Acessibilidade / Reportar erro

Intelectuais em ação. O MIR e a construção do intelectual revolucionário

Intellectuals in action. MIR and the construction of the revolutionary intellectual.

LOZOYA LÓPEZ, Ivette. . Intelectuales y revolución. Científicos sociales latinoamericanos en el MIR chileno (1963-1973). Santiago: Ariadna, 2020. 394p.

Resumo:

Resenha crítica do livro publicado no Chile sobre o Movimento de Izquierda Revolucionária (MIR). A pesquisa analisa o papel dos intelectuais nos anos 1960-1970, na construção de um projeto revolucionário na América Latina. A autora examina o debate teórico e a atuação dos intelectuais exilados no Chile e como se incorporam ao MIR.

Palavras-chave:
Intelectuais; MIR; Chile

Abstract: Critical review of the book published in Chile on the Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR). The research analyzes the role of intellectuals in the 1960-1970s, in the construction of a revolutionary project in Latin America. The author examines the theoretical debate and the performance of intellectuals in exile in Chile and how they enter the MIR

Keywords:
Intellectuals; MIR; Chile


Fruto de sua pesquisa de doutorado na Universidade de Santiago do Chile (USACH), Intelectuales y revolución, livro da historiadora Ivette Lozoya, atualmente professora da Universidade de Valparaíso, representa uma importante contribuição para os estudos da nova história política na América Latina. Segundo a própria autora, o livro propõe uma aproximação alternativa do Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR) do Chile, no sentido de compreender o partido também como espaço de reflexão onde se elaborou, se discutiu e se divulgou um pensamento (Lozoya, 2020LOZOYA López, Ivette. Intelectuales y revolución. Científicos sociales latinoamericanos en el MIR chileno (1963-1973). Santiago: Ariadna, 2020., p. 194) e onde foi idealizado por cientistas sociais um projeto social para a revolução. Com uma visão que dista de uma perspectiva esquemática, a historiadora realiza significativa investigação histórica no intuito de compreender a categoria de intelectuais a partir dos cientistas sociais então intensamente envolvidos com a política. O estudo analisa como determinados debates e ideias influenciam o movimento revolucionário e como uma proposta política como a do MIR repercutiu no campo intelectual e das ideias, num momento em que esta relação esteve mediada pela violência.

Dois enfoques orientam essa análise: o da história intelectual que aborda o intelectual como sujeito político e o da perspectiva da história da violência. Trata-se de compreender a violência política, em sua natureza relacional, como um modo de interlocução e não como representando uma ausência absoluta de interação social, como a autora enfatiza tomando de empréstimo a categoria de violência construída pelo historiador espanhol Julio Aróstegui (1994ARÓSTEGUI, Julio. Violencia, sociedad y política: la definición de la violencia. Ayer (Madrid). n.13, p. 17-55, 1994. Disponível em:<Disponível em:https://www.jstor.org/stable/41324344> . Acesso em:30 dez. 2020.
https://www.jstor.org/stable/41324344>...
). Essa interpretação permite um exame das relações sociais, como se configuram e incidem sobre as dinâmicas políticas, sobre a atuação dos sujeitos e o uso da violência como alternativa de ação política. Na pesquisa, o diálogo entre a história da violência e a história intelectual aponta para novas concepções que permitem pensar as diferenças e os significados da violência enquanto discurso e ação e a transformação das ideias em ação em defesa de um projeto político entre os intelectuais.

Diante da discussão historiográfica sobre a definição de intelectual, a autora examina os diversos prismas na atualidade, para então situar sua análise entre aqueles que consideram o intelectual a partir de sua atuação como pensador, como sujeito que cria valores, que procura pensar e compreender a sociedade, apresentando-se como “agente social com capital simbólico reconhecido” (Lozoya, 2020, p. 19). A autora apropria-se de uma bibliografia atualizada e argumenta que os intelectuais, nos anos 1960 na América Latina, estavam imbuídos da visão de pensar a realidade e os problemas do desenvolvimento da região, colocando-se não apenas como observadores qualificados, mas como atores e parte do problema. Vale ressaltar que, para Ivette Lozoya, não existia, nos anos 1960, oposição entre o compromisso do intelectual com a verdade e seu posicionamento político, mas sim gradações de compromisso e relação entre os intelectuais e os partidos.

Em sua análise, a autora ordena os intelectuais em quatro grupos distintos, de acordo com o tipo de militância desenvolvida no MIR: intelectuais fundadores; intelectuais militantes; militantes intelectuais e intelectuais revolucionários. A tipificação parte de critérios que possibilitam identificar com maior correção as diferentes formas de compromisso intelectual nesse momento. Para o primeiro grupo, o critério foi o fato de oferecerem um aporte teórico importante na fundação do MIR. O segundo tipo refere-se aos intelectuais que, na militância, não desempenham função como intelectuais. No terceiro caso, os militantes intelectuais, situam-se os militantes que atuam no MIR como intelectuais, ou seja, desenvolvem, desde suas fileiras, importantes reflexões teóricas sobre a revolução, no entanto, não exercem a função social de intelectuais fora do MIR. Finalmente, os intelectuais revolucionários abarcam ambas as funções: têm função social de intelectuais profissionais e concebem teorias para a revolução, revolucionando o próprio campo profissional.

No primeiro capítulo, a exposição dos debates não apenas situa as escolhas teóricas e metodológicas da autora, como fornece ao leitor uma cuidadosa análise dos problemas referentes à figura do intelectual revolucionário. O estudo destaca que, especialmente a partir dos anos 1960, os intelectuais eram interpelados pela necessidade de dar respostas a uma realidade profundamente complexa e em transformação, e foram convocados a superar impasses teóricos e dar uma resposta política a uma revolução em curso. A historiadora observa essa tensão na configuração do intelectual revolucionário pensando os debates que se realizam a partir da Revolução Cubana.

Em Cuba a revolução impulsionou um movimento intelectual que congregou importantes figuras em revistas como Casa de las Américas e Pensamiento Crítico, destacadas pela pesquisadora por refletirem, a partir das especificidades disciplinares e artísticas, sobre a realidade latino-americana e a revolução. Entre as mais importantes análises sobre intelectuais revolucionários, anteriores ao conhecido período Gris (1971-1976), Ivette destaca duas importantes referências: Ernesto Guevara e Martínez Heredia. O primeiro é apontado por sua originalidade e importância como referência para a esquerda latino-americana. A partir de suas experiências revolucionárias e leituras do marxismo, Che Guevara gerou um corpo de ideias e interpretações que tiveram grande repercussão entre intelectuais revolucionários. Heredia, por sua vez, como filósofo da Universidad de La Habana e fundador da revista Pensamiento Crítico, é quem também exerce papel central na reflexão sobre o processo criativo da revolução, que devia encontrar na realidade latino-americana os elementos de construção do projeto socialista. Para este, a reflexão teórica vinha de mãos dadas com a construção política.

A definição de intelectual revolucionário proposta pela historiadora pretende aprofundar o sentido do compromisso intelectual. Partindo de uma perspectiva gramsciana, a autora busca pensar a organicidade do pensamento por meio da unidade entre teoria e prática. O intelectual revolucionário não foi apenas aquele que esteve comprometido com as organizações revolucionárias, mas aquele que foi capaz de transformar as visões de mundo e construir uma ideologia contra-hegemônica. Como diz Ivete Lozoya, os intelectuais revolucionários revolucionam também seu campo profissional.

Para entender a conformação desse intelectual revolucionário, no capítulo II, a autora explora, na América Latina, as redes intelectuais, as relações destes com o Estado, especificamente a institucionalização das ciências sociais e a circulação de ideias, estudando mais detidamente os casos do Brasil, Argentina e México. No caso do Brasil, a autora delineia a trajetória de um destacado grupo de intelectuais que atuavam na Universidade de Brasília (UnB). Esses intelectuais, como nos diz Ivette, faziam da universidade um espaço de crítica e de formação de um novo projeto político. O grupo era formado por Vania Bambirra, Theotonio dos Santos, Rui Mauro Marini e Gunder Frank. A autora chama a atenção para as críticas ao sovietismo e aos limites do desenvolvimentismo, na busca por uma visão própria da realidade brasileira. Por outro lado, não deixam de ser mencionadas as tensões políticas no interior da esquerda, a formação do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e das organizações trotskistas. Destaca-se, no rico material impresso que serviu de base ao estudo, o depoimento que Ivette Lozoya colhe com Theotonio dos Santos, em entrevistas realizadas em 2013.

Além desses intelectuais, também são examinados no estudo outros intelectuais brasileiros que participam ativamente das discussões sobre desenvolvimento e dependência na América Latina. A autora investiga a participação de uma ampla rede de brasileiros com atuação muito relevante, como Paulo Freire, que esteve à frente das políticas de alfabetização do governo Eduardo Frei Montalva entre os anos 1966-1969.

Os debates intelectuais e políticos da esquerda brasileira, como bem destaca a historiadora chilena, não eram meros reflexos da Revolução Cubana ou simples rechaço à política da União Soviética, ou uma estrita polêmica acadêmica, mas uma busca de caminhos próprios para o desenvolvimento da América Latina. Com o golpe de 1964 e o exílio, essas reflexões continuam a ser realizadas no Chile. É fundamental compreender o processo de formação intelectual, especialmente do cientista social na região, uma vez que ele se articula com os espaços de atuação acadêmica e política no Chile dos anos 1960 e 1970, a partir do exílio. Essa relação torna-se visível no capítulo III, em que a autora busca identificar esse momento de institucionalização das ciências sociais no Chile e o papel dos intelectuais exilados.

A discussão sobre o papel dos intelectuais revolucionários no Chile, se bem que estivesse marcada pela Revolução Cubana, deu-se em contexto distinto de luta pelo poder. Especialmente entre 1970-1973, os intelectuais de esquerda, segundo a autora, não eram reprodutores ou articuladores dos projetos socialistas, mas pensadores de um projeto inédito de construção do socialismo sob as bases de um regime democrático.

Foi durante a Unidade Popular que o Chile mais atraiu a atenção dos intelectuais, especialmente latino-americanos, porém, esse processo tem, como muito bem fica demonstrado no trabalho, uma história que remonta à década de 1950. A criação de uma infraestrutura acadêmica potente como a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) em Santiago fomentou a constituição de escolas e institutos de investigação social locais que aproximou estudiosos e cientistas sociais. Nos anos 1960, foram criados o Centro de Estudios Socioeconómicos (Ceso) da Faculdade de Economia da Universidade do Chile, dirigido por Theotonio dos Santos, e o Centro de Estudios de la Realidad Nacional (Ceren), vinculado à Universidade Católica de Chile. Por meio de suas respectivas revistas Sociedad y Desarrollo e Cuadernos de la Realidad Nacional realiza-se uma profunda análise sobre o processo de desenvolvimento político, social e econômico do Chile e da América Latina como um todo. Essa trajetória estava marcada por uma politização que vai tomando novos matizes em fins dos anos 1960 e durante a Unidade Popular.

Nos capítulos IV e V, Ivette Lozoya dedicou-se especificamente a esquadrinhar o MIR, analisando o papel dos intelectuais na organização, desde os momentos fundacionais até os anos 1970, quando são mais intensas as relações com os intelectuais latino-americanos que estão no Chile. A participação dos brasileiros nesse momento é central. Como ela demonstra, os intelectuais brasileiros militantes do MIR estiveram no Brasil politicamente vinculadas à Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop). Eram eles Emir Sader e seu irmão Eder Sader, Marco Aurelio Garcia e Ruy Mauro Marini. No Chile, ligaram-se profissionalmente ao Ceso. Rui Mauro Marini é apontado como o mais importante dos intelectuais que chegam a militar no MIR. Segundo Ivette, ele representa o intelectual revolucionário por excelência, com toda a dimensão do seu significado, tanto por seu compromisso político, que envolve sua obra, quanto por sua participação concreta, inclusive em atividades de caráter militar, e por sua contribuição teórica que logrou revolucionar o campo das ciências sociais.

As reflexões que a historiadora realiza nos dois capítulos finais permitem compreender o Movimento de Izquierda Revolucionária (MIR) como um espaço de circulação de ideias capaz de atrair vários desses intelectuais. Foi essa estreita relação que permitiu ao MIR elaborar uma leitura sobre a realidade latino-americana e propor uma via de revolução insurrecional. A importância das reflexões dos cientistas sociais proporcionou uma reelaboração das reflexões sobre o sujeito revolucionário, criando uma crítica contundente à teoria do foco guerrilheiro ou à teoria da revolução por etapas, ambas em voga entre grupos de esquerda da América Latina. A teoria da dependência era o paradigma interpretativo para pensar a política entre este grupo de intelectuais revolucionários. Ou seja, identificavam as condições estruturais da dependência e ensaiavam uma prática política para superá-la. Nesse sentido, podemos compreender melhor o papel dos brasileiros teóricos da dependência, especialmente de Ruy Mauro Marini, sua trajetória como cientista social na Escola Superior de Administração Pública (Ebap) e seus estudos em Paris, no Instituto de Estudos Políticos da Universidade de Paris. Já aí iniciam suas críticas à teoria desenvolvimentista da Cepal. De volta ao Brasil, não apenas passa a integrar a UnB, como será um dos fundadores da Polop, na qual se analisava a realidade local, fazia-se política e se discutiam as estratégias revolucionárias.

Por fim, vale destacar no cuidadoso trabalho de pesquisa de Ivette Lazoyo o exame do debate sobre socialismo, violência e revolução, que mobilizou intelectuais de esquerda em geral e não apenas o MIR. As ideias discutidas e propostas em termos de uma nova teorização, tais como a teoria da dependência, a pedagogia popular e a teologia da libertação, foram claros exemplos de revoluções teóricas que definem o intelectual revolucionário em termos de transformação do campo intelectual a par, como nos diz Lozoya, com as transformações políticas e sociais vividas no Chile naquele momento. As discussões não se davam unicamente em instituições acadêmicas ou vinculadas ao Estado, mas eram amplamente realizadas em revistas como Chile Hoy, de caráter mais teórico, e Punto Final, com uma abordagem de propaganda política.

Finalmente devemos lembrar que François Dosse, ao buscar definir a categoria de intelectual, chama a atenção para seu caráter polissêmico e aponta para a necessidade de definição, tomando por base as circunstâncias históricas, as transformações sociais que vão definindo e redefinindo o campo intelectual (Dosse, 2003DOSSE, François. La marche des idées. Histoire des intellectuels, histoire intellectuelle. Paris: La Découverte, 2003., p. 26). Esse trabalho de pesquisa representa, dessa forma, uma contribuição importante, ao buscar não apenas testar e operacionalizar o conceito de intelectual, mas especialmente aprofundar sua relação com a política. O trabalho traz contribuições para um conhecimento mais rigoroso desse período da história do Chile, do MIR e das redes intelectuais na América Latina, assim como é inovador ao pensar a história da esquerda revolucionária a partir da perspectiva da história intelectual. É um livro oportuno que permite revisitar uma tradição profundamente rica e radical do pensamento social latino-americano.

Referências

  • ARÓSTEGUI, Julio. Violencia, sociedad y política: la definición de la violencia. Ayer (Madrid). n.13, p. 17-55, 1994. Disponível em:<Disponível em:https://www.jstor.org/stable/41324344> Acesso em:30 dez. 2020.
    » https://www.jstor.org/stable/41324344>
  • DOSSE, François. La marche des idées. Histoire des intellectuels, histoire intellectuelle Paris: La Découverte, 2003.
  • LOZOYA López, Ivette. Intelectuales y revolución. Científicos sociales latinoamericanos en el MIR chileno (1963-1973). Santiago: Ariadna, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2021
  • Aceito
    21 Abr 2021
EdUFF - Editora da UFF Instituto de História/Universidade Federal Fluminense, Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bloco O, sala 503, 24210-201, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, tel:(21)2629-2920, (21)2629-2920 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: tempouff2013@gmail.com