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Arte, corpo e humanidades na formação do profissional em saúde

Art, body, and humanities in the formation of the health professional

Arte, cuerpo y humanidades en la formación de los profesionales de la salud

Resumo

O presente artigo teve por objetivo principal explicitar os fundamentos teórico-metodológicos de uma experiência pedagógica realizada na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, no campo das ‘humanidades médicas’. Trata-se da disciplina ‘Arte e saúde’, ministrada desde 2016, na qual se procurou desenvolver uma estratégia de ensino que explicita e discute, na prática médica, questões relacionadas a corporeidade, gênero e cuidado à saúde. Nessa perspectiva, procurou-se explorar a potencialidade transgressora da arte como uma forma de problematizar um conjunto de pressupostos, princípios e valores subjacentes às relações sociais que, usualmente, são estabelecidas nos encontros entre terapeutas e pacientes. Neste artigo, discutimos apenas sobre um módulo dessa disciplina: aquele em que usamos exemplos de performances artísticas para refletir a dimensão corporal da experiência humana (corporeidade) e o mundo da vida cotidiana.

Palavras-chave:
humanidades médicas; corpo; arte

Abstract

The primary focus of this article was to elucidate the theoretical and methodological underpinnings of a unique and innovative pedagogical endeavor undertaken at the Faculdade de Medicina of Universidade Federal da Bahia, Brazil, within the realm of ‘medical humanities.’ This is the domain of ‘Art and Health,’ introduced in 2016, where our aim was to devise a teaching approach that delves into and deliberates, in the context of medical practice, on issues pertaining to corporeality, gender, and health care. From this standpoint, we endeavored to harness the transformative power of art as a means of questioning a set of assumptions, principles, and values that underlie social interactions typically observed in therapeutic encounters. This article specifically delves into one module of this course: a module that employs instances of artistic performances to contemplate the physical aspect of human existence (corporeality) and the realm of everyday life.

Keywords:
medical humanities; body; art

Resumen

Este artículo tiene como objetivo principal exponer los fundamentos teóricos y metodológicos de una experiencia pedagógica llevada a cabo en la Faculdade de Medicina of Universidade Federal da Bahia, Brasil, en el ámbito de las ‘humanidades médicas’. Se trata de la asignatura ‘Arte y Salud’, que se imparte desde 2016, con el objetivo de desarrollar una estrategia didáctica que evidencie y discuta cuestiones relacionadas con la corporalidad, el género y el cuidado de la salud en la práctica médica. Desde esta perspectiva, se buscó explorar el potencial transgresor del arte como una manera de problematizar un conjunto de presupuestos, principios y valores subyacentes a las relaciones sociales que suelen establecerse en los encuentros entre terapeutas y pacientes. En este artículo, hablaremos de un solo módulo de esta asignatura: aquel en el que utilizamos ejemplos de representaciones artísticas para reflexionar sobre la dimensión corporal de la experiencia humana (corporeidad) y el mundo de la vida cotidiana.

Palabras clave:
humanidades médicas; cuerpo; arte

Introdução

Toda obra de arte digna deste nome retira-se do mundo, reflete-se em si mesma, e, no entanto, mesmo estando voltada sobre si mesma, como que mostra um mundo, faz ver de um modo novo nosso universo cotidiano. (Haar, 2007HAAR, Michel. A obra de arte: ensaios sobre a ontologia das obras. Rio de Janeiro: Difel, 2007., p. 6)

A competência e a habilidade do profissional em saúde para lidar com o paciente - com uma outra pessoa, um alter - requer mais do que a formação técnico-científica adquirida nas faculdades. Desnecessário é dizer que a prática desses profissionais se efetiva por meio de relações interpessoais construídas por diferentes atores sociais em contextos e situações específicas. O cuidar do outro, o lidar com a alteridade, com as singularidades das experiências humanas, envolve percepções, interpretações, valorações, responsabilidade, questões morais, além, obviamente, do saber técnico-científico.

Como argumenta Stelet (2021STELET, Bruno P. Entre contos e contrapontos: medicina narrativa na formação médica. Curitiba: Appris, 2021., p. 23), o desenvolvimento dessas habilidades “não se opera simplesmente por meio da empatia, mas pela possibilidade de trazer à faculdade do pensamento o ponto de vista, a cultura, a experiência de sofrimento do outro”. Daí a importância de uma preocupação com a formação mais ‘humanística’ do profissional de saúde (McWhinney, 2017MCWHINNEY, Ian R. A evolução do método clínico. In: STEWART, Moira. et al. O método clínico centrado na pessoa. Porto Alegre: ArtMed, 2017. p. 47-64. ). Assim, uma questão fundamental subjacente a essa formação diz respeito ao que fazer para que os modelos típicos de percepção e de conduta sobre o cuidado à saúde - tidos como certos e quase naturais nas práticas terapêuticas - sejam identificados, problematizados e reanalisados.

Recentes diretrizes educacionais, em âmbito tanto internacional como nacional, têm reconhecido a importância de se integrarem as ciências humanas, a filosofia, a ética e a arte nos currículos do ensino médico. O processo de integração de disciplinas das ciências humanas nos cursos médicos se dá no âmbito do que é usualmente conhecido como ‘humanidades médicas’. Um exemplo significativo de um diálogo profícuo entre medicina e o campo das humanidades é a chamada ‘medicina narrativa’, que desde os fins do século XX, nos Estados Unidos, vem ocupando cada vez mais espaço nas instituições de ensino (Charon, 2006CHARON, Rita. Narrative medicine: honoring the stories of illness. Oxford: Oxford University Press, 2006.; Hurwitz e Charon, 2013HURWITZ, Brian; CHARON, Rita. A narrative future hot health care. The Lancet, London, v. 381, n. 9.881, p. 1.889-1.887, 2013. Doi: 10.1016/S0140-6736(13)61129-0. Disponível em: Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5563064/pdf/nihms893315.pdf . Acesso em: 13 nov. 2023.
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). O primeiro departamento de humanidades médicas foi estabelecido em 1967, na Pennsylvania State University College of Medicine. No caso brasileiro, os relatos de experiências nessa área têm crescido significativamente (Grossman e Cardoso, 2006GROSSMAN, Eloísa; CARDOSO, Maria H. As narrativas em medicina: contribuições à prática clínica e ao ensino médico. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, p. 6-14, 2006. Doi: 10.1590/S0100-55022006000100002. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbem/a/dJzqH9FgLdssTjdTtkFpWZL/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 13 nov. 2023.
https://www.scielo.br/j/rbem/a/dJzqH9FgL...
; Claro e Mendes, 2018CLARO, Lorena; BARRETO, Lorena; MENDES, Anna. Uma experiência do uso de narrativas na formação de estudante de medicina. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 22, n. 65, p. 621-630, 2018. Doi: 10.1590/1807-57622016.0850. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/8sbztxcRPsVKGMdKRLgzFPp/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 13 nov. 2023.
https://www.scielo.br/j/icse/a/8sbztxcRP...
; Stelet, 2021STELET, Bruno P. Entre contos e contrapontos: medicina narrativa na formação médica. Curitiba: Appris, 2021.; Novis, Geovanini e Veran, 2021 NOVIS, Ana L.; GEOVANINI, Fátima; VERAN, Lorraine (orgs.). Medicina narrativa: a arte do encontro. Rio de Janeiro: Thieme, 2021.; Nacaguma, Ruiz e Gallian, 2021NACAGUMA, Simone; RUIZ, Rafael; GALLIAN, Dante. Literatura e humanização na universidade: uma proposta de formação. Revista Eletrônica de Educação, São Carlos, v. 15, p. 1-18, 2021. Doi: 10.14244/198271994413. Acesso em: 13 nov. 2023.
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).

No Brasil, o Ministério da Educação, por meio das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) do curso de graduação em medicina (resolução n. 3, de 20 de junho de 2014), estabeleceu os princípios, fundamentos e finalidades da formação em medicina, que devem ser observados na organização, no desenvolvimento e na avaliação dos cursos superiores (Brasil, 2014BRASIL. Resolução CNE/CES n. 3, de 20 de junho de 2014. Brasília, 2014. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=15874-rces003-14&category_slug=junho-2014-pdf&Itemid=30192 . Acesso em: 13 nov. 2023.
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). Tais diretrizes partem do pressuposto de que a formação do graduando requer, entre outros aspectos, uma formação humanística, crítica e ética que possa capacitá-lo à prevenção da doença e à promoção do bem-estar, recuperação e reabilitação no campo da saúde. Espera-se que o estudante de medicina seja capaz de desenvolver conhecimentos, habilidades e atitudes para lidar com as dimensões humanas envolvidas na atenção à saúde e na gestão do cuidado à pessoa. Conforme o artigo 29 das DCNs, a estrutura do curso de graduação em medicina deve incluir dimensões éticas e humanísticas, para desenvolver no aluno atitudes e valores orientados para a ‘cidadania ativa multicultural e para os direitos humanos’, assim como para promover a integração e a interdisciplinaridade em coerência com o eixo de desenvolvimento curricular, buscando integrar as dimensões biológicas, psicológicas, etnicorraciais, socioeconômicas, culturais, ambientais e educacionais.

O termo ‘humanidades médicas’ é, sem dúvida, muito amplo. Embora não exista um consenso sobre o seu significado, esse termo é bastante utilizado nos cursos de saúde. Nas escolas médicas, as atividades acadêmicas que procuram atender às diretrizes estabelecidas pelo Ministério de Educação têm diferentes didáticas e objetivos, recorrem a distintos referenciais teóricos. Mas, de maneira geral, é possível identificar determinados pressupostos nessas atividades que as distinguem, por exemplo, das perspectivas desenvolvidas usualmente nos cursos de saúde coletiva. Nunes (2006NUNES, Everardo D. A trajetória das ciências sociais em saúde na América Latina: revisão da produção científica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, p. 64-72, 2006. Número especial Doi: 10.1590/S0034-89102006000400010. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rsp/a/DZrB8ddBTPyMHnVcd3gxKzx/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 13 nov. 2023.
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) e Canesqui (2011CANESQUI, Ana M. Ciências sociais e saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2011.), por exemplo, chamam a atenção para o fato de que os cursos de saúde coletiva se ocupam, principalmente, em estabelecer associações entre saúde/doença e os aspectos socioculturais de grupos dentro da sociedade. As ‘humanidades médicas’, por sua vez, têm por objetivo principal discutir e fomentar o desenvolvimento de valores éticos e sensibilidades no exercício da medicina e na formação acadêmica do estudante. Caracterizam-se por procurar desenvolver no estudante conhecimentos, habilidades e atitudes para lidar com as dimensões humanas que estão envolvidas na atenção à saúde e na gestão do cuidado à pessoa (Winkler, 1992WINKLER, Mary G. Seeing patients. Literature and Medicine, New York, v. 11, n. 2, p. 216-222, 1992. Doi: 10.1353/lm.2011.0194. Acesso em: 28 mar. 2024.
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; Peloquin, 1996PELOQUIN, Suzanne M. Art: an occupation with promise for developing empathy. The American Journal of Occupational Therapy: official publication of the American Occupational Therapy Association, Boston, v. 50, n. 8, p. 655-661, 1996. Doi: 10.5014/ajot.50.8.655. Acesso em: 28 mar. 2024.
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; MacNaughton, 2000MACNAUGHTON, Jane. The humanities in medical education: context, outcomes and structures. Medical Humanities, London, v. 26, n. 1, 2000. p. 23-30. Doi: 10.1136/mh.26.1.23. Acesso em: 28 mar. 2024.
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; Bardes, Gillers e Herman, 2001BARDES, Charles L.; GILLERS, Debra; HERMAN, Amy E. Learning to look: developing clinical observational skills at an art museum. Medical Education, Edinburgh, v. 35, n. 12, p. 1.157-1.161, 2001. Doi: 10.1046/j.1365-2923.2001.01088.x. Acesso em: 28 mar. 2024.
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; Blasco, 2002BLASCO, Pablo G. Medicina de família & cinema: recursos humanísticos na educação médica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.; Bleakley et al., 2003BLEAKLEY, Alan et al. Making sense of clinical reasoning: judgement and the evidence of the senses. Medical Education, Edinburgh, v. 37, n. 6, p. 544-552, 2003. Doi: 10.1046/j.1365-2923.2003.01542.x. Acesso em: 28 mar. 2024.
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; Landsberg, 2009LANDSBERG, Gustavo. Vendo o outro através da tela: cinema, humanização da educação médica e medicina de família e comunidade. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 4, n. 16, p. 298-304, 2009. Doi: 10.5712/rbmfc4(16)422. Disponível em: Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/422/326 . Acesso em: 13 nov. 2023.
https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/...
; Bittar, Gallian e Sousa, 2013BITTAR, Yuri; GALLIAN, Dante M. C; SOUSA, Maria S. A. A experiência estética da literatura como meio de humanização em saúde: o Laboratório de Humanidades da EPM/Unifesp. Interface: Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v. 17, n. 44, p. 171-186, 2013. Doi: 10.1590/S1414-32832013000100014. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/94rvGfNxrffzYqQyPxnQQ5G/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 13 nov. 2023.
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; Jasani e Saks, 2013JASANI, Sona; SAKS, Norma. Utilizing visual art to enhance the clinical observation skills of medical students. Medical Teacher, London, v. 35, n. 7, p. 1.327-1.331, 2013. Doi: 10.3109/0142159X.2013.770131. Disponível em: Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/epdf/10.3109/0142159X.2013.770131?needAccess=tru . Acesso em: 13 nov. 2023.
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; Ferreira et al., 2015FERREIRA, Francisco et al. (orgs.). Consumo, comunicação e arte. Curitiba: CRV, 2015.; National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine, 2018NATIONAL ACADEMIES OF SCIENCES, ENGINEERING, AND MEDICINE (NASEM). The integration of the humanities and arts with sciences, engineering, and medicine in higher education: branches from the same tree. Washington, DC: National Academies Press, 2018. ).

Conforme observam Rios e Schraiber (2012RIOS, Izabel C.; SCHRAIBER, Lilia. Humanização e humanidades em medicina: a formação médica na cultura contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2012.), a institucionalização das ‘humanidades médicas’ nas escolas de saúde apresenta várias dificuldades, como objetivos pedagógicos mal definidos; professores sem a qualificação necessária; falta de integração com as disciplinas clínicas; afastamento do conteúdo programático dos problemas concretos da prática médica. Um dos grandes desafios que todas elas, de formas diferenciadas, enfrentam, diz respeito a como criar canais efetivos de diálogo entre as ‘humanidades’ e a medicina, respeitando as especificidades de cada um desses campos.

Compartilhar, analisar e avaliar essas experiências pedagógicas desenvolvidas no Brasil é importante para que possamos melhor compreender as tendências (e resistências) mais dominantes nas propostas de ‘formação humanística dos profissionais em saúde’. Quais têm sido os direcionamentos teórico-metodológicos dessas propostas? Que questões, nessas experiências, são consideradas relevantes para a boa formação humanística do profissional em saúde? Afinal, como argumenta John Dewey (1950DEWEY, John. Logica: teoría de la investigación. México: Fondo de Cultura Económica, 1950.), a aquisição de um conhecimento útil - adequado em relação aos problemas que suscitam sua busca - é resultado da experiência de atores sociais e de processos interativos que propiciam um ‘clima de debate’.

Dentre essas diferentes propostas disciplinares, a arte tem sido utilizada cada vez mais nos cursos profissionalizantes em saúde. Em 2020, a Association of American Medical Colleges (AMCC), instituição dedicada a articular as bases críticas para a educação dos futuros médicos, bem como novas competências e práticas pedagógicas para o ensino e o aprendizado médico de forma contínua, publicou o relatório FRAHME (Fundamental Role of the Arts and Humanities in Medical Education) (Howley, Gaufberg e King, 2020HOWLEY, Lisa; GAUFBERG, Elizabeth; KING, Brandy E. The fundamental role of the arts and humanities in medical education. Washington: Association of American Medical Colleges, 2020.). Este documento propõe a melhoria da educação, da prática e do bem-estar dos médicos por meio da integração das artes e das humanidades na sua formação profissional.

O relatório FRAHME faz uma série de recomendações à comunidade acadêmica médica. Entre elas, destacam-se: 1) afirmar que a prática da medicina é uma arte, bem como uma ciência, exigindo uma base de valores, princípios e competências humanistas, incluindo uma compreensão profunda da condição humana; 2) criar modelos integradores de artes e humanidades mais eficazes para o ensino baseado na competência e na aprendizagem em medicina; 3) aperfeiçoar a pesquisa e a avaliação de cursos e programas que integram as artes e humanidades de forma contínua na educação médica e no desenvolvimento profissional contínuo; 4) desenvolver abordagens que integrem as artes e as humanidades na medicina para melhorar o bem-estar dos formandos e dos médicos; 5) aumentar a colaboração entre acadêmicos do ensino superior, profissionais médicos, organizações artísticas, terapeutas de artes criativas, artistas, estudiosos de humanidades, aprendizes e pacientes. Em síntese, o relatório FRAHME estimula a criação de modelos pedagógicos para o ensino das ‘humanidades’, envolvendo questões filosóficas, históricas, sociológicas e, principalmente, artísticas.

Pretende-se com o presente artigo colaborar com a discussão sobre o significado de ‘humanidades médicas’, refletindo as experiências pedagógicas realizadas com a disciplina ‘Arte e saúde’, ministrada de 2016 a 2021 na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia por uma médica (docente da Faculdade de Medicina) e um sociólogo (professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais). Trata-se de uma disciplina que, por meio do uso de imagens (e textos) sobre manifestações artísticas, pretende levantar e discutir questões relacionadas às práticas cotidianas dos profissionais de saúde. Em outras palavras, procura explorar possibilidades interpretativas, abertas pelas artes, que ultrapassam os limites impostos pelo saber disciplinar técnico-científico sobre o processo terapêutico.

Preocupada em propiciar um espaço de reflexão sobre significados, ‘pré-conceitos’,1 1 Usamos aqui o termo ‘pré-conceito’ – com hífen e entre aspas – para distinguir da matriz negativa (descrédito, um ‘falso juízo’, um ‘juízo não fundamentado’) usualmente a ele atribuído. De acordo com Hans-Georg Gadamer (1997), ‘pré-conceito’ refere-se às pré-decisões, pré-juízos, que se formam antes da prova definitiva de um evento, de uma coisa. Nesse sentido, não limitando esse conceito a sua negatividade, Gadamer ressalta sua validez positiva por chamar a atenção para os valores prejudiciais, pré-decididos, que subsistem na compreensão dos atores sociais sobre o mundo. ‘hábitos’, valores e percepções relacionados às práticas terapêuticas, a disciplina não lida diretamente com questões de estética ou de história da medicina. Tampouco utiliza a arte para promover ‘atividades lúdicas’ como recurso terapêutico no ensino profissionalizante da saúde.

A disciplina está dividida em três grandes módulos: corpo/corporeidade, gênero/sexualidade e lógica de cuidados à saúde. Cada um dos módulos começa por caracterizar alguns dos pressupostos (explícitos ou não) subjacentes ao ensino e à prática médica. Ou seja, procura-se identificar e caracterizar os mais recorrentes modelos interpretativos de corpo, gênero e cuidado à saúde que caracterizam, de maneira geral, o ensino profissionalizante em saúde, para em seguida ‘problematizá-los’, isto é, discuti-los por meio de outras perspectivas analíticas, sem perder de vista as especificidades da prática e do saber médico.

A disciplina parte do princípio de que a arte tem o potencial de questionar aspectos morais, valorativos, ideológicos, imaginativos e afetivos sobre o mundo; com isso, pode provocar um ‘choque’, uma ‘desorientação’, nas interpretações usuais, cotidianas, sobre as condutas sociais. Como observa Merleau-Ponty (1992)MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Lisboa: Vega, 1992., a arte pressupõe certo afastamento da experiência vivida e é justamente por esse distanciamento que tem o poder de apresentar novos modos de se olhar o mundo. Por apresentar as coisas e pessoas de maneira renovada, produz novos significados, instiga o público a explorar novas perspectivas sobre os fenômenos socioculturais. Em síntese, pela sua potencialidade de transgressão, a arte pode confrontar ‘forças do hábito’, expor ‘limites normativos’, atitudes fixas e disposições arraigadas nas interpretações que os terapeutas usualmente têm sobre a dimensão social da doença ou aflição.

Explorando o ‘caráter iconoclasta’ da arte

A disciplina ‘Arte e saúde’ é optativa e sem pré-requisito. Nesse sentido, é um pequeno ponto no currículo profissional. Criada no segundo semestre de 2016, já foi ofertada cinco vezes (com aula semanal de quatro horas de duração) para estudantes de diferentes cursos (graduação e pós-graduação) provenientes das escolas de medicina (maioria), enfermagem, ciências sociais, psicologia e terapia ocupacional. Em razão da reclusão causada pela pandemia, as duas últimas experiências com a disciplina (2020 e 2021) foram desenvolvidas de forma virtual, o que causou mudanças importantes na dinâmica das aulas e nas formas de envolvimento dos estudantes com o curso.

Conforme já observado, trata-se de uma atividade pedagógica que utiliza amplamente imagens fotográficas e vídeos de pinturas, esculturas e performances como estratégia para problematizar questões relacionadas aos significados de corpo, gênero e cuidados à saúde.

Como argumenta Ingold (2013INGOLD, Tim. Making: anthopology, archaeology, art and architecture. London: Routledge, 2013.), o processo de aprendizado por redescobrimento dirigido é transmitido mais corretamente pela noção de ‘mostrar’. Mostrar alguma coisa a alguém é fazer essa coisa se tornar presente para tal pessoa, de modo que ela possa apreendê-la diretamente, seja olhando, seja ouvindo ou sentindo.

A compreensão de uma imagem se realiza pela inter-relação entre a materialidade da ‘imagem-objeto’ e a construção da ‘imagem-mental’. Como chama a atenção Hans Belting, uma imagem requer uma resposta dupla.

Devemos encarar a imagem não só como um produto de um dado meio, seja ele a fotografia, a pintura ou o vídeo, mas também como um produto de nós próprios, porque geramos imagens nossas (sonhos, imaginações, percepções pessoais) que confrontamos com outras imagens no mundo visível. Assim, as imagens apoiam-se em dois actos simbólicos que implicam ambos o nosso corpo vivo: o acto de fabricação e o acto de percepção, sendo um o alvo do outro. (Belting, 2014BELTING, Hans. Antropologia da imagem. Lisboa: KKYM e EAUM, 2014., p. 11)

A percepção de uma imagem requer, portanto, uma tomada de atenção, um voltar-se para aquilo que se há de ter em conta. Há aqui uma questão de ‘relevância’ do que se deve levar em conta. Conforme argumenta Schutz (1973SCHUTZ, Alfred. Collected papers I: the problem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff, 1973.), o que é relevante para um indivíduo depende tanto das situações em que se encontra e das suas circunstâncias biográficas quanto das tipificações ou dos esquemas interpretativos (um conjunto de repertórios e receitas para atuar no mundo da vida cotidiana) socialmente compartilhados entre os membros de uma dada sociedade. Nesse sentido, no plano do senso comum, qualquer ação ocorre

dentro de um marco inquestionável e indeterminado de construções tipificadas do enquadre, dos motivos, meios e fins, os cursos de ação e personalidades envolvidas e pressupostas. Pressupostas não apenas pelo ator, mas também pelo que fazem seus semelhantes. Desse marco de construções, que formam seus horizontes indeterminados, se destacam conjuntos meramente particulares de elementos que são clara e nitidamente determináveis. (Schutz, 1973SCHUTZ, Alfred. Collected papers I: the problem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff, 1973., p. 33)

Ao serem socialmente compartilhadas no mundo da vida cotidiana, as tipificações nos dão a sensação de que nossas ações e interpretações, por ocorrerem dentro de um ‘horizonte familiar’, são tomadas como certas. Qualquer sujeito dispõe de modelos perceptivos e receitas para compreender e atuar no mundo, em contextos muito variados e específicos. Mas esses modelos podem ser, em determinadas situações, problematizados e mesmo desfeitos. São postos em questionamento sempre que algo coloca em suspensão seus pressupostos, quando uma nova experiência não pode ser incorporada ao marco de referência até então não questionado. Em resumo, esquema interpretativo não é uma construção de um sujeito individual; não é algo puramente de ordem psicológica e realizado de forma isolada. Refere-se aos significados que se derivam ou surgem de processos interativos - coexistência de ações - que um indivíduo mantém com os outros em contextos específicos. Produzidos, retomados ou refeitos em situações sociais, esses significados estão sujeitos a mudanças.

Assim, ao se partir do pressuposto de que a percepção de uma imagem revela aspectos culturais (e individuais, é claro), é possível identificar, por meio da troca discursiva organizada no contexto de aula, determinados valores, normas e procedimentos por meio dos quais os agentes sociais atuam no ‘mundo’. Como já chamamos a atenção, a grande preocupação da disciplina ‘Arte e saúde’ é desenvolver estratégias que possam explicitar alguns esquemas mentais subjacentes nas interpretações dos estudantes sobre questões relacionadas a corporeidade, gênero e cuidado - esquemas mentais esses que usualmente não constituem objeto de reflexão; como denominados pela fenomenologia, são ‘pré-objetivos’, ‘pré-reflexivos’. São como fundos não representados dos projetos, ações e sentimentos nas condutas humanas.

Ao questionar pressupostos estáveis, ordinários e rotineiros das ações cotidianas, a obra de arte é utilizada para provocar uma experiência de ‘ruptura’ - uma experiência que pode deixar algumas pessoas ‘angustiadas’. Como observa Garfinkel (2018) GARFINKEL, Harold. Estudos de etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 2018., a exposição de ‘estar angustiado’ já evidencia que os esquemas interpretativos tomados por certo na existência cotidiana estão sendo repensados ou mesmo quebrados. Um elemento importante desse processo é que, como reação ao que está sendo exposto e debatido, as pessoas podem se afastar ou, como mais usualmente acontece, produzir explicações para elas aceitáveis e plausíveis à situação de desconforto, de aflição, e assim (re)assegurar a normalidade do seu mundo. São justamente essas atividades reflexivas que constituem a principal preocupação da disciplina ‘Arte e saúde’.

Corpo, corporeidade e performance

No presente artigo, discutimos apenas um dos módulos do curso ‘Arte e saúde’: ‘corpo e corporeidade’. Ao utilizar, como já observado, um conjunto de imagens retiradas de diferentes manifestações artísticas, o objetivo dessa unidade é apresentar a diversidade de perspectivas de se conceber o corpo. O objetivo central é discutir o significado de ‘corporeidade’, isto é, do ‘corpo vivido’; do corpo concebido como uma posição existencial do mundo; como aquilo que nos conecta com o mundo; e, por meio dessa discussão, debater as maneiras pelas quais o corpo orienta os indivíduos no mundo cotidiano. Em outras palavras, trata-se de apresentar o corpo não apenas como um objeto natural, objetivo, mas também como uma parte constitutiva do sujeito, de práticas sociais; portanto, como algo que não pode ser empobrecido por determinado saber, por meio de conceitos que preordenam a compreensão das diferentes experiências corporais.

Pautados na noção de ‘corpo-máquina’ ou corpo anatômico, que pode ser analisado de forma compartimentalizada, manipulado, corrigido, dividido em sistemas, órgãos, partes, os modelos de saúde biologizantes desenvolvidos na formação dos profissionais em saúde oferecem pouco espaço para reflexão sobre a noção de corporeidade aqui apresentada (Rodrigues, Batista e Dalla, 2020RODRIGUES, Vinícius; BATISTA, Cássia; DALLA, Marcelo. Corpos anatomizados e educação médica: identificando intersecções entre cultura, formação e prática médica. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, v. 44, n. 3, e106, 2020. Doi: 10.1590/1981-5271v44.3-20190339. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbem/a/fmhbLgBCgTgn9PvCJZ5sB8K/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 13 nov. 2023.
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). Tampouco os modelos culturais que compreendem o corpo como determinado por fatores socioculturais, como resultante de ‘forças exteriores’ - assim como os modelos ‘psicológicos’ que partem do princípio de ser o corpo um instrumento por meio do qual os sujeitos expressam suas vontades e interesses -, permitem um entendimento do corpo como eixo central de nossa experiência compartilhada do mundo.

Nessas três perspectivas, a ideia de ‘normalidade’ (ou ‘anormalidade’) adquire uma posição central na noção de corpo. Assim pensado, como argumenta Jackson (1983JACKSON, Michael. Knowledge of the body. Man, London, v. 18, n. 2, p. 327-345, 1983.), o corpo é simplesmente um objeto de compreensão ou um instrumento da mente racional. E como Leder (1984LEDER, Drew. Medicine and paradigms of embodiment. The Journal of Medicine and Philosophy, Oxford, v. 9, n. 1, p. 29-43, 1984. Doi: 10.1093/jmp/9.1.29. Acesso em: 28 mar. 2024.
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) chama a atenção, a concepção de corpo-objeto tem implicações significativas para a noção de ‘pessoa’ e para a prática cotidiana dos profissionais de saúde.

A dinâmica das aulas pressupõe a realização de tarefas dadas aos alunos uma semana antes do encontro e que são discutidas em sala. Solicita-se ao estudante elaborar um pequeno texto respondendo a duas ou três questões relacionadas às imagens (ou às obras literárias) apresentadas. O módulo é desenvolvido em cinco aulas, divididas em duas sessões. A primeira delas (duas aulas) tem por objetivos identificar e caracterizar as premissas básicas implícitas nos textos apresentados pelos alunos no que diz respeito à concepção de corpo. A segunda parte do módulo busca explorar o significado de ‘corporeidade’ do sujeito encarnado.

A discussão sobre corporeidade requer atenção especial aos contextos interacionais, às ações que os indivíduos, na vida cotidiana, desenvolvem com o seu mundo circundante. Assim, o objetivo fundamental dessa subunidade é compreender o corpo como um ‘ponto de vista’, como localização pela qual percebemos o mundo e como nos orientamos e agimos nele. Quais as implicações éticas e políticas existentes no significado de ‘corporeidade’? Qual a sua importância para a prática médica?

Para iniciar a discussão de ‘corporeidade’, é solicitado ao estudante que elabore um pequeno texto sobre duas questões: a intenção da(o) obra/artista; e as sensações despertadas pela obra. Para essa tarefa, são usualmente utilizadas imagens de performances, como o trabalho de Marina Abranovic e Ulay (Imponderabilidade)2 2 Disponível em: http://www.touchofclass.com.br/index.php/2019/09/06/imponderabilia-performance-demarina-abramovic-com-artistas-nus-chega-a-londres-em-2020. Acesso em: 13 nov. 2023 e Gordura Trans #16/Gordura localizada#6/Gordura saturada#4, de Miro Spinelli.3 3 Disponível em: https://artreview.com/ar-october-2017-review-frestas-biennial. Acesso em: 13 nov. 2023. Vejamos esses dois exemplos. Na performance de Abranovic e Ulay, realizada em 1972 na Galeria de Arte Moderna de Bolonha, os dois artistas estavam nus, um em frente ao outro, em uma estreita entrada para a exposição, de tal forma que as pessoas que desejavam entrar na galeria tinham que passar através de um pequeno espaço entre eles, tornando o contato físico inevitável. A situação imposta pelos artistas demandava a tomada de uma série de decisões práticas por parte do público. Durante toda a performance, os artistas permaneciam olhando um para o outro, sem se movimentar, como estátuas. Um texto na parede da exposição informava: ‘Imponderável. A importância primordial dos imponderáveis na determinação da conduta humana’. Entre outros aspectos, essa performance suscitou uma discussão sobre o ‘inusitado’, a interação física entre corpos, a sexualidade.

A segunda obra - de Miro Spinelli - foi realizada em 2017, no Festival Trienal de Artes de Sorocaba (São Paulo). Em uma sala, um pequeno grupo de artistas gordos e envoltos em sebo se movimentava de forma imprevisível, fundindo seu corpo ao espaço e estabelecendo uma relação com o público por meio da troca de olhares. Essa obra suscitou reflexões sobre ‘pré-conceitos’, sobre modelos interpretativos usuais em relação à ideia de ‘gênero’, de ‘corpos gordos’, de hábitos, de descuido.

Antes de prosseguir, é importante salientar alguns aspectos de uma performance. Não se trata de uma proposta artística que apenas estabelece uma experiência de proximidade entre obra e público. Uma performance tem um caráter conceitual (no sentido de enfatizar formas/processos/ideias sobre determinados aspectos da vida cotidiana), além de ser um experimento artístico com novas linguagens e suportes próprios. Como observa Glusberg (2011GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2011.),

o trabalho de corpo nas performances institui um contato direto entre emissor e receptor sem a intermediação técnica de nenhum equipamento eletrônico moderno exceto pela utilização de som ou vídeo... [portanto,] elimina os significados que cada meio de comunicação agrega por sua conta aos conteúdos que transmite. (Glusberg, 2011GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2011., p. 59)

As performances selecionadas no curso ‘Arte e saúde’ são apresentadas mediante um conjunto de fotografias. Desnecessário dizer, a fotografia intermedeia o contato entre artista e público, desnaturaliza a experiência direta do espectador e alude a um objeto mostrando somente aspectos parciais. Mesmo assim, as imagens de performances podem despertar certo impacto no imaginário do espectador, provocando uma sensação de ‘estranhamento’, de desconcerto, temor ou repulsa, porque a performance

é um questionamento do natural e, ao mesmo tempo, uma proposta artística [...] é inerente ao processo artístico o colocar em crise os dogmas - principalmente os dogmas comportamentais - seja isso mediante sua simples manifestação ou através de ironia, de referência sarcástica etc. (Glusberg, 2011GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2011., p. 58)

As performances, continua Glusberg (2011GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2011., p. 57), são “oferecidas a um público que vive a ficção de seu próprio corpo, que se apresenta de uma forma imposta por rituais estabelecidos”. Trata-se de um tipo de evento-ação no qual o espectador muitas vezes é impulsionado a ‘decodificar’ os gestos, os movimentos, o comportamento do artista, estabelecendo, portanto, uma relação de coautoria e não somente de contemplação passiva do receptor. Nesse sentido, essa manifestação artística pode levantar um intenso teor polêmico e provocar impacto emocional.

Como os estudantes reagem diante dessas obras? O que é relevante nas suas análises? Que tipificações estão presentes nos textos elaborados por eles?

O termo mais utilizado nesses textos foi ‘incômodo’. Em relação ao trabalho de Abramovic e Ulay (Imponderabilidade), todos enfatizaram o ‘desconforto’ ao ter que, em um exíguo espaço, passar entre dois corpos nus. Desconforto com a sexualidade da nudez. Por exemplo: a quem dar as costas e direcionar o olhar no momento da passagem? Algo semelhante ocorreu nos comentários sobre a segunda performance. A sensação de incômodo - e mesmo de repulsa - pela presença de corpos gordos e quase nus, envoltos em grandes quantidades de gordura; desconforto pelo descontrole do ambiente e pela falta de higiene. O corpo gordo, seminu e lambuzado de gordura, é associado a questões alimentares, a um ideal de asseio, ao ‘descontrole animal’. Nessa linha de argumentos, os textos terminam por explicitar ‘pré-conceitos’, ‘mensagens’ moralistas e normatizações de conduta.

O ponto fundamental das discussões desenvolvidas nas aulas é refletir sobre as razões pelas quais os estudantes explicam, compreendem os motivos do ‘incômodo’, do ‘desconforto’. São discussões que levantam pressupostos sobre as relações entre corpo e espaço; sobre a materialidade corporal e suas relações com as situações e circunstâncias nas quais estamos sempre envolvidos; sobre as pré-noções em relação à nudez, à sujeira, à obesidade, ao cuidado.

Em síntese, o objetivo do módulo ‘corpo/corporeidade’ é identificar e caracterizar determinados valores, aspectos éticos, ideológicos, imaginativos e afetivos que ‘sustentam’ o conhecimento do mundo da vida cotidiana; são como pano de fundo ‘senso comum’ pelo qual interpretamos o corpo - interpretações que carregam em si mesmas um marco inquestionável e indeterminado de construções tipificadas, enquadramentos, julgamentos socialmente compartilhados que podem ser caracterizados, criticados, explorados.

Considerações finais

No presente artigo, discutimos alguns dos pressupostos teórico-metodológicos subjacentes a uma experiência desenvolvida na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia relacionada à humanidade médica - a disciplina ‘Arte e saúde’. Nela, procuramos explorar a potencialidade transgressora da arte como estratégia pedagógica para explicitar determinados pressupostos, princípios e valores usualmente subjacentes ao ensino e ao cotidiano da prática médica (Lawrence, 2008LAWRENCE, Randee. Powerful feelings: exploring the affective domain of informal and arts‐based learning. New Directions for Adult and Continuing Education, New Jersey, v. 2008, n. 120, p. 65-77, 2008. Doi: 10.1002/ace.317. Acesso em: 28 mar. 2024.
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). A nossa discussão limitou-se a um módulo dessa disciplina: a noção de corpo e corporeidade.

O argumento central discutido nesse módulo diz respeito a como as noções explicativas previamente estabelecidas sobre o ‘corpo-objeto’ - seja ele determinado por fatores biológicos, seja por efeitos da cultura - empobrecem parcialmente a dimensão corporal da experiência humana (corporeidade). Ao buscar definições e regularidades previamente estabelecidas sobre o corpo, o profissional em saúde corre o risco de distanciar os atores sociais do seu ambiente, do seu mundo cotidiano. Quanto mais nos desvencilhamos do que está perto de nós e nos retiramos a uma distância do que nos rodeia, terminamos nos ‘alienando’ do nosso ambiente imediato. Com isso, corremos o risco de perder de vista a pluralidade humana, as distinções, diferenças e alteridades que marcam as ações humanas e os mundos sociais.

É importante salientar que a questão fundamental da discussão não é negar a existência do ‘corpo-objeto’ ou de criar uma dicotomia polarizada com o corpo vivido, uma oposição binária entre explicações científicas e experiência vivida, mas colocar a experiência corporal em primeiro plano, como um horizonte em que damos atenção aos objetos em nosso entorno, sobre o qual tematizamos ou representamos o nosso corpo, o nosso ambiente - um corpo sujeito às instituições e tecnologias que sedimentam hábitos físicos e mentais. Assim, o objetivo principal do módulo é alertar os estudantes para um componente prioritário do corpo: o de ser o fundamento das nossas percepções, ações, linguagem e compreensão dos humanos e não humanos, dos nossos entornos. É por habitar precisamente um lugar específico, o estar localizado no espaço e no tempo, pelas suas sensações somáticas (prazer, dor, fome, tensão etc.), que o corpo nos fornece um ângulo de percepção ou perspectiva pelo qual atuamos no mundo da vida cotidiana.

Também é importante observar que a noção de corpo vivido não se refere a uma espontaneidade somática irrefletida do momento, pois toda ação corporal já está ‘maculada’ pelas sedimentações de hábitos adquiridos. Ao problematizar os pressupostos e princípios do corpo vivido, não se pretende apagar os nossos ‘pré-conceitos’, nossos ‘hábitos’ (uma tarefa impossível), mas tornar objeto de atenção explícita as nossas percepções, experiências e performances. Isto é, problematizar o corpo vivido significa dizer que ele deve ser trazido à reflexão crítica consciente - mesmo que por tempo limitado - para que tenhamos melhor compreensão dos modos pelos quais os indivíduos desenvolvem suas práticas. Em outras palavras, a reflexão sobre as nossas experiências corporais não pretende excluir a priori as nossas percepções e os nossos hábitos, mas colocá-los em foco temporário, de modo que possam ser retreinados. Afinal, para mudar as nossas condições e os nossos hábitos corporais, é preciso conhecê-los. Nesse sentido, as impressões e reflexões levantadas pelos estudantes nos seus pequenos textos sobre as imagens de obras artísticas (como no caso particular das duas performances apresentadas) serviram de base para explicitar alguns dos pressupostos - implícitos ou não - dos seus hábitos corporais.

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  • 1
    Usamos aqui o termo ‘pré-conceito’ – com hífen e entre aspas – para distinguir da matriz negativa (descrédito, um ‘falso juízo’, um ‘juízo não fundamentado’) usualmente a ele atribuído. De acordo com Hans-Georg Gadamer (1997), ‘pré-conceito’ refere-se às pré-decisões, pré-juízos, que se formam antes da prova definitiva de um evento, de uma coisa. Nesse sentido, não limitando esse conceito a sua negatividade, Gadamer ressalta sua validez positiva por chamar a atenção para os valores prejudiciais, pré-decididos, que subsistem na compreensão dos atores sociais sobre o mundo.
  • 2
  • 3
    Disponível em: https://artreview.com/ar-october-2017-review-frestas-biennial. Acesso em: 13 nov. 2023.
  • Financiamento

    Sem financiamento.
  • Aspectos éticos

    Não se aplica.
  • Apresentação prévia

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2024
  • Aceito
    29 Fev 2024
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