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ESCRITAS FRAGMENTÁRIAS NA LITERATURA LATINO-AMERICANA

FRAGMENTARY WRITINGS IN LATIN-AMERICAN LITERATURE

RESUMO

Este artigo propõe uma indagação sobre as escritas fragmentárias frequentadas por autores da América Latina nos séculos XX e XXI. Trata-se de práticas de escrita que se configuram no trânsito entre a anotação, a crônica, o diário e o ensaio, num movimento discursivo que tende a apagar as distinções entre literatura e vida. Ainda que a fragmentação seja reconhecível como estratégia discursiva crítica de uma modernidade literária que, como diz Jacques Rancière, fez da corrosão do próprio conceito de literatura seu fundamento, cabe colocar a pergunta acerca das inflexões que ela assume nos dias de hoje, em que a literatura parece abandonar seus foros específicos e, em um movimento de identificação com a experiência e o mundo, colocar em xeque a autonomia estética. Em diálogo com uma reflexão teórica sobre as escritas fragmentárias, que contempla os aportes de Lacoue-Labarthe, Nancy, Barthes, Blanchot e Rancière, o artigo traça um percurso por escritas fragmentárias da América Latina que convoca os nomes de Macedonio Fernández, Ricardo Piglia, Salvador Elizondo, Mario Levrero, dentre outros autores.

Palavras-chave:
Fragmento; Escritura; Comunidade

ABSTRACT

This article proposes an inquiry into the fragmentary writings frequented by authors from Latin America in the 20th and 21st centuries. These are writing practices that are configured in the transit between notes, chronicles, diaries and essays, in a discursive movement that tends to erase the distinctions between literature and life. Even though fragmentation is recognizable as a critical discursive strategy of a literary modernity that, as Jacques Rancière says, made the corrosion of the concept of literature its foundation, it is worth asking the question about the inflections it takes on nowadays when literature seems to abandon its specific forums and, in a movement of identification with experience and the world, call aesthetic autonomy into question. In dialogue with a theoretical reflection on fragmentary writings, which includes contributions from Lacoue-Labarthe, Nancy, Barthes, Blanchot and Rancière, the article traces a path through fragmentary writings from Latin America that calls on the names of Macedonio Fernández, Ricardo Piglia, Salvador Elizondo, Mario Levrero, among other authors.

Keywords:
Fragment; Scripture; Community

Entre 2015 e 2017, Ricardo Piglia publicou uma série de livros intitulada Los diários de Emilio Renzi. Os livros expõem um processo de reescrita dos diários que o próprio Piglia levou adiante ao longo de décadas, porém, dessa vez atribuídos à personagem de ficção, uma espécie de alter ego do autor que aparece em vários de seus relatos. Em função dessa estratégia, o autor interfere nas páginas dos diários, instalando a sua escrita num limiar impreciso entre a literatura e a vida. No primeiro volume, dedicado aos anos de formação do escritor, Piglia – que também é Renzi – se refere às visitas que na sua juventude fazia a seu avô, quem, devido à idade avançada, relatava, de maneira desordenada e inconclusa, antigas experiências. Desses diálogos com o avô, ele registra:

Tiene la memoria capturada por la guerra y no sabe bien qué hacer con ese tumulto de imágenes y escenas. A veces prendo el grabador y registro lo que cuenta, otras veces lo dejo hablar; él piensa que nada se va a perder si yo lo estoy escuchando [...]. Siempre es así, narra pequenos fragmentos muy vívidos, pero se cortan, no concluyen. Los anoto con la esperanza de que los retome y se puedan completar. [...]. Son como esquirlas, flashes luminosos, perfectos, sin ilación. Así habría que narrar, pienso a veces (Piglia, 2015, p. 101PIGLIA, Ricardo. (2015). Los diarios de Emilio Renzi: Años de formación. Barcelona: Anagrama.).

Para além do protagonismo que a figura do avô ganha nesse período de formação do escritor, o que me interessa destacar nessa citação é a relação que se estabelece entre o ato de narrar e o fragmento; relação que sugere que uma verdade do vivido só pode ser captada nos “flashes luminosos, perfectos, sin ilación” que cintilam na expressão inacabada e descontínua de uma escrita fragmentária, sobretudo – pode-se acrescentar – quando o mundo se oferece sob a forma de estilhaços. De fato, é impossível não acessar, na referência ao tumulto de imagens e cenas da guerra que o avô narra de maneira aleatória e incompleta, a figura benjaminiana do passado como o acúmulo de ruínas que a radicalidade, a violência e a vertigem das mudanças da modernidade comportaram para a vida. Uma figura do mundo como catástrofe que dilacera a experiência do sujeito ao ponto de colocar em crise a possibilidade de atribuir um sentido ao vivido mediante a narração. Os pequenos fragmentos em que se dispersa o relato do avô aludem a essa crise da arte de narrar na modernidade à qual se referiu Benjamin, ao passo que mostram o esforço do sujeito por aceder a um sentido do vivido, mesmo que seja por meio da montagem metonímica de restos da experiência. A frase de Piglia que encerra o registro dessa cena – “Así habría que narrar, pienso a veces” –, aponta para essa condição instável da indagação do sentido da matéria vivida, sugerindo que só a escrita interrompida do fragmento, no seu inacabamento, dispersão e descontinuidade, propicia a aproximação entre literatura e vida. É possível pensar, portanto, que é em consonância com essa linhagem do pensamento moderno, que colocou sob suspeita toda lógica totalizante e unificadora, que Piglia retorna às páginas dos seus diários e, décadas depois, interfere nelas, as reescreve em chave quase ficcional, ciente de que as possibilidades de aceder à expressão de uma verdade do vivido decorre de uma arte de narrar que trabalhe com restos, prescinda da ilação e aceite a impossibilidade do sentido pleno.

Ao referir essa cena de Los diários de Emilio Renzi, lida à luz das reflexões benjaminianas, busco, em primeiro lugar, sinalizar a relação incindível entre fragmento e modernidade, reiteradas vezes apontada por estudos históricos, filosóficos e literários. Como diz João Barrento (2010, p. 63)BARRENTO, João. (2010). O género intranquilo: anatomia do ensaio e do fragmento. Lisboa: Assírio & Alvim., não se trata apenas de afirmar que o fragmento é moderno, mas, sobretudo, de levar em conta que “a modernidade é intrinsecamente fragmentária”. Mas também apelo a essa citação de Piglia para abrir uma reflexão acerca das escritas fragmentárias como estratégia discursiva que aproxima a palavra literária da vida. Sabemos que, na literatura hispano-americana, esse recurso ao fragmento irrompe justamente com as práticas de escrita das vanguardas que, no início do século XX, trabalharam em favor de uma restituição dos vínculos entre arte e vida; atinge, depois, nova expressão nas poéticas experimentais dos anos 1960 e 1970, e, com variantes, chega até os dias de hoje. De fato, nos últimos anos, assistimos a uma proliferação de práticas literárias que, apelando a um regime de escrita fragmentário, tendem a apagar as distinções entre narração e experiência, entre imaginação e registro do real. Trata-se de escritas que se deslocam entre o diário, a anotação, o ensaio, a crônica, impulsionando a literatura para zonas de indeterminação discursiva. Essas práticas de escrita são tributárias da modernidade literária que explorou até a exaustão as possibilidades do fragmento, no entanto, como sugerem perspectivas críticas recentes, elas parecem abandonar os foros específicos da literatura, num movimento de identificação com a experiência e o mundo que coloca em xeque a autonomia estética.

Proponho, então, revisitar as escritas fragmentárias na literatura hispano-americana, no intuito de indagar sobre a singularidade que elas assumem nos dias de hoje. Para tanto, em diálogo com uma reflexão teórica sobre o fragmento, que contempla os aportes imprescindíveis de Phillipe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, Roland Barthes, Maurice Blanchot e Jacques Rancière, serão abordadas, em particular, as escritas de Macedonio Fernández, Salvador Elizondo e Mario Levrero, as quais não se apresentam como casos paradigmáticos, mas apenas como variáveis de uma prática altamente disseminada na cena literária da América Latina.

Ainda que a fragmentariedade seja reconhecível na cultura de Ocidente desde a Antiguidade clássica – lembremos dos aforismos de Hipócrates, dos diálogos de Platão, das meditações de Marco Aurélio –, é com a modernidade, como experiência histórica, que assume uma perspectiva crítica ante o otimismo totalizador da razão moderna, que o fragmento ganha outro estatuto discursivo. Basta mencionar os ensaios de Montaigne, a noção de agudeza de Gracián, os pensamentos de Pascal, as reflexões de Lichtemberg, os aforismos de Nietszche, os poemas em prosa de Baudelaire, as greguerías de Gómez de la Serna, as reflexões fragmentárias de Wittgenstein, Benjamin ou Adorno, para referenciar uma prática de escrita que se dissemina até nossos dias, numa diversidade de poéticas e pensamentos filosóficos que torna estéril a enumeração. Dentre essas variantes, interessa em particular a acepção que o termo fragmento ganha com os escritores alemães do Círculo de Iena no final do século XVIII. Os fragmentos – de autoria coletiva – que publicam na revista Atheneum, e os que Novalis e Friedrich Schlegel reúnem nos seus livros Grãos de pólen e Ideias, remetem a um tipo de exposição que, alheia ao desenvolvimento analítico do pensamento, supõe o corte, a interrupção como parte de um processo de escrita que, embora dispersa, não acaba. Nessa recusa à sistematicidade e à exaustividade da exposição, o fragmento aproxima-se mais da deriva do ensaio, no qual reconhece um antecedente, do que das formas acabadas da máxima ou da sentença e, por certo, materializa a recusa das pretensões totalizantes do tratado.

Como explicam Lacoue-Labarthe e Nancy em O absoluto literário (2012)LACOUE-LABARTHE, Philippe; NANCY, Jean-Luc. (2012). El absoluto literario: Teoría de la literatura del romanticismo alemán. Traducción de Cecilia González e Laura Carugatti. Buenos Aires: Eterna Cadencia., esses escritores alemães adotaram a escrita fragmentária como fundamento de uma operação crítica que projetaram sobre diferentes ordens da sociedade de seu tempo (política, moral, religiosa), mas que encontrou na literatura um lugar privilegiado de expressão. Com efeito, nesse projeto crítico, o fragmento torna-se a denominação de um recurso discursivo pelo qual a literatura pode se interrogar a si mesma, instaurando na própria execução da obra literária uma dimensão teórica que lhe é inerente. Esse gesto autorreflexivo da escrita fragmentária colocou em crise as convenções de gênero e liberou a palavra do sistema normativo que regia a literatura entendida como belas letras. Desse ponto de vista, o fragmento apresenta-se como unidade expressiva de uma escrita em processo que, operando por interrupção e disseminação, postula a obra literária como totalidade descentrada, plural – isto é, passível de contradição –, inacabada e de sentido aberto. Com essa breve descrição, que segue em amplos traços a leitura que Lacoue-Labarthe e Nancy realizam do ideário do primeiro romantismo alemão, só quero sinalizar o protagonismo das escritas fragmentárias nesse momento de inauguração de uma modernidade literária que fez da corrosão da própria ideia de literatura o seu fundamento.

Entendida nesses termos, isto é, como gesto crítico ante as noções estabelecidas do literário, a escrita em fragmento irrompe na América Latina junto dos movimentos de vanguarda de início do século XX. Sabemos que esses movimentos empreenderam uma crítica radical da arte, a qual, encerrada num ideal de beleza restrito às convenções das formas estéticas, tinha se afastado da vida. Em poucas palavras, vencida a validade do princípio da arte pela arte, tornava-se necessário restituir a função social à esfera estética, para dizê-lo em termos de Peter Bürguer (2010)BÜRGUER, Peter. (2010). Teoría de la vanguardia. Traducción de Tomás Bartoletti. Buenos Aires: Las Cuarenta.. Para além da particularidade das propostas de cada movimento de vanguarda, que na América Latina assumiram feições singulares ao se vincularem às culturas locais, o que permeava todos eles era esse propósito de fusionar a arte com um impulso vital que respondia às mudanças radicais do presente. O crescimento das cidades, a aceleração dos ritmos seriados de produção, a violência da guerra, os avanços tecnológicos que alteravam a percepção do tempo e das distâncias, as descobertas científicas sobre a relatividade, a influência de perspectivas filosóficas de corte irracional e da psicanálise eram algumas das variáveis que desestabilizavam o mundo conhecido até então e interpelavam o campo das artes nesse início de século. Não se tratava só de uma crítica à organicidade e hierarquia das formas estéticas; as vanguardas buscavam sintonizar as suas produções com a nova sensibilidade que surgia dessa experiência histórica.

É nesse sentido que deve ser pensada a configuração fragmentária de suas produções artísticas: a desarticulação da linguagem, a simultaneidade espaço-temporal, a justaposição de imagens, as associações arbitrárias, a busca pela imagem insólita encontram-se na base da montagem, o procedimento privilegiado pelas práticas das vanguardas que, dessa maneira, respondiam à nova sensibilidade e, ao mesmo tempo, exibiam a condição de artifício da arte. Com efeito, abrindo um campo de exploração que as colocava em relação com outras dimensões da experiência, as práticas vanguardistas explicitaram os meios, as formas e os processos de constituição do objeto artístico. Como explica César Aira no seu ensaio “La nueva escritura” (2000)AIRA, César. (2000). La nueva escritura. Boletín, n. 8, Centro de Estudios de Teoría y Crítica Literaria. Rosario: Universidad Nacional de Rosario, p. 165-170., a sentença do fim da arte demandou inventá-la de novo e as vanguardas o fizeram mediante um “simulacro lúdico”: não se tratava de fazer uma obra de arte acabada, mas de inventar e exibir o procedimento. As práticas artísticas experimentais impuseram-se, então, em um campo estético que – como diz Aira – reinventou a arte restabelecendo o processo, onde antes tinha sido consagrado o resultado. Essa inclinação em direção do vital que se inicia com as vanguardas provoca, como explica Gerardo Jorge, um deslocamento no eixo constitutivo da arte do século XX. Numa síntese precisa, este autor afirma que, a partir das vanguardas, a arte se desloca “del ámbito de la producción al de la recepción; del paradigma de las formas y las técnicas al de la experiencia y los conceptos; de la idea de construcción a la deconstrucción; de la obra al texto; y de la artesanía al gesto. Todo hacia la vida, la inmediatez y la espontaneidad.” (2006, p. 108-109).

Talvez seja a escrita de Macedonio Fernández, que se dispersa em textos breves e, em muitos casos, inclassificáveis, uma das que melhor visibiliza esse deslocamento da arte em direção do vital, do imediato e do espontâneo que dessacraliza a literatura e denuncia a impossibilidade da Obra acabada e definitiva. Sabemos que em Museo de la novela de la Eterna, Macedonio exacerba esse gesto profanador ao postergar a realização do romance mediante uma proliferação de prólogos que teorizam acerca do processo de construção do relato. Instaura-se, assim, um movimento incoativo da escrita que, em última instância, afirma que a condição artística da obra reside na sua execução e não no mundo que ela convoca. A essa exibição do procedimento discursivo Macedonio denomina “trabajo a la vista”. De fato, o romance se dispersa numa série descontínua de prólogos que anulam toda realidade referencial e provocam o leitor com o jogo incessante do recomeço. No conhecido prólogo “Al lector salteado”, Macedonio diz:

Al lector salteado me acojo. He aquí que leíste toda mi novela sin saberlo, te tornaste lector seguido e insabido al contártelo todo dispersamente y antes de la novela. /... / Quise distraerte, no quise corregirte, porque al contrario eres el lector sabio, pues practicas el entreleer que es lo que más fuerte impresión labra, conforme a mi teoria de que los personajes y sucesos sólo insinuados, habilmente truncos, son los que más quedan en la memoria. Te dedico mi novela, Lector Salteado; me agradecerás una sensación nueva: el leer seguido (Fernández, 1996, p. 119FERNANDEZ, Macedonio. (1996). Museo de la novela de la Eterna. Edición crítica de Ana María Camblong, Adolfo de Obieta (coords.). Madrid: ALLCA XX.).

A leitura do “entre”, que Macedonio propõe nesse prólogo, desenha o paradoxo do regime fragmentário de sua escrita, ou melhor, de toda escrita fragmentária: onde ela se interrompe, onde se instaura o corte, a escrita fragmentária prossegue. Ela continua, em função do seu “inacabamento essencial”, porém, como distração, como um desvio que promete o acesso a um saber: “Quise distraerte, no quise corregirte, porque al contrario eres el lector sabio, pues practicas el entreleer”, diz o autor.

Como assinalei antes, a escrita fragmentária resiste à exposição analítica do pensamento, ao discorrer ordenado e exaustivo da argumentação; na sua interrupção, ela é a encenação do pensar em ato, a captura do acontecimento do pensar. Um gesto reconhecível em todas as formas textuais frequentadas por Macedonio – o prólogo, o artigo, o brinde, a carta, o aforismo, a anotação, o comentário, etc. – e que ele descreve como um “pensar-escribiendo”. É por essa razão, explica Piglia, que, para Macedonio, a literatura pode expressar pensamentos tão difíceis e abstratos como os que se apresentam numa obra filosófica, porém – ele acrescenta – “a condición de que todavía no estén pensados. Ese ‘todavía no’ [...] es la literatura misma” (2000, p. 177).

O que me interessa ressaltar é que esse pensar em ato que encena a escrita fragmentária permite projetar um novo olhar sobre o mundo, supõe uma mudança de perspectiva que desarticula o estado dado das coisas e se abre ao impensado, esse “todavía no” ao que se refere Piglia. Como explica Miguel Morey (1990)MOREY, Miguel. (1990). Del pensar como forma de indisciplina. In: Morey, Miguel, Psiquemáquinas. Barcelona: Montesinos, p. 11-115., essa disposição experimental do fragmento propicia a configuração de um saber outro que questiona as presunções do sentido comum, oferecendo a possibilidade de tornar estranha a familiaridade com que se nos apresenta o mundo. Trata-se daquilo que os escritores do Círculo de Iena denominaram Witz e que se emparenta com a agudeza do barroco espanhol, isto é, a emergência de um saber outro que resulta da capacidade de captar, numa rápida visada, relações inéditas entre coisas heterogêneas, alterando assim os critérios habituais de similitude e diferença que organizam e tornam sensata a nossa realidade. É nesse sentido que a escrita fragmentária de Macedonio distrai o leitor, desvia a sua atenção e se propõe – pode-se dizer – como uma espécie de epistemologia poética. Macedonio sabe, como diz em outro de seus textos, que “Lo Sin Rumbo tiene la verdad; todo Rumbo y Perfil son un error”.

Em alguma ocasião, muitas vezes referida pela crítica, Borges afirmou que Macedonio Fernández foi um autor sem obra. Embora possamos suspeitar da ironia da frase, ela não deixa de comportar uma verdade se aceitarmos – em função do exposto – que é uma vontade do fragmento, isto é, de não fazer Obra acabada e definitiva, o que sustentou a prática de escrita de Macedonio. Cabe lembrar, nesse sentido, de Blanchot, quando, em A conversa infinita (2010)BLANCHOT, Maurice. (2010). A conversa infinita: a ausência de livro. Tradução de João Moura. São Paulo: Escuta., afirma que o fragmento é um substantivo com força de verbo. Como na escrita macedoniana, o fragmento é um fazer obra que é, ao mesmo tempo, signo da ausência de Obra, aqui grifada em maiúscula e entendida como composição acabada e apresentada. O fragmento está sempre além ou aquém da Obra – diz Blanchot –, exterior a ela, exibe a infinitude da própria operatividade da obra.

Faço essa referência a Blanchot não só por se tratar de um dos escritores mais importantes que refletiu sobre o fragmento e fez isso mediante a escrita fragmentária, mas também para abordar o tema com relação a outro momento da literatura hispano-americana. Refiro-me à segunda metade do século XX, quando a noção de escritura do pós-estruturalismo francês ingressa à cena literária da América Latina, com Blanchot, Barthes, Derrida, fundamentalmente. Lembremos que a noção de escritura volta a atenção para a materialidade da língua, rompe a relação de continuidade entre linguagem e mundo que sustenta a representação e abre, assim, as possibilidades de significação do texto ao jogo infinito do significante. Tratava-se de uma ruptura epistemológica que instaurava outros modos de configuração do sentido, outros modos de pensar a relação entre sujeito, linguagem e mundo. Essa noção estimula a produção de escritas fragmentárias, inacabadas e descontínuas, que se afastam das pautas miméticas da representação e exacerbam o gesto intransitivo da linguagem, abrindo uma dimensão teórica no interior do texto literário. Isto explica, por exemplo, a leitura – um resgate – que os escritores argentinos da revista Literal (Lamborghini, Ludmer, García, Gusmán) realizaram, nos anos 1970, da obra de Macedonio Fernández, dessa vez abordada em termos de ficção teórica. Aliás, sabemos, no que diz respeito à dimensão teórica da ficção, que a noção de escritura comportava, tinha seu precedente na literatura de Borges.

Abro parênteses: ainda que a configuração fragmentária do romance – gênero consagrado por esses anos na literatura hispano-americana (García Márquez, Fuentes, Vargas Llosa, Rulfo, etc.) – abra também uma dimensão teórica no interior das narrativas, considero que ela diz respeito sobretudo à projeção do procedimento da montagem inaugurado pelas vanguardas, mais do que a uma incidência marcada da noção de escritura, embora esta não esteja completamente ausente de algumas poéticas do período. De todo modo, é possível pensar que as leituras que por esses anos se realizam dessa produção narrativa, sobretudo as que respondem às lógicas do mercado editorial, tendem a encerrar as possibilidades de significação desses romances fragmentários nos sentidos emblemáticos da identidade latino-americana.

O que me interessa focar aqui não é a fragmentação do romance, mas os escritores que, por esses anos, escrevem em fragmentos, colocando em crise os pressupostos de sistematicidade, unidade e totalidade das formas acabadas do discurso. Penso em livros como El grafógrafo (1972), de Salvador Elizondo; Manual del distraído (1978), de Alejandro Rossi; Exorcismos de Esti(l)o (1976), de Guillermo Cabrera Infante; Prosas apátridas (1975)CABRERA INFANTE, Guillermo. (1976). Exorcismos de esti(l)o. Madrid: Punto de lectura, 2002., de Julio Ramón Ribeyro; La letra e (1987), de Augusto Monterroso, para mencionar só alguns deles. Esses livros expõem escritas fragmentárias que se deslocam por diversos registros discursivos e modos narrativos, argumentativos ou poéticos. O ensaio, o diário, a crônica, o aforismo, o poema em prosa, a anotação, o microrrelato coexistem nessas páginas, em relação de justaposição, configurando espaços textuais marcados pela heterogeneidade. Para além de suas singularidades, o fragmento mobiliza todas essas escritas que, como explica Barthes em “O círculo dos fragmentos”, se alimentam do “gozo imediato” do permanente recomeço, à maneira da ideia musical de um ciclo: “cada peça se basta e, no entanto, ela nunca é mais do que o interstício de suas vizinhas: a obra é feita somente de páginas avulsas” (2003, p. 109-110). Trata-se, portanto, de textos inclassificáveis que se oferecem como reunião de fragmentos de um processo de escrita sempre em aberto.

Dessas escritas fragmentárias, algumas das quais já abordei noutras oportunidades, quero comentar um texto de Salvador Elizondo, intitulado “El grafógrafo”. A escolha não é casual, ela permite visualizar a relação dessas práticas literárias com a noção de escritura que comentei antes. O texto diz:

Escribo. Escribo que escribo. Mentalmente me veo escribir que escribo y también puedo verme ver que escribo. Me recuerdo escribiendo ya y también viéndome que escribía. Y me veo recordando que me veo escribir y me recuerdo viéndome recordar que escribía y escribo viéndome escribir que recuerdo haberme visto escribir que me veía escribir que recordaba haberme visto escribir que escribía y que escribía que escribo que escribía. También puedo imaginarme escribiendo que ya había escrito que me imaginaria escribiendo que había escrito que me imaginaba escribiendo que me veo escribir que escribo (Elizondo, 1972, p. 9ELIZONDO, Salvador. (1972). Elgrafógrafo. México: Joaquín Moritz.).

Se as escritas fragmentárias fazem parte desse movimento da literatura em direção da vida, da imediatez e da espontaneidade, como assinalei no início, este poderia ser um bom exemplo da captura do presente da experiência: “Escribo” – insiste em presente o grafógrafo. “Escribo que escribo”. A dimensão performática do texto inclina a escrita para a apreensão do instante fugaz dessa experiência (uma experiência de escrita), no entanto, a exacerbação desse gesto intransitivo da palavra, ao invés de propiciar a aproximação entre escrita e vida, parece anulá-la, seja porque nega o mundo, seja porque condiciona o sujeito, cuja presença no texto limita-se à posição enunciativa. Dito de outro modo, se a escrita fragmentária de Macedonio encenava um pensar em ato, um pensar-escrevendo que abria a possibilidade de um saber outro sobre o mundo, aqui a escrita parece se esclerosar na reiteração incessante de um significante sem mundo.

Não obstante, cabe esclarecer que, se a escrita fragmentária de Macedonio pode ser pensada como uma epistemologia poética e esta seria a sua potencialidade crítica, a radicalidade escritural do texto de Elizondo, ao postular a grafia como domínio exclusivo de uma ideia de literatura, resiste à instrumentalização da linguagem (aqui a literatura não informa, não ilustra, não expressa, ela é, como chegou a imaginar Héctor Libertella, uma caixa tipográfica cheia de letras, com um escritor ausente). Nessa resistência à instrumentalização da linguagem reside a potência crítica dessa literatura experimental no campo dos discursos sociais. Por certo, não todos os autores que mencionei antes, nem todos os textos fragmentários de Elizondo atingem esse grau de experimentação com o significante, mas sim é possível afirmar que, em todos eles, subjaz uma noção de escritura que privilegia o jogo infinito do significante e desconfia da clausura do sentido nas pautas convencionais da representação.

Em La palabra muda (2009), Rancière afirma que, com frequência, o fragmento tem sido concebido como marca de um estatuto de inacabamento e destotalização que é próprio da arte moderna e que, ao ser levado ao extremo, empurra a palavra literária para uma experiência radical da linguagem, consagrada à produção de um silêncio. Uma noção de escritura fragmentária que ele reconhece no pensamento de Blanchot e ante a qual toma distância. Lembremos que, em A escritura do desastre (1987), Blanchot sustenta que o fragmento é “o que resta sem sobra”, a ruína que resta quando tudo já foi dito e o que resta por dizer é o desastre. Considero que o texto de Elizondo permite pensar sobre essa distância cautelosa que Rancière toma ante a noção de fragmento como ruína de Blanchot. Nessa exacerbação do gesto intransitivo da escrita, como experiência radical da linguagem, a literatura se absolutiza e destina-se à produção de um silêncio. Em contraposição à ideia de ruína, Rancière se inclina para a ideia do fragmento como germe (os grãos de pólen de Novalis), isto é, o fragmento como unidade expressiva que, no jogo de interrupção e disseminação, retorna, abrindo outras possibilidades de sentido em relação ao mundo – ou, nos termos de Rancière, em relação à partilha do sensível.

Nessa linha de indagação, em El sentido del mundo (1993) Jean-Luc Nancy explica que é necessário distinguir entre duas fragmentações, que não se excluem, mas que se diferenciam. Por um lado, a fragmentação clássica que emerge nas formulações dos românticos alemães e que postula o fragmento como um resto que, em última instância, para além de sua incompletude, interrupção e retorno infinito, recolhe-se sobre si mesmo, se autonomiza, absolutizando sua condição errática. Sempre em contraposição à totalidade, o fragmento seria o testemunho da impossibilidade da Obra, seria uma fratura do todo que se retrai em um retorno completo a si próprio (a figura do ouriço à qual se referia Schlegel). Por outro lado, deve-se pensar a fragmentação que, ligada à dinâmica do fractal, remete já não ao fechamento do fragmento – a uma presença consumada e finita, diz Nancy –, mas à sua abertura, como promessa do que está por vir, isto é, como acontecimento e apresentação. Lembremos que a dinâmica do fractal supõe um jogo combinatório permanente em que cada uma das partes repete individualmente a estrutura do todo e, ao mesmo tempo, completa a figura em outra escala. Vale dizer, o todo está presente em cada parte, mas ele não é a somatória das partes, e sim a copresença delas.

Não se trataria, portanto, de pensar essas escritas apenas em termos de uma arte do fragmento, mas em função de uma dinâmica do fractal que postula a fragmentação como uma “abertura sensível” ao mundo. Essa noção do fragmento reveste um particular interesse para certas escritas contemporâneas que, na estreita relação que estabelecem com a experiência vital, não se deixam seduzir tão facilmente por uma experiência radical da linguagem que roçaria o inefável. Ao contrário, postulariam o fragmento como a unidade seminal de uma escrita em processo, que tornaria possível – diz Nancy – a apresentação do acontecimento de ser que chamamos existência (o fragmento como germe, conforme prefere Rancière).

Como mencionei ao iniciar essa fala, perspectivas críticas recentes têm assinalado a singularidade de algumas escritas contemporâneas que, ao estreitarem seus vínculos com a vida, tendem a abandonar os foros específicos da literatura num movimento de identificação com a experiência e o mundo que coloca em xeque a autonomia estética. As reflexões em torno das literaturas pós-autônomas (Ludmer, 2010LUDMER, Josefina. (2010). Aquí América Latina: Una especulación. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora.), da arte fora de marco (Nelly Richard, 1989RICHARD, Nelly. (1989). La estratificación de los márgenes: Sobre arte, cultura y políticas. Chile: Francisco Zegers.), das ficções errantes (Speranza, 2012SPERANZA, Graciela. (2012). Atlas portátil de América Latina: Arte y ficciones errantes. Barcelona: Anagrama.) ou da arte inespecífica (Garramuño, 2015GARRAMUÑO, Florencia. (2015). Mundos en común: Ensayos sobre la especificidad en el arte. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.), entre outras, debruçam-se sobre esse campo de indagações. Em apertada síntese, Garramuño argumenta que, no movimento expansivo dessas escritas em direção do vital, a literatura já não se apresenta como esfera independente e autônoma, antes, ela se propõe como parte do mundo, se pensa intimamente ligada a ele, confundida com ele. Em outros termos, essas escritas contemporâneas não negam apenas a especificidade da literatura como arte em particular, elas estreitam os vínculos entre escrita e vida na tentativa de impugnar a arte como prática específica e, assim, poder postular um ser em comum que desestabilize as lógicas do que é próprio à literatura e do seu pertencimento à esfera estética.

A literatura de Mario Levrero é uma das produções que mais têm convocado as reflexões desse campo da crítica, sobretudo com relação a El discurso vacío (1996) e La novela luminosa (2005), livros que compartilham essa inclinação da narração para o registro da experiência explorando as possibilidades narrativas do diário íntimo. Embora essa forma textual – o diário – esteja ligada ao decurso temporal cronológico, as instâncias de escrita inscrevem cortes que segmentam o discurso, estabelecendo uma dinâmica entre as partes que não necessariamente é apenas linear, ela pode ser também recursiva. Nesse sentido, o diário pode ser pensado em função do “inacabamento essencial” de um regime fragmentário de escrita. Essa chave de leitura cabe para a configuração de cada um desses livros, mas também para a relação que se estabelece entre eles. Como sugere Sergio Chejfec (2013)CHEJFEC, Sergio. (2013). Lápices y angustias. In: De Rosso, Ezequiel (org.), La máquina de pensar em Mario: Ensayos sobre la obra de Levrero. Buenos Aires: Eterna Cadencia, p. 191-200., o diário de escritor de El discurso vacío, que comentarei a seguir, já contém, de alguma maneira, o “diário da bolsa”, que ocupa grande parte de La novela luminosa. (Só para lembrar, nesse relato, o escritor escreve um diário dos dias em que se prepara para escrever um romance porque ganhou a bolsa Guggenheim. O registro desses dias se expande como consequência da constante postergação da escrita do romance). O movimento recursivo da escrita fragmentária que coloca em relação os dois livros parece se acentuar, no caso de Levrero, pela criação de um universo narrativo que se obstina em retornar a certos temas, problemas e atmosferas ligados, sobretudo, à relação de estranhamento que o sujeito estabelece com o mundo; aspecto que Enrique Fogwill (2013)FOGWILL, Enrique. (2013). Las noches oscuras de un maestro. In: De Rosso, Ezequiel (org.), La máquina de pensar em Mario: Ensayos sobre la obra de Levrero. Buenos Aires: Eterna Cadencia, p. 260. denominou “el factor levrero” e que consiste no desdobramento de uma trama de tics, manias, obsessões, superstições, medos, sonhos, que levam a uma figuração perturbadora do mundo real. Embora isto esteja presente em toda a literatura de Levrero, nessas narrativas de viés autobiográfico ganham maior relevância pela potencial identificação entre nome de autor e narrador que elas corrompida

El discurso vacío é apresentado como um romance que foi montado com partes de outros conjuntos de textos, um denominado “Ejercicios”, que reúne exercícios de caligrafia, e outro intitulado “El discurso vacío”, que reúne partes de um texto que – diz Levrero – foi escrito com intenção mais “literária”, e no qual reflexiona sobre a (im)possibilidade da existência de um discurso vazio. A montagem configura uma espécie de diário íntimo, pautado pelas datas em que se realizaram os exercícios caligráficos. A escolha da estrutura do diário íntimo, o tom quase confidencial do discurso e essa trama levreriana de obsessões, manias, sonhos etc. que permeia todo o texto trazem a um primeiro plano a tentativa de captar a textura da vida na imediatez da experiência.

Os exercícios caligráficos fazem parte de uma autoterapia grafológica por meio da qual o narrador busca melhorar certos traços negativos do seu caráter. Tudo se reduz, portanto, a executar o desenho da letra de modo a produzir – diz o narrador – “uma especie de escritura insubstantial pero legible”. O registro do dia 28 de outubro diz:

Hoy comencé, hace dos renglones, con una letra de tamaño <u>muy</u> grande, la que en el segundo renglón se redujo bastante. ¿Por qué se redujo? Porque empecé a prestar atención a la forma de continuar la frase que había comenzado, queriendo evitar incoherencias. Y la conclusión es que, limitada como es, mi atención no puede ocuparse de dos cosas distintas. Aquí lo prioritario es la letra y no el estilo, de modo que las incoherencias están permitidas. Afloja la tensión, muchacho, y dedícate a tu laboriosa tarea de dibujo. No es fácil olvidarse de la necesidad de coherencia. Aunque después de todo la coherencia no es más que una compleja convención social. Sospecho que la frase anterior es una gran mentira, pero ahora no tengo el derecho de ponerme a analizar esas cosas. Otras cosas, tampoco. Debo caligrafiar. De eso se trata. Debo permitir que mi yo se agrande por el mágico influjo de la grafología. Letra grande, yo grande. Letra chica, yo chico. Letra linda, yo lindo (Levrero, 2006 [1996], p. 34LEVRERO, Mario. (1996). El discurso vacío. Buenos Aires: Interzona Editora, 2006., sublinhado do autor).

Como no texto de Elizondo – “El grafógrafo” –, esta cena captura o gesto da escrita na imediatez da execução, a qual, inclusive, remete ao próprio desenho da letra. Mas, ao invés de se fechar na matéria do significante, a escrita expande um discurso que, mesmo esvaziado de conteúdo significativo, expõe o processo da experiência, se confunde com ele e apaga a mediação da forma estética. Na trilha da leitura que Tamara Kamenszain (2016)KAMENSZAIN, Tamara. (2016). Una intimidad inofensiva: Los que escriben con lo que hay. Buenos Aires: Eterna Cadencia. realiza da literatura de Levrero, pode-se dizer que essa escrita também traz à cena um sujeito despojado de relato, porém, tão identificado com o mundo da vida que não inventa nada, apenas se coloca em jogo no campo da experiência e na narração do realmente vivido. É nesse sentido que pode ser pensada a crise da especificidade literária e da autonomia estética tal como a postulam os críticos que mencionei antes. Como sustenta Garramuño, nessas escritas contemporâneas, que estreitam os vínculos entre literatura e vida, “la forma se ve atravesada y a menudo deformada por una pulsión experiencial que la excede” (2009, p. 247). Dessa perspectiva de leitura, a escrita fragmentária de Levrero privilegia o momento do afeto, a instância em que o sujeito se deixa afetar pelo mundo, sem necessariamente fazer disso uma invenção ficcional ou investir na laboriosidade de alguma forma estética. Nesse ponto, cabe assinalar que o sujeito da escrita de Levrero se distancia do sujeito da escrita fragmentária, definido fundamentalmente pela sua posição no discurso. De fato, a dispersão da escrita fragmentária nos defronta com o descentramento constitutivo do sujeito, sua condição não essencial, de constituição incompleta, aberto ao diferente e suscetível de adotar posições contingentes (cf. Arfuch, 2002ARFUCH, Leonor. (2002). El espacio biográfico: Dilemas de la subjetividad contemporánea. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.). Nesse sentido, o fragmento postula a presença do sujeito no texto em termos de posição enunciativa; aspecto deste tipo de escrita que pode ser pensado também como dessubjetivação do discurso. A problematização da figura de autor nos textos de Macedonio e as diferentes posições discursivas do sujeito nos fragmentos de Elizondo seriam um exemplo disso. No caso de Levrero, o sujeito não se restringe à posição enunciativa, ele está exposto à dimensão sensível do mundo e é afetado por ela: “Letra grande, yo grande; letra chica, yo chico, letra linda, yo lindo”. Aberto ao fato de existir, esse sujeito se põe em jogo em cada momento da experiência. É nesse sentido que a escrita fragmentária de Levrero pode ser pensada em função da dinâmica do fractal que propõe Nancy, isto é, não como o fragmento que se autonomiza e absolutiza a sua condição errática, mas sim como abertura sensível ao mundo, como promessa do que está por vir.

Os fragmentos de Macedonio Fernández, Salvador Elizondo e Mario Levrero foram convocados não com a pretensão de traçar uma linha evolutiva, mas sim de evidenciar inflexões do recurso ao fragmento que respondem a contextos históricos particulares, mas que não necessariamente se esgotam neles. Por exemplo, creio reconhecer mais afinidade dos diários de Piglia com a escrita de Macedonio, do que com os diários de Levrero, mesmo que ambos tenham sido coetâneos. Também creio que o esvaziamento do discurso em Levrero, embora não apele à ilegibilidade das escritas intransitivas como a de Elizondo, não carece de potência crítica ante os modelos institucionalizados do literário. A sua escrita legível, porém, insubstancial, não deixa de ser outro modo de corroer os fundamentos da literatura. Para além das diferenças, busquei também, nos três casos, sinalizar o caráter de acontecimento das escritas fragmentárias, no sentido de serem instâncias de escrita suscetíveis de produzir reconfigurações do literário. Mas, sobretudo, tentei trazer a um primeiro plano, a partir das reflexões de Nancy e Rancière, a possibilidade de pensar as escritas fragmentárias como a partilha do comum em e pela escrita. A literatura, portanto, não como Obra acabada e apresentada, mas como desobra, como instância de exposição do ser singular ao outro, no traço interrompido da escrita.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2024
  • Aceito
    15 Fev 2024
  • Publicado
    04 Abr 2024
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