobreposição de jurisdições no processo de centralização administrativa dos portos (1846-1874). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2020., p. 182).

Para incentivar o alistamento, o Decreto n. 3.371 acenou com algumas vantagens, tais como dobrar o soldo normalmente pago aos soldados, indenizar as famílias das vítimas da guerra e disponibilizar gratificações e uma gleba de terra em colônias militares no interior do país para os sobreviventes das batalhas. Essa fase correspondeu ao que Vitor Izecksohn (2004IZECKSOHN, Vitor. Recrutamento militar durante a Guerra do Paraguai. In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (orgs.). Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004., p. 188) denominou primeira onda de recrutamento (dezembro de 1864 a maio de 1865), momento em que o alistamento foi de fato voluntário.

Amplamente divulgado pela imprensa das províncias e do Rio de Janeiro, no afã de atrair voluntários, alguns jornais “enriqueceram” o texto do decreto com palavras tais como: “Os voluntários da pátria terão, além dos mais felizes abonos de uma vida cômoda no futuro, honrosos títulos que os hão de elevar por certo aos olhos da pátria agradecida”.7 7 Jornal do Recife, 13 fev. 1865, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=705110 &pagfis=963. Acesso em: 12 mar. 2023.

Sobre esta primeira onda de recrutamento, Machado de Assis, ele também um mestiço livre e pobre, nos legou suas impressões em um dos folhetins da série “Ao acaso” no qual comentou a estreia do drama Os voluntários, de Ernesto Cibrão, em abril de 1865. Segundo Machado, ainda que não fosse favorável a guerras, tinha que reconhecer que elas eram “uma saída mais honrosa do que a de fazer justiça por nossas mãos”. Como as guerras eram uma realidade, por não se “ter encontrado outra solução para as divergências entre os homens”, só lhe restava avaliar o conflito que estava em curso no Sul. Na visão de Machado, tratava-se de uma guerra legítima, porque estava sendo travada pela independência e pela defesa do país, e a população parecia haver entendido a situação desta mesma forma, pois “o movimento popular crescia dia a dia” e “as fileiras dos voluntários iam se enchendo de patriotas”.8 8 Diário do Rio de Janeiro, 25 abr. 1865, p. 1. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=094 170_02&pasta=ano%20186&pesq=%E2%80%9Cernesto%20cibr%C3%A3o%E2%80%9D&pagfis=19852. Acesso em: 25 jun. 2023. Foi nesse clima de forte entusiasmo que Francisco Correa Vasques escreveu e levou à cena seu monólogo O Brasil e o Paraguai.

Mas antes mesmo da eclosão do conflito com o Paraguai começaram a aparecer peças teatrais explorando assuntos que tinham como fonte de inspiração a soberania nacional e o patriotismo. O momento coincide com a deflagração da Questão Anglo-Brasileira (ou Questão Christie), em 1863. Como alguns contemporâneos fizeram questão de evidenciar na ocasião, num império no qual “o patriotismo não está ainda absorvido”, o “pundonor nacional fez emudecer a voz do interesse do indivíduo” em nome da coletividade, com o estremecimento das relações diplomáticas entre Brasil e Inglaterra.9 9 Correio Mercantil, 25 jun. 1863, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=217280& pasta=ano%20186&pesq=%E2%80%9Co%20patriotismo%20n%C3%A3o%20est%C3%A1%20ainda%20absorvido%E2%80%9D&pagfis=22052. Acesso em: 20 mar. 2023. Houve mesmo quem afirmasse que “nenhum bom brasileiro pode cruzar os braços diante de um insulto feito aos brios da sua própria nação”.10 10 Constitucional, 9 abr. 1863, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=235709&pasta =ano%20186&pesq=%22insulto%20feito%20aos%20brios%20da%20sua%20pr%C3%B3pria%20na%C3%A7%C3%A3o%E2%80%9D&pagfis=902. Acesso em: 20 mar. 2023.

No calor da Questão Anglo-Brasileira, dois teatros procuraram levar à cena peças que remetiam a esse episódio: o Alcazar Lírico e o Ginásio Dramático. As duas peças foram enviadas para avaliação do Conservatório Dramático Brasileiro, órgão oficial de censura teatral do império. A peça submetida pelo Alcazar, intitulada La Question Anglo-Bresilliènne, escrita por Louis de Nerciat, teve o pedido de liberação para encenação indeferido pelos censores que alegaram que de forma alguma poder-se-ia tirar partido em cena “de situações melindrosas que se não desagradavam com o socorro de motejos”.11 11 Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Conservatório Dramático Brasileiro - I-08,20,086. A outra peça - A questão anglo-brasileira comentada pelo Sr. Joaquim da Costa Brasil -, de autoria do Vasques, foi aprovada pela censura e estreou no Ginásio em 24 de janeiro de 1863VASQUES, Francisco Correa de. A questão anglo-brasileira comentada pelo Sr. Joaquim da Cista Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Popular de Azeredo Leite, 1863.. Os censores sublinharam ser ela digna de subir aos tablados por tratar de uma questão séria utilizando-se do tom grave que a situação requeria, o que permite perceber que o monólogo do Vasques se enquadrava no que se convencionou chamar, naquele período, “cenas patrióticas”, uma designação que servia para demonstrar não apenas uma posição política explícita, como também para demarcar a diferença entre elas e as cenas cômicas, por tratarem de assuntos graves sem utilização dos recursos do humor comuns a estas últimas.

Do anúncio da récita da estreia dessa cena patriótica do Vasques constava o Hino de voluntários, poesia de Machado de Assis e música de Júlio José Nunes, especialmente escrito para a ocasião, e a declamação de um poema na cena final, que seria recitado enquanto era hasteada a bandeira nacional. A peça foi bem recebida pelas audiências, e três dias após a estreia, a Semana Illustrada reproduziu os versos declamados nas suas páginas:

O BRASIL
Sentinela do seu povo...
Há de seus brios guardar;
Perante razões de fogo,
Não quer torcer, quer quebrar.
Conheçam se for preciso,
Que o combate nos seduz,
É tempo de já mostrar,
Que há bravos em Santa Cruz.
Sempre firmes... cortaremos
Dos bretões qualquer ardil!
Não recua quem defende,
Pedro Segundo e o Brasil!
Que importa deixar a vida
Lá no campo de batalha?!...
Se pelo Brasil morremos
Aqui está nossa mortalha!12 12 Semana Illustrada, 25 jan. 1863, p. 382. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/702951/per702951_1863_00112.pdf. Acesso em: 20 mar. 2023.

Patriotismo e soberania nacional foram assuntos também presentes em O Brasil e o Paraguai, que estreou em 4 de março de 1865, também no teatro Ginásio. Dois dias após a estreia, o Correio Mercantil registrou que

o artista do teatro Ginásio, o Sr. Francisco Correa Vasques, sai hoje pelas ruas da cidade a vender os exemplares da sua graciosa cena patriótica - O Brasil e o Paraguai.

Todo o produto dessa venda é oferecido pelo ator ao governo, como auxílio às despesas da guerra.13 13 Correio Mercantil, 6 mar. 1865, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=217280& pasta=ano%20186&pesq=%E2%80%9Cauxilio%20%C3%A0s%20despesas%20da%20guerra%22&pagfis=24505. Acesso em: 20 mar. 2023.

Na Semana Illustrada, uma nota também ressaltou que o Vasques mandara imprimir dois mil exemplares do texto do monólogo, que pretendia vender de porta em porta. Parabenizou-se o dramaturgo pela “felicíssima lembrança” de reverter o produto das vendas para despesas da guerra e incentivou-se os leitores a adquirirem seus exemplares: “Quem não comprará um exemplar do belo trabalho dramático do predileto ator e infatigável autor?”14 14 Semana Illustrada, 5 mar. 1865, p. 1765. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/702951/per702951_1865_00221.pdf. Acesso em: 20 mar. 2023.

Impressas em brochuras baratas, vendidas em livrarias, por vendedores ambulantes ou pelos próprios autores de porta em porta por preços que variavam de quatrocentos a mil réis, essas edições eram muito comuns na ocasião e atingiam um amplo público.15 15 Para que se tenha uma ideia aproximada do preço de tais edições poderíamos mencionar que um carroceiro ganhava por dia 1.120 réis; um mestre carpinteiro, três mil réis e um carpinteiro, quinhentos réis. Eram textos que obedeciam a regras próprias à transmissão oral e comunitária, compostos tanto para serem lidos individualmente quanto para serem ouvidos em leituras em voz alta, vislumbrando um tipo de leitura denominada intensiva. Nessa concepção, para que uma peça teatral encontrasse ressonância, ela dependia do espectador para estabelecer as associações necessárias entre o texto e seu referente, o que significa dizer que, além de valorizarem a participação das audiências, aqueles impressos possibilitavam a rememoração do que havia sido visto nos teatros (Souza, 2017bSOUZA, Silvia Cristina Martins de Souza. Um “sistema telefônico” aplicado à composição teatral: dramaturgia e práticas teatrais no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Antíteses, v. 10, n. 19, p. 41-63, 2017b.). Diante disso, pode-se dizer que a representação das peças funcionava como uma espécie de propaganda para a venda dos impressos e vice-versa.

Embora já fosse de conhecimento da população do Rio de Janeiro que a cada peça escrita Vasques mandasse imprimir o texto para vendê-lo, no contexto da Guerra do Paraguai, destinar a quantia arrecadada às necessidades da guerra sem dúvida lhe rendeu simpatias da imprensa e das audiências, tanto que a Semana Illustrada mencionou que Vasques estava sendo “esmagado pela generosidade dos brasileiros” e publicou uma imagem do dramaturgo vendendo os exemplares do seu monólogo de porta em porta.

Figura 1
Disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/702951/per702951_1865_00223.pdf

Do anúncio de O Brasil e o Paraguai constava que o espetáculo seria composto pela recitação do poema A cólera do Império, de Machado de Assis, e seria apresentado um quadro alegórico no final da apresentação denominado “O Brasil esmagando o Paraguai”, enquanto era tocado o Hino dos voluntários, de autoria de Furtado Coelho, empresário do teatro Ginásio.16 16 Correio Mercantil, 8 maio 1865, p. 4. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=217280 &pasta=ano%20186&pesq=%E2%80%9Cauxilio%20%C3%A0s%20despesas%20da%20guerra%22&pagfis=24751. Acesso em: 20 mar. 2023.

Ainda que a presença das palavras patriotismo e voluntários nos anúncios das récitas e nos textos teatrais fosse recorrente naqueles tempos, em A questão anglo-brasileira comentada pelo Sr. Joaquim da Costa Brasil e O Brasil e o Paraguai, tal presença é um ponto que merece ser sublinhado. E isso porque ele sugere uma continuidade temática entre as duas peças, embora em 1865 tais palavras estivessem revestidas de uma força simbólica maior, na medida em que se tratava de uma guerra em andamento e não de uma questão diplomática entre dois países que, apesar de ter demonstrado a possibilidade da iminência de um conflito maior, foi resolvida de forma pacífica dois anos depois.

O tema da soberania nacional, que permeia esses dois monólogos, também aparece em um outro do mesmo dramaturgo - O senhor Joaquim da Costa Brasil - publicado e encenado em julho de 1860.

Tais recorrências temáticas impõem uma questão: do que afinal tratavam esses três textos? Quanto aos temas abordados, os títulos de dois deles são explícitos. Em A questão anglo-brasileira comentada pelo Sr. Joaquim da Costa Brasil (1863), o enredo gira em torno da ruptura das relações diplomáticas entre Brasil e Inglaterra, em 1862, quando o diplomata plenipotenciário William Dougal Christie ordenou o apresamento de 12 navios brasileiros no porto do Rio após o naufrágio de uma embarcação inglesa na costa do Rio Grande do Sul, seguido da morte de alguns tripulantes, do saque da carga e da prisão de oficiais ingleses no Rio de Janeiro. Christie agiu em represália ao que considerava negligência e afronta das autoridades brasileiras face às ofensas sofridas pela Inglaterra e, diante das posições irredutíveis de ambas as partes, Pedro II rompeu as relações diplomáticas com este país, que só foram retomadas durante a Guerra do Paraguai. Em O Brasil e o Paraguai (1865), foi a guerra com o Paraguai a fonte de inspiração do Vasques. Muito embora as tensões em torno da navegação na bacia platina e a hegemonia da região fossem antigas entre os quatro países que nela dividiam fronteiras, foi em 1864 que eles se envolveram num conflito armado que durou seis anos e ficou conhecido como Guerra do Paraguai, Guerra da Tríplice Aliança ou Guerra Guaçu. Já O senhor Joaquim da Costa Brasil (1860), escrita antes das duas anteriores, é um monólogo de claro teor ufanista em que o Brasil é personificado como um indivíduo portador de grandes riquezas, que se defronta cotidianamente com dois vizinhos incômodos - uma velha inglesa egoísta e um francês oportunista -, os quais tentam a todo custo tirar proveito de sua situação privilegiada.

Nos três monólogos, o Sr. Brasil é o personagem principal, e os três foram escritos em uma linguagem simples, para ser entendida por qualquer um, pois era na encenação, com a performance do intérprete, que o texto se completava, como já dito. A presença de um mesmo personagem nas três peças fazia parte de uma tecnicalidade das cenas cômicas. De acordo com os padrões da época, para esse tipo de peças, a originalidade era menos importante do que a retomada de temas e títulos que relembrassem sucessos já alcançados (Souza, 2017bSOUZA, Silvia Cristina Martins de Souza. Um “sistema telefônico” aplicado à composição teatral: dramaturgia e práticas teatrais no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Antíteses, v. 10, n. 19, p. 41-63, 2017b.).17 17 Vasques foi um dos dramaturgos que explorou essa prática. Cito aqui alguns títulos de peças que reforçam o que vem sendo dito, à título de exemplificação: O Vasques pelos ares, O Vasques em Maxambomba, O Vasques perseguido por um inglês e O Graça e o Vasques. Tratava-se, portanto, de um tipo de produção dramática, em alguns aspectos repetitiva, em função dessa particularidade.

No caso dos três monólogos do Vasques, essa retomada ocorre alternadamente por meio do uso de um mesmo personagem, nos títulos e na repetição na íntegra de algumas partes dos textos. Mas, é preciso que se diga, não se tratava de uma simples adaptação de um texto ao outro, porque adaptação era palavra que tinha um significado específico na dramaturgia oitocentista. De acordo com Antônio de Souza Bastos (1908BASTOS, Antônio de Souza. Dicionário do teatro português. Lisboa: Imprensa Libânio de Silva, 1908., p. 1), adaptação era o nome dado ao trabalho de acomodar à língua, hábitos e costumes de um país a uma peça que foi escrita em outro e “Para se dar rigorosamente o nome de adaptação a uma peça, é necessário que tenha sofrido modificações importantes, já no desenvolvimento da ação, já no caráter dos personagens, já na construção da frase”. Tratava-se, portanto, de uma continuidade temática explorada por um dramaturgo que dominava tal gênero teatral, estabelecia correlações entre os episódios aos quais se remetia nas suas peças e tinha intenções políticas ao produzir seus monólogos.18 18 Em função dessa singularidade, discordamos de Andrea Marzano (2008, p. 52), quando ela afirma que se tratava de uma adaptação de uma peça à outra.

Essa continuidade ajuda a entender certas visões e representações sobre alguns temas que aparecem nos três monólogos, dentre eles o da soberania nacional. Mas, ainda que a ligação seja perceptível, não se pode deixar de observar dois pontos importantes. O primeiro deles é que em A questão anglo-brasileira comentada pelo Sr. Joaquim da Costa Brasil e O Brasil e o Paraguai existe uma clara alusão a Portugal, pois o Sr. Brasil é em ambos apresentado como filho deste país e os dois povos definidos como irmãos e amigos. Creio que, se isso em parte pode ser explicado pelo fato de que, nos anos 1860, as tensas relações com a ex-metrópole como entrave a ser superado foram provisoriamente substituídas pelo estremecimento das relações com a Inglaterra (Marzano, 2008MARZANO, Andrea. Cidade em cena: o ator Vasques, o teatro e o Rio de Janeiro (1889-1892). Rio de Janeiro: Folha Seca, 2008., p. 154), a explicação não se esgota aí. O que procuramos sublinhar é que é preciso considerar, na contramão dos discursos de muitos dos homens de letras da época, que, para além de arte, o teatro é também indústria e comércio (Balme, 2016BALME, Christopher. Histórias globais do teatro: modernização, esferas públicas e redes teatrais. In: WERNECK, Maria Helena; REIS, Ângela de Castro(orgs.). Rotas de teatro entre Portugal e Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016., p. 13), e que, para que melhor se entenda a repercussão desses monólogos, deve-se levar em conta um elemento do fenômeno teatral que fica obscurecido se as análises se restringem aos textos dramáticos. Refiro-me às relações estabelecidas entre ator e público, no caso do Vasques, mais especificamente com uma parcela do seu público cativo: os caixeiros.

Em 1855, Vasques trabalhou com o ator Florindo quando este estabeleceu sua companhia no Teatro de São Januário. Nesse teatro, Vasques começou a oferecer espetáculos vespertinos aos domingos voltados para a autodenominada “classe caixeiral” ou “corpo caixeiral”, majoritariamente formada por jovens portugueses trabalhadores no comércio. Vasques encontrou nos caixeiros uma plateia fiel que passou a tomar assento no Teatro Ginásio Dramático quando ele se incorporou ao elenco daquela casa. E ele retribuiu à caixeirada com a mesma lealdade ao representar peças que falavam da situação de precariedade por eles vivenciada no trabalho, engrossando o coro dos que apoiavam o movimento conhecido como Fechamento das Portas, iniciado em meados dos anos 1850, por meio do qual os caixeiros lutaram por melhores condições laborais, jornadas de trabalho com horários definidos e descanso semanal nos feriados e dias santos (Popinigis, 2016POPINIGIS, Fabiane. “Todas as liberdades são irmãs”: os caixeiros e as lutas dos trabalhadores por direitos entre o Império e a República. Estudos Históricos, v. 29, n. 59, p. 647-666, 2016.). Visto desse ângulo, a composição do personagem Sr. Brasil como filho de Portugal em O Brasil e o Paraguai e em A questão anglo-brasileira comentada pelo Sr. Joaquim da Costa Brasil pode ser também entendida como uma estratégia utilizada pelo dramaturgo para agradar e garantir a presença de uma parcela da plateia com a qual já contava, o que se revertia em bilheteria. Desta dimensão comercial do teatro, muitos contemporâneos tinham consciência, tanto que houve quem insinuasse que Vasques embolsara a quantia arrecadada com a venda dos exemplares de O Brasil e o Paraguai em vez de dar-lhe o destino que anteriormente manifestara (Souza, 2015SOUZA, Silvia Cristina Martins de. “Capenga não forma” e “Corcunda não perfila”: O recrutamento para a Guerra do Paraguai nas letras de lundus, polcas e recitativos. In: BOTELHO, Denilson(org.). História e cultura urbana: a cidade como arena de conflitos. Rio de Janeiro: Multifoco, 2015., p. 50). Reais ou não, importa destacar nessas palavras a presença de algo que já vem sendo explorado por alguns historiadores: a de que a guerra serviu a todo tipo de demanda privada e que atos patrióticos “muitas vezes escondiam vontades ou demandas particulares” concretas a ponto de esta oposição de interesses emergir até mesmo em documentos oficiais (Balaban, 2009aBALABAN, Marcelo. “Voluntários involuntários”: o recrutamento para a Guerra do Paraguai nas imagens da imprensa ilustrada brasileira do século XIX. Revista Mundos do Trabalho, v. 1, n. 2, p. 221-256, 2009a., p. 225-226).

É digna de nota, também, uma mudança de perspectiva do dramaturgo se compararmos os versos finais de A questão anglo-brasileira comentada pelo Sr. Joaquim da Costa Brasil e a dedicatória de O Brasil e o Paraguai. Se os versos da primeira diziam “Não recua quem defende/Pedro Segundo e o Brasil!”, a dedicatória da segunda, que reproduzimos a seguir, era endereçada aos voluntários da pátria, sem contar que em nenhum momento do texto é mencionado o nome do imperador:

Aos defensores da pátria.

O grupo que se ergue como um só homem para vingar a honra Nacional, essa muralha brasileira que desaba sobre os assassinos, como as paredes de Babel sobre os filhos de Noé, merecia outro preito. Esta cena nascida unicamente do entusiasmo, é pouco, para oferecer a tão bravos campeões, cujos feitos me asseveram que a marcha continuará com o mesmo vigor enquanto existir o Herodes do Paraguai, o moderno degolador de inocentes (Vasques, 1865VASQUES, Francisco Correa de. O Brasil e o Paraguai. Rio de Janeiro: Tipografia Popular de Azeredo Leite , 1865., s.p.).

Os destinatários da peça do Vasques - os “bravos campeões” - eram os homens comuns que se alistavam como voluntários nas fileiras do Exército, e não Pedro II. E este é um ponto importante porque, ainda que os corpos de voluntários fossem socialmente heterogêneos, neles predominavam as parcelas pobres e remediadas da população, com as quais o próprio Vasques se identificava, por dela fazer parte e na qual ele fora requisitado para compor o primeiro batalhão da Guarda Nacional da Freguesia do Santíssimo Sacramento na juventude. Se levarmos esse elemento em consideração, torna-se possível sugerir que a dedicatória é um indicativo da sintonia do dramaturgo com pessoas que faziam parte de segmentos sociais semelhantes ao seu, às quais ele procurava atingir com seus monólogos. Tratava-se, portanto, de convencer potenciais voluntários, uma vez que o medo de servir era grande e os resultados pretendidos com o Decreto n. 3.371 não haviam sido alcançados, pois ele se demonstrara ineficiente para angariar um número razoável de homens para lutar na guerra (Balaban, 2009bBALABAN, Marcelo. Poeta do lápis: sátira e política na trajetória de Ângelo Agostini no Brasil imperial (1864-1888). Campinas: Unicamp, 2009b., p. 122) o que, no entanto, não é contraditório com as convicções monarquistas do dramaturgo e seu apreço pelo imperador, os quais Vasques fez questão de explicitar em várias ocasiões, antes e depois da guerra.

Diferente de Vasques, por exemplo, Manuel de Araújo Porto Alegre escreveu um monólogo intitulado Os voluntários da pátria (1866), por ele dedicado ao visconde do Rio Branco, no qual celebra o Passo da Pátria e heroifica o general Osório (Porto Alegre, 1877PORTO ALEGRE, Manuel de Araújo. Os voluntários da pátria. Lisboa: Imprensa Nacional, 1877., p. 16). O veterano da independência ou Os voluntários da pátria, de João Plácido Martins Vianna, escrita para angariar fundos para o Asilo dos Inválidos da Pátria (Vianna, 1866VIANNA, João Plácido Martins. O veterano da independência ou Os voluntários da Pátria. Rio de Janeiro: Tipografia Econômica de Jacinto José Pontes, 1866., p. 6), que, ao que parece, nunca foi encenada, e, apesar de mencionar os voluntários no título, era um texto de exaltação explícita ao imperador, aos generais brasileiros e à família imperial. Os voluntários, de Ernesto Cibrão foi elogiada pela crítica pelo sentimento patriótico que inspirava,19 19 Revista Mensal da Sociedade Ensaios Literários, 1 maio 1865, p. 484. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=338966&pesq=&pagfis=976. Acesso em: 20 mar. 2023. mas, a julgar por alguns comentários publicados nos jornais, para sua boa recepção parece ter contado mais o fato de Cibrão ser português, como sugere uma pequena nota assinada por “Um verdadeiro português”, no Jornal do Commercio, que conclamava seus conterrâneos a festejarem o dramaturgo lusitano indo ao Ginásio erguer seus “braços ao lado dos filhos deste belo país”.20 20 Jornal do Commercio, 20 abr. 1865, p. 1. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=364568_ 05&pasta=ano%20186&pesq=%E2%80%9Cernesto%20cibr%C3%A3o%22&pagfis=8493. Acesso em: 28 mar. 2023.

Quando teve início a segunda fase do recrutamento (maio a setembro de 1865), que atingiu escravos, libertos e homens livres, mas particularmente assombrou a mente da maioria dos homens livres pobres, o clima já era outro, pois foi o alistamento, à época considerado forçado, que passou a ser o meio mais utilizado para preencher as forças de guerra.

As especificações relativas aos isentos do recrutamento tomaram como base a Instrução de 10 de julho de 1822, que foi emendada e reajustada várias vezes, impondo numerosas restrições e isenções adicionais até chegar-se aos termos da lei n. 2.556, de 26 de setembro de 1874. No início da guerra, o recrutamento atingiu “os homens brancos e pardos solteiros, entre 18 e 35 anos de idade, que não gozassem nenhuma isenção legal”, mas em pouco tempo novas regras foram definidas para Exército e Armada. Dentre elas constava que o recrutamento deveria ser realizado por sorteio entre os alistados anualmente e dele estariam isentos, dentre outros, os que tivessem algum “defeito físico”, graduados, estudantes, eclesiásticos, os que amparassem e alimentassem irmã solteira, honesta ou viúva, os filhos únicos de viúva, viúvos que alimentassem filhos e aqueles que pagassem “contribuição pecuniária ou apresentassem substitutos” (Kraay, 1999KRAAY, Hendrik. Repensando o recrutamento militar no Brasil imperial. Diálogos, v. 3, n. 3, p. 113-151, 1999., p. 137). Além disso, as fileiras do Exército passaram a ser cada vez mais alimentadas por escravos, embora houvesse uma noção consensual de que o escravo não podia ser recrutado nem servir o Exército, noção que era abandonada em períodos de guerras, mas, em tais situações, os governos procuravam manter cautela (p. 3). A decisão prevendo a libertação de escravos para serem incorporados às fileiras do Exército foi adotada em 1866, mas, por violar o direito de propriedade garantido pela Constituição e temendo-se que provocasse repercussões junto às senzalas, a lei foi condicionada a dois fatores: o direito de posse do proprietário e a obrigatoriedade de prestação de serviço militar por parte do cativo (Izecksohn, 2004IZECKSOHN, Vitor. Recrutamento militar durante a Guerra do Paraguai. In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (orgs.). Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004., p. 197-198). Ficou estabelecido que os escravos que servissem o Exército ganhariam a liberdade, e os proprietários que libertassem seus escravos para esse fim seriam recompensados com títulos de nobreza. Vê-se, assim, que as regras de recrutamento levavam em conta a hierarquia social.

Se, nos anos iniciais da guerra, os leitores dos jornais podiam acompanhar as descrições das batalhas, os deslocamentos das tropas aliadas e as ações dos governos argentino e brasileiro nas operações de guerra, não demorou muito para que, ao lado dessas notícias, denúncias de ilegalidade no recrutamento começassem a encher

as páginas dos diários e semanários. Grande incerteza pairava no ar. Foram dias vividos intensamente. Em meio às constantes e crescentes demandas de praças para lutar no Sul, o empenho das autoridades locais em cumprir as ordens recebidas, muitas vezes em tom de ameaça, estancavam diante de fugas para o mato, da lei que concedia isenções a muitos cidadãos e da própria existência da escravidão, vista por vezes como um incômodo limite à ação do Estado em tempos de guerra (Balaban, 2009aBALABAN, Marcelo. “Voluntários involuntários”: o recrutamento para a Guerra do Paraguai nas imagens da imprensa ilustrada brasileira do século XIX. Revista Mundos do Trabalho, v. 1, n. 2, p. 221-256, 2009a., p. 246).

Além disso, os jornais publicavam longas relações dos nomes dos que morriam em combate longe dos seus, bem como circulavam notícias pelas ruas da cidade de que os voluntários tinham que comprar os próprios uniformes (até o comando de Caxias, não havia regularidade na concessão da farda militar); que eles empregavam parte do soldo para a compra de rações diárias, muitas vezes insuficientes nos acampamentos; e pela constatação de que atos de bravura nem sempre eram recompensados com promoções. Tudo isso levou a população a assumir uma atitude cada vez mais refratária aos apelos de patriotismo.

Na segunda fase de alistamento, Vasques não escreveu nem encenou nenhuma peça que tivesse a guerra, o patriotismo ou a soberania nacional como temas. Aliás, as peças tratando da guerra tornaram-se raras nesse período. Dentre os poucos títulos localizados na pesquisa destacamos A glória da Marinha brasileira no combate de Riachuelo, um “episódio marítimo” escrito pelo ator Pimentel, por ele oferecido à Marinha brasileira.21 21 Correio Mercantil, 13 ago. 1865, p. 4. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=21728 0&Pesq=%e2%80%9cauxilio%20%c3%a0s%20despesas%20da%20guerra%22&pagfis=25135. Acesso em: 28 mar. 2023. A peça foi bem recebida pelas audiências, mas mais pelo fato de a montagem ter sido feita com grande aparato e não se haver poupado nada para “fazer completa a ilusão e tornar brilhante o espetáculo”.22 22 Pela descrição do jornal, tratava-se do que se convencionou chamar drama marítimo ou drama aparatoso no século XIX, isto é, uma peça inspirada em um caso verídico recente, realizada a partir de uma arte complexa que incluía “a construção, o preparo e colocação das vistas, a execução e a manobra dos trucs (ilusão), a confecção dos praticáveis, o movimento dos alçapões, as aparições, as mudanças repentinas de hiatos, as transformações; em uma palavra, a organização e execução de tudo o que concorre para a ação cênica sob o ponto de vista material e decorativo” (Bastos, 1908, p. 88). A montagem atingiu seu objetivo se considerarmos que, ao final da encenação, a ficção deu lugar à realidade com o público subindo ao palco se misturando com os atores.23 23 Semana Illustrada, 6 ago. 1865, p. 1.937. Disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/702951/per702951_1865_00243.pdf. Acesso em: 28 mar. 2023. Diante desse sucesso, o autor mandou imprimir o texto para vendê-lo. Ou seja, na medida em que a guerra avançava, os limites entre demandas particulares e ações patrióticas pareciam ir se tornando cada vez mais tênues, e no duplo imperativo que impulsionava o teatro - comércio e ideia -, o aspecto comercial parecia cada dia ganhar mais força.

No conto Um capitão de voluntários, escrito em 1906FARIA, João Roberto. O tetro realista no Brasil (1855-1865). São Paulo: Perspectiva, 1993., mas cuja história se passa em 1866, Machado de Assis faria o personagem X dizer ao amigo Simão, antes de embarcar para a guerra onde morreria em combate:

a guerra do Paraguai, não digo que não seja como todas as guerras, mas, palavra, não me entusiasma. A princípio, sim, quando López tomou o Marquês de Olinda, fiquei indignado; logo depois perdi a impressão, e agora, francamente, acho que tínhamos feito muito melhor se nos aliássemos ao López contra os argentinos! (Assis, 2008aASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008a., p. 659).

É sintomático que Machado, que chegara a compor poemas para serem recitados em espetáculos de claro teor patriótico no início da guerra, tenha ambientado seu conto em 1866, quando começou a fase mais difícil da campanha, em que os arroubos patrióticos já não encontravam ressonância junto à população; o voluntariado para as forças de terra e de mar tinha se reduzido significativamente, e as opiniões em relação à guerra começaram a sofrer mudanças e a deixar de entusiasmar.

De forma semelhante, a Semana Illustrada diria, que embora o conflito com o Paraguai fosse assunto presente em todos os jornais da Corte,

A guerra é um mau brinquedo.
A guerra é um mau jogo.
A guerra é uma briga de lobos.
Quem nela fica logrado, é escarnecido.
Quem se deixa vencer, fica perdido.
A questão é simples. Quem não devora é devorado.

Nestes termos já sabe o país em que calças pardas está metido.24 24 Semana Illustrada, 6 ago. 1865, p. 1937. Disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/702951/per702951_1865_00243.pdf. Acesso em: 28 mar. 2023.

O que Machado de Assis e outros contemporâneos registravam era uma mudança de postura em relação à guerra. Neste novo contexto, a violência do recrutamento e as condições precárias do serviço militar se abateram sobre uma parte específica da população, aquela mais pobre, de cor de pele escura, que não tinha como comprar um substituto para enviar aos campos de combate em seu lugar e que estava “fora das redes de sociabilidade política locais, que ora conseguia a isenção do serviço, ora ajudava-o, aprisionando desafetos e enviando-os para as autoridades responsáveis” (Santos Júnior, 2020, p. 205). A palavra voluntário, por sua vez, perdeu o significado anterior, e o recrutamento forçado passou a servir de fonte de inspiração para recitativos, poesias, letras de canções e charges nos quais voluntário passou a ser um termo utilizado no sentido de galhofa (Balaban, 2009aBALABAN, Marcelo. “Voluntários involuntários”: o recrutamento para a Guerra do Paraguai nas imagens da imprensa ilustrada brasileira do século XIX. Revista Mundos do Trabalho, v. 1, n. 2, p. 221-256, 2009a., p. 246).

De volta aos monólogos do Vasques e às observações que foram elaboradas sobre eles ao longo do texto, o que poderíamos ressaltar à guisa de considerações finais? Parece ser possível afirmar, embora seja impossível medir o real alcance que eles tiveram junto a espectadores e leitores, que alguma parcela daquelas demonstrações de amor à pátria e de pertencimento à nação deve ser creditada a esses monólogos, assim como a outras peças similares encenadas naquele contexto. Creio também que a percepção que Vasques e outros contemporâneos tinham de que desde a Questão Christie havia um estímulo à participação popular e ao patriotismo, que foi potencializado com a eclosão da Guerra do Paraguai, é um elemento relevante.

Mas outros elementos também merecem ser sublinhados. O primeiro deles é a participação de homens livres pobres mestiços nos dois espaços de comunicação mais significativos no século XIX - o tablado e a imprensa -, o que nos remete a dois personagens recorrentes no texto: Vasques, o “rei das cenas cômicas”, e Machado de Assis, um jornalista que iniciava uma carreira profícua de crítico teatral e literário naquele contexto, ou seja, ambos indivíduos com inserção nos meios culturais da Corte.25 25 Vasques, como já dito, foi folhetinista da Gazeta da Tarde, jornal abolicionista, no início dos anos 1880 e, até essa década, foi no teatro que ele atuou. Machado de Assis colaborou, nos anos 1860, no Diário do Rio, um jornal de tendência liberal. Nesse período, Machado escreveu sete peças de teatro, mas nenhuma delas remetia à Guerra do Paraguai. Chama atenção, porém, que não se tenha notícias de contato mais próximo entre eles, apesar de alguns versos de Machado terem sido declamados em récitas nas quais peças do Vasques foram encenadas, o que nos leva a pensar que, em ocasiões como essas, eles podem até ter se encontrado e trocado algumas palavras. De concreto sabe-se que Machado tinha restrições à dramaturgia produzida por Vasques, embora reconhecesse sua vocação de ator (Souza, 2017aSOUZA, Silvia Cristina Martins de Souza. Carpinteiros teatrais, cenas cômicas e diversidade cultural no Rio de Janeiro oitocentista: ensaios de história social da cultura. Londrina: Eduel, 2017a., p. 62). Se, em parte, essa pouca simpatia estava relacionada ao gênero teatral mais explorado por Vasques, que Machado e outros homens de letras adeptos da escola realista denominavam “bastardo”, um outro elemento deve ser considerado. Numa crônica escrita em 1861, em que reivindicava a criação de uma escola normal de teatro pelo governo imperial, Machado condenou a aplicação do princípio da lei da oferta e da procura em arte ao afirmar: “Não, o teatro não é indústria, como diz a opinião a que me refiro; não nivelemos assim as ideias e as mercadorias”.26 26 Diário do Rio de Janeiro, 16 dez. 1861, p. 1. Para Machado, ao se render a tal princípio, passava a imperar no teatro o mau gosto e a conspurcação da arte. Em função disso, a dimensão de apelo comercial que estreitou as relações entre tablado e edição de brochuras baratas, bastante explorada por Vasques e outros dramaturgos pouco considerados pela crítica, foi recorrentemente desaprovada por Machado e vários homens de letras brasileiros do século XIX, que tenderam a associar os produtos culturais que saíam de suas mãos a uma suposta ausência de qualidade artística e incapacidade criativa de seus autores. Mas pelo menos um ponto de aproximação pode-se identificar entre Machado e Vasques, e ele diz respeito à Guerra do Paraguai: suas visões de patriotismo, soberania nacional e identidade brasileira estavam informadas pela posição que ocupavam naquela sociedade. Os conflitos vivenciados por homens livres pobres que combateram na guerra, quando se passou a constatar que as relações pessoais funcionavam como instrumento de controle social e que o incitamento ao patriotismo não passava de uma retórica para cooptar combatentes os quais, satisfeitos os interesses da ocasião, voltavam a ser tratados com a altivez e o desprezo de costume (Sousa, 1996SOUSA, Jorge Prata. Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Mauad, 1996., p. 57), foi algo que parece ter calado fundo nos dois, que se valeram dos periódicos e dos tablados para veicularem representações construídas a propósito de questões caras ao cotidiano de pessoas de origens sociais semelhantes às suas.27 27 Uma análise aprofundada sobre a inserção desses dois personagens na imprensa extrapola os limites deste artigo. Para nossos objetivos basta lembramos que, apesar de já existir uma imprensa negra na ocasião (Pinto, 2005), os periódicos em que Vasques e Machado atuaram não eram dessa natureza. O que procuramos ressaltar em relação a esses dois personagens é que, por ocasião da Guerra do Paraguai, eles se valeram da dramaturgia e do jornalismo para dialogar com as tensões políticas do seu tempo e para registrar seus entendimentos próprios, visões e anseios sobre a integração e o processo de construção identitária de homens livres descendentes de africanos na sociedade brasileira. Vasques, como dito anteriormente, foi folhetinista da Gazeta da Tarde, de José do Patrocínio, mas, nos anos 1880, duas décadas depois de escrever e encenar as três cenas cômicas aqui abordadas, nesse periódico, ele se engajou na campanha abolicionista. Sua única inserção no jornalismo, porém, foi criticada por considerar-se que sua parca educação formal o incapacitava a exercer tal função. José do Patrocínio, no entanto, o convidou para folhetinista do seu jornal por conta da simpatia pública de que ele desfrutava como dramaturgo e ator (Gazeta da Tarde, 13 nov. 1883, p. 1. Disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/226688/per226688_1883_00267.pdf. Acesso em: 20 dez. 2023). Nos anos 1860, Machado de Assis, ainda um estreante nas letras e após uma passagem como revisor de provas (1854) d’A Marmota, de Paula Brito, ingressou no Diário do Rio, um jornal de tendência liberal, a convite de Quintino Bocaiúva, assinando as “Ao Acaso. Crônicas da Semana”. Nesse período, também, ele escreveu suas primeiras peças de teatro e traduziu outras tantas. Se Machado registrou esse sentimento no seu conto e deixou de compor versos conclamando voluntários a se engajarem nas fileiras do exército, Vasques não apenas deixou de escrever monólogos de teor patriótico como, anos mais tarde, foi ainda mais contundente ao expressar seus sentimentos num folhetim da sua série “Cenas Cômicas” na qual diria:

Nascido nesta terra, brasileiro de quatro costados, guarda nacional do primeiro batalhão da Freguesia do Santíssimo Sacramento [...] durante seis anos, não sou hoje qualificado, não tenho foros de cidadão.

A incerteza de minha renda anual e o pouco conhecimento da minha individualidade deram causa para que não obtivesse o meu diploma, carta ou o que quer que é para exercer o meu direito nas urnas eleitorais.28 28 Gazeta da Tarde, 25 out. 1883, p. 1. Disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/226688/per226688_1883_00250.pdf. Acesso em: 28 mar. 2023.

Nesse texto, escrito dois anos depois de entrar em vigor a Lei Saraiva (1881), que pôs fim a uma etapa de participação formal das populações mais pobres do país no sistema político do império, Vasques expressava o desapontamento experimentado por homens livres pobres que, a despeito dos serviços prestados à pátria, não eram reconhecidos como cidadãos e não encontravam lugar numa sociedade que tinha a escravidão como instituição que informava as relações sociais, cujas contradições a guerra explicitou ainda mais.

Um segundo elemento digno de nota é o silenciamento perceptível na documentação em relação a um certo ideário popular, tantas vezes aqui mencionado. A comemoração ocorrida em 10 de julho de 1870 nunca mais se repetiu, e a data não se constituiu como feriado nacional. Os festejos programados para comemorar o fim da campanha provocaram controvérsias, e chegou mesmo a ser esboçada uma sublevação entre militares descontentes com a situação que passaram a vivenciar após o retorno para suas casas (Rodrigues, 2009RODRIGUES, Marcelo Santos. Guerra do Paraguai: os caminhos da memória entre a comemoração e o esquecimento. Tese (Doutorado em História), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.).

Considerações Finais

Existe certo consenso entre os historiadores de que a guerra desviou a atenção do governo imperial das reformas internas; levou a enormes gastos com a luta, gerando um deficit público que persistiu até 1889 e marcou o princípio de erosão do sistema monárquico. Se somarmos a isso uma memória popular marcada pelo ressentimento e decepção, que se tornou ainda mais presente quando os soldados de linha, guardas nacionais e voluntários viram que os acenos que lhes foram dados pelo Decreto n. 3.371 não passavam de um engodo e tiveram que trilhar um longo caminho burocrático para tentar garantir (na maior parte das vezes sem sucesso) o que lhes fora prometido, fica possível entender por que a data só teve repercussão junto à Marinha e ao Exército, que disputaram a memória de um evento do qual ambos saíram fortalecidos como agentes políticos, sobretudo o Exército. Para rememorar os acontecimentos “grandiosos” da guerra e seus “heróis” era preciso silenciar uma outra história, a dos combatentes comuns, repleta de sofrimento, dor, ressentimento e humilhação. Diante disso pode-se dizer que o sentimento de identidade nacional, que começou a se delinear naqueles anos, mostrou seus limites quando a guerra o colocou à prova e os combatentes perceberam que o que lhes sobrara fora um arremedo de cidadania.

Referências

  • ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008a.
  • ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa v. 4 Rio de Janeiro: Nova Aguilar , 2008b.
  • BALABAN, Marcelo. “Voluntários involuntários”: o recrutamento para a Guerra do Paraguai nas imagens da imprensa ilustrada brasileira do século XIX. Revista Mundos do Trabalho, v. 1, n. 2, p. 221-256, 2009a.
  • BALABAN, Marcelo. Poeta do lápis: sátira e política na trajetória de Ângelo Agostini no Brasil imperial (1864-1888) Campinas: Unicamp, 2009b.
  • BALME, Christopher. Histórias globais do teatro: modernização, esferas públicas e redes teatrais. In: WERNECK, Maria Helena; REIS, Ângela de Castro(orgs.). Rotas de teatro entre Portugal e Brasil Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
  • BASTOS, Antônio de Souza. Dicionário do teatro português Lisboa: Imprensa Libânio de Silva, 1908.
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  • VASQUES, Francisco Correa de. A questão anglo-brasileira comentada pelo Sr. Joaquim da Cista Brasil Rio de Janeiro: Tipografia Popular de Azeredo Leite, 1863.
  • VASQUES, Francisco Correa de. O Brasil e o Paraguai Rio de Janeiro: Tipografia Popular de Azeredo Leite , 1865.
  • VIANNA, João Plácido Martins. O veterano da independência ou Os voluntários da Pátria Rio de Janeiro: Tipografia Econômica de Jacinto José Pontes, 1866.
  • 1
    Todas as informações biográficas sobre o Vasques foram retiradas de Marzano (2012) e Souza (2017a).
  • 2
    Cabrião, 8 set. 1867, p. 381. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000033275&bbm/7056page/380/mode/2up. Acesso em: 12 mar. 2023.
  • 3
    O realismo teatral procurou revestir o palco de uma ação utilitária e pedagógica, transformando-o numa espécie de tribuna na qual o espectador era confrontado com uma tese e uma lição que lhe era apresentada pelo dramaturgo por meio de um personagem intitulado raisonneur. Foi essa função didática que levou o realismo a ser considerado um canal de iniciação das sociedades sobre as quais os dramaturgos procuravam intervir. Para o assunto ver Faria (1993).
  • 4
    Pateada era o ruído que nos teatros se fazia “com os pés ou com as bengalas para mostrar o desagrado a qualquer peça ou a qualquer artista” (Bastos, 1908, p. 110).
  • 5
    Correio Mercantil, 12 jun. 1868, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/217280/per217280_1868_00162.pdf. Acesso em: 12 mar. 2023.
  • 6
    Decreto n. 3.371, 7 jan. 1865. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-3371-7-janeiro-1865-554492-publicacaooriginal-73111-pe.html. Acesso em: 10 out. 2023.
  • 7
    Jornal do Recife, 13 fev. 1865, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=705110 &pagfis=963. Acesso em: 12 mar. 2023.
  • 8
    Diário do Rio de Janeiro, 25 abr. 1865, p. 1. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=094 170_02&pasta=ano%20186&pesq=%E2%80%9Cernesto%20cibr%C3%A3o%E2%80%9D&pagfis=19852. Acesso em: 25 jun. 2023.
  • 9
    Correio Mercantil, 25 jun. 1863, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=217280& pasta=ano%20186&pesq=%E2%80%9Co%20patriotismo%20n%C3%A3o%20est%C3%A1%20ainda%20absorvido%E2%80%9D&pagfis=22052. Acesso em: 20 mar. 2023.
  • 10
    Constitucional, 9 abr. 1863, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=235709&pasta =ano%20186&pesq=%22insulto%20feito%20aos%20brios%20da%20sua%20pr%C3%B3pria%20na%C3%A7%C3%A3o%E2%80%9D&pagfis=902. Acesso em: 20 mar. 2023.
  • 11
    Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Conservatório Dramático Brasileiro - I-08,20,086.
  • 12
    Semana Illustrada, 25 jan. 1863, p. 382. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/702951/per702951_1863_00112.pdf. Acesso em: 20 mar. 2023.
  • 13
    Correio Mercantil, 6 mar. 1865, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=217280& pasta=ano%20186&pesq=%E2%80%9Cauxilio%20%C3%A0s%20despesas%20da%20guerra%22&pagfis=24505. Acesso em: 20 mar. 2023.
  • 14
    Semana Illustrada, 5 mar. 1865, p. 1765. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/702951/per702951_1865_00221.pdf. Acesso em: 20 mar. 2023.
  • 15
    Para que se tenha uma ideia aproximada do preço de tais edições poderíamos mencionar que um carroceiro ganhava por dia 1.120 réis; um mestre carpinteiro, três mil réis e um carpinteiro, quinhentos réis.
  • 16
    Correio Mercantil, 8 maio 1865, p. 4. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=217280 &pasta=ano%20186&pesq=%E2%80%9Cauxilio%20%C3%A0s%20despesas%20da%20guerra%22&pagfis=24751. Acesso em: 20 mar. 2023.
  • 17
    Vasques foi um dos dramaturgos que explorou essa prática. Cito aqui alguns títulos de peças que reforçam o que vem sendo dito, à título de exemplificação: O Vasques pelos ares, O Vasques em Maxambomba, O Vasques perseguido por um inglês e O Graça e o Vasques.
  • 18
    Em função dessa singularidade, discordamos de Andrea Marzano (2008, p. 52), quando ela afirma que se tratava de uma adaptação de uma peça à outra.
  • 19
    Revista Mensal da Sociedade Ensaios Literários, 1 maio 1865, p. 484. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=338966&pesq=&pagfis=976. Acesso em: 20 mar. 2023.
  • 20
    Jornal do Commercio, 20 abr. 1865, p. 1. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=364568_ 05&pasta=ano%20186&pesq=%E2%80%9Cernesto%20cibr%C3%A3o%22&pagfis=8493. Acesso em: 28 mar. 2023.
  • 21
    Correio Mercantil, 13 ago. 1865, p. 4. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=21728 0&Pesq=%e2%80%9cauxilio%20%c3%a0s%20despesas%20da%20guerra%22&pagfis=25135. Acesso em: 28 mar. 2023.
  • 22
    Pela descrição do jornal, tratava-se do que se convencionou chamar drama marítimo ou drama aparatoso no século XIX, isto é, uma peça inspirada em um caso verídico recente, realizada a partir de uma arte complexa que incluía “a construção, o preparo e colocação das vistas, a execução e a manobra dos trucs (ilusão), a confecção dos praticáveis, o movimento dos alçapões, as aparições, as mudanças repentinas de hiatos, as transformações; em uma palavra, a organização e execução de tudo o que concorre para a ação cênica sob o ponto de vista material e decorativo” (Bastos, 1908, p. 88).
  • 23
    Semana Illustrada, 6 ago. 1865, p. 1.937. Disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/702951/per702951_1865_00243.pdf. Acesso em: 28 mar. 2023.
  • 24
    Semana Illustrada, 6 ago. 1865, p. 1937. Disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/702951/per702951_1865_00243.pdf. Acesso em: 28 mar. 2023.
  • 25
    Vasques, como já dito, foi folhetinista da Gazeta da Tarde, jornal abolicionista, no início dos anos 1880 e, até essa década, foi no teatro que ele atuou. Machado de Assis colaborou, nos anos 1860, no Diário do Rio, um jornal de tendência liberal. Nesse período, Machado escreveu sete peças de teatro, mas nenhuma delas remetia à Guerra do Paraguai.
  • 26
    Diário do Rio de Janeiro, 16 dez. 1861, p. 1.
  • 27
    Uma análise aprofundada sobre a inserção desses dois personagens na imprensa extrapola os limites deste artigo. Para nossos objetivos basta lembramos que, apesar de já existir uma imprensa negra na ocasião (Pinto, 2005), os periódicos em que Vasques e Machado atuaram não eram dessa natureza. O que procuramos ressaltar em relação a esses dois personagens é que, por ocasião da Guerra do Paraguai, eles se valeram da dramaturgia e do jornalismo para dialogar com as tensões políticas do seu tempo e para registrar seus entendimentos próprios, visões e anseios sobre a integração e o processo de construção identitária de homens livres descendentes de africanos na sociedade brasileira. Vasques, como dito anteriormente, foi folhetinista da Gazeta da Tarde, de José do Patrocínio, mas, nos anos 1880, duas décadas depois de escrever e encenar as três cenas cômicas aqui abordadas, nesse periódico, ele se engajou na campanha abolicionista. Sua única inserção no jornalismo, porém, foi criticada por considerar-se que sua parca educação formal o incapacitava a exercer tal função. José do Patrocínio, no entanto, o convidou para folhetinista do seu jornal por conta da simpatia pública de que ele desfrutava como dramaturgo e ator (Gazeta da Tarde, 13 nov. 1883, p. 1. Disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/226688/per226688_1883_00267.pdf. Acesso em: 20 dez. 2023). Nos anos 1860, Machado de Assis, ainda um estreante nas letras e após uma passagem como revisor de provas (1854) d’A Marmota, de Paula Brito, ingressou no Diário do Rio, um jornal de tendência liberal, a convite de Quintino Bocaiúva, assinando as “Ao Acaso. Crônicas da Semana”. Nesse período, também, ele escreveu suas primeiras peças de teatro e traduziu outras tantas.
  • 28
    Gazeta da Tarde, 25 out. 1883, p. 1. Disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/226688/per226688_1883_00250.pdf. Acesso em: 28 mar. 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2023
  • Aceito
    02 Abr 2024
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