Resumo
Neste artigo, objetivamos descrever e problematizar as principais questões de operacionalização do trabalho de campo da pesquisa participante, ressaltando dilemas da relação pesquisador e sujeito-colaborador da pesquisa em contexto de atuação da Estratégia Saúde da Família em território de alta vulnerabilidade social. Criamos o grupo gestor da pesquisa, formado por gestores, profissionais (destacando-se os agentes comunitários de saúde) e pesquisadores, com o objetivo de elaborar estratégias e refletir sobre os resultados da pesquisa. Fizemos observações participantes do cotidiano, diários de campo, anotações sistemáticas e transcrições dos encontros. A metodologia de análise foi a hermenêutica de profundidade, de Thompson. Essa combinação metodológica possibilitou dar ênfase às experiências cotidianas, somando-as ao ‘chão’, ao que sustenta as vivências, ou seja, a história local, a cultura, a política e a organização do trabalho em saúde, as configurações intersubjetivas e sociais do território e a história de vida das pessoas. Nesse contexto, o grupo gestor deu o tom das ações da pesquisa, ainda que seu processo grupal evidenciasse tensões vividas pela Estratégia Saúde da Família. Os diálogos horizontais conquistados pelo trabalho desse grupo possibilitaram uma transformação e uma construção do conhecimento compartilhada entre atores do campo e pesquisadores, os quais estavam implicados com os dilemas vivenciados.
Palavras-chave
Estratégia Saúde da Família; vulnerabilidade social; agentes comunitários de saúde; pesquisa sobre serviços de saúde
Abstract
In this article, we describe and discuss the main operational issues of participatory research fieldwork, highlighting the dilemmas of the researcher and research subject/collaborator relationship in the context of the Family Health Strategy activities in a territory where there is high social vulnerability. We created the research management group, consisting of managers, professionals (emphasizing the community health agents) and researchers, aiming to develop strategies and reflect on the results of the research. We undertook participant observation of daily life, field daybooks, we took systematic notes, and made transcripts of the meetings. The analysis methodology used was Thompson's in-depth hermeneutics. This methodological combination made it possible to emphasize everyday experiences, adding them to the ‘ground,’ to what supports the experiences, i.e. the local history, culture, politics, and the organization of the work in health, on intersubjective and social settings of the territory and of people's life history. In this context, the management group set the tone of the research actions, although its group process showed the tensions experienced by the Family Health Strategy. The horizontal dialogs conquered by the work done by this group allowed for a transformation and construction of knowledge shared among the field players and researchers, who were involved with the dilemmas experienced.
Keywords
Family Health Strategy; social vulnerability; community health agents; research on health services
Resumen
En este artículo, buscamos describir y problematizar las principales cuestiones de operacionalización del trabajo de campo de la investigación participante, resaltando los dilemas de la relación investigador y sujeto/colaborador de la investigación, en un contexto de actuación de la Estrategia Salud de la Familia en territorio de alta vulnerabilidad social. Creamos el grupo gestor de la investigación, formado por gestores, profesionales (destacándose los agentes comunitarios de salud) e investigadores, con el objetivo de preparar las estrategias y reflexionar sobre los resultados de la investigación. Hicimos observaciones participantes del quehacer cotidiano, diarios de campo, anotaciones sistemáticas y transcripciones de los encuentros. La metodología de análisis utilizada fue la hermenéutica de profundidad, de Thompson. Esta combinación metodológica permitió enfatizar las experiencias cotidianas, sumándolas al ‘suelo’, al que sostiene las vivencias, o sea, la historia local, la cultura, la política y la organización del trabajo en salud, las configuraciones intersubjetivas y sociales de los territorios y la historia de vida de las personas. En ese contexto, el grupo gestor orientó las acciones de investigación, aun cuando su proceso grupal evidenciara tensiones vividas por la Estrategia Salud de la Familia. Los diálogos horizontales conquistados por el trabajo de ese grupo permitieron una transformación y una construcción del conocimiento compartido entre actores del campo e investigadores, los cuales estaban implicados con los dilemas vivenciados.
Palabras clave
Estrategia Salud de la Familia; vulnerabilidad social; agentes comunitarios de salud; investigación sobre servicios de salud
Introdução
A pesquisa qualitativa tem sido bastante enfatizada na área de saúde coletiva, por destacar a interdisciplinaridade e convocar a subjetividade em suas análises, de modo a refletir criticamente sobre os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa reflexão ocorre com a emergência das ciências sociais e humanas na investigação em saúde, uma vez que as questões relacionadas ao processo saúde-doença-cuidado estão associadas à existência humana, as quais nem sempre encontram respostas em métodos tradicionais de pesquisa (Bosi, 2012BOSI, Maria L. M. Pesquisa qualitativa em saúde coletiva: panorama e desafios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 575–586, mar. 2012.).
Na busca de compreensão acerca da qualidade dos fenômenos são desenvolvidas pesquisas sociais em saúde, caracterizadas por Minayo (2010MINAYO, Maria C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 47) como “todas as investigações que tratam do fenômeno saúde/doença, de sua representação pelos vários atores que atuam no campo: as instituições políticas e de serviços e os profissionais e usuários”.
De modo geral, a construção de referências do SUS hoje, como a integralidade em saúde e a ênfase na humanização e participação social, requer uma apropriação do território vivido, mais do que o mapeamento de necessidades e demandas das populações. Muitas vezes presente nesse território está a vulnerabilidade social, um conceito que “supera o caráter individualizante e probabilístico do clássico conceito de ‘risco’” (Sánchez e Bertolozzi, 2007SÁNCHEZ, Alba I. M.; BERTOLOZZI, Maria R. Pode o conceito de vulnerabilidade apoiar a construção do conhecimento em saúde coletiva? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 319–324, 2007., p. 323), apontando para o coletivo, o contextual, a carência de recursos, colocando-se como um instrumento valioso para as práticas transformadoras em saúde coletiva. A compreensão ampla do território envolve, assim, concepções e experiências individuais e sociais, o que exige uma contínua visão e revisão da realidade. Trata-se de priorizar os aspectos políticos do território e a existência de contextos afetivos e de significação no cotidiano das pessoas, o que interfere na forma de reconstruir as práticas de saúde. Falamos então de um ‘território usado’ onde se expressam as diversidades culturais e se materializam as políticas públicas (Santos, 2000SANTOS, Milton. Território e sociedade: entrevista com Milton Santos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.).
Nessa perspectiva, a apreensão de parâmetros que balizam a construção das intersubjetividades, destacando-se a qualidade dos vínculos, contextos culturais, aspectos psicossociais e graus de comprometimento com a condição de vida das pessoas, não apenas se mostra uma base necessária de compreensão do território vivido como também instiga o desenvolvimento de metodologias participativas. Estas podem ser de grande valia para transformações da realidade e maior efetividade das políticas públicas de saúde.
Dentre as possibilidades de metodologias participativas, optamos por discutir neste artigo uma experiência de trabalho de campo cuja referência foi a ‘pesquisa participante’. Para Brandão (2006)BRANDÃO, Carlos R. A pesquisa participante e a participação da pesquisa. In: BRANDÃO, Carlos R.; STREK, Danilo R. (orgs.). Pesquisa participante: o saber da partilha. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006. p. 21–54., essa perspectiva de pesquisa tem duas raízes teóricas: uma calcada nas obras de autores estadunidenses e europeus, tendo os estudos de Kurt Lewin e da pesquisaação como referência; e outra associada à questão operária de Karl Marx, sendo a América Latina, especialmente o Brasil, a região que mais desenvolveu essa última forma de pesquisar, com base nos autores Fals Borda e Paulo Freire. Tomaremos por base a inspiração latina pelo seu caráter emancipatório, sobretudo porque
a confiabilidade de uma ciência não está no rigor positivo de seu pensamento, mas na contribuição de sua prática na procura coletiva de conhecimentos que tornem o ser humano não apenas mais instruído e mais sábio, mas igualmente mais justo, livre, criativo, participativo, co-responsável e solidário (Brandão, 2006BRANDÃO, Carlos R. A pesquisa participante e a participação da pesquisa. In: BRANDÃO, Carlos R.; STREK, Danilo R. (orgs.). Pesquisa participante: o saber da partilha. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006. p. 21–54., p. 24).
O referencial da pesquisa participante valoriza a postura ética do pesquisador. Schmidt (2008)SCHMIDT, Maria L. S. Pesquisa participante e formação ética do pesquisador na área da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 391–398, mar.-abr. 2008. enumera atitudes importantes para que ocorra essa formação ética: diálogo e compreensão dos sentidos/significados do outro; distribuição democrática do poder entre os participantes para a escuta, as falas e as decisões; respeito ao modo de viver dos colaboradores; disposição para refazer os acordos entre pesquisadores e colaboradores; reflexão e cuidado com o texto produzido para publicação pós-pesquisa; compartilhamento de transcrições e textos com os colaboradores; concessão de crédito aos colaboradores nas publicações; e discussão sobre outros interesses de publicação com os colaboradores.
As atitudes descritas podem promover o que Paulo Freire (2005)FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. chamou de ‘palavra verdadeira’, compreendendo-a como a práxis que transforma o mundo. Santorum e Cestari (2011SANTORUM, Juliana A.; CESTARI, Maria E. A educação popular na práxis da formação para o SUS. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 223–240, jul.-out. 2011., p. 229), em experiência com educação popular, relatam: “O diálogo foi praticado em uma relação horizontal, não como uma técnica em que todos têm de falar, e sim como metodologia de uma prática na qual todos têm direito à palavra”. Dessa maneira, alcançar o ‘diálogo’ e uma relação vertical “constituída de ação-reflexão fundada no amor e na humildade” (Santorum e Cestari, 2011SANTORUM, Juliana A.; CESTARI, Maria E. A educação popular na práxis da formação para o SUS. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 223–240, jul.-out. 2011., p. 229) são questões fundantes e promotoras de uma pesquisa participante com o referencial formativo que denominamos de ético-político.
Esta pesquisa qualitativa traz a indissociabilidade entre ética e autonomia, (…) pois nela se desenvolve a relação sempre delicada com o outro, de aproximação e distanciamento, de respeito às diferenças socioculturais, exigindo uma constante negociação entre pesquisadores e pesquisados (Castro-Silva, Mendes e Nakamura, 2012CASTRO-SILVA, Carlos R.; MENDES, Rosilda; NAKAMURA, Eunice. A dimensão da ética na pesquisa em saúde com ênfase na abordagem qualitativa. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 32–41, mar. 2012., p. 40).
Neste artigo, objetivamos descrever e problematizar o trabalho de pesquisa, referenciado na pesquisa participante, mediante a construção singular da operacionalização do trabalho de campo no contexto de atuação da Estratégia Saúde da Família (ESF) em território de vulnerabilidade social.
Percurso metodológico: construindo parcerias
Realizamos, entre os anos de 2011 e 2013, a pesquisa “A potência de ação de agentes comunitários de saúde na Estratégia Saúde da Família da Vila dos Pescadores no município de Cubatão”, com o objetivo de investigar e desenvolver – do ponto de vista psicossocial – a potência de ação de agentes comunitários de saúde (ACSs) de uma comunidade de alta vulnerabilidade social, por meio de uma pesquisa qualitativa com o referencial da pesquisa participante.
A observação participante foi o método utilizado para interagir com os sujeitos, no intuito de apreender e compreender a dinâmica do grupo e questões suscitadas pelo estudo e pelo trabalho de campo. Colocávamos em prática tais observações no cotidiano da ESF e dos ACSs, destacando que transitávamos pelo bairro sempre acompanhados por estes últimos, passando pelas ‘bocas’ (traficantes de drogas), por crianças brincando em um rio visivelmente poluído e entrando nas casas dos munícipes. Acompanhávamos na ESF as reuniões de equipe, o trabalho dos ACSs e gestores e as salas de espera, onde havia maior concentração de munícipes. Produzíamos, a cada visita, um ‘diário de campo’. Num deles, o diarista precisou:
(…) elaborar como se deu determinada ação, tirando-a do ‘plano de cena natural’ do cotidiano, colocando-a em discussão e no plano da reflexão. Esse exercício provocou uma desnaturalização de certas atitudes, ou mesmo procedimentos, movimentando o já conhecido, percebido, e mostrando outras possibilidades, quando se instaura a ‘implicação’ (Pezzato e L'Abbate, 2011PEZZATO, Luciane M.; L'ABBATE, Solange. O uso de diários como ferramenta de intervenção da análise institucional: potencializando reflexões no cotidiano da saúde bucal coletiva. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, p. 1.297–1.314, 2011., p. 1.311).
No sentido de organizar melhor a prática da pesquisa, propusemos a formação de um grupo gestor, com a participação de gestores, profissionais e pesquisadores, sobre os quais produzimos ‘anotações sistemáticas’ (AS GG) e gravações/transcrições dos encontros. Nessa valorização da participação dos sujeitos implicados na pesquisa, reuníamo-nos mensalmente com esse grupo gestor com os seguintes objetivos: elaborar as estratégias de pesquisa, como a aproximação ao campo, busca por sujeitos e construção de roteiros de entrevista; refletir sobre ou discutir os processos de trabalho e suas possibilidades; e analisar os resultados. Lançamos mão da ideia de ‘processo’, aprofundando a problemática estudada e redimensionando as estratégias teóricometodológicas.
Tivemos duas reuniões com gestores e profissionais da saúde de Cubatão, São Paulo, para assim construirmos juntos a proposta do grupo gestor. No início do grupo, participavam os gestores da atenção básica e da ESF, profissionais da unidade de saúde da família (USF) da Vila dos Pescadores, dentre eles ao menos três ACSs, representando as três equipes da USF. Tais encontros foram realizados mensalmente durante os dois anos de investigação.
A metodologia de análise utilizada foi a hermenêutica de profundidade, proposta por Thompson (2011)THOMPSON, John. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011., um método de pesquisa qualitativa que visa valorizar as experiências dos sujeitos do estudo, bem como do próprio pesquisador, participante ativo do processo de construção do conhecimento científico. Nesse método, há a valorização e o privilégio dos aspectos culturais e simbólicos de determinada comunidade ou grupo onde é realizada a investigação. Tal metodologia pretendeu aprofundar a análise ao dividi-la em três etapas: análise sócio-histórica, pela qual levantamos aspectos históricos, as políticas públicas relacionadas ao tema, ao território e à unidade de saúde; análise formal ou discursiva, etapa em que analisamos as transcrições das falas dos sujeitos e os diários de campo; e interpretação e reinterpretação, quando fizemos uma análise baseada nas duas anteriores, mas com uma concepção criativa, sintética e crítica (Demo, 2012DEMO, Pedro. Pesquisa e informação qualitativa: aportes metodológicos. 5. ed. Campinas, SP: Papirus, 2012.).
A pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio do edital MCT/CNPq n. 14/2011, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, de acordo com o parecer n. 103.202. Os sujeitos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, dando anuência à sua participação na pesquisa. O projeto foi aprovado pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa, órgão do Conselho Nacional de Saúde, de acordo com o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética n. 06454412.3.0000.5505.
Pesquisa participante: compromisso ético-político com a transformação social
O processo de construção da prática da pesquisa participante ao longo de dois anos exigiu um esforço constante de criação de estratégias de obtenção, sistematização e análise de informações para contemplar os diferentes atores envolvidos, destacando-se a implementação do grupo gestor da pesquisa. Poderíamos dar uma tarefa a cada pesquisador e deixar de lado o protagonismo do sujeito, mas partimos da perspectiva de Lane (2004LANE, Silvia. O processo grupal. In: LANE, Silvia; CODO, Wanderley (orgs.). Psicologia social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 78–98., p. 78), quando afirma que “toda ação transformadora da sociedade só pode ocorrer quando indivíduos se agrupam”. Desse modo, desde o início valorizamos as vivências e experiências dos sujeitos envolvidos na pesquisa, bem como sua participação no processo de construção do conhecimento. Os resultados visaram aproximar o leitor do contexto sócio-histórico e dos discursos presentes, enfatizando o processo de construção da pesquisa, bem como o trabalho da ESF em território de vulnerabilidade social.
De acordo com o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, 2010FUNDAÇÃO SISTEMA ESTADUAL DE ANÁLISE DE DADOS (SEADE). Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) versão 2010. Disponível em: <http://www.seade.gov.br/analises_estudos/indice-paulistade-vulnerabilidade-social-ipvs-versao-2010/>. Acesso em: 16 jul. 2014.
http://www.seade.gov.br/analises_estudos...
), Cubatão tinha, em 2010, 21,2% da população no grupo vulnerabilidade alta e 21,0% no grupo vulnerabilidade altíssima – ou seja, 42,2% de sua população exibiam baixa condição socioeconômica, e os chefes de família apresentavam, em média, baixa renda e baixa escolaridade. A Vila dos Pescadores estava incluída nesse segundo grupo e constituía-se em um bairro marcado por intensa desigualdade e exclusão social. A presença do poder público na comunidade se fazia por meio da USF investigada – ela e uma creche eram as únicas instituições que legitimavam a presença do Estado no local.
A origem da Vila dos Pescadores é recente na história de ocupação das áreas dos manguezais na Baixada Santista e está inserida no âmbito das transformações do espaço urbano, em especial das áreas periféricas das cidades, onde se revela um quadro típico de exclusão imposta social e politicamente ao longo das últimas décadas.
De acordo com o relato dos ACSs da USF Vila dos Pescadores, muitos moradores teriam condições de se mudar para outros bairros da cidade, como o Casqueiro, um bairro próximo de Santos, que dispõe de melhores condições de infraestrutura, mas devido ao fato de não pagarem impostos (contas de água, luz e até mesmo aluguel), os quais inclusive poderiam ser revertidos em obras de infraestrutura, muitos continuam a viver na Vila. Assim, conseguem destinar seus recursos para outras necessidades (Diário de campo, 09/11/12).
Como ressaltam Castro-Silva e colaboradores (2014)CASTRO-SILVA, Carlos R. et al. Participação social e a potência do agente comunitário de saúde. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 26, n. esp. 2, p. 113–123, 2014., em artigo publicado com base na mesma pesquisa e em relatos das lideranças comunitárias do bairro, o histórico de formação da Vila dos Pescadores está muito ligado à migração de nordestinos, intensificada pelo processo de industrialização pelo qual Cubatão passou na década de 1950. Na ausência de espaços adequados e planejados para a construção de moradias, eles ocuparam as periferias da cidade. São trajetórias, segundo os mesmos autores, marcadas por intensos sofrimentos e, como vimos afirmando, por desigualdade e exclusão sociais.
Mesmo morando na Vila dos Pescadores, alguns ACSs relataram que não perderam a capacidade de indignação com as novas e diversas situações com as quais se deparavam cotidianamente:
Temos que cuidar para não perdermos a capacidade de se indignar [sic] diante da situação de vida daquelas pessoas, de miséria e grande vulnerabilidade, e de não se conformar [sic], de naturalizar o que não é natural (AS GG 27/04/12).
Esses contrastes e condições trazem, sem dúvida, uma série de questões à produção da saúde no território da Vila dos Pescadores. Não é sem razão que, nas discussões e reflexões dos profissionais da USF da Vila dos Pescadores, seja retratado um complexo contexto de vida local. O cotidiano de trabalho com as famílias, os vizinhos, os laços de amizade, as festas, os perigos, os contrastes foram muito bem expressos nas narrativas, repletas de significados e representações, trazendo pistas para compreender a dinâmica psicossocial.
Nesse contexto, a criação do grupo gestor da pesquisa mostrou-se uma importante estratégia de aproximação do campo – instituições, território e sujeitos. Aspectos sócio-históricos e cotidianos tornam-se imprescindíveis, pois iluminam os fenômenos estudados. Desse modo, o primeiro passo foi a inédita parceria entre a Universidade Federal de São Paulo e o município de Cubatão, a partir do II Fórum Permanente de Saúde da Baixada Santista, realizado em novembro de 2011. Neste evento, definiram-se a aproximação e a cooperação entre universidade e serviços públicos de saúde na produção de conhecimento vinculado às práticas e à formação interdisciplinar, objetivando um olhar integral sobre os processos de saúde e doença de sujeitos e seus contextos.
Esse histórico da inserção no território indica que a construção de uma metodologia participativa implica um posicionamento ético-político e ideológico. Mais do que isso, que haja suporte das instituições envolvidas para promover o diálogo entre os atores envolvidos. A qualidade desse vínculo institucional e do vínculo entre seus atores pode configurar-se um termômetro sobre as potencialidades e os limites de uma pesquisa participante. Além disso, esse momento já denota certa tensão e conflitos, pois as necessidades e demandas dos profissionais de saúde podem extrapolar o escopo da pesquisa.
O momento de criação de vínculo exige, então, muita sensibilidade e perspicácia, pois esses contatos iniciais definem aspectos importantes da pesquisa, como o local e a escolha dos equipamentos de saúde, os profissionais de saúde envolvidos, a forma de colaboração dos gestores, entre outros. Por exemplo: a escolha da Vila dos Pescadores, bairro onde realizamos a pesquisa, partiu da percepção da gestão de Cubatão.
Muitas questões foram discutidas sobre os territórios de Cubatão, sobre os ACSs e sobre a pesquisa. Assim, as gestoras M. e G. propuseram que o trabalho fosse feito na USF da Vila dos Pescadores, por conta do acesso ao território, do perfil da pesquisa e da facilidade de contato com o gestor local (AS GG, 20/04/12).
O início das negociações contribuiu para que fossem combinados também a forma e o nível de participação dos sujeitos. O passo seguinte foi a definição de formas de operacionalização da pesquisa, partindo da proposta de que a investigação implicaria a participação dos gestores e profissionais envolvidos. Dessa forma, propusemos a formação do grupo gestor – um grupo interinstitucional envolvendo a totalidade dos pesquisadores e representantes do serviço público de saúde: pesquisadores da universidade, gestores em nível central, gestores em nível local, profissionais de saúde que atuam na unidade (psicólogos, assistentes sociais e ACSs). Os agentes comunitários, nesse primeiro momento da pesquisa, tinham uma representação em cada uma das três equipes da USF, em um universo de 16 ACSs que compunham a USF da Vila dos Pescadores.
Tivemos um período de aproximadamente um ano de visitas à Vila dos Pescadores, nas quais fazíamos observações participantes sobre a dinâmica da USF e também do território. Visávamos compreender a organização do sistema de saúde de Cubatão, daquela unidade de saúde, a organização social e comunitária da Vila dos Pescadores e as questões históricas de formação daquela comunidade. Dessa maneira, quando acompanhávamos a rotina dos ACSs no ‘território’, presenciávamos situações que estampavam a exclusão social, forçando as profissionais de saúde a tomarem atitudes imediatistas diante da indignação sentida por causa da situação. No caso a seguir, a ACS cozinhou arroz para as crianças:
Um dia que eu fui na casa dela. ‘Tô com fome, tia’… Só as crianças e essa menina deficiente… Eu falei: ‘Ai, meu Deus, ai, meu Deus, ai, meu Deus! Vai lá buscar meia dúzia de ovos!’ Minha primeira atitude! Eu falei: ‘Cadê seus pais?’ ‘Eles foram pra Cubatão receber.’ ‘A essa hora? E não deixaram comida pra vocês?’ ‘Não.’ Na cozinha, arroz estragado… Tudo estragado… Eu peguei e fiz um arroz pra eles, fiz um ovo mexido e dei pra menina, e a menina comia igual bicho desesperado (ACS T., Grupo gestor, 11/05/12).
O tráfico de drogas dominava aquele bairro. Na ausência de um poder público atuante, o tráfico encontrou um território propício para o exercício de seu poder e coerção violentos, autoritarismo que parecia inibir a participação dos moradores do bairro. Segue um trecho para ilustrar a realidade daquele local em que os ACSs eram moradoras, trabalhadoras e usuárias do serviço de saúde:
Tudo se resolve na biqueira [boca de fumo], se alguém tem um problema mais grave e leva aos ‘meninos!’ A L., com certeza, deve ter aprontado alguma coisa bem grave pra ter apanhado da maneira como apanhou, com um pedaço de madeira com pregos. (…) Quem trai seu companheiro na Vila, o tribunal do tráfico tem sua maneira de julgar essas pessoas. Geralmente, a mulher, eles raspam a cabeça, é como um código, a mulher fica ‘marcada’ pra que toda a comunidade saiba o que ela fez ao marido! (…) O homem também apanha, mas fica impedido de voltar a morar e viver ali. Muitas vezes, a própria biqueira se encarrega de suprir as necessidades da mulher traída e seus filhos. Se o caso for muito grave, eles saem pra dar uma volta de barquinho com o sujeito, que nunca mais volta (Diário de campo, 23/11/12).
Tais questões sociais, que expressam a alta vulnerabilidade do bairro, são complexas e penetram tanto o cotidiano da ESF quanto a pesquisa participante, e não podem ser consideradas apenas pano de fundo. González Rey (2011GONZÁLEZ REY, Fernando L. Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. São Paulo: Cengage Learning, 2011., p. 28) acentua: “Sem implicação subjetiva do sujeito pesquisado, a informação produzida no curso do estudo perde significação e, portanto, objetividade, no sentido mais amplo da palavra.” Assim, entendemos que é importante ouvir as vozes e, juntamente com os sujeitos, construir o conhecimento com base em suas vivências, para que possam legitimar seus discursos e dar sentido a eles, significá-los e ressignificá-los.
É justamente nesse contexto turbulento e excludente que realizamos a pesquisa participante. Contudo, entendemos que o processo de captação dessas experiências não seria possível se não estivéssemos imbricados no campo e nos relacionando com as pessoas que vivenciavam na pele tais situações cotidianas – ou seja, por meio da pesquisa e da observação participante.
Retornemos ao grupo gestor, estratégia metodológica que caracterizou a pesquisa aqui apresentada. Os encontros desse grupo exigiam que nós, pesquisadores, interagíssemos, mas sempre com um olhar crítico, visando aos objetivos do estudo, requerendo de todos os atores exercícios constantes de reflexão. Nesse sentido, o intuito de cada encontro era problematizar as próprias situações apresentadas pelo grupo com o objetivo de exercício da criticidade, levando em consideração todas as peculiaridades suscitadas pelo campo. Por vivenciarmos universos completamente diferentes, sentíamos a cada encontro mensal a necessidade de retomar os objetivos da pesquisa para traçar novos rumos, reforçando o vínculo e vivendo um processo de construção de confiança com os sujeitos pesquisados.
O grupo gestor teve um movimento peculiar ao longo de dois anos. Convivemos com alguns dilemas: a diminuição e quase escassez da participação dos gestores e profissionais no grupo; a crescente e quase totalidade da participação de ACSs no grupo; a ausência de muitos ACSs nos encontros finais; reuniões com a gestão para retomar os objetivos e a participação deles no grupo gestor.
O grupo gestor não foi um espaço apenas harmônico e tranquilo; houve também conflitos e inseguranças. Ressaltamos no trecho a seguir que, apesar desses aspectos, os ACSs gostariam que os gestores e demais profissionais também participassem das reuniões, pois pareciam considerar o grupo como uma possibilidade de escuta e troca de experiências e vivências.
Ao final, recuperamos aspectos de nossas próximas atividades, e cabe lembrar que, ao serem indagadas sobre a dinâmica das reuniões do GG [grupo gestor], a C. [ACS] disse que seria bom que os gestores e profissionais também participassem das reuniões, pois assim ficariam sabendo das ‘coisas’. Às vezes percebemos certos constrangimentos nessas reuniões dos ACSs em função da presença dos chefes; por outro lado, parece que a falta de encontros e trocas entre estes faz com que os ACSs prefiram que participem, pois assim podem falar de questões que lhes afligem (AS GG, 06/12/12).
Houve, portanto, um crescimento do número de ACSs nas reuniões mensais do grupo gestor e, ao mesmo tempo, uma diminuição do número de profissionais de nível superior e de gestores. Para entender tal situação, relatamos a seguir alguns dilemas e dificuldades com referência a esse processo.
O primeiro dilema diz respeito ao contato de gestores e trabalhadores que não moravam ali com a realidade do bairro, ou seja, com o tráfico de drogas, a pobreza extrema, problemas com o lixo, o saneamento básico, moradias em palafita, falta de medicamentos etc. Tal situação pode ter trazido à tona questões sobre a ausência do poder público, do qual são representantes e trabalhadores. Além do mais, a rica troca de experiências e vivências entre ACSs, demais profissionais e gestores evidenciava também as falhas na integralidade das ações da saúde da família.
Outro dilema que constatamos foi a grande insegurança propiciada pelo contexto político-administrativo de então, pois a cidade vivia um momento tenso com a quarta mudança do secretário de saúde e diversas demissões que, de certa forma, revelavam uma grave crise institucional. Cogitou-se que a participação nas reuniões do grupo gestor com todos esses atores poderia gerar ou acirrar conflitos, principalmente naquele momento.
O principal relato das agentes foi com relação ao corte de funcionários anunciado pela OS, o Isama. Tais demissões, previstas para o final de 2013, segundo as agentes, foram antecipadas para agosto. Algumas demonstraram tranquilidade ao relatar a notícia, enquanto outras denotaram bastante desconforto com a situação, sobretudo devido aos processos de seleção. Elas relataram que os ‘peixes’ (pessoas com grande influência nos processos de contratação) vão colocar pessoas novas para ocupar as vagas de ACS (AS GG, 26/07/2013).
Como dito, ‘as formas de contratação das ACSs’ era um dos temas muito presentes nas reuniões. Todas eram contratadas por uma organização social e viviam sob a tensão de verem seus vínculos empregatícios encerrados – o que se refletia nos encontros e no cotidiano da ESF. Por parte dos pesquisadores, esse tema foi bastante cuidado na condução dos encontros do grupo gestor, já que no início as reuniões eram carregadas de bastante perseguição às ACSs, como se fossem uma forma de fiscalizar seu trabalho.
No final, tivemos a notícia que haverá corte de 30% dos profissionais da saúde em Cubatão. As ACSs estavam muito aflitas e reativas, talvez por conta dessa situação. É possível que elas pensem que o que falarem nas reuniões pode ser voltado contra elas, já que o GG envolve também pessoas da gestão. Essa situação precisa ser levada em conta, porque é um pano de fundo que afeta diretamente quem está na ponta, no caso as ACSs (Diário de campo, 09/11/2012).
Ao longo do tempo, todos os infortúnios causados pela indefinição dos contratos de trabalho das ACSs tornavam-se motivo de acolhimento pelos pesquisadores, desabafo das próprias ACSs e reflexão/ação por parte de todos, auxiliando e estimulando os participantes do estudo a um constante reposicionamento dentro da própria pesquisa. Dessa forma, ao mesmo tempo que o grupo gestor se reinventava, os participantes refletiam sobre os motivos das saídas de seus colegas e também propunham melhorias. Um dos motivos para que as estratégias fossem reinventadas eram justamente as mudanças no quadro de funcionários da unidade de saúde e os diferentes momentos vividos por eles – por exemplo, na iminência de demissões e redução de quadro. Era preciso que nós, pesquisadores, trouxéssemos duas ou três opções de discussão para o grupo gestor, devido à sua instabilidade.
Com o grupo gestor, construímos estratégias de entrada e permanência no campo da pesquisa, um local de difícil acesso tanto pela exclusão social quanto pelo tráfico de drogas; mapeamos as lideranças comunitárias por meio de um exercício de reflexão sobre quais eram as pessoas mais importantes no bairro que vinham à cabeça delas; elaboramos as principais questões das entrevistas com elas; discutimos questões relacionadas ao cotidiano do trabalho; mediamos conflitos sobre a quebra de contrato com os profissionais de saúde; discutimos os resultados de cada um dos quatro blocos de entrevistas realizadas – lideranças comunitárias, ACSs, demais profissionais e gestores (todas essas entrevistas não foram abordadas neste artigo); construímos uma relação ímpar com o serviço de saúde e, principalmente, com as pessoas envolvidas.
A partir dessas conquistas, entendemos que o processo revelou a dimensão ético-política como elemento fundamental de todo o trabalho, exigindo de todos respeito mútuo e colaboração para que os objetivos de cada encontro fossem alcançados e ampliados para o cotidiano da ESF. À medida que os pesquisadores se propuseram a compreender os aspectos psicossociais da atuação das ACSs, estavam a priori já implicados com o objeto de estudo, o que se tornou mais profundo por ter a pesquisa participante como inspiração metodológica.
Com base na contextualização e na análise sócio-histórica, pudemos aprofundar a reflexão sobre as práticas da ESF em contexto de vulnerabilidade social, pois a pesquisa que deu origem a este artigo valorizou as relações intersubjetivas e as questões sócio-históricas que se relacionavam com o cotidiano da ESF, sobretudo dos ACSs como pessoas-chave para a compreensão dessas dinâmicas. Compreendemos as pessoas envolvidas como sujeitos do processo (González Rey, 2011GONZÁLEZ REY, Fernando L. Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. São Paulo: Cengage Learning, 2011.), mas sobretudo, como nas palavras de Brandão (2006)BRANDÃO, Carlos R. A pesquisa participante e a participação da pesquisa. In: BRANDÃO, Carlos R.; STREK, Danilo R. (orgs.). Pesquisa participante: o saber da partilha. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006. p. 21–54.,
(…) ‘co-sujeito de nossa investigação’. Devo confiar nele, assim como na observação participante, na qualidade de meu interlocutor, aquele que no dizer de si mesmo desenha para mim os cenários de vida e de destino que pretendo conhecer e interpretar. Mas devo ir além, pois devo criar com ele e em seu nome (bem mais do que em meu próprio) um contexto de trabalho ao ser partilhado em pleno sentido, como processo de construção do saber conhecido e posto em prática, através de ações sociais de que ele é (ou deveria ser) o protagonista e eu sou (ou deveria ser) o ator coadjuvante.(Brandão, 2006BRANDÃO, Carlos R. A pesquisa participante e a participação da pesquisa. In: BRANDÃO, Carlos R.; STREK, Danilo R. (orgs.). Pesquisa participante: o saber da partilha. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006. p. 21–54., p. 52, destaques no original).
Nessa construção do conhecimento científico, na perspectiva da pesquisa participante, pesquisador, sujeitos e objeto de estudo estão implicados em um processo dialético. Assim, não há como pensar a construção desse conhecimento sem que haja o envolvimento mútuo desses atores, no qual as relações intersubjetivas estão em evidência. Vivenciamos esse processo na pesquisa.
Os encontros do grupo gestor foram espaços de discussão que criaram recursos para que os sujeitos se expressassem e se implicassem com o problema da pesquisa, produzindo sentidos juntamente com os pesquisadores, construindo interpretações acerca da realidade estudada. Portanto, destacamos a importância que a ‘comunicação’ teve nos encontros como possibilidade de acolhimento, compreensão, mas também de implicação dos sujeitos com o estudo que conduzíamos.
A pesquisa representa, nas ciências antropossociais, um espaço permanente de comunicação que terá um valor essencial para os processos de produção de sentido dos sujeitos pesquisados nos diferentes momentos de sua participação nesse processo. A pessoa que participa da pesquisa não se expressará por causa da pressão de uma exigência instrumental externa a ela, mas por causa de uma necessidade pessoal que se desenvolverá, crescentemente, no próprio espaço de pesquisa, por meio dos diferentes sistemas de relação constituídos nesse processo (González Rey, 2012GONZÁLEZ REY, Fernando L. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção da informação. São Paulo: Cengage Learning, 2012., p. 15).
As reuniões eram encontros dialógicos, em busca de problematização, reflexão e criação. Os pesquisadores não estavam ali para pronunciar o mundo e suas supostas verdades; estavam ali para pronunciar juntamente com os sujeitos algumas certezas em exercícios constantes de alteridade e empatia. Vale lembrar Freire (2005FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005., p. 110): “Porque é encontro de homens que pronunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns a outros. É um ato de criação.”
Cada encontro exigia dos participantes esforços de compreensão para organização das ideias. Cada novo encontro possuía espaços para imersão, mas havia uma busca por se manter o foco, recapitulando-se sempre os objetivos da pesquisa. Um dos focos dos pesquisadores era justamente o de organizar as falas e dar visibilidade a novos elementos, contribuindo na elaboração de reflexões sobre suas vivências.
Eu acho que pra tentar descrever esse sentimento que você falou, vamos tentar, só pra entender o que você tá me falando, é um sentimento de… satisfação… como se o seu trabalho tivesse sido cumprido? Porque aquele era seu papel e você fez ele bem, né? (Pesquisadora N., Grupo gestor, 11/05/2012).
Mas acho que isso que você está falando L. [gestora] tem uma coisa, assim, da solicitação do que chega pros agentes, são as mais variadas possíveis, não é? Desde o copo de Nescau até o psicólogo. Não é isso? Então, como é que a gente, ele administra e percebe essas demandas, essas necessidades que são tão diversificadas, não é isso? Pensando depois, como isso chega na equipe? Como a equipe depois percebe isso dentro da rede? Como que isso vai adquirindo corpo? Porque você consegue fazer tudo? Um copo de Nescau você pode, mas e as outras coisas? É só fazer essa, digamos assim, esse diagnóstico que você faz… vai lá na casa e vê que uma pessoa precisa de atendimento especializado, não é isso? Como que o agente também lida com isso? (Pesquisador C., Grupo gestor, 11/05/2012).
No trecho descrito, o pesquisador recordou um caso contado pela ACS em uma das reuniões anteriores, na qual ela se emocionou quando se lembrou de uma das munícipes mães que, com filhos de colo, disse para ela: ‘como seria bom dar um leite geladinho com Nescau para seu filho’, mas a mãe não tinha condições. A ACS, naquele momento, tirou do seu dinheiro e comprou um leite e o Nescau para ela. Com este caso, pudemos refletir sobre a questão do imediatismo e as possibilidades de articulação intersetorial na integralidade das ações em saúde.
Todas essas tentativas de organizar os discursos eram também maneiras de aproximação dos sentidos produzidos pelos sujeitos nas relações. A ‘dialogicidade’, tal como apontada por Freire (2005)FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005., tornou-se marca registrada da pesquisa – quando os pesquisadores se esforçavam para compreender as dinâmicas desses profissionais na ESF e também para elaborar estratégias que contemplassem as expectativas dos atores envolvidos. Por esse caminho, é interessante observar as transformações que a pesquisa significou para os ACSs. As dificuldades passadas até chegar a essa profissão, bem como o reconhecimento e a transformação de suas vidas, estão presentes nos trechos que seguem:
Eu achei difícil falar a respeito da minha vida passada, como eu cheguei até o PSF, das dificuldades que eu passei até chegar, até chegar na função de agente da saúde. Porque teve muita coisa minha no passado que é… que me deixa muito triste, então foi lembrado tudo isso, foi difícil (ACS C., Grupo gestor 15/02/2013).
Tipo, pow, ‘como é que é meu trabalho?’ Às vezes, a gente acha que a gente é um simples agente de saúde, tipo, entre aspas não é nada, mas quando você vai ver, na entrevista, você se acha importante por isso, entendeu? (…) Mas assim, querendo ou não, a gente acaba percebendo, assim, que a gente é importante na opinião dos munícipes lá fora, entendeu? Não, aqui dentro também, mas assim, a gente tem a visão do pessoal lá fora, assim, e isso pra gente é importante, assim, entendeu? (ACS L., Grupo gestor, 15/02/2013).
Acreditamos que essas falas traduziram o potencial transformador da pesquisa, na qual os sujeitos, seres de afeto por sua própria constituição natural (Chauí, 2011CHAUÍ, Marilena. Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.; Bove, 2010BOVE, Laurent. Sobre o princípio do conhecimento dos afetos em Espinosa: causalidade e esforço sem objeto na Ética III. In: BOVE, Laurent (org.). Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e antropogênese. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 25–41.), se afetavam mutuamente nas relações, desencadeando esses processos de transformação e intensificação da ‘potência de ação’, entendida por Sawaia (2001SAWAIA, Bader B. Participação social e subjetividade. In: SORRENTINO, Marcos (coord.). Ambientalismo e participação na contemporaneidade. São Paulo: Educ/Fapesp, 2001, p. 115–134., p. 125) como “capacidade de ser afetado pelo outro, num processo de possibilidades infinitas de criação e de entrelaçamento nos bons e maus encontros. É quando me torno causa de meus afetos e senhor de minha percepção”.
Apesar de considerarmos que deste estudo saíram transformados não apenas os pesquisadores, mas também alguns dos sujeitos da pesquisa – que durante todo o percurso de construção do co-nhecimento puderam refletir sobre seus diversos posicionamentos ético-políticos –, é pertinente questionarmos se essas transformações relatadas estavam em um nível de discurso ou se realmente se reverteram no trabalho prático como ACS. Indicou-se um limite da pesquisa realizada. Ressaltamos, entretanto, que a construção do conhecimento foi feita em conjunto, na relação intersubjetiva entre sujeitos e pesquisadores.
Considerações finais
Em vista do que foi discutido neste artigo, a pesquisa participante mostrouse uma interessante abordagem no que se refere à construção do conhecimento de maneira transformadora e ético-política.
Propor a sistematização e a análise das informações obtidas na interação com o campo, referenciadas pela hermenêutica de profundidade, possibilitou a ênfase nas experiências cotidianas somadas ao ‘chão’, ao que sustenta as vivências, ou seja, a história local, a cultura, a política/organização do trabalho em saúde, as configurações intersubjetivas e sociais do território e a história de vida das pessoas.
A pesquisa com tais princípios pode ser um importante caminho para problematizar, promover reflexões e dar espaço à criatividade de pesquisadores e pesquisados, além de propiciar transformações nos sujeitos mediante as relações intersubjetivas que se estabelecem. Os diálogos horizontais conquistados a partir do grupo gestor da pesquisa possibilitaram que houvesse, de fato, uma construção do conhecimento compartilhada entre atores do campo e pesquisadores, todos implicados com os dilemas vivenciados.
As dificuldades surgidas durante a trajetória da pesquisa auxiliaram a (re)pensar o papel do pesquisador e do próprio estudo, incitando reflexões sobre quais seriam os próximos passos a seguir. Foi imprescindível pensar a pesquisa como um processo e não como algo dado, feito.
A partir deste estudo, entendemos que a ESF, por meio de sua unidade, muitas vezes pode ser o único equipamento do Estado em territórios de vulnerabilidade social, tendo que ampliar suas ações e conexões. O ACS tornase, nesse contexto, um potente profissional de saúde que carece de apoio e orientação. A pesquisa participante, ainda que por um tempo determinado, acabou preenchendo essa lacuna, deixando frutos de reflexão crítica e possibilidades ampliadas de ação.
Em suma, acreditamos que a pesquisa participante exibe um intenso potencial transformador, mostrando-se capaz de responder a determinadas problemáticas sociais. Compactuamos com a visão de que não são apenas os instrumentos que caracterizam uma pesquisa desse tipo, mas sim a valorização das experiências dos sujeitos envolvidos e dos diálogos estabelecidos entre todas as partes, em prol de um conhecimento mais democrático, ético e transformador.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Jan 2017 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2017
Histórico
-
Recebido
09 Set 2014 -
Aceito
13 Out 2015