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A multimodalidade na literatura para crianças e jovens e suas experimentações estéticas e digitais

Multimodality in literature for children and young people and its aesthetic and digital experimentation

Resumo

Este artigo aborda a pluralidade e expansão da literatura contemporânea, especialmente daquela produzida para crianças e jovens, na qual a experimentação estética é proeminente, seja pelas potencialidades da linguagem verbal, seja pelas possibilidades materiais do objeto livro. Explorando o conceito de literatura em campo expandido e sua relação com a multimodalidade, o texto analisa três obras: A queda dos moais , de Blandina Franco, Patricia Auerbach e José Carlos Lollo; Sinfonia dos animais , de Dan Brown; e a série Mobeybou . Essas obras exemplificam diferentes abordagens na utilização da multimodalidade e da intermidialidade, desde aquelas que não recorrem a tecnologias digitais até aquelas que se apoiam fortemente nelas. A análise visa compreender como essas estratégias estéticas e tecnológicas impactam a experiência do leitor jovem. O texto está estruturado em quatro seções, além da introdução e das considerações finais, que discutem a relação entre multimodalidade, literatura em campo expandido e tecnologia na produção literária contemporânea.

Palavras-chave:
Multimodalidade; Literatura em campo expandido; Literatura para crianças e jovens; Intermidialidade

Abstract

This article discusses the plurality and expansion of contemporary literature, especially the one produced for children and young people, in which aesthetic experimentation is prominent, both through the potential of verbal language and the material possibilities of the book object. Exploring the concept of literature in the expanded field and its relationship with multimodality, the text analyses three works: A queda dos moais ( The fall of the moai , in free translation), by Blandina Franco, Patricia Auerbach and José Carlos Lollo; Wild symphony , by Dan Brown; and the Mobeybou series. These works exemplify different approaches to the use of multimodality and intermediality, from those that do not use digital technologies to those that rely heavily on them. The analysis aims to understand how these aesthetic and technological strategies impact on the young reader’s experience. The text is structured in four sections, in addition to the introduction and final considerations, which discuss the relationship between multimodality, literature in the expanded field and technology in contemporary literary production.

Keywords:
Multimodality; Literature in the expanded field; Literature for Children and Young People; Intermediality

1 Introdução

A literatura contemporânea se caracteriza pela pluralidade de formas pelas quais é produzida, posta em circulação e consumida, assim como por sua variabilidade estética: o material é tão diverso que, muitas vezes, torna-se difícil identificar o que é um livro e o que não é, o que é literatura e o que não é. Nesses espaços plurais, as fronteiras entre os objetos estéticos e culturais tornam-se cada vez mais espessas e, ao mesmo tempo, mais porosas, funcionando mais como territórios de diálogo e transição que como limites circunscritores ( Hissa, 2006HISSA, Cassio Eduardo Viana. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. ).

Nesse cenário, tem ganhado espaço nas discussões atinentes aos estudos literários aquelas que refletem sobre a chamada literatura em campo expandido, expressão que remete justamente a esse cenário no qual a identificação do que seria específico do literário se torna algo cada vez mais indefinido. Oriunda de debates no campo do cinema ( Youngblood, 1970YOUNGBLOOD, Gene. Expanded cinema. New York: P. Dutton & Co., Inc., 1970. ) e das artes plásticas ( Krauss, 2008 KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Arte & Ensaios, v. 17, n. 17, p. 128–137, 2008. ISSN 2448-3338. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/52118 .
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), a expressão estabeleceu seu diálogo com a literatura por meio, em especial, das reflexões de pesquisadoras como Ludmer ( 2010 LUDMER, Josefina. Literaturas pós-autônomas. Tradução de Flávia Cera. Sopro Panfleto Político Cultural, n. 20, p. 1–4, 2010. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/posautonomas.html .
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) e Garramuño ( 2014GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. ), que vêm discutindo, respectivamente, o que denominam como pós-autonomia da literatura e inespecificidade das artes.

A produção literária voltada às crianças e aos jovens ( Hunt, 2010HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Tradução: Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2010. ; Zilberman, 2005ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. ) não fica de fora deste cenário de expansão, sendo talvez um dos campos nos quais as experimentações estéticas são mais exploradas, seja pelas potencialidades da linguagem verbal, seja pelas possibilidades materiais do objeto livro, no qual essa literatura prioritariamente circula. Um exemplo claro são as inúmeras pesquisas que envolvem os livros ilustrados endereçados a essa faixa etária, as quais apontam para o potencial estético, poético e narrativo dessas obras, que demandam um olhar diferenciado da crítica ( Linden, 2011LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. Tradução: Dorothée de Bruchard. São Paulo: Cosac Naify, 2011. ).

Neste artigo, interessa-nos pensar especialmente em como essa expansão se realiza, em determinadas obras, pelo recurso à multimodalidade, que permite expressões criativas bastante distintas entre si. Para tanto, destacamos três obras que nos interessam explorar em seus aspectos estéticos, observando de que modo elas se valem de diferentes estratégias para apresentar aos seus jovens leitores narrativas interessantes e informativas formadas a partir de distintas linguagens.

Para o desenvolvimento do artigo, o estruturamos em quatro seções, além desta Introdução e das Considerações finais. Na Seção 2 2 Multimodalidade e literatura em campo expandido: interpolações Para representar o mundo que o cerca, o homem recorre a diferentes linguagens, que lhe permitem compreendê-lo e abarcá-lo. Diante da complexidade dos eventos externos, o registro simbólico parece, por vezes, limitado ou insuficiente, de forma que recorrer à pluralidade de modos ou meios de representação torna-se uma estratégia eficaz. Fenômeno, portanto, antigo, embora a nomenclatura possa ser considerada relativamente recente 1 , a multimodalidade constitui, em essência, todo texto que reivindica outros modos , ou outras mídias , como as imagens, por exemplo, em sua constituição. A esse respeito, Vieira ( 2015 ), recorrendo à Teoria da Multimodalidade do Discurso, observa que: [...] se os seres humanos produzem e comunicam significações em vários modos semióticos, então somente o uso da linguagem verbal se tornaria insuficiente para concentrar a atenção de quem está interessado na produção e na reprodução social de significados. Logo, se, em essência, os textos são multimodais, será impossível ler significados representados apenas por um modo linguístico ( Vieira, 2015, p. 44 ). Alguns pesquisadores, como destaca Page ( 2010 ), apontam que a multimodalidade constitui, por excelência, o modo como nos comunicamos, uma vez que sempre recorremos à integração de múltiplos recursos semióticos para tal. Isso implicaria a necessidade de que repensemos o destaque que, tanto teórica quanto metodologicamente, damos aos recursos verbais no conjunto de configurações semióticas múltiplas, e nos demandaria movimentos de investigação das narrativas em que valorizássemos outros recursos com a mesma dedicação. Essa combinação de semioses, que está, assim, no cerne da produção de discursos e de sentidos, tem sido ainda mais evidenciada após a democratização do acesso às tecnologias digitais e eletrônicas, que expandiram as possibilidades de interação com o real, passando, inclusive, a simulá-lo ou rivalizá-lo. Ao ampliar os modos de produção textual, estimulando cada vez mais outras percepções sensoriais, a ascensão das tecnologias digitais parece ter complexificado o próprio sentido de multimodalidade . Elleström ( 2021 ) observa que: “No contexto dos estudos de mídia e linguística, ‘multimodalidade’, às vezes, se refere à combinação, digamos, de texto, imagem e som, e, às vezes, à combinação das faculdades sensoriais (auditiva, visual, tátil e assim por diante).”. O autor sueco parece destacar a exploração sensorial para a classificação de tal fenômeno quando conclui: “Portanto, a multimodalidade foi definida como ‘o uso de dois ou mais dos cinco sentidos para a troca de informações’ (Granström et al. 2002: 1).” ( Elleström, 2021, p. 41 , tradução nossa) 2 . Se concordarmos com o pesquisador sueco, o texto multimodal, ao conclamar outros modos de representação, como a imagem, o som, o papel, a tela e assim por diante, estaria aproximando diferentes artes e tecnologias para aguçar ou estimular os sentidos do leitor, e essa seria sua característica constitutiva. Nas palavras de Gibbons ( 2010, p. 100 ), “os romances multimodais, em sua utilização de múltiplos estímulos sensoriais, são conscientes de sua forma material, explorando a natureza integrativa da cognição e a natureza corporificada da leitura” 3 . A literatura, portanto, ao convidar outros modos e mídias para dividirem o espaço do texto e com o texto, por meio de um processo lúdico e tangível, estimula o aprendizado e a produção de saberes. Se essa intenção sempre esteve presente no panorama da produção literária, sobretudo para crianças e jovens, com as tecnologias outros recursos passam a ser incorporados ao processo criativo, contribuindo ainda mais com a construção simbólica, imaginativa e ficcional. A abertura do texto, do discurso e, em última instância, da própria literatura aos outros campos artísticos evidencia um processo de aproximação e distanciamento, de atração e repulsão, de convergência e divergência, que culmina em formas estéticas que, de algum jeito, em positivo ou em negativo, são construídas a partir dessas marcas, desses vestígios, dessas ruínas estabelecidas pelo contato. Da multimodalidade à literatura em campo expandido, entramos em uma seara na qual, para além da presença de vários modos ou de várias mídias na constituição de um objeto estético, estaríamos diante de um objeto cuja natureza indefinida nos desafiaria, tamanha a sua expansão. Essa expansão culminaria em uma saída para fora de si, conforme expressão de Kiffer ( 2014 ), a qual se tornou um operador cotidiano na produção estética contemporânea, cujos contornos foram explodidos. Nesse contexto, a prática literária passou a reivindicar, cada vez mais, outras corporalidades, tanto para a sua realização quanto para a sua recepção, a qual, imersa em um contexto de pleno desenvolvimento tecnológico, exige que as artes estejam em diálogo com as dinâmicas de seu próprio tempo. Ao deixar “sua identidade fixadora para transformar-se num procedimento algo móvel, vibrátil” ( Kiffer, 2014, p. 55 ), essa produção procurou assumir uma notação “sonora, vibrátil, tátil” ( Kiffer, 2014, p. 54 ), por meio de um vínculo entre as artes e entre estas e a tecnologia que não necessariamente se estabelece de forma transgressora, mas, sim, de forma criativa. Assim, adaptando-se às demandas do tempo presente, a literatura passou a assumir múltiplos modos, por meio da multimodalidade, expandindo suas fronteiras, por meio de uma estética que explora outros espaços, outras formas, outras artes, estabelecendo o limite como o “lugar de experiência da própria obra” ( Kiffer; Garramuño, 2014, p. 13 ). É desse lugar limítrofe, intervalar e multimodal que passamos à análise de obras literárias para crianças e jovens. , discutiremos a questão da multimodalidade e de sua interpolação com os estudos sobre a literatura em campo expandido. Na terceira, abordamos o livro A queda dos moais , de Blandina Franco, Patricia Auerbach e José Carlos Lollo, lançado em 2018, uma obra que trabalha a multimodalidade sem recorrer a tecnologias digitais ou à intermidialidade. Na quarta seção analisamos o livro Sinfonia dos animais , de Dan Brown, publicado em 2020, que propõe uma experiência multissensorial ao ser acompanhado de músicas acessadas por meio de um aplicativo de realidade aumentada, ou seja, um livro para ler e ouvir, com o acompanhamento de outro aparelho, o celular. Na quinta seção, investigamos um produto cujo foco é a exploração das possibilidades interativas das tecnologias digitais, sendo ora classificado como um app book , ora como um game: trata-se da série em quatro volumes Mobeybou , composta pelos títulos Mobeybou na Índia , Mobeybou em Cabo Verde , Mobeybou no Brasil e Mobeybou em Portugal . Por fim, apresentamos nossas considerações em torno da pluralidade de usos da multimodalidade nas obras analisadas.

2 Multimodalidade e literatura em campo expandido: interpolações

Para representar o mundo que o cerca, o homem recorre a diferentes linguagens, que lhe permitem compreendê-lo e abarcá-lo. Diante da complexidade dos eventos externos, o registro simbólico parece, por vezes, limitado ou insuficiente, de forma que recorrer à pluralidade de modos ou meios de representação torna-se uma estratégia eficaz. Fenômeno, portanto, antigo, embora a nomenclatura possa ser considerada relativamente recente 1 1 Como destaca Ruth Page na introdução ao livro New Perspectives on Narrative and Multimodality , é apenas a partir dos anos 1990 que o conceito de multimodalidade passa a interessar criticamente a estudos das mais diversas áreas, capitaneados em especial pelo trabalho do New London Group, um grupo de pesquisa acadêmica norte-americano que se volta aos multiletramentos ( Page, 2010, p. 3–5 ). , a multimodalidade constitui, em essência, todo texto que reivindica outros modos , ou outras mídias , como as imagens, por exemplo, em sua constituição. A esse respeito, Vieira ( 2015VIEIRA, Josenia. A multimodalidade nos eventos de letramento. In: VIEIRA, Josenia Antunes; SILVESTRE, Carminda (ed.). Introdução à Multimodalidade: Contribuições da Gramática Sistêmico-Funcional, Análise de Discurso Crítica, Semiótica Social. Brasília, DF: J Antunes Vieira, 2015. p. 43–72. ), recorrendo à Teoria da Multimodalidade do Discurso, observa que:

[...] se os seres humanos produzem e comunicam significações em vários modos semióticos, então somente o uso da linguagem verbal se tornaria insuficiente para concentrar a atenção de quem está interessado na produção e na reprodução social de significados. Logo, se, em essência, os textos são multimodais, será impossível ler significados representados apenas por um modo linguístico

( Vieira, 2015, p. 44VIEIRA, Josenia. A multimodalidade nos eventos de letramento. In: VIEIRA, Josenia Antunes; SILVESTRE, Carminda (ed.). Introdução à Multimodalidade: Contribuições da Gramática Sistêmico-Funcional, Análise de Discurso Crítica, Semiótica Social. Brasília, DF: J Antunes Vieira, 2015. p. 43–72. ).

Alguns pesquisadores, como destaca Page ( 2010PAGE, Ruth. New Perspectives on Narrative and Multimodality. New York: Routledge, 2010. ), apontam que a multimodalidade constitui, por excelência, o modo como nos comunicamos, uma vez que sempre recorremos à integração de múltiplos recursos semióticos para tal. Isso implicaria a necessidade de que repensemos o destaque que, tanto teórica quanto metodologicamente, damos aos recursos verbais no conjunto de configurações semióticas múltiplas, e nos demandaria movimentos de investigação das narrativas em que valorizássemos outros recursos com a mesma dedicação.

Essa combinação de semioses, que está, assim, no cerne da produção de discursos e de sentidos, tem sido ainda mais evidenciada após a democratização do acesso às tecnologias digitais e eletrônicas, que expandiram as possibilidades de interação com o real, passando, inclusive, a simulá-lo ou rivalizá-lo. Ao ampliar os modos de produção textual, estimulando cada vez mais outras percepções sensoriais, a ascensão das tecnologias digitais parece ter complexificado o próprio sentido de multimodalidade . Elleström ( 2021ELLESTRÖM, Lars. The Modalities of Media II: An Expanded Model for Understanding Intermedial Relations. In: ELLESTRÖM, Lars (ed.). Beyond Media Borders: Intermedial Relations among Multimodal Media. Switzerland: Palgrave Macmillan, 2021. v. 1. p. 3–91. ) observa que: “No contexto dos estudos de mídia e linguística, ‘multimodalidade’, às vezes, se refere à combinação, digamos, de texto, imagem e som, e, às vezes, à combinação das faculdades sensoriais (auditiva, visual, tátil e assim por diante).”. O autor sueco parece destacar a exploração sensorial para a classificação de tal fenômeno quando conclui: “Portanto, a multimodalidade foi definida como ‘o uso de dois ou mais dos cinco sentidos para a troca de informações’ (Granström et al. 2002: 1).” ( Elleström, 2021, p. 41ELLESTRÖM, Lars. The Modalities of Media II: An Expanded Model for Understanding Intermedial Relations. In: ELLESTRÖM, Lars (ed.). Beyond Media Borders: Intermedial Relations among Multimodal Media. Switzerland: Palgrave Macmillan, 2021. v. 1. p. 3–91. , tradução nossa) 2 2 No original: “In the context of media studies and linguistics, ‘multimodality’ sometimes refers to the combination of, say, text, image and sound, and sometimes to the combination of sense faculties (the auditory, the visual, the tactile and so forth). Thus, multimodality has been defined as ‘the use of two or more of the five senses for the exchange of information’ (Granström et al. 2002: 1).” .

Se concordarmos com o pesquisador sueco, o texto multimodal, ao conclamar outros modos de representação, como a imagem, o som, o papel, a tela e assim por diante, estaria aproximando diferentes artes e tecnologias para aguçar ou estimular os sentidos do leitor, e essa seria sua característica constitutiva. Nas palavras de Gibbons ( 2010, p. 100GIBBONS, Alison. “I Contain Multitudes”: Narrative Multimodality and the Book that Bleeds. In: PAGE, Ruth (ed.). New Perspectives on Narrative and Multimodality. New York: Routledge, 2010. p. 99–114. ), “os romances multimodais, em sua utilização de múltiplos estímulos sensoriais, são conscientes de sua forma material, explorando a natureza integrativa da cognição e a natureza corporificada da leitura” 3 3 No original: “[…] multimodal novels in their employment of multiple sensory stimuli are self-conscious of their material form, playing upon the integrative nature of cognition and embodied nature of reading.”. .

A literatura, portanto, ao convidar outros modos e mídias para dividirem o espaço do texto e com o texto, por meio de um processo lúdico e tangível, estimula o aprendizado e a produção de saberes. Se essa intenção sempre esteve presente no panorama da produção literária, sobretudo para crianças e jovens, com as tecnologias outros recursos passam a ser incorporados ao processo criativo, contribuindo ainda mais com a construção simbólica, imaginativa e ficcional.

A abertura do texto, do discurso e, em última instância, da própria literatura aos outros campos artísticos evidencia um processo de aproximação e distanciamento, de atração e repulsão, de convergência e divergência, que culmina em formas estéticas que, de algum jeito, em positivo ou em negativo, são construídas a partir dessas marcas, desses vestígios, dessas ruínas estabelecidas pelo contato. Da multimodalidade à literatura em campo expandido, entramos em uma seara na qual, para além da presença de vários modos ou de várias mídias na constituição de um objeto estético, estaríamos diante de um objeto cuja natureza indefinida nos desafiaria, tamanha a sua expansão.

Essa expansão culminaria em uma saída para fora de si, conforme expressão de Kiffer ( 2014KIFFER, Ana. A escrita e o fora de si. In: KIFFER, Ana; GARRAMUÑO, Florencia (ed.). Expansões contemporâneas: literatura e outras formas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. p. 47–68. ), a qual se tornou um operador cotidiano na produção estética contemporânea, cujos contornos foram explodidos. Nesse contexto, a prática literária passou a reivindicar, cada vez mais, outras corporalidades, tanto para a sua realização quanto para a sua recepção, a qual, imersa em um contexto de pleno desenvolvimento tecnológico, exige que as artes estejam em diálogo com as dinâmicas de seu próprio tempo.

Ao deixar “sua identidade fixadora para transformar-se num procedimento algo móvel, vibrátil” ( Kiffer, 2014, p. 55KIFFER, Ana. A escrita e o fora de si. In: KIFFER, Ana; GARRAMUÑO, Florencia (ed.). Expansões contemporâneas: literatura e outras formas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. p. 47–68. ), essa produção procurou assumir uma notação “sonora, vibrátil, tátil” ( Kiffer, 2014, p. 54KIFFER, Ana. A escrita e o fora de si. In: KIFFER, Ana; GARRAMUÑO, Florencia (ed.). Expansões contemporâneas: literatura e outras formas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. p. 47–68. ), por meio de um vínculo entre as artes e entre estas e a tecnologia que não necessariamente se estabelece de forma transgressora, mas, sim, de forma criativa. Assim, adaptando-se às demandas do tempo presente, a literatura passou a assumir múltiplos modos, por meio da multimodalidade, expandindo suas fronteiras, por meio de uma estética que explora outros espaços, outras formas, outras artes, estabelecendo o limite como o “lugar de experiência da própria obra” ( Kiffer; Garramuño, 2014, p. 13KIFFER, Ana; GARRAMUÑO, Florencia. Apresentação. In: KIFFER, Ana; GARRAMUÑO, Florencia (ed.). Expansões contemporâneas: literatura e outras formas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. p. 7–15. ). É desse lugar limítrofe, intervalar e multimodal que passamos à análise de obras literárias para crianças e jovens.

3 A queda dos moais

O primeiro livro que abordaremos, A queda dos moais , foi publicado em 2018, pela editora Escarlate, do grupo Companhia das Letras, e traz como seus autores Blandina Franco e Patricia Auerbach, responsáveis pelo texto, e José Carlos Lollo, pelas ilustrações, todos com experiência na produção de livros infantis e infanto-juvenis. O enredo trata da viagem de férias de Joaquim, um adolescente que está ansioso pela diversão desses dias de descanso, mas que descobre que a escolha de seus pais foi um tanto inusitada, de modo que seu destino é a Ilha de Páscoa, lar dos misteriosos moais, as gigantescas estátuas de pedra pelas quais o território chileno é conhecido.

O que mais chama a atenção, no entanto, logo ao folhearmos o livro, é a escolha dos autores para compor essa história: valendo-se de textos, recursos gráficos e imagens, a cada página dupla o livro apresenta a seu leitor textos de diferentes gêneros, que vão de quadrinhos e receitas a listas e folhetos publicitários. São, ao todo, 29 formas diferentes de se comunicar com seu público, as quais são listadas — e acompanhadas de uma breve explicação descritiva — no Índice que integra as páginas finais do livro. 4 4 Conforme o índice, os tipos de texto são: ficha catalográfica, epígrafe, folheto publicitário, história em quadrinhos, reportagem, e-mail, diário, WhatsApp, receita, carta, lenda, lista, parlenda, canção, piada, gráfico, relatório, notícia, cartão-postal, crônica, livro-imagem ou narrativa visual, conto de fadas, redação, circular, índice, biografia, anamnese, provérbio ou ditado popular, nota do autor ( Franco; Auerbach; Lollo, 2018, p. 56–59 ).

A queda dos moais , portanto, é um livro que trabalha a multimodalidade sem recorrer ao diálogo tecnológico, mas explorando aspectos associados aos diversos gêneros textuais dos quais se vale para a composição de sua narrativa, sempre em diálogo com a materialidade em que estes são apresentados. Gibbons ( 2010GIBBONS, Alison. “I Contain Multitudes”: Narrative Multimodality and the Book that Bleeds. In: PAGE, Ruth (ed.). New Perspectives on Narrative and Multimodality. New York: Routledge, 2010. p. 99–114. ), em seu texto “‘I Contain Multitudes’: Narrative Multimodality and the Book that Bleeds”, destaca o quanto essa perspectiva de pesquisa, voltada a analisar “[…] a multimodalidade nas narrativas literárias e mídias impressas inovadoras” 5 5 No original: “[…] multimodality in the iterary narratives of innovative print media has been neglected.”. , foi negligenciada frente àquelas que se concentraram sobre as narrativas multimodais em mídias digitais. Acreditamos, no entanto, que essas obras impressas são objetos de reflexão tão importantes quanto aquelas que se valem de aparatos digitais, já que a multimodalidade independe destes para acontecer.

No livro em pauta, para estruturar a narrativa os autores propõem um triplo recorte temporal, pelo qual a história é dividida: o antes , o durante e o depois da viagem. Cada uma dessas etapas é apresentada por meio da utilização de um mapa estilizado da Ilha de Páscoa, com a tradicional presença do avião (chegando, parado na ilha e saindo, respectivamente), acompanhado de traços pontilhados a indicar percursos: nas etapas do antes e do depois , indica-se o percurso do avião, enquanto no durante temos a representação gráfica de um jovem e seus vários trajetos pela ilha. Apesar de o mapa assumir esse importante papel de marco temporal da narrativa, ele não é considerado como um dos tipos de texto apresentados no “Índice...”.

O antes da viagem é a seção mais breve da narrativa, e sobre a qual comentaremos mais detidamente, a fim de evidenciar de que modo o livro em questão se vale da multimodalidade em sua composição. Aproximando-se do subgênero nomeado por Gibbons ( 2010, p. 99GIBBONS, Alison. “I Contain Multitudes”: Narrative Multimodality and the Book that Bleeds. In: PAGE, Ruth (ed.). New Perspectives on Narrative and Multimodality. New York: Routledge, 2010. p. 99–114. ) como “imagetext”, A queda dos moais se apresenta como uma narrativa de construção sofisticada, na qual são importantes não apenas os recursos tipográficos e as ilustrações, mas também a própria materialidade do texto e o design do livro, os quais funcionam como elementos de demanda a uma ação ativa do leitor, que precisa partir desses fragmentos para preencher as lacunas narrativas deixadas por essa ausência de um narrador que organize a história contada. Um leitor implícito, nos termos dos estudos narratológicos, “mas que, crucialmente, é visto como fisicamente envolvido com o romance de uma maneira atualizada” ( Gibbons, 2010, p. 100GIBBONS, Alison. “I Contain Multitudes”: Narrative Multimodality and the Book that Bleeds. In: PAGE, Ruth (ed.). New Perspectives on Narrative and Multimodality. New York: Routledge, 2010. p. 99–114. ) 6 6 No original: “but one that, crucially, is seen to physically engage with the novel in an actualized way.”. .

Vejamos como essas demandas se constituem no livro. Após a inserção do mapa que demarca temporalmente tanto a viagem quanto a narrativa, o leitor tem acesso a um folheto publicitário da Alçaprema Turismo. Nesse folheto, por meio de textos e imagens, divulga-se um pacote turístico para a Ilha de Páscoa, por meio da reprodução da figura de um folder , gênero assim descrito no Dicionário de gêneros textuais:

FÔLDER (V. FOLHETO, PANFLETO, PROSPECTO, VOLANTE): impresso de pequeno porte, constituído de uma só folha de papel com uma ou mais dobras sanfonadas. De conteúdo informativo e/ou publicitário, traz, em linguagem objetiva e breve, os principais objetivos e informações (o que, onde, quando, a quem, por que, etc.) de um evento determinado ou divulga um produto, serviço ou ainda dá instrução a respeito do uso de um aparelho, produto ou serviço

( Costa, 2012, p. 127COSTA, Sergio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. , destaques do original).

Figura 1.
Folheto da Alçaprema Turismo

O folder ( Figura 1 ) é, aqui, emulado, como todos os demais gêneros textuais apresentados no livro. A ilustração recria uma folha isolada, com dobras que indicam quatro colunas, nas quais os elementos inseridos cumprem a função publicitária: o produto divulgado é, conforme o texto aposto na parte superior da terceira coluna, um pacote turístico que inclui “aéreo + terrestre”, assim como “15 dias em hotel 5 estrelas” e “jantar temático na primeira noite” ( Franco; Auerbach; Lollo, 2018, p. 7FRANCO, Blandina; AUERBACH, Patricia; LOLLO, José Carlos. A queda dos moais. São Paulo: Escarlate, 2018. ). Os textos, em linguagem objetiva e breve, são reforçados pelas imagens que apresentam as maravilhas do lugar a ser visitado, assim como pessoas felizes vivenciando a viagem, um pequeno mapa e o logotipo da empresa. Chama a atenção um elemento acrescido ao folder , com as características de um carimbo aplicado a posteriori sobre o material, no qual se lê: “Descontos especiais em virtude do boléu dos moais” ( Franco; Auerbach; Lollo, 2018, p. 7FRANCO, Blandina; AUERBACH, Patricia; LOLLO, José Carlos. A queda dos moais. São Paulo: Escarlate, 2018. ).

Nas duas páginas seguintes ao folder , o leitor acompanha uma história em quadrinhos, na qual se utilizam as convenções dessa mídia: requadros, balões de fala e pensamento, sarjetas. A breve narrativa apresenta uma família, com mãe, um filho e uma filha, que presenciam a chegada do pai, que pede que todos façam as malas, pois vão sair de férias. O anúncio é feito com as passagens na mão, e a ele a família responde com questionamentos que revelam seus desejos: a mãe pergunta se irão para “um chalé nas montanhas”, a filha se irão para “um hotel fazenda cheio de bichos” e o filho se o destino é “um resort na praia com esportes radicais” ( Franco; Auerbach; Lollo, 2018, p. 8FRANCO, Blandina; AUERBACH, Patricia; LOLLO, José Carlos. A queda dos moais. São Paulo: Escarlate, 2018. ). O pai responde, mostrando o folder , que o destino é a Ilha de Páscoa: a justificativa da escolha é que alguma coisa acontecera no local, o que fizera com que a viagem estivesse em promoção. À empolgação de mãe e filha com a possibilidade de férias mais extensas, o filho responde com tristeza, a repetição da palavra “chato” (12 vezes) e uma imagem melancólica do personagem todo em azul.

As informações, fragmentadas, continuam a ser apresentadas aos leitores, e nas páginas seguintes vemos uma reportagem, no jornal O coscuvilheiro , com o seguinte título: “Ascensão e queda em Rapa Nui”. Mais uma vez seguindo os preceitos do gênero (cabeçalho com nome do veículo de comunicação, título em caixa alta e destaque, texto em colunas, acompanhado neste caso por duas imagens), o texto fala sobre um evento inexplicável que atingiu a Ilha de Páscoa: a matéria começa com uma breve apresentação do local e de seus mistérios, destacando a descoberta e documentação inaugural, em 1722, dos moais, “essas imensas estátuas de pedra com mais de 4 metros de altura e que podem pesar até 82 toneladas” e que são a principal atração turística da ilha. Na sequência, a matéria informa sobre um enigma que atingiu a ilha, a queda dos moais: “Há alguns dias, quando o sol nasceu no horizonte da Ilha, todos os moais estavam tombados, caídos de cara no chão sem que nenhum fator climático ou catástrofe natural tenha ocorrido para justificar essa queda” ( Franco; Auerbach; Lollo, 2018, p. 10–11FRANCO, Blandina; AUERBACH, Patricia; LOLLO, José Carlos. A queda dos moais. São Paulo: Escarlate, 2018. ).

É assim que, pouco a pouco, a narrativa vai sendo articulada pela junção desses múltiplos textos que compõem o livro. O leitor precisa se apropriar de cada um deles, identificando sua função na composição dessa história cujo sentido só vai se completar quando ele unir os pontos, complexamente articulados multimodalmente. Esse movimento, conforme destaca Gibbons ( 2010GIBBONS, Alison. “I Contain Multitudes”: Narrative Multimodality and the Book that Bleeds. In: PAGE, Ruth (ed.). New Perspectives on Narrative and Multimodality. New York: Routledge, 2010. p. 99–114. ) em diálogo com estudos do campo da neurociência, envolve atividades neurais que exigem um processamento complexo que só se efetiva mediante a co-ocorrência de informações apresentadas pela narrativa multimodal: para o autor, nessas narrativas “palavra e imagem atuam em sincronia, envolvidas na produção de um significado textual compartilhado. Sua congruência narrativa é, portanto, percebida como contribuindo para um evento conjunto”, o que implicaria que “romances multimodais, empregando uma multiplicidade de modos, podem criar uma experiência narrativa mais intensa” ( Gibbons, 2010, p. 101GIBBONS, Alison. “I Contain Multitudes”: Narrative Multimodality and the Book that Bleeds. In: PAGE, Ruth (ed.). New Perspectives on Narrative and Multimodality. New York: Routledge, 2010. p. 99–114. ) 7 7 No original: “[…] that word and image act in synchronicity, engaged in the production of a shared textual meaning. Their narrative congruence is thus perceived as contributing to a joint event. Consequently, multimodal novels, employing a multitude of modes, may create a more intense narrative experience.”. .

Se pensarmos que, em A queda dos moais , além dos distintos modos, trata-se de gêneros textuais específicos compostos para a criação da progressão da narrativa, parece-nos que esse processo se mostra ainda mais complexo. Afinal, é por meio da identificação desses gêneros, de suas funções e características, que o leitor consegue reunir as informações de que necessita para atribuir uma lógica narrativa a informações isoladas. Vejamos como isso continua a se desenvolver na primeira parte da narrativa, o antes da viagem.

Após a reportagem jornalística, o próximo texto apresentado pelo livro está composto por um e-mail , enviado de Joaquim para a “vovó”, no qual ele pede socorro à avó — que aparece, por meio do endereço de e-mail a ela atribuído, “ vovó@unicalucida.dahistoria.com.br ”, como alguém que o jovem julga mais sensato que o restante da família — para evitar a viagem. É apenas nesse momento que os personagens da história começam a ser precisados, e o garoto, que ocupara lugar de destaque nos quadrinhos, ganha um nome. O gênero textual fica bem marcado pela reprodução imagética de uma caixa de entrada na qual se evidenciam os elementos que permitem sua identificação, como os endereços do remetente e do destinatário, o assunto, o texto iniciado por um vocativo e finalizado com uma despedida ( Costa, 2012, p. 110–112COSTA, Sergio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. ), tal qual se observa na Figura 2 .

Figura 2.
E-mail de Joaquim para sua avó

Além de pedir socorro a avó, no mesmo e-mail Joaquim informa a ela que encontrou na internet “uma página do diário de bordo do maluco que descobriu a ilha em 1772 e que já dizia que ela era assustadora” ( Franco; Auerbach; Lollo, 2018, p. 13FRANCO, Blandina; AUERBACH, Patricia; LOLLO, José Carlos. A queda dos moais. São Paulo: Escarlate, 2018. ), e é este o texto ao qual o leitor tem acesso nas páginas seguintes. A entrada do diário reproduzida, datada de 05 de abril de 1722, reforça o aspecto de mistério da ilha e motiva o receio do garoto com a viagem:

Quando nos aproximamos mais daquela ilha não assinalada em nenhum dos nossos mapas, pudemos ver espalhadas por toda a costa as silhuetas de vários e enormes gigantes, dispostos lado a lado pela costa, como se prontos para nos massacrar quisessem evitar nosso desembarque. Aconselhei o capitão a fugir o mais rápido possível ancorar em um lugar bem distante para que, quando o sol nascesse, pudéssemos entender o que era aquilo.

Agora é esperar que não sejamos atacados pelas criaturas maléficas que, pressinto, habitam essa ilha.

Que Deus nos proteja!

( Franco; Auerbach; Lollo, 2018, p. 15FRANCO, Blandina; AUERBACH, Patricia; LOLLO, José Carlos. A queda dos moais. São Paulo: Escarlate, 2018. , tachados do original)

Esse é o último texto que encontramos na parte inicial do livro: ao virarmos a página, nos deparamos com o mapa do durante a viagem, e é só com esse movimento que sabemos que as súplicas de Joaquim não funcionaram. O texto do diário efetua o gancho narrativo, garante a situação de suspense e nos encaminha para a Ilha de Páscoa, junto de Joaquim e sua família, com a expectativa diante dos mistérios que ali se vivenciam.

É, assim, por meio do diálogo entre o livro e o leitor, que precisa manejar essas diversas textualidades, que a narrativa se encadeia e se articula: para isso, o leitor precisa observar todos os elementos que compõem cada um dos textos lidos, os quais ativam seus múltiplos sentidos e possibilitam a constituição de um imaginário sensível compartilhado e multifacetado. Certamente, a viagem de Joaquim ainda lhe guarda muitas surpresas, as quais são também as surpresas do leitor, que precisará seguir construindo a narrativa por meio da leitura de receitas, gráficos, piadas e relatórios, entre vários outros gêneros, numa narrativa que, conforme apontou Lajolo ( 2019 LAJOLO, Marisa. Resenha do livro “A Queda dos Moais”. Patricia Auerbach, 2019. Disponível em: https://www.patriciaauerbach.com.br/mdias/marisa-lajolo-resenha-do-livro-a-queda-dos-moais . Acesso em: 28 jul. 2024.
https://www.patriciaauerbach.com.br/mdia...
), apresenta em suas pouco mais de 50 páginas algumas das características mais marcantes da literatura contemporânea: “fragmentação da história, superposição de linguagens, organização assimétrica das páginas” 8 8 A resenha crítica da reconhecida pesquisadora de literatura infantil e infanto-juvenil foi publicada no perfil do Facebook de Marisa Lajolo em 18 de abril de 2019, e compartilhada na página de uma das autoras do livro ( https://www.patriciaauerbach.com.br/mdias/marisa-lajolo-resenha-do-livro-a-queda-dos-moais ). . A multimodalidade independe, como vimos, de recursos tecnológicos, mas deles também pode fazer uso para se tornar ainda mais atrativa aos jovens leitores, como veremos a seguir.

4 Sinfonia dos animais

O escritor norte-americano Dan Brown já é conhecido do grande público por obras ficcionais que alcançaram o status de best-sellers , responsável por levar alguns de seus livros para as telonas. Adepto da construção narrativa em prosa, seus romances se articulam pelo gênero suspense, estratégia ficcional que, aliada a picos narrativos de clímax, suscita o interesse e a curiosidade do leitor, envolvendo-o na leitura.

Por isso, chama a atenção quando Brown, já reconhecido por Hollywood e pelos leitores de best-sellers , busca uma renovação na estética literária com Sinfonia dos animais , livro publicado em 2020, sua estreia na literatura infantil. Além de mudar o público-alvo, o escritor estadunidense exercita outros gêneros textuais, como a poesia e a charada — esta se mescla aos poemas, visando a uma maior aproximação com o seu leitor. A riqueza da obra, no entanto, não se limita à pluralidade de gêneros, mas à própria expansão da literatura, que, em Sinfonia dos animais , é aliada da música e das tecnologias digitais, produzindo uma experiência de leitura multissensorial.

A conduzir os leitores pela sinfonia dos animais encontra-se o Maestro Ratinho; é ele, inclusive, que, antes mesmo de se apresentar, na primeira página da obra, enfatiza a estrutura especial do livro, o qual, “[...] além de olhar, você também pode ESCUTAR” ( Brown, 2020BROWN, Dan. Sinfonia dos animais. Tradução: Rafaella Lemos. São Paulo: Arqueiro, 2020. s/p, destaque do autor). Assim, apontando a câmera do celular para o QR Code presente, o leitor poderá ler os poemas dedicados a cada um dos animais, enquanto escuta sua sinfonia, que busca reconstituir as características e personalidades do animal ao qual dá notas musicais. Não se trata, nesse caso, de um livro digital, afinal é possível ler o livro de Brown sem o acesso ao QR Code interativo, mas, ao aliar esse recurso à leitura do livro físico, a ludicidade ganha contornos multissensoriais.

A literatura de Brown expande-se, cruzando as fronteiras da arte das palavras ao buscar na estrutura musical outra forma de realização. Descobrimos, assim, conforme nos confidencia o próprio autor ao final do livro, quando reserva umas palavras aos seus leitores, que, muito antes de escrever histórias, ele escrevia músicas, resgatando, portanto, uma habilidade antiga na composição de um livro multimodal e intermídia 9 9 Segundo Claus Clüver, “‘Intermidialidade’ é um termo relativamente recente para um fenômeno que pode ser encontrado em todas as culturas e épocas, tanto na vida cotidiana como em todas as atividades culturais que chamamos de ‘arte’. Como conceito, ‘intermidialidade’ implica todos os tipos de interrelação e interação entre mídias; uma metáfora frequente aplicada a esses processos fala de ‘cruzar as fronteiras’ que separam as mídias” ( Clüver, 2011, p. 9 ). . Nas palavras do autor:

A música é uma espécie de narrativa, e os movimentos de orquestra em Sinfonia dos animais , os poemas e as ilustrações que os acompanham trabalham em conjunto (como um código !) para contar uma história e revelar algo engraçado ou interessante sobre a personalidade de algum animal. Se você escutar com atenção, poderá encontrar cada um desses bichinhos escondido na música. Além disso, cada um deles ensina uma lição, formando uma coleção de “ segredos para a vida” que vão ajudar você a crescer

( Brown, 2020BROWN, Dan. Sinfonia dos animais. Tradução: Rafaella Lemos. São Paulo: Arqueiro, 2020. s/p, grifos nossos).

De maneira cifrada, tal como em uma charada, o autor aponta para outros sentidos e outras formas de ler o seu livro para além da tradicional, ou daquela acompanhada pela sinfonia de cada animal, quando lemos o livro seguindo as músicas presentes no aplicativo para o qual o QR Code nos direciona. Essa mensagem é também anunciada pelo personagem Maestro Ratinho, “desta grande aventura o condutor”, que, após se apresentar, revela um pouco do jogo do livro:

Nós bolamos um plano especial

Pra você desvendar até o final.

Basta ver e escutar para achar na estrada

A surpresa que esconde esta jornada.

Busque as pistas ocultas no trajeto,

E então, veja só: um jogo secreto!

( Brown, 2020BROWN, Dan. Sinfonia dos animais. Tradução: Rafaella Lemos. São Paulo: Arqueiro, 2020. s/p)

A leitura instaura, desse modo, um jogo secreto com o leitor: este, ao percorrer a sinfonia dos animais, sabe de antemão que há pistas ocultas, cifradas, as quais precisa desvendar, aprisionando-o, ainda mais, nesta aventura verbo-musical. Sobre o processo de constituição da adivinha, Jolles ( 1976JOLLES, Andre. Formas simples. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976. ) afirma que os gregos tinham duas palavras para representá-la: ainigma e griphos . Na primeira, “está implícito o fato do ciframento, ao passo que na segunda, que significa propriamente ‘rede’ – a rede que nos aprisiona e cujos nós nos emaranham – exprime-se melhor a perfídia da cifra” ( Jolles, 1976, p. 123JOLLES, Andre. Formas simples. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976. ).

Essa parece ser a estratégia de Brown para emaranhar o seu leitor, aprisionando-o em seus nós e garantindo sua participação ativa na leitura e na construção do sentido do texto. Em cada página da obra dedicada a um animal 10 10 Além do maestro Ratinho, compõem essa sinfonia o pássaro, o canguru, o gato, a arraia, o hipopótamo, o sapo, o avestruz, o tatu, o javali, o cavalo, a baleia, o guepardo, o elefante, o rato, o besouro, a aranha, o morcego, o cisne e o grilo, conforme a ordem de aparição no livro. , há letras embaralhadas que formam uma palavra: conforme vai articulando as letras, o leitor percebe que todas elas representam um instrumento musical. Como exemplo, descrevamos a imagem que ilustra o poema Sapos no brejo: há nove sapos de diferentes tamanhos e cores. Em seus corpos, algumas letras estão camufladas, à espera de que o leitor consiga reordená-las e formar uma palavra. No caso aqui mencionado, as letras I, L, A, T, E, C, N, E, R formam a palavra clarinete . Além disso, outra regra instaurada pelo autor e pela ilustradora Susan Batori é a dissimulação de uma abelhinha, que está sempre escondida em um lugar inusitado e que deve ser identificada pelo leitor. No caso de Sapos no brejo , o inseto aparece na boca do maior sapo da imagem, um de cor verde, como percebe-se na Figura 3 .

Figura 3.
Sapos no brejo

Os jogos empreendidos em Sinfonia dos animais contam, portanto, com outras mídias: além do aplicativo de realidade aumentada para escutar as músicas, as imagens de Batori desempenham um papel mais complexo do que simplesmente o de adornar um texto: afinal, elas acrescentam detalhes que não estão presentes no poema, estabelecendo uma nova forma de o leitor se relacionar com o livro. Exemplo disso é a existência da abelhinha que empreende um voo pelas páginas, num jogo de ocultar-se para ser identificada pelo público leitor.

Embora as funções tradicionalmente associadas à ilustração sejam a de adornar, a de explicar e a de traduzir, Brown divide, em certa medida, a autoria de Sinfonia dos animais com Susan Batori (assim como com a orquestra que interpreta suas músicas), porque as imagens contribuem para a construção do sentido do texto:

Como o leitor, o ilustrador não é capaz de trazer à tona todos os significados potenciais escondidos no texto. Ele tem de escolher entre possíveis leituras alternativas e, ao mesmo tempo, é quase certo que fará acréscimos no texto: sua apresentação, muito provavelmente, oferecerá informações enraizadas no mundo visual, informações estas que o texto não consegue mediar em palavras

( Lund, 2012, p. 177LUND, Hans. A “história da cegonha”, de Karen Blixen, e a noção de ilustração. In: DINIZ, Thaı̈s Flores Nogueira; VIEIRA, André Soares (ed.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. Belo Horizonte: Rona Editora: FALE/UFMG, 2012. p. 171–188. ).

É justamente por não conseguir mediar todas as relações pretendidas em palavras que o livro infantil de Dan Brown se apresenta como um texto multimodal e intermidiático: as imagens e as músicas são convocadas para estabelecer novas configurações e novos modos de representação, permitindo ao leitor outras formas de conexão com a literatura, ao acessar seus cinco sentidos e sua própria fantasia.

O ritmo e a tensão presentes na descrição do guepardo, por exemplo, só são acessados plenamente quando o leitor permite que a sinfonia acompanhe sua leitura, num processo que conecta os verbos ler , ver e ouvir . Na sinfonia do guepardo, o instrumento protagonista é o violoncelo, que, num estrondo que ocorre aos 29 segundos da música, gera um sentimento catártico no leitor, cuja expectativa havia sido alimentada pelos primeiros segundos da música, anunciando um risco iminente. A explosão do violoncelo torna, assim, a leitura destes versos bem mais dramática, representando o próprio movimento empreendido pelo animal durante uma caçada, que começa furtiva e sigilosa, tal como a música, antes de eclodir na perseguição:

Tão furtivo e sorrateiro

Ele vai, leve e certeiro.

Vagaroso, lento, atento,

Não se vê um movimento.

De repente, ZÁS!

Tem início o jogo.

( Brown, 2020BROWN, Dan. Sinfonia dos animais. Tradução: Rafaella Lemos. São Paulo: Arqueiro, 2020. s/p, destaque do autor).

Esses efeitos de sentido são, portanto, não apenas assegurados como intensificados pela relação estabelecida entre o texto e as outras mídias, porém não podemos deixar de registrar que o autor procura também representá-los textualmente, por meio de jogos de palavras, de rimas e de figuras de linguagem, como a assonância e a aliteração. Esses recursos também são responsáveis por garantir uma maior sonoridade aos poemas, e, portanto, uma maior conexão entre literatura e música.

Diante de tamanho apuro linguístico, ressalta-se o trabalho empreendido por Rafaella Lemos na tradução dos poemas de Brown, que, assim como o escritor norte-americano, tenta estabelecer relações mais profundas e imediatas entre a visão e a audição. No poema Bouncing Kangaroo, por exemplo, o autor de O Código da Vinci apresenta o sentido de saltitar ou quicar ( bouncing ), que marca não apenas a personalidade do animal como o seu nome: as sílabas parecem saltitar como o mamífero, por isso elas se repetem, e as rimas exprimem a própria sonoridade acelerada desse movimento. O significante, assim, adquire nuances que corroboram ainda mais o sentido pretendido, como se a relação entre o signo linguístico e o que ele representa pudesse não ser arbitrária. Como exemplo, destacamos o verso, no original, “Bounce to run – Ka-boing! Ka-boing!”. Boing é uma palavra que representa o som de algo elástico que estica e retorna à sua forma original; figurativamente falando, descreve algo que salta, como um canguru.

Para empreender o jogo proposto por Brown na tradução, Rafaella Lemos se vale de outras estratégias da língua portuguesa para evidenciar linguisticamente o salto do canguru: além da repetição de sílabas, ela recorre a uma expressão coloquial e à referência ao folclore brasileiro – ao citar o saci – para garantir o efeito saltitante das palavras, como em “Cangu Cangu Cangu ru, / Pulando alto pra chuchu” e em “Pulando em bando por aí. / Pulando assim que nem saci.”

Sinfonia dos animais é uma obra rica de linguagens, cujos sentidos foram apresentados e não esgotados nesta análise. A união de todos esses elementos – a poesia, a charada, a ilustração, presentes no livro físico, e a música, disponível pelo QR Code –, garante uma experiência de leitura ampliada ao livro de Brown, num processo que expande ainda mais os sentidos do literário, borrando suas fronteiras ao reivindicar as outras artes e tecnologias para o espaço do livro físico.

5 Mobeybou

Mobeybou ( Moving Beyond Boundaries ) é um projeto desenvolvido por pesquisadores das mais diversas áreas da Universidade do Minho (Portugal) que explora as novas formas de narrativa na era digital. Ora classificados como um app book , ora como um game , os aplicativos já realizados pelo projeto – Mobeybou na Índia ( 2023aMOBEYBOU. Mobeybou na Índia. Android App, 2023a. ), Mobeybou em Cabo Verde ( 2023bMOBEYBOU. Mobeybou em Cabo Verde. Google Play, 2023b. Android App. ), Mobeybou no Brazil ( 2023cMOBEYBOU. Mobeybou no Brazil. Google Play, 2023c. Android App. ) e Mobeybou em Portugal ( 2023dMOBEYBOU. Mobeybou em Portugal. Google Play, 2023d. Android App. ) – apresentam objetivos múltiplos, que consistem, para citar alguns deles, na possibilidade de acompanhar personagens em suas vivências pelos países mencionados, numa perspectiva multicultural; em acrescentar camadas multimodais, como a voz do leitor, às narrativas, de maneira autoral (ainda que com uma perspectiva bastante restrita); e em jogar, combatendo antagonistas, convivendo com os animais, interagindo com e fazendo as culturas diversas interagirem, por meio de seus elementos típicos que podem ser dispostos concomitantemente num cenário da escolha do usuário. Por tudo isso, parece-nos que o referido projeto é mais do que um game ou um app book , uma vez que promove possibilidades múltiplas de interação e de desdobramento das propostas que contém.

Com coordenação de Cristina Sylla e financiamento da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia e do FEDER – Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, Mobeybou , por meio de recursos pedagógicos inovadores, adéqua-se às demandas dos usuários do século XXI, permitindo que o jovem leitor atue também como coautor das narrativas que lê, enquanto aprende um pouco sobre a cultura do país visitado. A escolha do papel a ser desempenhado se dá já na tela inicial do aplicativo, na qual o usuário decide se irá jogar, ao escolher o ícone com um controle de videogame, ou se irá conhecer a narrativa, caso opte pelo ícone do livro aberto.

Além desses dois ícones, há mais três: um com a cara de um animal (em Mobeybou no Brasil , trata-se de um tamanduá, já em Mobeybou na Índia , de um elefante, por exemplo), onde encontramos algumas informações técnicas sobre o projeto; no ícone que se assemelha a páginas dispostas uma atrás da outra, podemos escolher uma das paisagens típicas do país apresentado e iniciar a história a partir da nossa escolha e preferência; já o último ícone, o de um livro fechado com as letras “ABC” na capa, funciona como uma espécie de enciclopédia, na qual o usuário consegue obter mais informações sobre aspectos específicos da cultura do país visitado. Em Mobeybou na Índia , por exemplo, esse ícone apresenta mais informações sobre o encantador de serpentes, a Índia, o pungi e o xamã, contribuindo, assim, para o processo formativo e pedagógico do jovem leitor ( Figura 4 ).

Figura 4.
Tela inicial de Mobeybou na Índia

Embora não apresente sofisticação estética e literária no desenvolvimento narrativo, o projeto Mobeybou responde às demandas da literatura eletrônica 11 11 A variedade terminológica é um aspecto complexo em áreas de estudos recentes, como é o caso da intermidialidade ou da literatura digital. No Vocabulário presente no portal do Observatório da Literatura Digital Brasileira, da Universidade de São Carlos, os termos “literatura digital” e “literatura eletrônica” são tomados como equivalentes ( Antunes, 2024 ). Mantivemos, aqui, o uso de “literatura eletrônica”, menos comum na América Latina que “literatura digital”, para preservar o léxico do artigo de Leonardo Flores com o qual dialogamos. de terceira geração, conforme definição de Flores ( 2021FLORES, Leonardo. Literatura Eletrônica de Terceira Geração. DAT Journal, v. 6, n. 1, p. 355–371, 2021. ISSN 2526-1789. DOI: 10.29147/dat.v6i1.346.
https://doi.org/10.29147/dat.v6i1.346...
). Partindo da classificação de N. Katherine Hayles entre literatura eletrônica de primeira geração e literatura eletrônica de segunda geração, Flores ( 2021FLORES, Leonardo. Literatura Eletrônica de Terceira Geração. DAT Journal, v. 6, n. 1, p. 355–371, 2021. ISSN 2526-1789. DOI: 10.29147/dat.v6i1.346.
https://doi.org/10.29147/dat.v6i1.346...
) adiciona uma terceira. Enquanto a primeira geração da literatura eletrônica “consiste em experiências com mídia eletrônica e digital anteriores ao advento da rede mundial de computadores” ( Flores, 2021, p. 358FLORES, Leonardo. Literatura Eletrônica de Terceira Geração. DAT Journal, v. 6, n. 1, p. 355–371, 2021. ISSN 2526-1789. DOI: 10.29147/dat.v6i1.346.
https://doi.org/10.29147/dat.v6i1.346...
) e a segunda, que perdura até os dias de hoje, iniciou-se com o advento da web em 1995, a terceira “utiliza plataformas estabelecidas com bases de usuários massivas, como redes de mídia social, aplicativos, dispositivos móveis com telas sensíveis ao toque, API e web services ” ( Flores, 2021, p. 358FLORES, Leonardo. Literatura Eletrônica de Terceira Geração. DAT Journal, v. 6, n. 1, p. 355–371, 2021. ISSN 2526-1789. DOI: 10.29147/dat.v6i1.346.
https://doi.org/10.29147/dat.v6i1.346...
). Assim, ainda segundo o autor, enquanto a literatura eletrônica de segunda geração baseia-se nos critérios da tradição literária e do mundo da arte,

[…] a literatura eletrônica de terceira geração se identifica com a mídia eletrônica e digital tanto em seus formatos quanto em seus modelos de publicação, produzindo trabalhos em vídeo e interativos que podem ser publicados como videogames e outros tipos de conteúdo digital

( Flores, 2021, p. 367FLORES, Leonardo. Literatura Eletrônica de Terceira Geração. DAT Journal, v. 6, n. 1, p. 355–371, 2021. ISSN 2526-1789. DOI: 10.29147/dat.v6i1.346.
https://doi.org/10.29147/dat.v6i1.346...
).

O projeto Mobeybou foi concebido, assim, tal como se espera de uma obra da literatura eletrônica de terceira geração, para leitores que, mesmo crianças e adolescentes, já estão acostumados com as plataformas digitais, visando responder aos anseios da cultura da internet, e não aos da tradição artística ou literária.

Em Mobeybou no Brasil , por exemplo, acompanhamos a personagem Iara, referência explícita ao folclore brasileiro, em sua viagem ao Brasil. De baixo para cima, do sul ao norte, a primeira parada da personagem é pelos pampas gaúchos, onde aprecia o chimarrão, bebida típica. Contempla as Cataratas do Iguaçu para, saindo de um cenário mais natural, alcançar o agito urbano na diversidade de São Paulo: nesse momento, a tela, em 360 graus, permite ao usuário fazer um giro pela intensa Avenida Paulista, apreciando prédios, museus, transeuntes e o tráfego rotineiro.

Do sudeste ao centro-oeste, Iara chega ao Pantanal: o barulho estranho e o movimento por trás do arbusto podem surpreender o leitor, que, ao tocar-lhe, descobre um colorido tamanduá. A viagem cultural é entrecortada com episódios de interação, quando a habilidade de gamer é convocada: na tela seguinte, Iara decide se refrescar com um suco natural; para isso, o usuário deve levar todas as frutas até o liquidificador para que a personagem, após se hidratar, possa retomar o percurso. E a próxima parada vem acompanhada de música e dança: em Salvador, Iara deleita-se com a capoeira e aprende a tocar o berimbau.

Na Floresta Amazônica, a menina percorre o rio enquanto conhece as palafitas, para, do Amazonas ao Recife, Iara poder concluir sua viagem em ritmo de festa: ao som do frevo, ela participa de uma festa popular que mistura tradições africanas, indígenas e europeias. Nesse momento, o usuário pode caminhar com Iara pelas ruas do Recife, saltando obstáculos, para que a garota cumpra seu objetivo com êxito ( Figura 5 ).

Figura 5.
Iara em Recife

Embora o aplicativo apresente de maneira superficial a diversidade cultural e histórica do nosso país, é um recurso interessante para que não apenas crianças estrangeiras como também as brasileiras possam conhecer um pouco mais sobre as raízes do Brasil. Além disso, a viagem da menina pode ser complementada com informações adicionais presentes em uma espécie de enciclopédia, que aparece na página inicial sob o ícone de um livro com as letras “ABC”, conforme já mencionado.

Ainda que os recursos narrativos possam parecer muito simples, a série Mobeybou cria, pelo recurso multimodal associado às possibilidades alavancadas pelas tecnologias digitais, narrativas interativas que demandam de seus leitores um determinado grau de interação, assim como oferecem informações de cunho intercultural que podem compor a formação desse público, convertendo-se assim em uma experiência distinta, que, como destacou Elleström ( 2021ELLESTRÖM, Lars. The Modalities of Media II: An Expanded Model for Understanding Intermedial Relations. In: ELLESTRÖM, Lars (ed.). Beyond Media Borders: Intermedial Relations among Multimodal Media. Switzerland: Palgrave Macmillan, 2021. v. 1. p. 3–91. ), mobiliza múltiplas faculdades sensoriais em sua realização.

6 Considerações finais

Ao longo deste artigo, buscamos refletir sobre a diversidade de formas pelas quais a literatura contemporânea, em especial aquela endereçada a crianças e jovens, constitui-se pelo recurso à multimodalidade. Entendemos que essa perspectiva multimodal de construção do texto literário dialoga com um movimento amplo que vem permeando os estudos literários mais recentemente, o qual pontua que estamos vivenciando uma expansão do campo literário, movida por suas facetas de produção, de leitura ou associadas à crítica.

Para tanto, selecionamos como corpus três obras que nos parecem contribuir para a composição desse cenário múltiplo e plural, que se valem da multimodalidade recorrendo a diferentes estratégias. A primeira delas, A queda dos moais , recorre à diversidade dos gêneros textuais e ao diálogo entre palavra e imagem, ainda que se valha apenas do formato impresso (destaca-se que a multimodalidade não está condicionada ao digital); a segunda, Sinfonia dos animais , acrescenta ao diálogo verbovisual uma camada sonora e um convite ao jogo, recorrendo ao recurso intermidiático e incentivando a ludicidade por meio de uma mescla de tecnologias do impresso e do digital; a última, o projeto Mobeybou , mergulha nas potencialidades tecnológicas, valendo-se de elementos como a gamificação e a realidade aumentada, ainda que mantenha a imagem do livro impresso, emulado no aplicativo.

Essa miríade de formas de se explorar os recursos multimodais origina obras literárias que têm por fim, cada uma a sua maneira, uma exploração estética atenta à ativação de diferentes modos de linguagem, que ultrapassam o verbal, ainda que não deixem de a ele recorrer, e que conduzem o leitor a distintas paisagens semióticas nas quais seus sentidos são instados a atuar, de forma coletiva, na produção dos efeitos de sentido dos textos, os quais revelam múltiplas e densas camadas mobilizadas.

Não se pode negar que todas essas obras têm em comum, além da exploração multimodal, outras duas características que nos parece relevante ressaltar. De um lado, são obras que investem na exploração do aspecto lúdico que permeia as narrativas e o próprio jogo do texto ( Iser, 1979ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In: LIMA, Luiz Costa (ed.). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 105–118. ), reforçando elementos de caráter interativo que demandam o envolvimento efetivo do leitor, ainda que este ocorra em distintos graus conforme a modalidade midiática utilizada. De outro, são obras que se mostram extremamente conscientes de sua materialidade, e do impacto que esta tem sobre os sentidos do texto construído, reforçando reflexões contemporâneas atinentes a esse âmbito da literatura que, muitas vezes, foi relegado a segundo plano.

Esperamos, portanto, ter contribuído para indicar o vigor que os estudos da multimodalidade, associados aos da literatura em campo expandido, trazem ao campo dos estudos literários na contemporaneidade, abrindo espaços para novos modos de se pensar o literário mais atentos ao seu leitor, à sua materialidade e aos múltiplos processos cognitivos a ele associados.

Referências

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  • ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
  • 1
    Como destaca Ruth Page na introdução ao livro New Perspectives on Narrative and Multimodality , é apenas a partir dos anos 1990 que o conceito de multimodalidade passa a interessar criticamente a estudos das mais diversas áreas, capitaneados em especial pelo trabalho do New London Group, um grupo de pesquisa acadêmica norte-americano que se volta aos multiletramentos ( Page, 2010, p. 3–5PAGE, Ruth. New Perspectives on Narrative and Multimodality. New York: Routledge, 2010. ).
  • 2
    No original: “In the context of media studies and linguistics, ‘multimodality’ sometimes refers to the combination of, say, text, image and sound, and sometimes to the combination of sense faculties (the auditory, the visual, the tactile and so forth). Thus, multimodality has been defined as ‘the use of two or more of the five senses for the exchange of information’ (Granström et al. 2002: 1).”
  • 3
    No original: “[…] multimodal novels in their employment of multiple sensory stimuli are self-conscious of their material form, playing upon the integrative nature of cognition and embodied nature of reading.”.
  • 4
    Conforme o índice, os tipos de texto são: ficha catalográfica, epígrafe, folheto publicitário, história em quadrinhos, reportagem, e-mail, diário, WhatsApp, receita, carta, lenda, lista, parlenda, canção, piada, gráfico, relatório, notícia, cartão-postal, crônica, livro-imagem ou narrativa visual, conto de fadas, redação, circular, índice, biografia, anamnese, provérbio ou ditado popular, nota do autor ( Franco; Auerbach; Lollo, 2018, p. 56–59FRANCO, Blandina; AUERBACH, Patricia; LOLLO, José Carlos. A queda dos moais. São Paulo: Escarlate, 2018. ).
  • 5
    No original: “[…] multimodality in the iterary narratives of innovative print media has been neglected.”.
  • 6
    No original: “but one that, crucially, is seen to physically engage with the novel in an actualized way.”.
  • 7
    No original: “[…] that word and image act in synchronicity, engaged in the production of a shared textual meaning. Their narrative congruence is thus perceived as contributing to a joint event. Consequently, multimodal novels, employing a multitude of modes, may create a more intense narrative experience.”.
  • 8
    A resenha crítica da reconhecida pesquisadora de literatura infantil e infanto-juvenil foi publicada no perfil do Facebook de Marisa Lajolo em 18 de abril de 2019, e compartilhada na página de uma das autoras do livro ( https://www.patriciaauerbach.com.br/mdias/marisa-lajolo-resenha-do-livro-a-queda-dos-moais ).
  • 9
    Segundo Claus Clüver, “‘Intermidialidade’ é um termo relativamente recente para um fenômeno que pode ser encontrado em todas as culturas e épocas, tanto na vida cotidiana como em todas as atividades culturais que chamamos de ‘arte’. Como conceito, ‘intermidialidade’ implica todos os tipos de interrelação e interação entre mídias; uma metáfora frequente aplicada a esses processos fala de ‘cruzar as fronteiras’ que separam as mídias” ( Clüver, 2011, p. 9 CLÜVER, Claus. Intermidialidade. PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, v. 1, n. 2, p. 8–23, 2011. ISSN 2238-2046. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistapos/article/view/48493 . Acesso em: 28 jul. 2024.
    https://periodicos.ufmg.br/index.php/rev...
    ).
  • 10
    Além do maestro Ratinho, compõem essa sinfonia o pássaro, o canguru, o gato, a arraia, o hipopótamo, o sapo, o avestruz, o tatu, o javali, o cavalo, a baleia, o guepardo, o elefante, o rato, o besouro, a aranha, o morcego, o cisne e o grilo, conforme a ordem de aparição no livro.
  • 11
    A variedade terminológica é um aspecto complexo em áreas de estudos recentes, como é o caso da intermidialidade ou da literatura digital. No Vocabulário presente no portal do Observatório da Literatura Digital Brasileira, da Universidade de São Carlos, os termos “literatura digital” e “literatura eletrônica” são tomados como equivalentes ( Antunes, 2024 ANTUNES, João Roberto. Literatura Digital | Literatura eletrônica. Observatório da Literatura Digital Brasileira, 2024. Disponível em: https://www.observatorioldigital.ufscar.br/vocabulario/literatura-digital/ . Acesso em: 28 jul. 2024.
    https://www.observatorioldigital.ufscar....
    ). Mantivemos, aqui, o uso de “literatura eletrônica”, menos comum na América Latina que “literatura digital”, para preservar o léxico do artigo de Leonardo Flores com o qual dialogamos.

Editado por

Editor de seção:
Daniervelin Pereira
Editor de layout:
João Mesquita

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2024
  • Aceito
    10 Jun 2024
  • Publicado
    01 Ago 2024
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