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A REESCRITA COMO PROCESSO DE APROPRIAÇÃO DO GÊNERO HQ EM UM PROJETO DIDÁTICO DE GÊNERO AGENCIADO NO NONO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL

REWRITING AS AN APPROPRIATION PROCESS OF THE COMIC BOOK GENRE IN A DIDACTIC GENDER PROJECT AGENCY TO THE NINTH GRADE OF ELEMENTARY SCHOOL

Resumo

Este artigo analisa o ensino de produção de histórias em quadrinhos por meio de um Projeto Didático de Gênero agenciado em uma turma de nono ano, a fim de perceber como o processo de reescrita efetiva a autoral apropriação dos gêneros discursivos trabalhados em sala de aula. Assumiu-se a perspectiva enunciativa de ensino de língua, orientando-se por um trabalho reflexivo e processual de ensino e aprendizagem dos gêneros discursivos. Nessa seara, o escopo teórico abalizador da pesquisa entende os gêneros como instâncias centrais das metodologias de ensino de língua e a correção textual-interativa como propiciadora da autoria discursiva do produtor em formação. A metodologia se pauta no estudo de caso e tem base analítica qualitativa. Assim, a pesquisa-ação gerou 12 produções textuais para serem analisadas. Inicialmente, fizemos uma análise geral do desenvolvimento dos textos e, depois, afunilamos para a produção de um dos estudantes participantes da experiência. A análise fez perceber que se utilizar de metodologias de reescrita para o ensino da produção textual propicia o aprimoramento da reflexividade do estudante sobre sua aprendizagem e sobre suas escolhas enunciativas autorais em função de situações interacionais concretas da vida social. Seja na análise quantitativa, seja na análise qualitativa, os resultados evidenciam que os estudantes, embora já consumissem o gênero HQ, ao longo das várias etapas propiciadas pelas atividades pedagógicas, foram capazes de se apropriar dos diferentes recursos verbais e visuais concernentes à arquitetônica do gênero HQ, a fim de concretizar projetos discursivos de maneira responsiva e autoral, expressando sua posição axiológica nas produções.

Palavras-Chave:
Ensino de escrita; reescrita; correção textual-interativa; histórias em quadrinhos

Abstract

This article analyzes the teaching of comics production through a Teaching Project of Genre agency in a ninth-grade class, in order to understand how the rewriting process effects the authorial appropriation of discursive genres worked in the classroom. The enunciative perspective of language teaching was assumed, guided by a reflective and procedural work of teaching and learning discourse genres. In this sense, the theoretical scope of the research understands genres as central instances of language teaching methodologies and the textual-interactive correction as a propitiator of the discursive authorship of the producer in training. The methodology is based on a case study and has a qualitative analytical basis. Thus, the action research generated 12 textual productions to be analyzed. Initially, we did a general analysis of the development of the texts, and then we narrowed it down to the production of one of the students participating in the experience. The analysis made us realize that using rewriting methodologies to teach text production enhances students’ reflexivity about their learning and their authorial enunciative choices according to concrete interactional situations in social life. Both in the quantitative and qualitative analysis, the results show that the students, although they knew the comic book genre, throughout the various stages provided by the pedagogical activities, were able to appropriate the different verbal and visual resources concerning the architecture of the comic book genre, in order to realize discursive projects in a responsive and authorial manner, expressing their axiological position in the productions.

Keywords
Teaching writing; rewriting; textual-interactive correction; comics

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O ensino de escrita na educação básica, historicamente, se elaborou em torno da correção gramatical. De acordo com Andrade (2019)ANDRADE, F. R. da S. (2019). Protagonismo e evolução discentes evidenciados em produções de cartas argumentativas In: FORTALEZA. Projeto professor-autor: fazendo História... Trocando figurinhas.1 ed. Fortaleza: Prefeitura Municipal de Fortaleza, p. 97-104., principalmente antes da publicação e da circulação dos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN (BRASIL, 1998BRASIL. Ministério da Educação. (1998). Parâmetros Curriculares Nacionais: 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF.), o foco era analisar se o texto se alinhava às regras ortográficas vigentes e à norma-padrão de uso da língua. O professor, nessa concepção de ensino da escrita, como metaforiza Andrade (2019)ANDRADE, F. R. da S. (2019). Protagonismo e evolução discentes evidenciados em produções de cartas argumentativas In: FORTALEZA. Projeto professor-autor: fazendo História... Trocando figurinhas.1 ed. Fortaleza: Prefeitura Municipal de Fortaleza, p. 97-104. ao fazer alusão à caneta de tinta vermelha utilizada para corrigir as produções textuais, manchava de sangue a produção dos estudantes, a fim de evidenciar o que eles não sabiam, marginalizando a reflexão sobre a escrita e, nesse bojo, sobre a própria interação.

Hoje mais voltado para uma concepção interacionista de língua/linguagem, o ensino de escrita, inclusive com base nas orientações dos PCN (BRASIL, 1998BRASIL. Ministério da Educação. (1998). Parâmetros Curriculares Nacionais: 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF.) e da Base Nacional Comum Curricular - BNCC (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação. (2018). Base nacional comum curricular. Brasília: MEC/SEF.), deve se pautar no todo que permeia a interação. Nesse sentido, interessa analisar as especificidades linguísticas do gênero que engendra o enunciado, como também a relação entre os interlocutores, a variedade linguística apropriada à interlocução, as semioses não verbais concernentes aos textos, a esfera discursiva de circulação dos enunciados, o projeto enunciativo do produtor, entre outros aspectos necessários à análise da interação, tal como consideram Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. (2016). Os gêneros do discurso. Organização, tradução, notas e posfácio de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 24. e Volóchinov (2018)VOLÓCHINOV, V. (2018). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 2. ed. São Paulo: Editora 34..

Diante disso, o ensino de escrita deixa de ser baseado na norma-padrão e na ortografia, o que se coadunaria a uma perspectiva autônoma de letramento (STREET, 2014STREET, B. V. (2014). Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola.) e mecânica de ensino, para pensar que, via texto escrito, relações de poder e autoria se apresentam e se consolidam, apontando para uma perspectiva ideológica de letramento (STREET, 2014STREET, B. V. (2014). Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola.). Para efetivar isso, o processo de reflexão sobre o que se escreve propiciado pela reescrita do texto ao longo das atividades de ensino e aprendizagem é fundamental, se se tem o fito de formar sujeitos conscientemente autores de seus próprios textos e mais capazes de arquitetar seus projetos enunciativos em torno de propósitos interativos.

Considerando essa premissa, este artigo objetiva analisar os mecanismos de reescrita efetivados no agenciamento de um Projeto Didático de Gênero - PDG (GUIMARÃES; KERSCH, 2012GUIMARÃES, A. M. M.; KERSCH, D. F. (Org). (2012). Caminhos da construção: projetos didáticos de gênero na sala de aula de língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras.) por alunos de uma turma de nono ano dos anos finais do ensino fundamental no momento em que o plano anual objetivava o estudo do gênero discursivo Histórias em Quadrinhos - HQ. Isso porque, segundo hipotetizamos, numa perspectiva enunciativa de abordagem da língua, as escolhas empreendidas pelos estudantes para reescrever seus textos colaboram para a construção consciente da autoria responsivo-ativa (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, M. (2016). Os gêneros do discurso. Organização, tradução, notas e posfácio de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 24.), bem como para o protagonismo do sujeito quanto ao próprio processo de aprendizagem. A escolha pela HQ se efetua em razão de esse gênero se organizar por meio de mecanismos multissemióticos de produção de sentido, o que, segundo a BNCC (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação. (2018). Base nacional comum curricular. Brasília: MEC/SEF.), deve ser objeto de análise nas aulas de língua materna.

Para concretizar esse objetivo, este texto se organiza da seguinte maneira: após esta introdução, teorizamos sobre o ensino de reescrita para a apropriação dos gêneros do discurso nos processos de ensino e aprendizagem da educação básica. Em seguida, descrevemos os pressupostos metodológicos que viabilizaram a coleta e a análise dos dados. Posteriormente, realizamos a análise objetivada neste artigo. Por fim, fazemos nossas considerações finais.

1. O ENSINO DE REESCRITA NO VIÉS DO GÊNERO DISCURSIVO

O contexto educacional brasileiro apresenta vários desafios, sobretudo aos docentes, que precisam, algumas vezes, lidar com várias turmas e/ou com turmas lotadas. Esse contexto favorece o ensino tradicional de forma geral, com aulas expositivas em sua predominância. Em relação ao ensino de produção textual, tal realidade não se distancia muito, pois, devido aos resultados alcançados em avaliações oficiais, percebe-se que o ensino da escrita ainda segue um rito tradicional, pautado na exposição e na falta de interação em sala de aula. Tal prática é bem antiga, pois, como aponta Geraldi (1984)GERALDI, J.W. (1984). Concepções de linguagem e ensino de Português. In: GERALDI, J.W. (org.) O texto na sala de aula. Cascavel: ASSOESTE., nos anos 80 do século passado, a produção escrita escolar dizia respeito basicamente à produção de redação, e não de texto propriamente dito. Vale ressaltar que tal ensino tradicional se dá principalmente quando o docente se preocupa com a “estrutura” do gênero, repassa isso para a turma e pede aos alunos que escrevam um texto a partir do que ele lançou.

Sobre a abordagem acima, percebemos alguns equívocos. O primeiro deles é achar que o processo da escrita é natural, que o sujeito, ao ver aquele modelo, automaticamente o assimilará. Mesmo Geraldi (1984)GERALDI, J.W. (1984). Concepções de linguagem e ensino de Português. In: GERALDI, J.W. (org.) O texto na sala de aula. Cascavel: ASSOESTE. tendo dito isso antes dos PCN (BRASIL, 1998BRASIL. Ministério da Educação. (1998). Parâmetros Curriculares Nacionais: 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF.) e da BNCC (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação. (2018). Base nacional comum curricular. Brasília: MEC/SEF.), infelizmente tal contexto ainda faz parte da realidade brasileira no século XXI. Diante disso, sabemos que o resultado dessa prática de ensino é a perpetuação de notas baixas e a ausência de aprendizagem significativa, além da criação de um estigma em relação à escrita. Tal resultado é refletido nos índices de reprovação escolar, sendo 6,9% no Ensino Fundamental e 10% no Ensino Médio, conforme o censo escolar de 2019 (INEP, 2020INEP. (2020). Taxas de rendimento. Disponível em: <encurtador.com.br/ilyFM>. Acesso em: 15 mar. 2021.), além da quantidade de zeros na prova de redação do ENEM que, em 2019, ultrapassou os 143 mil (BERMÚDEZ, 2020BERMÚDEZ, A. C. (2020). Enem 2019: 53 candidatos tiraram nota mil na redação; 143 mil tiraram zero. UOL Educação. Disponível em: <encurtador.com.br/qtxyD>. Acesso em: 15 mar. 2021.).

Diante desse e de muitos contextos desafiadores, é preciso repensar o ensino da escrita. Alguns questionamentos para começar a repensar esse processo são: Como colocar o aluno no centro desse processo? Como engajar esse sujeito no processo de escrita? Como criar um espaço em que a escrita seja significativa para o aluno? Tais questionamentos, que não necessariamente serão respondidos aqui, servem também como reflexão para se repensar a prática docente. Levando essas questões em conta, entendemos que a seleção de gêneros discursivos para análise em sala de aula deve se pautar naqueles que levem a uma análise produtiva de como a linguagem opera simulacros da realidade entre sujeitos sócio-históricamente situados, promovendo, também, discussões sobre temas transversais concernentes à vida cultural - projeto que pode, segundo Carvalho (2018)CARVALHO, I. M. de. (2018). A transposição didática do gênero história em quadrinhos (HQ) no 9° ano do Ensino Fundamental. Dissertação de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS). Centro de Humanidades, UFC, Fortaleza. 2018., ser bem realizado a partir de HQ.

De acordo com Cassany (2007)CASSANY, D. (2007). Reparar la escritura. Barcelona: Graó., o professor precisa dar mais autonomia aos alunos. Isso pode se dar com a distribuição de responsabilidades, isto é, quando o docente compartilha com o aluno a responsabilidade de correção do texto, propondo uma avaliação coparticipativa. Dessa forma, o educador abre mão de uma posição vertical em relação ao discente. Ao sondar a turma sobre os critérios de correção que devem ser levados em consideração para a correção de uma produção, o professor não só divide responsabilidades, mas torna o aluno sujeito ativo desse processo, promovendo a ativação de conhecimentos na realização da correção textual.

Após definir como será feito o processo de correção, Cassany (2007)CASSANY, D. (2007). Reparar la escritura. Barcelona: Graó. sugere que o professor crie uma lista de verificação para guiar a correção. Essa lista deve ser criada, obviamente, em conjunto, guiada pelo docente, que passa a ser um mediador da aprendizagem. A lista não servirá somente para conduzir os alunos na produção textual, mas para inseri-los em um processo de autocorreção e de colaboração em relação ao texto dos colegas. Dessa forma, a aula de produção textual se torna mais interativa e, certamente, suscita o engajamento discente.

Ao encontro de Cassany (2007)CASSANY, D. (2007). Reparar la escritura. Barcelona: Graó., também Guimarães e Kersch (2012)GUIMARÃES, A. M. M.; KERSCH, D. F. (Org). (2012). Caminhos da construção: projetos didáticos de gênero na sala de aula de língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras., ao proporem o PDG, metodologia para o ensino de escrita na educação básica, orientam a realização de critérios pelos quais os estudantes possam autoavaliar sua produção. A hipótese é a de que, além de horizontalizar o processo, ao avaliar o próprio texto com base em critérios gerais elaborados coletivamente, o produtor textual perceba que mecanismos semióticos propiciados pelo gênero podem ser personalizados em seu projeto enunciativo. Como é a turma que elabora essa grade de autoavaliação, isso auxilia no diagnóstico dos letramentos construídos pelos estudantes.

Diante disso, percebemos que os três tipos de correção identificados por Serafini (1995)SERAFINI, M. T. (1995). Como escrever textos. São Paulo: Globo., quais sejam, indicativa, resolutiva e classificatória, tornam-se obsoletos. A primeira seria aquela em que o professor sublinha ou circula o “erro”, destacando todos os equívocos do aluno, focando-se em aspectos ortográficos e normativos, com pouca atenção aos aspectos textuais/interacionais. Já em relação à resolutiva, o professor reescreve as palavras, frases ou períodos inteiros, ao lado das margens da folha de redação ou por cima das frases. Por meio desse processo, o docente acredita que o aluno, ao ver a correção do trecho, será capaz de se corrigir. Por fim, na classificatória, o professor, ao identificar os desvios, aponta os problemas e os categoriza. Percebemos que esses tipos de correção, cada um a seu modo, privilegiam aspectos puramente normativos e ortográficos, realidade ainda observada hodiernamente. Embora a reflexão sobre as questões que essas correções pontuam, elas não angariam a análise e a autorreflexão.

Serafini (1995)SERAFINI, M. T. (1995). Como escrever textos. São Paulo: Globo. acredita que a classificatória seria a mais adequada naquele contexto [anos 1990], porque, segundo a autora, permitiria ao discente um processo de autocorreção, isso se o texto passasse por um momento de reescrita no qual o aluno entendesse o porquê de tal correção.

A partir desses tipos de correção, Ruiz (1998)RUIZ, E. M. S. D. (1998). Como se corrige redação na escola. 1998. 2v. Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas. Disponível em: <https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca.>. Acesso em: 12 jan. 2021.
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observa que há um quarto tipo, a textual-interativa, em que o professor escreve comentários contendo elogios e/ou identifica trechos com problemas para o simulacro interacional intencionado pelo projeto de produção. Tal processo permite um diálogo melhor entre professor e aluno, pois, além de identificar desvios, o docente passa a valorizar os acertos e a destacá-los em forma de elogios.

Diante de tais reflexões, percebemos que o processo de correção é um desafio para o professor brasileiro porque, além de planejar e ministrar aulas, o profissional deve também dar uma devolutiva das produções. Acreditamos que, para efetivar uma abordagem enunciativo-discursiva de linguagem como orienta a BNCC (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação. (2018). Base nacional comum curricular. Brasília: MEC/SEF.) e engatilhar a consciência autoral dos alunos, as sugestões de Cassany (2007)CASSANY, D. (2007). Reparar la escritura. Barcelona: Graó. são providenciais. Portanto, o ensino da produção textual deve ser pautado no trabalho com gêneros, como afirma Santos (2004)SANTOS, C. F. (2004). O professor e a escrita: entre práticas e representações. Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas. Disponível em: <encurtador.com.br/lnLO0>. Acesso em: 05 jan. 2021., que critica o processo de correção influenciado pelas correções indicativas, resolutivas e/ou classificatórias.

Segundo Marcuschi (2005MARCUSCHI, L. A. (2005). Apresentação. In: BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação e interação. Trad. e org. de A. P. Dionísio e J. C. Hoffnagel. São Paulo: Cortez, p. 09-13., p. 10), ensinar a linguagem sob a perspectiva dos gêneros significa trabalhar “com a compreensão de seu funcionamento na sociedade e na sua relação com os indivíduos situados naquela cultura e suas instituições”. Tal perspectiva pauta-se em uma concepção de língua como interação. A escrita, nessa seara, é vista como prática social e todo texto, seja ele oral seja ele escrito, realiza propósitos comunicativos em uma situação específica histórica e culturalmente situada.

Logo, a abordagem de ensino da escrita a partir dos gêneros argumenta que, ao ensiná-los, deve-se estar atento não apenas para a realidade do texto em uso (seus porquês e para quês), mas também para o modo de funcionamento textual (SANTOS, 2004SANTOS, C. F. (2004). O professor e a escrita: entre práticas e representações. Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas. Disponível em: <encurtador.com.br/lnLO0>. Acesso em: 05 jan. 2021.). Portanto, deve-se apresentar ao aluno uma motivação para iniciar o processo de escrita, além de se percebê-lo como um sujeito realizando um papel social.

Tal perspectiva de ensino torna o professor um mediador do processo, pois, segundo Schneuwly e Dolz (1995)SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (1995). Gêneros e Progressão em Expressão Oral e Escrita: elementos para reflexões sobre uma experiência suíça (francófona). (mimeo) Traduzido por Roxane Rojo. São Paulo: LAEL PUC-SP, 1995., o ensino que visa ao domínio textual requer uma intervenção ativa do professor e o desenvolvimento de uma didática específica. Ainda de acordo com os autores, a introdução do gênero na escola é sempre resultado de uma decisão didática, que visa atingir pelo menos dois objetivos: aprender a dominar o gênero para melhor conhecê-lo e melhor compreendê-lo de modo a melhor produzi-lo na escola e fora dela; e desenvolver capacidades que ultrapassem o gênero e que são transferíveis para outros gêneros mais próximos ou distantes. E, claro, antes de corrigir, o professor pode permitir a opinião dos alunos na correção.

Daí, desenvolve-se uma habilidade potencialmente promissora na vida desses sujeitos: a de serem revisores dos próprios textos - em outras palavras, a de construir autonomia em sua própria aprendizagem -, pois, conforme Araújo, Barros e Silva (2015ARAÚJO, J.; BARROS, M. G.; SILVA, E. S. (2015). Práticas de reescrita no ensino do gênero resenha. RBLA. v. 15, n. 1, p. 109-130, 2015. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/tla/a/pBy7nwSdz6nNy98ZMT9Ddfs/?format=pdf⟨=pt.>. Acesso em: 06 jan. 2021.
https://www.scielo.br/j/tla/a/pBy7nwSdz6...
, p. 115, grifos adicionados), “[...] a aprendizagem da escrita não é algo que ocorre de forma espontânea; é necessário, entre outros aspectos, ensinar os alunos a serem revisores e editores de seus próprios textos.”.

Percebemos que todo o processo de ensino da produção textual deve ser pautado no gênero como objeto de aprendizagem e que a correção deve envolver o aluno como sujeito ativo, isto é, como alguém que corrige o próprio texto, reescreve, quantas vezes forem necessárias, e que pode ser um colaborador do texto do colega. Ademais, vale dizer ainda que

Diferentemente da abordagem finalista, centrada apenas no produto, estudos que exploram atividades de produção escrita do ponto de vista do processo, nos quais os alunos são submetidos a diferentes modalidades de revisão, evidenciam um ganho de qualidade ao texto no que diz respeito à identificação e correção de problemas locais e globais nos textos. (ARAÚJO; BARROS; SILVA, 2015ARAÚJO, J.; BARROS, M. G.; SILVA, E. S. (2015). Práticas de reescrita no ensino do gênero resenha. RBLA. v. 15, n. 1, p. 109-130, 2015. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/tla/a/pBy7nwSdz6nNy98ZMT9Ddfs/?format=pdf⟨=pt.>. Acesso em: 06 jan. 2021.
https://www.scielo.br/j/tla/a/pBy7nwSdz6...
, p. 111)

Portanto, diante do exposto, percebemos a importância da reescrita para o domínio autoral da arquitetônica dos gêneros discursivos e, em função disso, esperamos que os docentes se valham de estratégias de ensino de produção textual com base na reescrita, com o fito de fornecer/desenvolver/refinar estratégias conscientes de responsividade e autoria dos produtores em formação. Advogando em prol dessa crença, na seção de análise apresentaremos um exemplo de como isso se deu em uma experiência de produção textual em sala de aula da educação básica, a fim de estimularmos professores a buscar estratégias de ensino que foquem o processo de reescrita e de correção colaborativa.

2. APROPRIAÇÃO DO GÊNERO HQ EM UM PROJETO DIDÁTICO DE GÊNERO

2.1 METODOLOGIA

Passaremos, agora, a detalhar a metodologia utilizada para que pudéssemos gerar os dados desta pesquisa. Os textos aqui analisados consideram os mecanismos de reescrita efetivados no agenciamento de um Projeto Didático de Gênero - PDG (GUIMARÃES; KERSCH, 2012GUIMARÃES, A. M. M.; KERSCH, D. F. (Org). (2012). Caminhos da construção: projetos didáticos de gênero na sala de aula de língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras.) por alunos de uma turma de nono ano dos anos finais do ensino fundamental quando da aprendizagem do gênero discursivo HQ.

O PDG é um protótipo de metodologia para o ensino de produções textuais em sala de aula. Sua arquitetônica parte dos seguintes pressupostos: i) todo texto se conforma em gêneros; ii) a aprendizagem da produção textual só pode se efetivar a partir de uma metodologia processual e reflexiva; iii) todo texto circula em esferas de circulação, devendo ser conformado aos processos enunciativos organizadores desses meios; iv) a reflexão sobre o que é produzido no processo de aprendizagem é o que engatilha a (auto)consciência sobre a autoria.

Rabello (2015)RABELLO, K. R. (2015) O uso de artigos midiáticos de divulgação científica em um Projeto Didático de Gênero: uma proposta para construção do aprendizado interdisciplinar em sala de aula. Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada. Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS. assim esquematiza o PDG:

Figura 1
Esquema geral de um Projeto Didático de Gênero. Fonte: Rabello (2015)RABELLO, K. R. (2015) O uso de artigos midiáticos de divulgação científica em um Projeto Didático de Gênero: uma proposta para construção do aprendizado interdisciplinar em sala de aula. Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada. Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS..

Como pode ser visto no esquema, o PDG, consoante Rabello (2015)RABELLO, K. R. (2015) O uso de artigos midiáticos de divulgação científica em um Projeto Didático de Gênero: uma proposta para construção do aprendizado interdisciplinar em sala de aula. Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada. Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS., se diferencia das Sequências Didáticas - SD do grupo de Genebra por privilegiar a circulação do texto na prática social, etapa que, nas SD, é marginalizada. Paralelamente, o PDG, ainda conforme a mesma autora, também se diferencia dos Projetos de Letramento - PL do grupo de Ângela Kleiman em virtude de, para este último, interessar mais a prática social do que o gênero efetivamente.

[...] para o grupo de Genebra, interessa que o aluno domine o gênero trabalhado na sequência didática; já para o grupo de Kleiman, o resultado final é dar conta da prática que se decidiu exercer, não se atendo ao domínio de um gênero específico. No nosso grupo, a ousadia é ter, sim, um produto final, cuja circulação não se limitará aos muros da escola, mas também pretender que o aluno domine os gêneros envolvidos na prática em questão. (GUIMARAES E KERSCH, 2012, p. 24)

Assim, os PDG se localizam num entrelugar ao considerarem a análise exaustiva de um gênero e, ao mesmo tempo, o seu processo de circulação e de recepção nas instituições sociais. O PDG de que nos valemos para produção das HQ neste artigo analisadas decorre da pesquisa de mestrado de Carvalho (2018)CARVALHO, I. M. de. (2018). A transposição didática do gênero história em quadrinhos (HQ) no 9° ano do Ensino Fundamental. Dissertação de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS). Centro de Humanidades, UFC, Fortaleza. 2018.. A autora o realizou em uma turma de nono ano de uma escola pública da rede estadual de ensino da cidade de Fortaleza. As atividades propostas foram desenvolvidas em sete encontros de três horas-aula cada. Não houve recusa da parte de nenhum dos alunos em participar, embora alguns tenham faltado a aulas importantes para o desenvolvimento do projeto. Por isso, a pesquisa de Carvalho (2018)CARVALHO, I. M. de. (2018). A transposição didática do gênero história em quadrinhos (HQ) no 9° ano do Ensino Fundamental. Dissertação de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS). Centro de Humanidades, UFC, Fortaleza. 2018. foi concluída com a produção de doze HQ, que foi o total de alunos participantes de todas as etapas do projeto didático. Entre um módulo e outro, os discentes eram incitados a revisar seus textos, a partir dos conhecimentos construídos a cada interlocução promovida em sala de aula. A seguir, apresentamos as oficinas que compuseram o PDG a partir do qual geramos o corpus desta pesquisa. As etapas em destaque são aquelas cujos produtos aqui analisaremos.

Quadro 1
Módulos concernentes ao PDG de produção das HQ analisadas

A seguir, apresentaremos uma análise geral dos textos dos alunos que participaram de todas as atividades propostas, a fim de avaliarmos se, de fato, o processo de reescrita possibilitou o aprimoramento das produções, tanto no que diz respeito a aspectos gramaticais e ortográficos adequados à situação de produção, quanto em relação à apropriação do gênero de forma satisfatória por parte dos discentes. Em seguida, por questões de espaço, nesta análise, observaremos as produções de um dos estudantes participantes para ilustrar o processo de apropriação do gênero por meio da reescrita.

2.2 Análise da produção dos sujeitos participantes da pesquisa

Embora não tenha sido o foco principal do PDG, ao se comparar as primeiras produções dos alunos com as realizadas após o desenvolvimento das atividades propostas e do momento de revisão e reescrita, foi possível observar que todos os 12 alunos participantes apresentaram melhora considerável em nível ortográfico e gramatical, sanando maior parte das dificuldades apresentadas ainda no texto motivador.

As etapas de reescrita, assim como os comentários elogiosos e observadores realizados pela docente com o objetivo de encorajá-los em momentos em que não se sentiam capazes de realizar as tarefas e de reforçar sempre os pontos positivos das produções dos alunos, auxiliaram na percepção de questões relacionadas à norma adequada ao gênero e, consequentemente, à situação de produção. Alcará e Guimarães (2007)ALCARÁ, A.R.; GUIMARÃES, S.E.R. (2007). A Instrumentalidade como uma estratégia motivacional. Psicologia Escolar Educacional. v. 11, n.1, p. 177-178. chamam a atenção para a importância da motivação dos alunos no contexto educacional, pois essa ação impacta diretamente na qualidade do envolvimento dos discentes com o processo de produção de texto. Uma vez motivado, o aluno passa a participar das atividades com mais entusiasmo e se mostra mais disposto a enfrentar os percalços e desafios que possam surgir no decorrer do processo.

Em relação ao uso dos mecanismos verbais do gênero em questão, a evolução dos alunos pode ser melhor visualizada no gráfico abaixo:

Gráfico 1
Comparação entre a quantidade de usos de mecanismos verbais nas produções iniciais e finais dos alunos

Frente ao exposto, apenas os balões, recurso bastante conhecido das HQ, já eram utilizados pelos alunos, embora muitas vezes não estivessem de acordo com os sentimentos e as expressões dos personagens, questão importante quando se fala da textualização do gênero trabalhado. Os outros recursos verbais, tais como as legendas, as onomatopeias e as interjeições, passaram a ser utilizadas com maior frequência e de forma mais adequada nas produções finais, após os processos de reescrita.

Observemos, a seguir, o uso dos recursos visuais nas HQ dos alunos.

Gráfico 2
Comparação entre a quantidade de usos de mecanismos visuais nas produções iniciais e finais dos alunos

Através do gráfico acima, pode-se perceber que os alunos tinham pouco ou nenhum conhecimento no que se refere ao uso de figuras cinéticas e de metáforas visuais1 1 De acordo com Vergueiro (2009, p. 54), para que haja a “ideia de mobilidade, de deslocamento físico, o meio desenvolveu uma série de artifícios que permitem ao leitor apreender a velocidade relativa de distintos objetos ou corpos genericamente conhecidos como figuras cinéticas”. As metáforas visuais, por sua vez, segundo o mesmo autor (2009, p. 54), atuam junto ao conteúdo verbal, no sentido de reforçá-lo, pois são “[...] signos ou convenções do senso comum, como, por exemplo, ‘ver estrelas’, ‘falar cobras e lagartos’, ‘dormir como um tronco’ etc. As metáforas visuais possibilitam um rápido entendimento da ideia”. quando do início do PDG. Após o desenvolvimento das atividades de análises desse recurso na leitura de HQ, a grande maioria dos alunos passou a utilizá-los na composição de suas histórias, juntamente ao texto verbal, ampliando seu sentido e contribuindo, portanto, para a coerência e para a progressão textual do gênero produzido. Além do mais, embora já comentassem que já tinham prestado atenção ao uso desses recursos, os alunos afirmavam que não lembraram, na primeira produção, de apresentá-los. Esse relato lembra o que diz Rojo (2012) sobre o processo de refinamento de multiletramentos. Conforme a autora, os estudantes obviamente consomem textos diversos em sua rotina. A escola, para além de consumidores, tem o dever de alçá-los ao patamar de analistas críticos dos diversos signos verbais e visuais materializados nos enunciados, de modo a desenvolver a produção e o uso metaconsciente desses designs.

Assim, vemos que, ao adotar uma perspectiva textual-interativa de correção textual tal como advogam Ruiz (1998)RUIZ, E. M. S. D. (1998). Como se corrige redação na escola. 1998. 2v. Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas. Disponível em: <https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca.>. Acesso em: 12 jan. 2021.
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e Cassany (2007)CASSANY, D. (2007). Reparar la escritura. Barcelona: Graó., aspectos de adequação linguística, tão famigerados conforme diagnosticou Serafini (1995)SERAFINI, M. T. (1995). Como escrever textos. São Paulo: Globo., não são marginalizados. Ao contrário, eles passam a ser valorizados e, consequentemente, são metaconscientemente semiotizados pelos produtores nas etapas de reescrita de seus textos.

Além disso, sob o mesmo aspecto, vemos a importância da etapa de produção inicial, orientada por Guimarães e Kersch (2012)GUIMARÃES, A. M. M.; KERSCH, D. F. (Org). (2012). Caminhos da construção: projetos didáticos de gênero na sala de aula de língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras., no desenvolvimento de módulos que trabalhem as dificuldades dos estudantes na efetivação de projetos enunciativos adequados ao gênero que produzem. Ou seja, o docente não precisa trabalhar o que ele supõe ser difícil para os produtores em formação, mas sim as questões nas quais eles evidenciam dificuldade, personalizando as etapas do PDG à realidade que lhe é apresentada. Exemplo disso, no caso dos recursos visuais, pouco utilizados nas produções iniciais, percebemos que eles foram mais mobilizados pelos estudantes a partir da realização de atividades de análise do uso desses designs em outras HQ2 2 Para ter acesso às atividades mobilizadas na pesquisa-ação, elas estão anexas à pesquisa de Carvalho (2018). .

Assim, como orientam Santos (2004)SANTOS, C. F. (2004). O professor e a escrita: entre práticas e representações. Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas. Disponível em: <encurtador.com.br/lnLO0>. Acesso em: 05 jan. 2021. e Marcuschi (2005)MARCUSCHI, L. A. (2005). Apresentação. In: BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação e interação. Trad. e org. de A. P. Dionísio e J. C. Hoffnagel. São Paulo: Cortez, p. 09-13., quando se coloca o gênero discursivo no centro do processo de ensino, a preocupação deixa de ser tão somente com aspectos ortográficos e gramaticais desvinculados de seus usos nas práticas sociais, dando vez ao domínio de estratégias de adequação linguística a situações interlocutivas da vida social. Isso porque não se deve apartar os textos das condições mediatas e imediatas de que são produto e produtores.

Para melhor visualizar os resultados apresentados nos gráficos, analisaremos, a partir de agora, todas as versões da produção de um aluno participante da pesquisa. Observemos, inicialmente, a produção inicial desse aluno:

Figura 2
Produção diagnóstica do aluno participante da pesquisa. Fonte: Carvalho (2018CARVALHO, I. M. de. (2018). A transposição didática do gênero história em quadrinhos (HQ) no 9° ano do Ensino Fundamental. Dissertação de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS). Centro de Humanidades, UFC, Fortaleza. 2018., p. 38).

Analisando a produção diagnóstica em tela, é possível perceber que o aluno conseguiu desenvolver, de forma satisfatória, o tema proposto. Através de uma argumentação sólida, ele sustenta a tese de que o herói no qual se espelha é o irmão. O texto apresenta coerência, pois é possível identificar a tese na introdução, os argumentos que a sustentam no desenvolvimento e um desfecho, no qual essa tese é confirmada.

Contudo, o texto do aluno apresenta diversos problemas de ordem gramatical e ortográfica, bem como de estrutura do texto como um todo, já que algumas frases se apresentam soltas, inclusive sem articulação. Todas essas dificuldades foram trabalhadas no momento de reescrita, inicialmente, apontadas pela professora no texto do aluno e confirmadas na leitura do colega com o qual fazia par.

Salientamos, também, que alguns problemas apresentados foram sanados pelo próprio aluno ao se deparar, na leitura das HQ3 3 A professora-pesquisadora levou para a sala de aula diversos tipos de HQ, como os gibis brasileiros da Turma da Mônica, comic books americanos de super-heróis conhecidos pela maioria dos jovens, como Batman, Homem Aranha, Capitão América, Pantera Negra e mangás japoneses, para que os alunos pudessem entrar em contato com os diversos tipos de HQ existentes, percebendo suas semelhanças e diferenças (cf. CARVALHO, 2018). em sala, com a escrita das palavras e com a concordância das orações. Isso acontece, conforme Guimarães e Kersch (2012)GUIMARÃES, A. M. M.; KERSCH, D. F. (Org). (2012). Caminhos da construção: projetos didáticos de gênero na sala de aula de língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras., em função do processo que batizam como leitura extensiva, que se refere aos contatos que os estudantes têm com outros exemplares do mesmo gênero, o que os auxilia a sanar, individualmente, problemas textuais que encontrem.

Após a produção do texto motivador, o aluno partiu para a confecção de sua primeira HQ, somente com seus conhecimentos prévios acerca do assunto conferidos pelas oficinas de leitura extensiva concretizadas ao longo do PDG:

Figura 3
Produção inicial do aluno participante da pesquisa. Fonte: Carvalho (2018CARVALHO, I. M. de. (2018). A transposição didática do gênero história em quadrinhos (HQ) no 9° ano do Ensino Fundamental. Dissertação de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS). Centro de Humanidades, UFC, Fortaleza. 2018., p. 39).

Como o primeiro momento de revisão e reescrita só aconteceu após essas duas produções iniciais, a HQ ainda apresenta os mesmos problemas gramaticais e ortográficos do texto inicial. Contudo, se levamos em consideração aquilo que o estudante já apresenta de conhecimento, é possível perceber a presença de alguns elementos bastante característicos do gênero HQ, tais como a quadrinização, embora o texto ainda não apresente variados formatos e tamanhos de quadrinhos.

Outros elementos importantes não foram utilizados, como os balões, haja vista que as falas dos personagens se apresentam soltas dentro dos quadrinhos. A estratégia de leitura utilizada pelo aluno é diferente das HQ tradicionais, pois a sua é feita de cima para baixo, e não da esquerda para a direita. Não há, na produção em tela, a utilização de recursos visuais, tais como as metáforas visuais e as linhas cinéticas4 4 Vergueiro e Ramos (2019) definem linhas cinéticas como artifícios utilizados nas HQ compostos por figuras estáticas, com vistas a indicar a movimentação nos quadrinhos, como, por exemplo, o sentido para o qual um determinado personagem corre. , que dão movimento e dinamicidade ao texto.

Após o desenvolvimento de todas as atividades de leitura extensiva do PDG e dos momentos de revisão e de reescrita, o aluno apresentou a seguinte produção:

Figura 4
Produção final do aluno participante da pesquisa. Fonte: Carvalho (2018CARVALHO, I. M. de. (2018). A transposição didática do gênero história em quadrinhos (HQ) no 9° ano do Ensino Fundamental. Dissertação de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS). Centro de Humanidades, UFC, Fortaleza. 2018., p. 140-141).

Se compararmos, então, a primeira produção do aluno com a final, é possível perceber avanços bastante significativos tanto no que diz respeito a questões textuais, de coesão e coerência, quanto de domínio dos recursos estilísticos, temáticos e estruturais do próprio gênero. A partir dos momentos de revisão e reescrita, que foram baseados na sugestão de Cassany (2007)CASSANY, D. (2007). Reparar la escritura. Barcelona: Graó. ao se referir sobre o processo de autocorreção, o aluno foi capaz de identificar e corrigir as inadequações gramaticais de seu texto e, também, de utilizar recursos visuais e verbais típicos das HQ, que conferiram progressão e dinamicidade ao texto.

Houve a preocupação por parte do aluno em dar um título à história, que se conecta perfeitamente à narrativa desenvolvida. Ele destaca a cor da pele de seu irmão como um dos fatores que, em sua concepção, o torna um super-herói. Ainda na capa, há a figura de um herói retratado em plano americano5 5 Segundo Carvalho (2018), é um tipo de enquadramento muito comum nas HQ, através do qual a personagem é retratada da cabeça até metade do tronco. É utilizado para destacar/enfatizar a personagem em questão. (plano de destaque) e a presença de figuras cinéticas, que dão ideia de movimento ao desenho, simbolizando os movimentos da mão e da capa do personagem.

As cores que ele escolheu para retratar o super-herói remetem aos comic books6 6 Carvalho (2018) entende o termo como as HQ semiotizadas no estilo norteamericano. americanos. Todas as vinhetas apresentam fala do narrador através de legendas, e isso contribui para a progressão textual, junto às imagens e as falas dos personagens, situando o leitor no decorrer de cada ação narrada. É perceptível que a história está mais detalhada, clara e fluida.

O aluno foi um dos únicos a repetir o título na primeira página de sua HQ, que é um recurso bastante utilizado pelos gibis brasileiros. Já na primeira vinheta7 7 Consoante Carvalho (2018), as vinhetas são quadros com a função de delimitar um espaço de ação nas HQ, separando as diferentes imagens que compõem a história. , o autor apresenta ao leitor a história a ser contada. Ele utiliza diversos tipos de balões no decorrer da história, todos adequados à situação de fala e à emoção que quis transmitir através de cada personagem. Utiliza, ainda, várias figuras cinéticas. Na quinta vinheta, por exemplo, é possível compreender que o irmão roubou a televisão da casa e, logo depois, fugiu, através da perfeita articulação das figuras cinéticas com o texto verbal.

Diferentemente de sua primeira HQ, os quadrinhos possuem diversos tamanhos, e são utilizados vários ângulos e planos de visão, dependendo da importância do cenário para o desenrolar da narrativa. Duas vinhetas chamam a atenção por estarem em plano de detalhe, com foco no rosto do personagem, expressando seu sofrimento, rodeado por onomatopeias que representam que o protagonista estava apanhando da polícia e/ou de outros presos, ou de vários balões de fala representando o que a personagem ouviu das diversas pessoas a quem pediu emprego logo após sair da cadeia. Esse é um recurso bastante utilizado nas HQ, do qual o aluno se apropriou e se utilizou de forma bastante satisfatória.

No último quadrinho, o narrador-personagem aparece em destaque, novamente em plano americano, tendo a ideia de contar a história de seu irmão, finalizando, assim, a narrativa. Em forma de metáfora visual, lâmpada, acima da cabeça da personagem, é simbolizado o momento em que tem essa ideia.

Conforme afirmam Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. (2016). Os gêneros do discurso. Organização, tradução, notas e posfácio de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 24. e Volóchinov (2018)VOLÓCHINOV, V. (2018). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 2. ed. São Paulo: Editora 34., quando tomamos a língua como sistema abstrato desvinculado de sua historicidade, o enunciado não evidencia responsividade do sujeito. Porém, quando percebemos a língua como mecanismo vivo, dizem aqueles autores que os signos passam a ser percebidos como posicionamentos ideológicos dos sujeitos frente à realidade que significam.

Se consideramos a teorização de Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. (2016). Os gêneros do discurso. Organização, tradução, notas e posfácio de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 24. e Volóchinov (2018)VOLÓCHINOV, V. (2018). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 2. ed. São Paulo: Editora 34., portanto, somos levados a perceber que o processo de reescrita, para além de evidenciar aos sujeitos a necessidade de adequação do texto à situação de produção esboçada, principalmente desenvolve consciência nos produtores de como utilizar os recursos semióticos do gênero trabalhado em prol de seus objetivos, inclusive no processo de impressão de sua autoria e, por conseguinte, de sua avaliação social. O próprio Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. (2016). Os gêneros do discurso. Organização, tradução, notas e posfácio de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 24. diz que, no acabamento do gênero, o produtor sempre irá desenvolver toda a sua vontade discursiva, de modo a deixar impressa a sua axiologia no enunciado produzido.

Essa vontade discursiva, ainda amparando nossa argumentação em Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. (2016). Os gêneros do discurso. Organização, tradução, notas e posfácio de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 24., é sempre materializada por meio do recurso dos gêneros, já que todo enunciado se formata conforme a arquitetônica de um modelo genérico. Como diz Lemke (2010LEMKE, J. L. (2010). Letramento metamidiático: transformando significados e mídias. Trabalhos em Linguística Aplicada. v. 49, n. 2, p. 455-479, jul./dez. 2010. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/269074 Acesso em: 19 jun. 2022.
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, p. 457), “Um letramento é sempre um letramento em algum gênero”. O processo de análise das diferentes versões da produção em tela evidencia, nessa esteira, que a reescrita, quando trabalhada no bojo da correção textual-interativa, potencializa a compreensão do sujeito de como o gênero se utiliza de recursos arquitetônicos para promover sentido nas interações sociais e, principalmente, como o produtor pode estilizar os mecanismos semióticos desse gênero para empreender sua responsividade. Tal exercício, o de tomar consciência de seu não álibi, diz respeito à construção de letramentos.

No que se refere ao estilo, importante elemento caracterizador dos gêneros discursivos (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, M. (2016). Os gêneros do discurso. Organização, tradução, notas e posfácio de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 24.), o aluno teve como inspiração os gibis e os comics books, o que deixa entrever que, no processo de produção de enunciados sempre há algo do repetível, uma vez que, sem essa repetibilidade, a comunicação discursiva seria caótica (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, M. (2016). Os gêneros do discurso. Organização, tradução, notas e posfácio de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 24.; VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. (2018). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 2. ed. São Paulo: Editora 34.). Contudo, percebe-se que o estudante-quadrinhista inseriu o seu estilo individual na produção, já que, ao invés de criar um super-herói no estilo americano de ser, com superpoderes, como a invisibilidade ou a super força, ele colocou como herói o irmão, que superou o vício em drogas e diversas outras dificuldades somente com a ajuda na família. Então, lendo a produção do aluno, mesmo reconhecendo o estilo do gênero HQ, é possível perceber também seu estilo individual e suas vivências pessoais. Essa personalização estilística está para o irrepetível, para a centrifugação discursiva, evidenciando, portanto, o não álibi do sujeito (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, M. (2016). Os gêneros do discurso. Organização, tradução, notas e posfácio de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 24.; VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. (2018). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 2. ed. São Paulo: Editora 34.).

Tal diagnóstico remete ao que dizem Ruiz (1998)RUIZ, E. M. S. D. (1998). Como se corrige redação na escola. 1998. 2v. Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas. Disponível em: <https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca.>. Acesso em: 12 jan. 2021.
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e Santos (2005) quando defendem a importância da reescrita e da correção textual-interativa para que haja uma ampla compreensão do gênero estudado e, paralelamente, uma efetivação autoral do projeto enunciativo do produtor. Também lembramos Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. (2016). Os gêneros do discurso. Organização, tradução, notas e posfácio de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 24. quando afirma que o gênero apresenta tanto o estilo social, que diz respeito aos mecanismos semióticos que permitem seu reconhecimento, como também o estilo individual, que se refere à expressão avaliativa empreendida pelo autor em seu enunciado. Como vemos, a produção analisada revela essa tensão entre os dois estilos: a utilização de recursos semióticos comumente utilizados em HQ, estilizados a partir da vontade enunciativa de seu autor.

Em relação ao conteúdo temático, é possível identificar um vínculo dialógico com as HQ, as séries e os filmes de super-heróis negros, como o Pantera Negra, Luke Cage e Black Lightning. Isso se deve ao fato de que, no início das atividades, esse aluno se dizia desconfortável em participar do projeto, pois não se enxergava nas HQ levadas para serem lidas em sala. A professora passou, então, a apresentá-lo às HQ de super-heróis negros e a levar alguns filmes e trechos de séries para a sala de aula ao longo das oficinas de leitura extensiva. Isso ajudou o estudante a construir uma identidade enquanto jovem negro em meio aos super-heróis e a perceber que ele poderia, sim, se colocar ou colocar o irmão na posição de herói, ao invés de somente vilão, como eram geralmente retratados os negros nas HQ antigas.

O seu projeto de dizer, ou seja, a sua intenção, era homenagear o irmão, a quem tanto admirava, como um exemplo a ser seguido, além de contribuir para a representatividade negra no mundo das HQ, onde os super-heróis são, geralmente, brancos, fortes, ricos e dotados de superpoderes. É possível perceber isso pelo título que foi escolhido para a HQ (Super-preto) e pelo desenho em destaque do irmão na capa.

Bakhtin (2003BAKHTIN, M. (2003). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes., p. 82) afirma que a escolha de um determinado gênero discursivo é “determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva, pela composição pessoal dos seus participantes, etc.”. O referido autor observa, também, que o conteúdo temático de um gênero engloba uma dimensão individual, que diz respeito a aspectos peculiares ao projeto de dizer do sujeito, e uma dimensão constituinte do gênero, ou seja, seus parâmetros regulares, que permitem identificá-lo como tal. Essas duas dimensões não se sobrepujam uma à outra, mas trabalham em confluência, resultando na configuração da situação comunicativa e de seus efeitos (RIBEIRO, 2010RIBEIRO. P. B. (2010). Funcionamento do gênero do discurso. Bakhtiniana, v. 1, n. 3, p. 54-67, jan./jun. 2010.).

Na produção final, a dimensão constituinte do gênero, que fica clara através do uso apropriado de mecanismos verbais e visuais das HQ, em confluência com a dimensão individual do aluno, ou seja, suas vivências enquanto jovem negro e seu desejo de homenagear o irmão, resultaram na ressiginificação que o produtor fez da figura do super-herói, pois, quando do lançamento do tema para a construção das HQ, a professora imaginava que os alunos se espelhariam nos super-heróis famosos e que os protagonistas das histórias seriam os próprios estudantes, com superpoderes, solucionando problemas que enfrentam no dia a dia, como violência, drogas ou, simplesmente, ficar invisível para faltar aula.

Contudo, a maioria dos alunos utilizou as produções para homenagear pessoas que realmente acreditam ser dotadas de superpoderes. Então, para eles, superpoder é, por exemplo: conseguir superar sozinho o vício em drogas; trazer comida para casa mesmo com pouco dinheiro; sustentar a família com um baixo salário. Os heróis deles são modelos a serem seguidos justamente por superarem adversidades da vida sem nenhum tipo de superpoder. A indústria de entretenimento, de base estadunidense, nos afoga com modelos de heróis usando tecnologias e superpoderes. Ao invés disso, em países do Sul Global, é necessário problematizar essas percepções, a fim de que os estudantes se sintam contemplados nos projetos de leitura e de produção de gêneros, como as HQ.

Cabe mencionar, por fim, que o ensino dessa produção textual se pautou na abordagem por meio de gêneros (SANTOS, 2004SANTOS, C. F. (2004). O professor e a escrita: entre práticas e representações. Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas. Disponível em: <encurtador.com.br/lnLO0>. Acesso em: 05 jan. 2021.), isto é, o processo de correção conferiu aos sujeitos autonomia para decidir o que manteriam, o que retirariam e o que reconstituiriam em suas produções, conforme orientam Cassany (2007)CASSANY, D. (2007). Reparar la escritura. Barcelona: Graó. e Ruiz (1998)RUIZ, E. M. S. D. (1998). Como se corrige redação na escola. 1998. 2v. Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas. Disponível em: <https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca.>. Acesso em: 12 jan. 2021.
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. Reforçamos ainda que esses sujeitos aprenderam não só a corrigir, mas também a serem editores e revisores de suas produções, como sugerem Araújo, Barros e Silva (2015)ARAÚJO, J.; BARROS, M. G.; SILVA, E. S. (2015). Práticas de reescrita no ensino do gênero resenha. RBLA. v. 15, n. 1, p. 109-130, 2015. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/tla/a/pBy7nwSdz6nNy98ZMT9Ddfs/?format=pdf⟨=pt.>. Acesso em: 06 jan. 2021.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, objetivou-se analisar o processo de produção de HQ por meio de um PDG agenciado em uma turma de nono ano de uma escola pública estadual da cidade de Fortaleza, a fim de perceber como o processo de reescrita efetiva a autoral apropriação dos gêneros discursivos trabalhados em sala de aula. Assumiu-se a perspectiva enunciativa de ensino de língua, orientando-se por um trabalho reflexivo e processual de ensino e aprendizagem dos gêneros discursivos.

A análise fez perceber que, de encontro a metodologias que se centram no erro ou, melhor dizendo, no apontamento irrefletido dos equívocos ortográficos e gramaticais da língua escrita, utilizar-se de metodologias de reescrita para o ensino da produção textual no viés textual-interativo propicia o aprimoramento da reflexividade do estudante sobre sua aprendizagem e sobre suas escolhas enunciativas autorais conforme situações interacionais concretas da vida social.

Desse modo, seja na análise quantitativa seja na análise qualitativa, os resultados evidenciam que os estudantes, embora já consumissem o gênero HQ, ao longo das várias etapas propiciadas pelo PDG, foram capazes de se apropriar metalinguística, metaconsciente e criticamente dos diferentes recursos verbais e visuais concernentes à arquitetônica do gênero HQ, a fim de concretizar projetos discursivos de maneira responsiva, responsável e autoral, expressando sua posição axiológica nas produções.

Portanto, advoga-se que, na escola, é preciso perceber que a produção de enunciados não é uma atividade mecânica, mas uma (inter)ação que precisa ser analisada, refletida e, por isso mesmo, reescrita, a fim de que, paulatinamente, o estudante se conscientize de sua responsividade-ativa quanto às escolhas enunciativas de que se vale na elaboração de textos. Tal prática pedagógica, certamente, tem como consequência a formação de sujeitos mais críticos e reflexivos sobre o poder que a linguagem lhes confere ao assumirem sua posição axiológica no âmbito da dialogia discursiva.

  • 1
    De acordo com Vergueiro (2009VERGUEIRO, W.; RAMOS, P. (2009). Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. São Paulo: Contexto., p. 54), para que haja a “ideia de mobilidade, de deslocamento físico, o meio desenvolveu uma série de artifícios que permitem ao leitor apreender a velocidade relativa de distintos objetos ou corpos genericamente conhecidos como figuras cinéticas”. As metáforas visuais, por sua vez, segundo o mesmo autor (2009, p. 54), atuam junto ao conteúdo verbal, no sentido de reforçá-lo, pois são “[...] signos ou convenções do senso comum, como, por exemplo, ‘ver estrelas’, ‘falar cobras e lagartos’, ‘dormir como um tronco’ etc. As metáforas visuais possibilitam um rápido entendimento da ideia”.
  • 2
    Para ter acesso às atividades mobilizadas na pesquisa-ação, elas estão anexas à pesquisa de Carvalho (2018)CARVALHO, I. M. de. (2018). A transposição didática do gênero história em quadrinhos (HQ) no 9° ano do Ensino Fundamental. Dissertação de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS). Centro de Humanidades, UFC, Fortaleza. 2018..
  • 3
    A professora-pesquisadora levou para a sala de aula diversos tipos de HQ, como os gibis brasileiros da Turma da Mônica, comic books americanos de super-heróis conhecidos pela maioria dos jovens, como Batman, Homem Aranha, Capitão América, Pantera Negra e mangás japoneses, para que os alunos pudessem entrar em contato com os diversos tipos de HQ existentes, percebendo suas semelhanças e diferenças (cf. CARVALHO, 2018CARVALHO, I. M. de. (2018). A transposição didática do gênero história em quadrinhos (HQ) no 9° ano do Ensino Fundamental. Dissertação de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS). Centro de Humanidades, UFC, Fortaleza. 2018.).
  • 4
    Vergueiro e Ramos (2019) definem linhas cinéticas como artifícios utilizados nas HQ compostos por figuras estáticas, com vistas a indicar a movimentação nos quadrinhos, como, por exemplo, o sentido para o qual um determinado personagem corre.
  • 5
    Segundo Carvalho (2018)CARVALHO, I. M. de. (2018). A transposição didática do gênero história em quadrinhos (HQ) no 9° ano do Ensino Fundamental. Dissertação de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS). Centro de Humanidades, UFC, Fortaleza. 2018., é um tipo de enquadramento muito comum nas HQ, através do qual a personagem é retratada da cabeça até metade do tronco. É utilizado para destacar/enfatizar a personagem em questão.
  • 6
    Carvalho (2018)CARVALHO, I. M. de. (2018). A transposição didática do gênero história em quadrinhos (HQ) no 9° ano do Ensino Fundamental. Dissertação de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS). Centro de Humanidades, UFC, Fortaleza. 2018. entende o termo como as HQ semiotizadas no estilo norteamericano.
  • 7
    Consoante Carvalho (2018)CARVALHO, I. M. de. (2018). A transposição didática do gênero história em quadrinhos (HQ) no 9° ano do Ensino Fundamental. Dissertação de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS). Centro de Humanidades, UFC, Fortaleza. 2018., as vinhetas são quadros com a função de delimitar um espaço de ação nas HQ, separando as diferentes imagens que compõem a história.

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Nós, Ive Marian de Carvalho Domiciano, Francisco Cleyton de Oliveira Paes e Francisco Rogiellyson da Silva Andrade, declaramos, para fins de publicação do artigo A reescrita como processo de apropriação do gênero HQ em Projeto Didático de Gênero agenciado no nono ano do Ensino Fundamental no periódico Trabalhos em Linguística Aplicada, que os dados da pesquisa estão disponíveis em nossos bancos de dados, bem como nos anexos à dissertação de Mestrado A transposição didática do gênero história em quadrinhos (HQ) no 9° ano do ensino fundamental (disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbla/v15n1/1984-6398-rbla-15-01-00109.pdf Acesso em: 06 jan. 2024). Por ocasião da geração dos dados da pesquisa, os participantes foram avisados, por meio do Termo de Compromisso Livre e Esclarecido, de que suas produções, desde que anonimizadas, seriam utilizadas em diversas publicações periódicas e científicas.

REFERÊNCIAS

  • ANDRADE, F. R. da S. (2019). Protagonismo e evolução discentes evidenciados em produções de cartas argumentativas In: FORTALEZA. Projeto professor-autor: fazendo História... Trocando figurinhas.1 ed. Fortaleza: Prefeitura Municipal de Fortaleza, p. 97-104.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    28 Nov 2022
  • Aceito
    18 Jul 2023
  • Publicado
    22 Dez 2023
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