RESUMO
A entrevista com a antropóloga Jacqueline Muniz tem o objetivo de explicitar os conflitos institucionais que envolvem o 'Poder de Guerra' frente ao 'Poder de Polícia' estabelecidos pela intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, a ausência de protocolos de utilização do uso legal e legítimo da força e os efeitos que a administração pacífica ou violenta, institucional ou informal, dos conflitos têm para a sociedade. O texto é resultado de um processo de bricolagem que uniu transcrições de partes de entrevistas concedidas por Jacqueline Muniz a emissoras de TV e jornais impressos. As transcrições utilizadas têm o sentido de depreender a densidade (GEERTZ, 2008) dos temas relativos às demandas da população, como também a de intervir o mínimo possível entre a entrevistada e o público. Nestes termos, do ponto de vista metodológico, o pensamento antropológico guiou a escrita jornalística, no sentido de que a informação seja compreensível, a partir de dados que me afetam e mobilizam (CEFAÏ, 2011), como cidadã, mulher e companheira das lutas por uma sociedade mais justa, diversa e equânime.
Palavras-chave: segurança pública; intervenção federal; direitos e cidadania
ABSTRACT
Jacqueline Muniz's interview aims to explain institutional conflicts involving 'War Power' in the face of 'Police Power' which took place through the federal intervention at Rio de Janeiro State. It also approaches the absence of protocols to define legal and legitimate use of force as well as the social effects of conflict administration in a peaceful or violent, institutional or informal manner. This text is the result of a bricolage process, which unites excerpts of different interviews with Jacqueline Muniz to TV networks and newspapers. These transcripts comprehend meaning and density (GEERTZ, 2008) of a number of subjects related to the population's demands, and also intent to intervene as little as possible between the person interviewed and the reader. From a methodological point of view, anthropological thought has guided the journalistic writing so the information is understandable, emerging from data which affect and mobilize the author (CEFAÏ, 2011) as a citizen, a woman and part of the struggle for a more just, diverse and equal society.
Keywords: public security; federal intervention; rights and citizenship
Jacqueline de Oliveira Muniz foi uma das pioneiras no Brasil ao pesquisar sobre as polícias e a fazer o debate ampliado em torno das questões que envolvem a Segurança Pública no país. Atualmente, é professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense, curso de graduação criado em 2015, e também pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INEAC-UFF)1, além de ter sido condecorada pelas polícias militar e civil, assim como pelo corpo de bombeiros, Guarda Municipal e agentes penitenciários do Rio de Janeiro. Um reconhecimento pelos serviços prestados a essas instituições no âmbito da pesquisa acadêmica e da gestão pública.
Mesmo com toda experiência na área de Segurança, Jacqueline Muniz não tinha ideia de que colocar o 'dedo na ferida' da intervenção federal no Rio de Janeiro - em uma entrevista concedida a um canal da TV fechada - teria enorme repercussão. A surpresa veio porque sua fala aponta para uma posição contundente contra o modelo da Segurança Pública de espetáculo (GEERTZ, 1992) praticado pelo governo federal, num momento em que a população voltou a discutir o desarmamento e clama por "um policial em cada esquina". Em onze minutos (tempo que durou a entrevista) ela pontuou a falta de planejamento da intervenção, expondo os objetivos político-eleitoreiros que custam caro e não trazem efeitos positivos à população. Foi uma aula sobre como fazer Segurança Pública fortalecendo a democracia. O vídeo com a entrevista, disponibilizado pela emissora, "viralizou", como se diz na linguagem das redes sociais, atingindo milhares de compartilhamentos e visualizações. Foi um fenômeno com direito a homenagem dos óculos do Mídia Ninja2 e dezenas de 'memes' de divulgação da entrevista que circulam nas redes sociais. Desde 17 de fevereiro deste ano, a já conturbada agenda de qualquer pesquisador, que inclui aulas, orientações, bancas de graduação, mestrado e doutorado, palestras e produção de artigos (a Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais acaba de publicar "Os estudos policiais nas ciências sociais: um balanço sobre a produção brasileira a partir dos anos 2000", artigo escrito em parceria com Haydée Caruso e Felipe Freitas - ver MUNIZ; CARUSO; FREITAS, 2017) ficou ainda mais agitada.
Como sabemos, o assédio da imprensa não é uma praxe para intelectuais que se posicionam criticamente no país. O que não deixa de ser preocupante neste cenário brasileiro pós-golpe que a passos largos funde o retrocesso de direitos individuais e coletivos à insegurança institucional. No entanto, com seu jeito espontâneo e irrequieto, típico de pessoas profícuas e comprometidas com o que fazem, ela segue: "Estou fazendo o que sempre fiz. Não vou deixar de opinar porque minha opinião é sedimentada em estudos. Meus alunos policiais estão na ponta e sabem que o prejuízo deste teatro mal feito é de todos nós", afirma.
Foi exatamente nesse momento, em que o atendimento à imprensa se tornou imperioso, que nossas vidas se cruzaram. No final de fevereiro deste ano, assumi a Assessoria de Imprensa de Jacqueline Muniz, com intuito de desafogá-la do atendimento aos repórteres e editores, e organizar sua agenda de eventos. Aceitei o desafio proposto pela antropóloga Ana Paula Mendes de Miranda3 e desde então formamos um trio que tem dois eixos fundamentais: o primeiro, lidar com as demandas midiáticas com intuito de liberar Jacqueline Muniz do atendimento aos repórteres; o segundo, mas não menos importante, fazer com que Jacqueline se sinta acolhida por suas pares, neste momento tão conturbado da vida política brasileira, em que grupos fascistas tomam a cena em diversos setores da vida pública. É a partir desta atuação e deste entendimento que foi produzida esta entrevista.
Necessário ressaltar que a entrevista que segue poderia ser apresentada em forma de artigo. No entanto, preferi o formato de perguntas e respostas para que o público leitor, ainda que não socializado com as questões que envolvem a segurança pública, possa encontrar a narrativa de Jacqueline de forma menos mediada, uma vez que intervenho o mínimo possível em suas falas, numa atitude diversa da que acontece na construção de reportagens (SILVA, 2010). Nesse sentido, penso que seja importante, não só do ponto de vista ético, mas também da própria metodologia utilizada, explicitar que esta entrevista é resultado de um processo de bricolagem, que uniu a transcrição de partes de entrevistas concedidas por Jacqueline Muniz aos jornais El País, Jornal do Brasil, Jornal O Fluminense, ao programa Voz Ativa, da TV Minas4, e ao canal de televisão TVT5. As transcrições utilizadas aqui têm o objetivo de depreender a densidade (GEERTZ, 2008) dos temas relativos às demandas da população, no que diz respeito às questões que envolvem a intervenção federal no Rio de Janeiro, no contexto de controle das Forças Armadas na Secretaria Estadual de Segurança Pública. Além das transcrições das entrevistas, o texto contém trechos de conversas informais de que participei, em várias ocasiões, com as professoras Ana Paula Miranda e Jacqueline Muniz. O roteiro de perguntas segue no sentido de explicitar os conflitos institucionais que envolvem o 'Poder de Guerra' frente ao 'Poder de Polícia' estabelecido pela intervenção, a ausência de protocolos de utilização do uso legal e legítimo da força e os efeitos que a administração pacífica ou violenta, institucional ou informal, dos conflitos têm para a sociedade. Nestes termos, ouso me colocar num lugar liminar, no qual o pensamento antropológico guia a escrita jornalística, no sentido de que a informação seja compreensível, a partir de dados que me afetam e mobilizam (CEFAÏ, 2011), não só como a 'colega do grupo de pesquisa' que faz 'assessoria de imprensa', mas como cidadã, mulher e companheira das lutas por uma sociedade mais justa, diversa e equânime.
Rosiane Almeida: Em seu último artigo, a senhora, em parceria com mais dois pesquisadores, apresenta um levantamento bibliográfico sobre os estudos que envolvem as polícias nos últimos 18 anos e aponta que há um processo de construção de uma 'ciência social da polícia'. Essa não é uma afirmação ousada, num momento em que o cenário político é de polarização, com grupos de extrema-direita avançando no discurso do justiçamento, enquanto os setores progressistas pedem o fim da polícia militar?
Jacqueline Muniz: É preciso deixar claro que a Polícia como o lugar de produção de alternativas pacíficas de obediência às regras do pacto sociopolítico de uma sociedade, com recurso potencial e concreto de força sob consentimento social, é uma invenção da tradição liberal-democrática para o desafio de administrar os conflitos de forma pacífica. Afinal, a tradição pré-moderna de produzir violência para conter a violência não foi capaz de garantir a previsibilidade, a estabilidade e a regularidade no exercício do poder e, por sua vez, de viabilizar o funcionamento de um governo legítimo, a paz social e a produção e distribuição de riquezas. É preciso ressaltar que a lógica capitalista necessitava de indivíduos libertos para compor o universo da mão de obra a ser explorada e da circulação de pessoas e bens para garantir o funcionamento do mercado e do seu fluxo. Foi preciso ambicionar a narrativa de produzir paz com paz.
Ainda que soe óbvio, é importante dizer que não foi a polícia que inventou a polícia. Não foi a espada que desenhou a mão e a mão quem desenhou o pensamento! Foram os defensores do que hoje classificamos de direitos civis, sociais e políticos que inventaram a polícia como um instrumento que produziria coerção autorizada socialmente para intervir sobre os modos individuais e coletivos de resolução violenta de conflitos, em substituição à opressão imposta por quem detinha o poder. A polícia moderna é produto de um projeto democrático de sociedade amparado num mundo de direitos. Ela é resultante das exigências da cidadania que substituiu o uso arbitrário e deliberado da violência pelo recurso consentido e limitado de força para sustentar as regras do contrato social construído pela sociedade e não pelo 'senhor da guerra', pelo 'mercador da proteção', pela polícia ou pelo policial.
Foi com a construção da polícia, um instrumento de controle social público administrado pelo Estado, uma resposta às demandas crescentes por direitos num mundo composto por indivíduos livres e plurais, que se pôde substituir os mecanismos particulares, desiguais, discriminatórios e excludentes de proteção por dispositivos públicos, igualitários e inclusivos de segurança pública.
Proteção não é segurança pública. A primeira é para alguns e paga-se para tê-la, incluindo aí a sujeição de uns, de muitos e até de todos aos caprichos do protetor de ocasião. A segunda é para todos e visa sustentar os valores da igualdade e da liberdade na afirmação da vida, orientada por um sentido de autoridade legal e legítima. Buscava-se, com isso, substituir os mecanismos privados e arbitrários de produção de vigilantismo, perseguição e justiçamento, pelos expedientes públicos e pactuados de produção de policiamento e justiça.
Rosiane Almeida: Neste sentido, é preciso entender a polícia é uma instituição fundamental no jogo democrático?
Jacqueline Muniz: É sob a perspectiva de afirmação da importância da polícia como ferramenta democrática de controle social que se pode compreender as palavras de ordem pelo fim das PMs como demandas que apontam para a reforma do sistema policial, para a implementação de dispositivos de governança, de responsabilização e de accountability do uso potencial e concreto de força, de modo a conter os efeitos perversos da ação policial e seus impactos na vida em sociedade. Trata-se, no Brasil, de transformar as polícias estatais em polícias públicas sob o controle da sociedade e abertas à participação da comunidade policiada. Trata-se de blindar as polícias das tiranias de governos, da opressão de seus procuradores e da clientelização por grupos de poder. Seria ingênuo e, em boa medida, inconsequente, supor a extinção da polícia como ferramenta de controle social, uma vez que sua efetiva inexistência implicaria a sua substituição por mecanismos arbitrários e despóticos de proteção e, ainda, a privatização da segurança pública.
Quanto aos que evocam palavras de ordem justiceiras e punitivistas cabe também uma advertência. Aqueles que promovem a intolerância, o ódio e a vingança como expedientes de uma suposta "defesa social" tornam-se vítimas de sua própria visão temerária e vingativa do mundo. Afinal, o mundo de desconfianças e suspeições recíprocas proposto pelos promotores do "tiro, porrada e bomba" contra o outro, dá vida à Esculachocracia - um regime de imposição de crenças e vontades particulares de uns sobre os outros que não tem limite, que não se tem como saber quando termina a predação e, por conseguinte, onde pôr a cerca que idealmente separaria os autodesignados "cidadãos de bem", arautos de cruzadas moralistas, daqueles vistos como "cidadãos do mal", classificados como irrecuperáveis e integrantes das chamadas "classes perigosas".
Nesse mundo, todos vão ficando tomados pelo surto da "pequena autoridade" que, com seus "peitos de pombo" estufados, elege suas próprias razões de cor, de sexo, de gênero, de religião, de idade, de classe e de renda como a fita métrica que distingue o que pode do que não pode, o certo do errado. Tudo isso contra o interesse comum, contra o pacto sociopolítico definido pela sociedade diante de seu governo legitimamente eleito. Na Esculachocracia, vivificada por procedimentos continuados de exceção, pela ambiência de excepcionalidade criada por intervenções como modo de governar, os indivíduos e grupos vão ficando mais desavergonhados, sem freios, mais confortáveis com os seus preconceitos, mais à vontade para repreenderem a conduta que consideram indesejável, pregarem o sermão da sua montanha, darem "lição de moral" e, ali mesmo, julgarem, e, no mesmo momento, punirem conforme sua conveniência.
Rosiane Almeida: A senhora está afirmando que Segurança e Justiça são questões complexas, mas a população compra o discurso da facilidade. É isso?
Jacqueline Muniz: Trata-se da crença ilusória de que se pode ter segurança e justiça instantâneas, do tipo miojo lamen, no imediatismo do medo, da raiva e da vontade de cada um. Esquece-se de que quanto mais momentânea e particular é uma sanção mais provisória ela é, mais pessoal, oportunista e impune; ela se torna aos olhos dos outros que, também suspeitosos, desconfiados e solitários, consideram o exercício de suas razões superior às razões exercidas pelos outros. Como num círculo vicioso, o resultado disso é o agravamento continuado do temor individual e da insegurança coletiva. Tem-se o pior dos mundos possíveis: cada indivíduo, entregue a si mesmo, torna-se uma unidade autônoma de ressentimento e vingança que atua como uma patrulha moral de si e contra os outros, produzindo 'exemplarismos' no lugar de regras estáveis de conduta que possibilitem vigilância, controle e correção. Como o circuito da vingança dá troco, tem-se que o inquisidor de agora será o condenado à fogueira daqui a pouco.
O fundamento da proteção é a experimentação constante de ameaças que erige a violência como sua contrapartida e o terror como horizonte. Tal cenário de abandono da segurança pública faz crer que se armar é a melhor solução. No entanto, a corrida armamentista vai deixando o cidadão comum cada vez mais vulnerável porque obrigado a reagir sozinho, a produzir respostas sempre desvantajosas porque limitadas aos meios desiguais de que cada um dispõe. Esse é o momento em que o cidadão, frente ao medo, torna-se presa fácil do canto falacioso da proteção. O seu protetor voluntarista de hoje, seja ele o musculoso simpático da academia, o traficante sangue bom da proximidade, o fortão boa pinta da esquina, o miliciano prestativo do bairro, será o seu tirano calculista e achacador de amanhã, fabricando sucessivas ameaças para seguir exigindo a venda de proteção. Tem-se, com isso, a perda dos direitos e garantias em nome da falsa defesa da vida imposta por quem diz proteger.
Rosiane Almeida: Em uma de suas entrevistas a senhora diz que 'nem à esquerda nem a direita' sabem o que fazer diante do desafio da Segurança Pública...
Jacqueline Muniz: Seria bom que progressistas e conservadores, ao centro, à esquerda e à direita, percebessem que a espada entregue a si mesma, mais cedo ou mais tarde, corta a língua do verbo da política e rasga a letra da lei. Qualquer política, qualquer lei. A oportunidade de governar requer que a espada não defina, ela mesma, a extensão e profundidade de seu corte. Há inconvenientes quando se convida a espada para legitimar o mascaramento de um projeto particular de poder em um projeto de sociedade. Quase sempre a espada, como integrante do consórcio, dá vazão ao seu potencial de autonomização, passando de vigia de portaria a síndico do prédio. Há inconvenientes quando governos ilegítimos e impopulares usam da espada como recurso de contenção. A incapacidade de se produzir adesão em torno de um projeto político faz com que aventureiros e oportunistas substituam a coesão pela coerção, cujo efeito é produzir isolamento e desmobilização sociais pela ação repressiva. A questão é que esta vai se tornando escassa e de baixo resultado na medida do seu emprego continuado, suscitando expressões de resistência desarmada e mesmo invisível.
Rosiane Almeida: E sobre a construção de uma ciência social da polícia no Brasil?
Jacqueline Muniz: Agora, sobre o artigo que escrevi com Haydée Caruso e Felipe Freitas sobre a produção de estudos policiais no âmbito das ciências sociais no Brasil, nas últimas duas décadas, gostaria de enfatizar alguns pontos. Era nossa ambição situar como as polícias se tornam um tema de pesquisa relevante. Era nosso objetivo compreender de que forma as polícias e suas práticas vão se convertendo em um objeto relativamente autônomo de conhecimento. Pretendíamos situar como os meios coercitivos e "comedidos" de força passaram a expressar um espaço próprio de investigação científica distinto do amplo guarda-chuva classificatório dos estudos dos direitos humanos, que abrigavam as pesquisas sobre violências e violações praticadas por agentes estatais, durante o chamado processo de redemocratização no país. Era nosso interesse apontar a forma como o assunto polícia ultrapassou o lugar moralista de defesa de uma verdade produzida pelos mesmos, de dentro e para dentro, confinada à legitimidade do vivido de seus protagonistas. Queríamos entender como o assunto polícia foi inscrito em um mundo de moralidades abertas às verdades científicas, produzidas pelos outros, para fora e para dentro, e cuja legitimidade origina-se da busca de consenso acadêmico, da disputa de sentido sobre o porquê e o que conhecer, para que e como ser conhecido.
Buscamos interpretar como este campo emergente de conhecimento, ainda sujeito a saberes iniciáticos resultantes dos monopólios corporativos, foi constituindo uma linguagem que se quer singular, e que opera por deslizamentos e amálgamas entre as representações sociais científicas e nativas. Isto implicou apreender como foi sendo constituída sua visibilidade social e sua relevância política, evidenciadas pela disputa por financiamentos públicos e privados no âmbito das ciências sociais e aplicadas. Enfim, era nosso interesse situar como as verdades da (e contra a) polícia passaram a conviver com a emergência das verdades sobre a polícia. Foi esse questionamento que nos inquietou e que, através do mapeamento, sistematização e análise do perfil da produção bibliográfica dos últimos anos, serviu como fio condutor do referido artigo.
Pudemos identificar que a produção científica sobre polícia nestas duas últimas décadas possui vários recortes analíticos e múltiplos olhares. Há enquadramentos panorâmicos e específicos que chegam aos textos com roupagem acadêmica como uma bricolagem de intenções políticas, interesses científicos e escolhas teórico-metodológicas. Olhares 'dos outros' que fomentam 'outros' olhares diante dos olhares policiais, a serviço tanto da vontade de apreensão do concreto do ser e do fazer de polícia, em sua pluralidade, desde as ruas das cidades e das ruelas das favelas, quanto da vontade de intervenção expressa em premissas, por vezes ocultas, que ancoram concepções, mais ou menos explícitas, do que se deseja como dever-ser e dever-fazer policial, frente a um projeto de sociedade idealizada como diversa, igualitária e justa.
Rosiane Almeida: O que está em jogo nos estudos sobre a polícia?
Jacqueline Muniz: Percebemos na produção sobre polícia a ambição de saber para controlar e de controlar para saber que conflitam e conciliam reflexão e intervenção sob a forma de engajamentos discursivos, que fazem parte da linguagem autorizada construída e chancelada pelos produtores de saberes que disputam os efeitos de conhecimento, como quer Bourdieu (2008), dos estudos de polícia. Observamos que descrição e prescrição apresentam-se, de lados opostos, mas também de mãos dadas, situando discursos híbridos que articulam constatações, diagnoses e soluções, e que, nessa ousada aventura científica e intelectual, arriscam-se a borrar a sutil e frágil fronteira entre autoridade dos argumentos e argumentos de autoridade.
Em verdade, buscamos situar como os estudos policiais fazem um caminho de mão dupla que desloca um problema social para uma problemática sociológica e o seu inverso. Isto implicou apontar que os estudos policiais inscrevem-se como uma ciência social aplicada à polícia em busca de uma ciência social da polícia. Como é próprio à produção do conhecimento, os estudos de polícia se apresentam como um "novo" espaço de influência que tem possibilitado uma reconfiguração das relações de poder entre os integrantes dos campos emergentes e consolidados nas ciências sociais. E isto de tal maneira que uma visão esgarçada e definida como englobadora da "segurança pública", a despeito de sua leveza teórica e metodológica, tem sido acionada como uma chave político-institucional de aterrissagem e confluência entre os recentes estudos policiais e os tradicionais estudos sobre violência no Brasil.
Rosiane Almeida: A senhora mencionou na sua resposta a fantasia de usar a repressão como um recurso constante. Como assim?
Jacqueline Muniz: A repressão como um fim em si mesma é o caro que sai mais caro ainda. A repressão torna-se um recurso escasso no acerto e no erro. Não há como sustentar, indefinidamente, no tempo e no espaço, o seu emprego. Para ampliar o seu efeito, sempre provisório e pontual, faz-se necessário lançar mão de meios dissuasórios e preventivos, os quais dependem da colaboração da população policiada e, por sua vez, de seu conhecimento e concordância com as práticas repressivas, seus efeitos e consequências. Por isso, deve-se usar a repressão com foco, moderação, transparência e responsabilização. Do contrário promove-se a desconfiança generalizada, tensiona-se a conflitualidade social e potencializa-se a resistência desarmada à expectativa de presença, presença e ação das forças policiais e armadas. É assim que as forças públicas se tornam estrangeiras em seu território. É assim que elas vão se tornando mais vulneráveis e inseguras que os cidadãos. É assim que elas vão sendo expulsas da sua área. É assim que se perde!
Rosiane Almeida: A senhora já afirmou em vários momentos que fazer policiamento com inteligência 'não custa caro'. Essa afirmação é literal?
Jacqueline Muniz: Sim. Investir em inteligência policial não custa caro se comparado à farra da aquisição de equipamentos e instalações inadequados ao trabalho policial e dissociados de uma política de polícia e de policiamento sob autorização pública. Foi investindo na produção de tecnologias sociais de produção e análise regular e qualificada de dados qualitativos e quantitativos, na adoção de ferramentas simples de tecnologias de informação e na formação continuada de seus quadros que as organizações policiais puderam dar um salto de qualidade. Foi assim que aprimoraram seus processos de planejamento e gestão e, por sua vez, os resultados do seu trabalho, seja diante da criminalidade ordinária, seja diante da economia criminosa articulada em rede e translocal.
Investir na gestão do conhecimento e da informação implica, sobretudo, valorizar e sistematizar o saber policial de rua, aquele saber produzido 'ali na esquina' pelo policial da ponta da linha em interação com a população. Implica, ainda, abrir canais diretos de interlocução com os cidadãos que, de forma mais sensível, vivenciam o que se passa nas ruas e conhecem, em detalhes, os problemas de segurança de sua área. A polícia é uma das instituições que mais produzem dados e que os subtiliza em seu processo de trabalho. Isso produz irracionalidades no emprego dos recursos, favorece o acionamento privilegiado e desigual dos meios disponíveis, comprometendo a eficácia e eficiência dos resultados, gerando escassez de polícia em certos lugares e sobra de polícia em outros.
Na prática, a informação torna-se um bem pessoal, ambulante e intransferível de tal ou qual agente em posição estratégica, convertendo-se em uma valiosa mercadoria política, cujo comércio sabota o trabalho policial por dentro, ampliando, por exemplo, os riscos de vitimização e letalidade policial, um subproduto trágico da corrupção da venda de informações tratadas como um bem particular. Quando a informação deixa de ser institucional para ser um monopólio de sujeitos e grupos, gera a fabricação de sigilos e segredos artificiais que jogam contra a sociedade e os policiais, pois são negociados para dentro e para fora das polícias, envolvendo desde a troca de favores, passando pela obtenção de algum privilégio ou vista grossa a um desvio de conduta, até a sua entrega como bem estratégico aos operadores do crime-negócio. Estes passam a saber o que se passa na polícia com a necessária antecipação para frustrar os esforços de patrulhamento e investigação, por exemplo.
É através dos negócios da informação que se estabelecem consórcios entre segmentos policiais e governamentais com grupos criminosos. Atuar como uma cabra cega, destituída do próprio conhecimento que produz, torna a polícia ignorante de si e da realidade em que intervém. Acontece que com a espada não se improvisa, pois sua ação produz cortes por vezes irreversíveis e irreparáveis. Brincar de cabra cega na segurança pública custa vidas de policiais e dos cidadãos comuns.
Rosiane Almeida: O que acontece quando as polícias trabalham com pouca informação?
Jacqueline Muniz: A desinformação ou a informação precária e parcial deixa a polícia vulnerável em seu próprio território de atuação, deixa o policial inseguro na sua tomada de decisão diante de situações concretas de risco e perigo, ampliando as chances de vitimização dos cidadãos ao invés de reduzi-la. Faz, ainda, a polícia incapaz de ter pronta-resposta diante da emergência, tornando-se, gradativamente, uma polícia do depois que tudo aconteceu. Impede que a polícia estenda os seus efeitos preventivos, dissuasórios e repressivos para além do tempo presente de sua ação. A desinformação ou o desuso da informação produz escassez acumulativa de policiamento, uma vez que se gasta mais, muito e mal a polícia atua no escuro dos preconceitos, das preconcepções e da censura interna. Em suma, o trabalho policial pautado no 'achismo', no impressionismo e no mandonismo de chefias iletradas tem levado a reprodução dispendiosa de se fazer apenas mais do mesmo, de somente enxugar gelo, colocando em xeque a crença de que a polícia é um meio superior e mais qualificado de administração não violenta de conflitos do que os recursos particulares, heterogêneos e desiguais acionados pelos cidadãos.
Foi trabalhando com planilha de dados e prancheta na mão, muitas vezes de forma artesanal e não informatizada, fazendo estatísticas "contando pauzinhos" e sistematizando relatos com pedaços de papéis coloridos, colados com flechas de fitas adesivas em murais que polícias de diversos países combateram o crime e não será diferente no Brasil. Seja no Japão, com a Yakuza; seja com outras organizações criminosas em Nápoles, em Miami, em Nova Iorque, o que se fez não foi com a produção de espetáculo operacional aos moldes de uma polícia ostentação que, de tão barulhenta, faz multiplicar a percepção de insegurança pela proliferação à distância dos sons do motor das viaturas, das sirenes, dos tiros de fuzil e metralhadoras. O espetáculo operacional, inclusive, é uma gastança do dinheiro público que produz escassez de recurso repressivo pelo seu emprego desmesurado, sem objetivo, foco e qualificação. Aqui no Rio de Janeiro foram substituídos os policiamentos que permitem a administração do território e da população por operações policiais que fazem uma barulheira danada, amplificam o medo, põem em risco o policial, o próprio cidadão e entregam um saldo operacional pífio, por vezes realçado pelo chamado Kit Sucesso no jargão policial. Kit sucesso é apresentação de saldo operacional considerado valioso (armas, munição e drogas) que já foram apreendidas pela polícia e são reapresentadas para fazer estatística para os chefes ou tiveram sua entrega negociada como um favor do crime.
No primeiro dia de operação na favela da Rocinha, zona sul da cidade do Rio, se apreendeu muito pouco de armamento e munição porque não se sabia o que seria feito lá. Não se tinha relatório de Inteligência prévia, não tinham diagnósticos substantivos. Então, a conta é fácil de fazer: uma pistola, que custa R$ 4 mil no "mercado livre", passa a custar R$ 200 mil, porque se você gasta um milhão por dia com as Forças Armadas nas ruas, quanto não custa cada apreensão dessas? Durante estes dois primeiros meses de intervenção foram empregados 40 mil agentes e obtidas apenas 140 armas apreendidas6, o que corresponde a proporções inferiores ao que é produzido no trabalho rotineiro da PM nas ruas: 1 arma apreendida para um grupo de 286 agentes ou para um BPM de médio porte, e 2,3 armas apreendidas por dia.
Então você coloca o Exército, e a capacidade de produzir resultados segue inexpressiva. Isso porque até o presente momento o exército não está nas ruas policiando, ele está no trânsito do Rio de Janeiro fazendo delivery, isto é, fazendo entrega de meios de suporte à PM. Tem-se, com a intervenção no Rio, a consumação de uma inversão dos papéis constitucionais dos meios de força combatente e comedido. Se a PM consiste na força auxiliar e reserva do exército, de fato ou na prática continuada de regimes de exceção estabelecido pela lógica de governo da intervenção, quem se torna força auxiliar e reserva é o exército, que de tanto ficar para lá e para cá se encontra a meio do caminho entre sua capacidade combatente, que pode ser perdida, e a capacidade policial, que não tem como ser efetivamente adquirida com o seu atual projeto de força.
É certo que se precisava fazer alguma coisa na segurança pública do Rio de Janeiro. Mas não qualquer coisa, feita de qualquer maneira e por qualquer um. O emprego das forças armadas na segurança pública em regime continuado de exceção sobre a população, e de excepcionalidade para justificar as possibilidades de práticas militares heterodoxas e abusivas, tende a comprometer a confiança pública no Exército.
O que se produz é mais uma cortina de fumaça, uma teatralidade operacional de alto custo e de baixo rendimento, baixa eficácia e baixo resultado. O que é eficácia? Eficácia é o resultado à luz da missão - se a missão é difusa, não há clareza, e não se tem meios de fazê-lo, então, a eficácia é baixa. O Exército prendeu pessoas? As Forças Armadas apreenderam coisas? Reduziram o crime? A intervenção encareceu a economia criminosa? Nada disso foi demonstrado, no entanto, se gastou cerca de R$ 600 milhões só com a permanência do Exército no Complexo da Maré, zona norte do Rio de Janeiro, conforme o relatório produzido pela Redes da Maré7. Com 1% disso, ou seja, com R$ 6 milhões, é possível estruturar a Inteligência da Polícia Civil e o subsistema de inteligência da Secretaria Estadual de Segurança Pública ao qual a preciosa base de dados do Disque-Denúncia está vinculada e, com isso, estimular a atuação policial a dar um salto de qualidade em termos investigativos. E isso pode ser medido porque quando uma investigação resulta na apreensão de uma tonelada de cocaína ou um container de armas sem tiroteios e pirotecnias, como já aconteceu no Rio, é possível saber quanto de prejuízo se causou na economia do crime com os investimentos utilizados. É uma conta simples.
Rosiane Almeida: Então, resolver o problema é, em certa medida, aumentar o investimento em Inteligência?
Jacqueline Muniz: O problema é que no Rio de Janeiro o investimento em Inteligência Policial caiu no orçamento e isto reflete a ausência de prioridade política. É só olhar o Anuário Estatístico de Segurança8. Mas, por quê? Porque investir em investigação é o que dá um salto de qualidade para desenhar ações repressivas qualificadas e orientar as operações policias. Mas isso é discreto, não dá pra inaugurar uma bancada de Inteligência Policial com banda de música e sair na capa do jornal. Já o tiroteio para lá e para cá, carros com giroflex aceso, sirene ligada, faz uma barulheira e parece que se está fazendo alguma coisa, sem que isso tenha impacto na economia criminosa. Contudo, tem impacto na percepção de insegurança da população que diante de tanto estardalhaço sente ainda mais medo e passa a acreditar que "nada está tão ruim que não possa piorar". Para ter uma ideia, a Polícia Civil tem sido desmantelada de dentro. Ajudei a implantar a sua principal base de dados integrada em 1999, que faz uso de softwares de análise criminal nas delegacias legais. Curiosamente, isso tem sido desmontado, para que a informação seja pessoal, vendida e negociada, pois é uma mercadoria poderosa. O policial (civil e militar) tem sido leiloado na esquina. Tão inseguro quanto à população está o policial.
Um dos fatores que contribuiu para a derrocada das UPPs foi a ausência de uma estrutura integrada de inteligência que pudesse orientar o trabalho da PM em territórios com a presença de grupos armados. A PM tornou-se refém de sua ambição de ocupação, converteu-se numa andorinha isolada para fazer o verão da pacificação. Por fim, é engraçado perceber que ao mesmo tempo em que não se investe adequadamente em inteligência policial, a palavra inteligência aparece exaustivamente na fala de políticos e gestores da segurança pública. Quando nada fazem e nada têm a dizer, falam que estão "trabalhando com inteligência" porque esta não pode ser conferida a olhos nus. Eles tendem a rebaixar a inteligência a uma central de fofocas.
Rosiane Almeida: Fora o alto custo financeiro, utilizar as Forças Armadas como 'gerente' da Segurança Pública é um risco institucional?
Jacqueline Muniz: O que temos neste cenário, primeiro, é um problema de competência, de capacidade. O emprego continuado das Forças Armadas, que é uma força combatente como força comedida, produz um problema porque ela perde sua capacidade de combate e não adquire a capacidade policial. As tropas ficam no meio do caminho como ornitorrincos perdidos entre verde-oliva do Exército e o azulão da PM, entre ser um militar policial que faz policiamento ou um policial militar que faz guerra. Segundo, porque compromete o ethos dessa organização e abre espaço para toda sorte de riscos para a tropa. É preciso perguntar: quem compõe as Forças Armadas? São jovens recrutas, inexperientes e que foram treinados para ação em blocos táticos - e não para tomada de decisão individual. Vamos fazer um contraste: Força Amada é força combatente; Polícia, força comedida. As Forças Armadas são formas de espera para agir; Polícias são formas de ação no tempo real; Exército, formas de engajamento, prontidão, "estou de prontidão"; Polícias são pronto emprego. A Polícia é talhada para tomar decisões no aqui e agora do nosso medo, da incerteza, do perigo real. Isso é Polícia: tomada de decisão individual em situação de risco, incerteza e perigo. A Polícia lida com risco, incerteza e perigos irrestritos, exatamente porque a dinâmica criminal é multicausal e itinerante. O Exército lida com guerra, com grandes conflitos. Enquanto as Forças Armadas têm que ter uma unidade no comando, que é o que dá superioridade à ação de um exército, na Polícia é o inverso. É a decisão individual que impede o crime. Se a população chama a polícia, é porque ela (a população, o cidadão) não pode esperar. O médico do Pronto Socorro espera o dono do hospital mandar ou ele opera o paciente que chegou? A mesma lógica se dá com a Polícia, que atua na emergência, naquilo que emerge, naquilo que não pode esperar.
Rosiane Almeida: Qual o problema de pôr o Exército nas ruas em substituição à Polícia de maneira permanente?
Jacqueline Muniz: É que se perde a capacidade de comando da tropa, a tropa não sabe decidir individualmente - cada soldado daquele não é talhado para tomada de decisão individual. E não é para ser mesmo, não está errado. No entanto, isso faz com que ele fique vulnerável a riscos, mais fácil de ser cooptado pela corrupção, mais fácil de produzir violência - o uso excessivo da força. Tem, assim, o risco de aumento da vitimização da tropa, de aumento da vitimização dos civis da localidade e do risco de cooptação. O risco maior, no entanto, é o de degringolar institucionalmente o Exército. Não é à toa que o Comandante Geral do Exército disse que é uma temeridade, e é. Na Constituição, ainda que de forma equivocada, está previsto que a Polícia Militar é força auxiliar e reserva do Exército. O fato é que, de 1992 pra cá, com o emprego de Garantias de Lei e Ordem até para trocar band aid, o Exército é que tem se constituído em força auxiliar da Polícia Militar.
Rosiane Almeida: Do ponto de vista da governabilidade, é possível seguir protocolos para uma atuação conjunta das forças de segurança?
Jacqueline Muniz: É uma falácia achar que o país tem um sistema integrado de Segurança - não temos. Desconheço que existam protocolos de ação conjunta entre as forças de segurança. Nem para o Exército, que tem doutrina própria de Garantia de Lei e Ordem. Há necessidade de produzir protocolos interagências de maneira a articular, subordinar, coordenar, complementar, suplementar os recursos policiais e produzir cadeia de comando de controle. Protocolo interagência significa: todos os procedimentos de atuação que vão permitir Marinha, Aeronáutica e Exército proceder em atuação conjunta com a Polícia Militar, com Polícia Federal, com a Polícia Civil, com os agentes penitenciários, com o Corpo de Bombeiros, com a Guarda Municipal, com o Ministério Público e com o Sistema de Justiça. Cadê? Está escrito onde? É segredo? Se é segredo é porque não está escrito e se não está escrito é porque ninguém estudou, ninguém aprendeu, ninguém foi treinado - porque só é possível treinar em cima de um manual. "De boca" é improviso. Onde estão esses protocolos? Foram chancelados pela sociedade? Ainda que esses protocolos existam, se não estiverem publicizados não valem, porque no mundo democrático os procedimentos operacionais são públicos. Protocolos entre agências não possuem caráter sigiloso. A sociedade tem que autorizar onde começa e termina o poder de Polícia - o que ela está disposta a conceder e a permitir e o que ela não está. Então, na verdade, é como se você estivesse improvisando o uso das Forças Armadas. Como as instituições estão com o "pires na mão", sobretudo no Rio de Janeiro, por conta da crise econômica, a impressão que todos temos é a de que o governo federal está empurrando as Forças Armadas para fazer um "bico" na segurança pública para complementar renda.
Fazer operações sem planejamento prévio, sem uma construção política transparente, sem diagnósticos prévios, sem um plano de ação substantivo, é uma gastança de dinheiro público que produz visibilidade, efeito midiático, maximiza o temor da população e dá impressão de que precisa ser feita alguma coisa, qualquer coisa, de qualquer maneira e por qualquer um. E não pode ser assim. Os governos vão levando a segurança pública de prioridade circunstancial em prioridade circunstancial e sequer produzem relatórios sobre o quanto foi gasto e quais foram os resultados dos últimos 26 anos que as Forças Armadas atuam no Rio de Janeiro.
Rosiane Almeida: Ainda que com altos custos e com toda sorte de riscos institucionais, parte da população quer o Exército nas ruas. É possível pensar que a sociedade prefere um governo militar a uma democracia?
Jacqueline Muniz: O Exército não está nas ruas. Como já disse, ele está engarrafado no trânsito do Rio fazendo entregas pontuais. Por que o ministro da Defesa informou que as Forças Armadas não vão estar na linha de frente? E isso é interessante porque o governo interventor está no controle, é o governo que quer comandar, mas não vai para a esquina com seus soldados. Que modelo é esse à moda francesa em que o marechal fuma charuto e toma vinho no gabinete, enquanto os soldados vão sozinhos pro front? Não é assim o modelo profissional e contemporâneo de emprego de Forças Armadas, porque o comandante vai junto. Mas por que isso está acontecendo? As Forças Armadas têm plena consciência (e sabem muito bem!), de que é um custo imenso quando se vai para a linha de frente brincar de fazer polícia. Como eu disse, as Forças Armadas e a Polícia atuam com doutrinas completamente diferentes. O que está acontecendo no Rio e no Brasil, quando a população demanda as Forças Armadas, é porque ela quer alguma coisa com credibilidade; ela demanda um sentido de autoridade estatal e pública diante da percepção de desgoverno. Ainda que não exista nenhuma transparência nas operações, as pessoas querem confiar em alguém, em instituições. Quando a sociedade demanda as Forças Armadas ela não está querendo promover um golpe, nada disso... Compreendo que a sociedade está demandando institucionalidade, seriedade, continuidade nas ações e não essa descontinuidade, essa "bateção" de cabeça intencional que tem acontecido no Rio de Janeiro.
Rosiane Almeida: Como é possível pensar em critérios de efetividade e eficiência para esse tipo de operação?
Jacqueline Muniz: Quando o interventor diz: "Nós fizemos um conjunto de operações no Rio de Janeiro" para combater o chamado "crime organizado" ficam as perguntas: Já prestou contas de quanto gastou? Quais os critérios de eficiência e efetividade? A droga encarece quando entra em escassez? Ela se tornou escassa? E o volume de armas apreendidas? Qual é a curva de apreensão e de estabilização desse mercado criminoso de armas? A economia criminosa teve prejuízo? O dinheiro ilegal foi apreendido através das lavanderias de lavagem de dinheiro? Tudo isso é investigação e Inteligência e não espetáculo na rua. Até para que o espetáculo da rua seja bom - e todos nós batermos palma, porque do espetáculo bom todo mundo gosta, do teatro bom todo mundo gosta -, porque teatralidade não quer dizer que seja ruim. O teatro operacional tem que ser competente, tem que ter estratégia e tática substantivas à luz da finalidade política. Não existem meios de atuação e modos de agir sem os fins, sem a missão. A missão não está clara, os modos de agir não estão claros e os meios de atuação também não. Então fica uma lógica salvacionista: "Vai chegar alguém de fora, o interventor, que vai me salvar". Não vai salvar. Nem ele e nem ninguém. Estão faltando ferramentas de governabilidade, estão faltando ferramentas de planejamento e gestão, e está faltando explicar para a população como é que funciona esse sistema, uma vez que as Forças Armadas estão no Rio - tem anos que estão no Rio atuando e nunca saíram - e não tem planejamento pronto. Fizeram operações e ainda vão estudar, ainda vão fazer um diagnóstico? Quer dizer, então, que foram pegos de surpresa? Não, ninguém foi pego de surpresa. Então tem que deixar claro que tem uma questão aí que é preciso trabalhar. O Conselho da República tem que se reunir para discutir; o Congresso tem que ter acesso e a sociedade tem que ter acesso aos órgãos que estão atuando na ponta. É a sociedade que tem que decidir qual o custo que quer pagar; qual a extensão de poder de Polícia que se quer conceder e com quais prazos, com que meios e com que resultados, porque quem decide isso numa sociedade democrática é a população. É a sociedade quem chancela os governos legitimamente eleitos. Então tem um problema de legitimidade, tem um problema técnico de definição, de doutrina.
Agora é certo que as Forças Armadas têm os seus manuais de Garantia de Lei e Ordem. O que se quer saber é se o resto está articulado com isso. Sabemos que não. Aí, fica tudo na conta do "Vamos ver", "Vamos juntos", é uma política de "emoticon" e estamos falando de vidas, estamos falando de administração de risco, porque o Exército é o "povo em armas". É claro que as Forças Armadas têm plena consciência de que não são capazes de fazer policiamento porque não são treinadas para isso. Os brinquedos das Forças Armadas são pesados demais para terem mobilidade tática no cenário urbano. Por exemplo, os blindados das Forças Armadas vão conseguir entrar nas ruelas de favela? Eles andam menos rápido que uma tartaruga. Para passarem em ruelas têm que passar em cima de carro de morador, moto de morador. Vocês acham que isso tem alguma empatia? Você acha que é isso, exatamente isso, que as Forças Armadas esperam?
Rosiane Almeida: Ainda que não existam procedimentos integrados entre as Forças Armadas e as forças de segurança, há protocolos para a atuação das Polícias no país?
Jacqueline Muniz: O Brasil não desenhou mecanismos de governabilidade das polícias para fazer o que está na Constituição. Desde a redemocratização, não mexemos no poder de polícia, ele segue desregulado, num limbo procedimental, legal e normativo. A Constituição não define mandato de polícia, ela define monopólios no exercício do policiamento, numa espécie de reprodução "caduca" dos lobbies que foram feitos em 1988. Se há um lugar em que a Constituição Federal é fraca é no que diz respeito à segurança pública. Essa informalidade faz com que a polícia tenha vários patrões. Isso coloca todas as polícias numa zona de informalidade decisória e de baixa institucionalidade que favorece a manipulação político-partidária e a apropriação privatista dos recursos policias. E é evidente que a população percebe isso na ponta, seja na sucessão de 'carteiradas' que uma polícia dá na outra, seja na 'bateção de cabeça' pela ausência de mecanismos reais e efetivos de integração.
É preciso desenhar protocolos interagências porque é preciso responder quem vai combater a corrupção na Polícia. Como? De que maneira? Com qual estrutura de Inteligência? Que eu saiba quem faz isso são estruturas de investigação exteriores à Polícia, não as Forças Armadas. No caso do Rio de Janeiro, se mandou muita gente embora devido à corrupção. Muitos servidores públicos da Polícia, envolvidos com corrupção, estão assumindo de novo suas funções, depois de terem conseguindo ganhar na Justiça suas recolocações. As coisas não são tão triviais como as pessoas pensam. "Vou fazer uma faxina e no dia seguinte tudo será uma maravilha", não é assim - a Segurança Pública é todo dia um pouco, tem uma rotina. Não adianta achar que censurar dados estatísticos e controlar informações vai criar uma aparência de segurança porque não vai - isso é subterrâneo. Mascarar dados faz com que pareça que tudo está em paz, só que isso vai sair lá de baixo (do subterrâneo) e vai eclodir de novo, com agravamento. Porque as pessoas, no cotidiano, vão começar a perceber que as coisas não são bem assim.
Rosiane Almeida: Além da falta de investimento em inteligência, há um fenômeno envolvendo a hierarquia na Polícia Militar do Rio de Janeiro conhecida como 'sargenteação'. A senhora poderia explicar do que se trata?
Jacqueline Muniz: O modelo militar é organizado nos modelos da hierarquia e disciplina. No entanto, a cadeia de comando e controle da PM do Rio tem sido vulnerabilizada ao longo do tempo, e isso compromete a disciplina e a hierarquia. Como isso aconteceu? Primeiro ponto: a mortandade de policiais. Essas baixas foram desalinhando a hierarquia e a proporcionalidade entre coronéis, majores, capitães, tenentes, sargentos, cabos e soldados. Foram gerando 'barrigas', ao invés de ser uma hierarquia estruturada e proporcional. Hoje, por exemplo, se tem mais sargentos do que soldados. E por quê? Porque foi usada uma lógica politiqueira, que é a de 'deixar a patente cair'. Ao invés dos profissionais ascenderem pelo mérito, pelo tempo de serviço e através dos cursos e condecorações, 'deixar a patente cair' é promover no tapetão. E essa lógica virou uma espécie de política salarial informal usada pelos políticos. Ou seja, se promove todo mundo a sargento, com mérito ou sem mérito, para cooptar os votos dos policiais e de suas famílias. Isso culminou no fato de que hoje a PM tem muito mais sargentos que soldados. Isso gera uma distorção na pirâmide hierárquica que compromete a capacidade de comando e de disciplina e faz com que a polícia tenha sargentos que, ao invés de exercer o papel de supervisão e controle na ponta da linha da atividade policial - uma vez que esta é a sua função na hierarquia -, estejam servindo como motoristas de viatura ou integrantes do policiamento ostensivo convencional. Perde-se, com isso, a primeira linha de controle e supervisão da atividade de polícia, essencial para fazer acontecer o que é planejado em cima, e também para aprimorar no próprio local de trabalho (on the job) da atividade profissional - que se chama de controle profissional ou controle lateral e é feito pelo próprio colega no local de trabalho. No entanto, a função do sargento acaba sendo sabotada por essas estratégias politiqueiras que, em vez de propor aumentos salariais ou planos de cargos e salários decentes para a polícia, fica tratando a polícia como indulgente e indigente. A segunda coisa que compromete são os 'bicos'. Os 'bicos' são ilegais, mas acabam sendo tolerados porque foram legitimados como uma complementação de renda. O que acontece é que, na prática, aqueles que têm patente inferior conseguem 'bicos' e empregam os seus superiores hierárquicos, criando conflitos de interesses. Ou seja, existe a cadeia de comando e controle formal e outra informal.
Essas são duas questões que precisam ser enfrentadas de maneira transparente, garantindo e valorizando o profissional de polícia, dando a ele condições para que, de fato, isso que a gente chama de hierarquia e disciplina - que é tão valorizado - aconteça. Senão, vira uma coisa pró-forma: alguém finge que manda e alguém diz que obedece. No entanto, na prática, são vários grupos dentro da própria polícia que acaba por fragilizar o comando tanto para cima, quanto para baixo. Além disso, tem um ditado no Rio de Janeiro de que 'a Polícia tem vários patrões'. Esse ditado quer dizer que ela tem sido usada como moeda de troca junto a cabos eleitorais de políticos de toda sorte, uma vez que se tem uma interferência política junto à distribuição do efetivo, incluindo a indicação dos comandos dos batalhões. É fato que esse tipo de ingerência política que expõe a PM às vontades e manias politiqueiras compromete a cadeia de comando e controle da organização.
Outro dado não menos importante é que o profissional de polícia, para não perder seu 'bico' - ainda que seja o 'bico' oficial, que é quando a Policia Militar aluga o seu profissional para o Lapa Presente e outros projetos e operações Presentes, ou ainda outras formas de realocação da atividade de polícia -, acaba tendo de trocar a sua escala de trabalho (mudar dia, horário) e isso implica um comércio informal, de troca de favores, com quem é responsável por fazer a escala de serviço. Essa prática de negociações também é conhecida como "sargenteação". No final fica todo mundo devendo favor a todo mundo e isso dificulta não só essa cadeia de comando e controle, como também a transparência da ação policial e mesmo a apuração de possíveis desvios de conduta. Quando se devem favores é preciso fechar os olhos, mesmo que isso nos exponha a riscos.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
O viés que Jacqueline Muniz nos apresenta, que é o de pensar a segurança pública como um direito humano, não é apenas desafiadora por sua ambição teórico-metodológica, mas porque explicita as nuances e os meandros do que se constituiu e naturalizou como ethos de política pública de segurança de confronto. Ou seja, ao invés de proteger a população dos possíveis desvios e/ou desmandos do Estado, faz justamente o contrário - e coloca populações inteiras sob o julgo da espada, em processos e fórmulas antidemocráticos. A constatação de que o modelo de segurança pública vigente remonta ao período da ditadura civil-militar do país é algo que precisa nos servir de reflexão - quando não de indignação. A entrevista evidencia que, parafraseando Shakespeare, há muito mais entre as polícias e os governos no que se refere à forma e ordenamento estatal do fazer e pensar a segurança pública do que imagina a nossa vã filosofia. Ficamos com um desejo de 'saber mais' porque, apesar de toda produção bibliográfica, ainda há muito o que perguntar, entender e pesquisar sobre polícias, segurança e intervenções no país. No entanto, é possível identificar que o que está em jogo nesses processos teatralizados - que envolvem dinheiro público, tanques e máquinas de guerra - é a recusa (na prática) do que deveria ser o exercício pleno da cidadania para todos - utopia tão cara e necessária a todos nós.
-
1
Jacqueline Muniz possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (1986), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992), doutorado em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) pela Sociedade Brasileira de Instrução - SBI/IUPERJ (1999) e Pós-doutorado em Estudos Estratégicos pelo PEP-COPPE/UFRJ. Membro do Grupo de Estudos Estratégicos (GEE- COPPE/UFRJ), também foi sócia fundadora da Rede de Policiais e Sociedade Civil da América Latina e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Exerceu ainda as funções de diretora do Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública SENASP/Ministério da Justiça (2003); Coordenadora Setorial de Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos (2002) e Diretora da Secretaria de Segurança Pública (1999) Governo do Estado do Rio de Janeiro.
-
2
Ver: https://www.facebook.com/MidiaNINJA/. Acesso em 30/04/2018.
-
3
Minha orientadora no doutorado no Programa de Pós-graduação em Antropologia na UFF e companheira de pesquisa de longa data de Jacqueline.
-
4
Ver: Programa Voz Ativa, Jacqueline Muniz, 10/03/2018. Link: https://www.youtube.com/watch?v=8yXidQifeDU. Último acesso em 30/04/2018.
-
5
Realizada na sala multimeios do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos e disponibilizada, incluindo o making off, no canal INEAC do YouTube, do qual somos pesquisadoras. Acessível: https://www.youtube.com/watch?v=L5EpY3BajwM&index=36&list=UUd_ftuMjKeqkN0q7yqV2TSg
-
6
Ver: Observatório da Intervenção. link: http://observatoriodaintervencao.com.br/ Último acesso em 30/04/2018.
-
7
Ver: relatório Ocupação da Maré pelo Exército Brasileiro. Link: http://redesdamare.org.br/wp-content/uploads/2017/05/Livro_Pesquisa_ExercitoMare_Maio2017.pdf. Último acesso em 30/04/2018.
-
8
Ver Anuário Estatístico do Fórum Brasileiro de segurança Pública. http://www.forumseguranca.org.br/atividades/anuario/. Último acesso em 30/04/2018.
Referências
- BOURDIEU, P. (2008). Economia das Trocas Lingüísticas São Paulo: EDUSP.
- CEFAÏ, Daniel. (2009). Como nos mobilizamos: A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, n. 4, v. 2. Rio de Janeiro: NECVU/IFCS-UFRJ, Abr-Jun., pp. 11-48.
- GEERTZ, Clifford. (1992). Negara. O Estado Teatro do Século XIX Lisboa: Difel, 1980.
- GEERTZ, Clifford. (2008). A Interpretação das Culturas São Paulo: Ed: LTC.
- MUNIZ, Jacqueline de Oliveira. (1999). Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: Cultura e Cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese de doutorado apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IUPERJ.
-
MUNIZ, Jacqueline; CARUSO, Haydée; FREITAS, Felipe. (2017). Os estudos policiais nas ciências sociais: um balanço sobre a produção brasileira a partir dos anos 2000. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais - BIB, São Paulo: n. 84/2. Disponível em http://anpocs.com/index.php/universo/acervo/ biblioteca/ periodicos/bib/bib-84/11103-os-estudos-policiais-nas-ciencias-sociais-um-balanco-sobre-a-producao-brasileira-a-partir-dos-anos-2000/file
» http://anpocs.com/index.php/universo/acervo/ biblioteca/ periodicos/bib/bib-84/11103-os-estudos-policiais-nas-ciencias-sociais-um-balanco-sobre-a-producao-brasileira-a-partir-dos-anos-2000/file - SILVA, Edilson Márcio A. (2010). Notícias da violência urbana: um estudo antropológico Niterói, RJ: EDUFF.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
May-Aug 2018
Histórico
-
Recebido
03 Maio 2018 -
Aceito
13 Jul 2018