RESUMO
O pensamento moderno ocidental se constitui em um sistema de distinções visíveis e invisíveis de separação social, cultural e epistêmica. São linhas abissais (SANTOS, 2007) que determinam categorizações hegemônicas de sujeito, raça, língua e conhecimento, as quais posicionam, do lado superior da linha, um ideal de homem moderno e, do lado inferior, formas subalternas e silenciadas de ser e estar no mundo. Com o objetivo de problematizar como o aluno negro migrante sofre com os efeitos das divisões abissais no espaço universitário e produz uma resposta a essas categorizações estabelecidas no contexto, neste trabalho, trago os relatos de um estudante haitiano, graduando em uma universidade pública brasileira. Jean, aprovado no curso de Bacharelado em Geografia, por meio de uma política de inclusão de migrantes refugiados e portadores de visto humanitário no ensino superior, narrou algumas experiências vividas no seu primeiro semestre da graduação. A partir de suas narrativas, recorro a uma perspectiva de Linguística Aplicada Crítica (MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2019; PENNYCOOK, 2001; 2006) para tecer reflexões sobre linguagem, racialidade e decolonialidade, com base em estudos de Almeida (2019), Anya (2017), Carneiro (2005); Gomes (2005), Fanon (2008), Nascimento (2019) e Santos (2007). Discuto ainda como o conceito de raça, construído social, histórica, cultural e discursivamente (GOMES, 2005) e a racialização das identidades (ANYA, 2017) reproduzem linhas abissais em diferentes segmentos da vida do estudante no espaço universitário e delimitam divisões coloniais de fala e silenciamento, legitimidade e exclusão.
Palavras-chave: ensino superior; linhas abissais; racialização
ABSTRACT
Modern western thinking is a system of visible and invisible distinctions of social, cultural, and epistemic separation. These are abyssal lines (SANTOS, 2007) that determine hegemonic categorizations of subject, race, language, and knowledge, which position, on the upper side of the line, an ideal of modern man and, on the lower side, subordinate, and silent ways of being in the world. To problematize how the black migrant student suffers from the effects of the abyssal divisions in the university and produces a response to these categorizations established in the context, I bring narratives of a Haitian graduation student from a Brazilian public university. Jean, who was approved to study in the Geography Bachelor course through a special selection process for refugee students in higher education, narrated some experiences lived during his first semester in graduation. Based on his narratives, I resort to a Critical Applied Linguistics perspective (MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2019; PENNYCOOK, 2001; 2006) to discuss reflections on language, raciality and decoloniality, based on Almeida (2019), Anya (2017), Carneiro (2005), Gomes (2005), Fanon (2008), Nascimento (2019) and Santos (2007). I also discuss how the concept of race, socially, historically, culturally and discursively constructed (GOMES, 2005) and the racialization of identities (ANYA, 2017) reproduce abysmal lines in different segments of the student’s life in the university, and define colonial divisions of speech and silence, legitimacy and exclusion.
Keywords: higher education; abyssal lines; racialization
INTRODUÇÃO
As discussões apresentadas neste artigo são frutos de reflexões sobre trajetórias educacionais de migrantes e refugiados no Brasil, motivadas pela minha experiência como professora voluntária de Português como Língua de Acolhimento em uma universidade pública. Meu envolvimento em processos de ensino e aprendizagem de língua portuguesa (LP) suscitou questionamentos a respeito de como a experiência linguística e acadêmica de estudantes migrantes é perpassada por questões raciais, sociais, ideológicas e políticas e me motivaram a escrever este trabalho.
Os dados discutidos aqui foram gerados durante um estudo etnográfico, desenvolvido ao longo do ano letivo de 2018, no qual acompanhei cinco estudantes migrantes no primeiro semestre da graduação em uma universidade federal no Sul do Brasil (RODRIGUES, 2019). Em face do exposto, trago as narrativas de um jovem universitário haitiano - Jean, analisadas à luz de estudos decoloniais, para discutir os efeitos das divisões abissais na experiência universitária do aluno negro migrante e compreender como se produz uma resposta a essas categorizações estabelecidas no contexto.
Ao questionar o modo que as linhas abissais, como legado da colonialidade, atuam na definição de que conhecimentos, línguas e corpos são tomados como universais (SANTOS, 2007), problematizo as experiências vividas por Jean, aluno negro migrante, diante das delimitações impostas pelas divisões coloniais em uma universidade pública brasileira. A partir de aporte teórico em Linguística Aplicada Crítica (LAC) (MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2019; PENNYCOOK, 2001, 2006)1, lanço mão da indisciplinaridade da área para desenvolver uma crítica decolonial às divisões abissais a partir de estudos teóricos críticos às estruturas coloniais de ser e saber no mundo (ALMEIDA, 2019; ANYA, 2017; CARNEIRO, 2005; FANON, 2008; GOMES, 2005; GROSFOGUEL, 2016a; 2016b; NASCIMENTO, 2019; SANTOS, 2007).
Para iniciar as discussões sobre divisões abissais no ensino superior, na próxima seção, abordo como as linhas abissais coloniais atuam na racialização e na marginalização do corpo e da identidade negra. A seguir, exploro direitos de estrangeiros no Brasil e políticas de ingresso do migrante no ensino superior desse país. Na seção seguinte, serão discutidos os efeitos das divisões abissais e da racialização de corpos, línguas e conhecimentos no espaço universitário. Por fim, apresento algumas considerações para pensar a universidade a partir de uma perspectiva decolonial.
1. AS LINHAS ABISSAIS NO SISTEMA-MUNDO MODERNO/COLONIAL
O pensamento moderno ocidental é orientado por um sistema de separação social, cultural e epistêmica, entendido, neste trabalho, como linhas abissais (SANTOS, 2007). As linhas abissais são descritas por Santos (2007) como divisórias invisíveis que fundamentam divisões visíveis nas sociedades. De um lado da linha, estão os seres humanos dotados de direito e conhecimento, que possuem suas identidades, espiritualidades e epistemologias reconhecidas, enquanto do outro; não há nada nem ninguém relevante, os sujeitos são invisibilizados e têm suas crenças, conhecimentos e direitos negados.
De acordo com a crítica de Santos (2007), as primeiras linhas abissais foram traçadas durante período colonial, no século XVI, com o intuito de classificar corpos, línguas, conhecimentos e práticas culturais do homem europeu como verdadeiras e universais, ao passo que os povos colonizados tinham seus corpos, línguas, conhecimentos e práticas culturais deslegitimadas. A definição do mundo através de lentes coloniais permitiu que o homem europeu categorizasse os negros e índios dos continentes explorados como sub-humanos, sem língua, sem religião e sem alma (GROSFOGUEL, 2016a).
A imposição da linha abissal entre o branco-europeu-cristão-civilizado e o indígena-negro-selvagem-sem-alma foi a principal justificativa para a dominação colonial, percebida como necessária para viabilizar a transmissão, a religião, o conhecimento, as línguas e os modos de vida do lado hegemônico da linha abissal aos povos do outro lado da linha.
As divisões abissais impostas pelas relações coloniais de dominação e exploração não se diluíram com o fim do período colonial e a independência das colônias entre os séculos XIX e XX. As relações hierárquicas impostas pelas linhas abissais são determinantes na estruturação do sistema-mundo moderno/colonial (MIGNOLO, 2003), que mantêm as estruturas de poder coloniais ao definir o lado hegemônico dessas linhas como medida de civilidade, cultura e conhecimento para resto do mundo. Embora essas linhas não sejam fixas nas sociedades e no decorrer da história (SANTOS, 2007), as delimitações coloniais demarcam a universalização de determinados corpos, conhecimentos e práticas, a despeito de outros que são racializados e marginalizados.
Na sociedade brasileira, as linhas abissais coloniais atuam na racialização e na marginalização do corpo e da identidade negra (ANYA, 2017; GOMES, 2005), da sua língua (SEVERO, 2019; NASCIMENTO, 2019), de seus conhecimentos e de suas práticas culturais. Segundo Gomes (2005), essas hierarquizações, construídas culturalmente nas relações de poder, são interpretadas de maneira social e política, levando à “naturalização das diferenças, bem como a transformação destas em desigualdades supostamente naturais” (GOMES, 2005, p. 49). A naturalização das diferenças entre os sujeitos devido à cor da pele é entendida como racialização, quando determinados corpos são percebidos como superiores e categorizados como universais, enquanto outros são racializados como inferiores e postos à margem da sociedade. (GROSFOGUEL, 2016b; NASCIMENTO, 2019).
Como efeito da racialização, o sujeito negro é entendido como socialmente inferior, o que acarreta sua invisibilização, atos discriminatórios e, por vezes, violência; manifestações entendidas como atos de racismo neste trabalho (GOMES, 2005). O racismo é aqui apreendido como “uma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos” (ALMEIDA, 2019, p. 32).
Conforme Almeida (2019), as manifestações de racismo não são situações isoladas, mas estão sempre vinculas a uma dada ordem social de herança colonial. Trata-se de um sistema de subalternização do sujeito negro na sociedade, que o autor define como racismo estrutural e se caracteriza como uma tecnologia de controle social, podendo ser compreendida como processo histórico e político da colonialidade que orienta a organização da sociedade brasileira (ALMEIDA, 2019).
As desigualdades impostas pela abissalidade moderna/colonial que rege o racismo estrutural no Brasil desqualificam diferentes formas de saber e ser na sociedade e fortalecem hierarquias que definem as experiências marginais de sujeitos negros nos mais diversos espaços sociais. No ensino superior, foco desta discussão, as hierarquizações sociais estruturantes do sistema-mundo moderno/colonial reforçam o privilégio epistêmico do homem branco ocidental na academia (GROSFOGUEL, 2016a), o que gera implicações na forma como o aluno negro é percebido nesse espaço universitário.
Tendo apresentado a noção de abissalidade como legado colonial que orienta a concepção de racismo estrutural no Brasil, na próxima seção, desenvolvo uma análise decolonial das formas de ingresso e desenvolvimento educacional de migrantes e refugiados no ensino superior brasileiro.
2. UMA ANÁLISE DECOLONIAL DO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR PARA MIGRANTES E REFUGIADOS NO BRASIL
Em trabalho anterior, no qual discuto experiências de estudantes migrantes e refugiados em uma instituição de ensino superior brasileira, abordo políticas nacionais que buscam regulamentar a entrada e a permanência de sujeitos migrantes e refugiados no país (RODRIGUES, 2019). Dentre as leis promulgadas a nível nacional para acolhimento de cidadãos estrangeiros, a política vigente é a Lei de Migrações nº.13.445, sancionada em 24 de maio de 2017, em substituição ao Estatuto do Estrangeiro (Lei nº. 6.815/1980). De acordo com o documento, todo estrangeiro reconhecido no Brasil possui direitos civis iguais ao cidadão brasileiro, o que inclui “acesso igualitário e livre a serviços, programas e benefícios sociais” (Art. 3, XI), a serviços públicos de saúde, a previdência social, educação pública, serviços bancários, bem como diretos trabalhistas no país (Art. 4).
Ainda que a Lei de Migrações seja um avanço ao antigo Estatuto do Estrangeiro, devido a medidas como a retirada de punições para estrangeiros que exercessem atividades de natureza política ou que se encontrassem em situação de vulnerabilidade social (ANUNCIAÇÃO, 2017), os direitos cidadão migrante residente no Brasil continuam atravessados por hierarquizações sociais que dificultam e, muitas vezes, impedem seu acesso aos serviços públicos.
Em relação à entrada e permanência de migrantes no país, Bizon e Camargo (2018) problematizam a falta de garantias de políticas efetivamente inclusivas para migrantes e refugiados. Conforme as autoras, a ideia de “acolher” o migrante pode atribuir um tom assistencialista às políticas públicas, vinculado à noção de ofertar ao outro o que ele precisa a partir do ponto de vista do “acolhedor”. Nesse sentido, acolher o migrante seria impor a ele a língua e as construções culturais de quem o acolhe, a fim de que lhe sejam garantidos os direitos como cidadão. Essa perspectiva de acolhimento “posiciona o migrante como inferior, diminuindo ou até mesmo interditando a possibilidade de relações efetivamente interculturais e, portanto, mais igualitárias” (BIZON; CAMARGO, 2018, p.715).
Ainda segundo Bizon e Camargo (2018), o despreparo da sociedade brasileira diante da demanda de políticas públicas voltadas à entrada e permanência de sujeitos migrantes no Brasil se relaciona a motivos sociais, políticos e ideológicos, acentuados pelo significativo contingente de migrantes e refugiados que chegaram ao país nos últimos anos. Somente em 2018, havia 161 mil solicitações de reconhecimento da condição de refúgio em trâmite, somadas aos mais de 11 mil refugiados que já viviam oficialmente reconhecidos pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE)2. São milhares de pessoas provenientes de diferentes nações, o que requer mais atenção e cuidado na definição de políticas nacionais e locais para grupos migrantes que buscam refúgio para sobreviver a guerras, perseguições e catástrofes naturais.
Diante da pluralidade de nacionalidades, corpos e línguas que chegam continuamente ao Brasil, as tentativas de implantação de políticas afirmativas para a população migrante são ainda permeadas pela racialização dos corpos, “em um país com uma estrutura racista onde a cor da pele de uma pessoa infelizmente é mais determinante para o seu destino social do que o seu caráter, a sua história, a sua trajetória” (GOMES, 2005, p. 46).
As dificuldades vividas nas trajetórias de refúgio são agravadas pelo racismo estrutural na sociedade brasileira, que determina quais oportunidades estarão disponíveis para os estrangeiros conforme a cor de pele. Esse fator pode ser percebido nos processos de definição de políticas para as populações migrantes, nos quais a racialização das identidades dos sujeitos implica na determinação de quais grupos de pessoas terão acesso aos direitos garantidos por lei e para quais grupos eles são negados.
Em relação às políticas de acesso de migrantes à educação superior, por exemplo, entendo que as relações hierárquicas abissais atravessam as discussões sobre as formas de ingresso e desenvolvimento educacional de migrantes e refugiados nas universidades. Apesar de a lei vigente em território nacional garantir o acesso à educação pública ao migrante, os critérios político-sociais que estruturam essas políticas de ingresso são estabelecidos localmente pelas instituições e não seguem padrões na definição de quais corpos e conhecimentos são válidos no ensino superior.
Para explorar a discussão da entrada de estudantes migrantes no ensino superior, vale ressaltar que um órgão relevante que atua junto às universidades públicas e privadas no desenvolvimento de ações de acolhimento ao migrante e refugiado é a Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM). A Cátedra está ligada ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e ao CONARE e tem como seus principais objetivos a promoção de educação, de pesquisa e de extensão acadêmicas voltada para a população de refúgio. Até o ano de 2019, vinte e duas universidades brasileiras, públicas e privadas, eram conveniadas à CSVM3. O acordo entre o órgão e as instituições de ensino superior tem possibilitado diversas ações amparadas pelo Estatuto de Refugiados do Brasil (Lei n. 9.474/1997), como revalidação de diplomas, disciplinas acadêmicas e grupos de pesquisa com temas sobre refúgio. Além de programas de extensão universitária que ofertam assessoria jurídica, serviços de saúde, apoio psicológico, integração laboral, ensino de LP e apoio de permanência no país a migrantes e refugiados.
Apesar do convênio da Cátedra com as vinte e duas universidades brasileiras, apenas treze delas possuem políticas institucionais para realização de processo seletivo especial para ingresso de estudantes migrantes e refugiados em programas de graduação e pós-graduação. Compreendo o baixo número de universidades que concedem vagas a migrantes e refugiados no ensino superior como relacionado às abissalidades modernas-coloniais, pois cada instituição segue seus próprios critérios ao definir qual o público-alvo está apto para ingressar no ensino superior, decisão que têm como base critérios de nacionalidade, aspectos sociais e/ou linguísticos.
A partir do levantamento feito por Rossa e Menezes (2017), Ruano (2019) discute como os critérios de público-alvo e de admissão dos migrantes não seguem um padrão. Há programas implementados unicamente para migrantes com status de refúgio regularmente reconhecido no Brasil e outros que ofertam vagas também para migrantes com visto humanitário, como cidadãos haitianos. Ainda, há universidades que aceitam a solicitação do visto de refúgio como documento comprobatório suficiente para inscrição no processo seletivo, como programas que definem o público-alvo das vagas por nacionalidades.
Ao olhar para a situação com lentes decoloniais, percebo como a abissalidade moderna/colonial conduz à marcação de determinadas linhas no espaço universitário e definem quais são os corpos e as nacionalidades legitimadas no ensino superior. Ao dar prioridades para determinadas nacionalidades, o direito à educação é limitado aos corpos que condizem com o ideal nacional e cultural proposto pela instituição de ensino superior. Essa limitação também acontece quando fica estabelecido que apenas cidadãos com o visto de refúgio, regularmente reconhecido no país, serão contemplados com vagas na graduação e pós-graduação. Essa barreira marginaliza aqueles que estão em processo de solicitação de visto protocolada, aguardando os prazos do governo.
Tendo em vista que as linhas abissais que estruturam as relações sociais agem na definição dos corpos legitimados no espaço universitário, é necessário problematizar como elas também orientam a definição de quais os saberes validados nesse espaço, podendo ser notado a partir da comparação entre os critérios de admissão adotados pelas universidades que possuem processos seletivos para migrantes e refugiados. Ao passo que algumas universidades desenvolvem provas objetivas de vestibular para migrantes, outras selecionam os aprovados a partir de análise de documentação acadêmica de seu país de origem e entrevistas individuais, sem a necessidade de avaliação escrita. Em uma das universidades pesquisadas por Rossa e Menezes (2017), a seleção acontece por meio da nota do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).
Conclui-se, diante das análises dos processos de admissão para migrantes e refugiados no ensino superior brasileiro, que “não existe nenhum tipo de padronização no que se refere aos modelos de seleção adotados pelos diferentes programas ou à política de distribuição de vagas destinadas a migrantes e refugiados em cada IES pesquisada” (RUANO, 2019, p. 53).
As análises pontuam como cada instituição de ensino superior propõe políticas locais de ingresso e de permanência dos alunos migrantes e refugiados, bem como avaliações em LP e os níveis de proficiência linguística que os alunos devem apresentar para serem aprovados em cada processo seletivo. Em face à falta de critérios específicos para as demandas de grupos migrantes em relação ao seu acesso à educação, abre-se margem para que políticas abissais, instituídas a partir de hierarquizações sociais, definam que conhecimentos, línguas e corpos são legitimados na academia. Essas definições, muitas vezes excludentes, relacionam-se ao privilégio epistêmico do homem branco ocidental, social e historicamente construído no espaço universitário na modernidade (GROSFOGUEL, 2016a).
Na experiência social de migrantes e refugiados no Brasil, as linhas abissais não se limitam às políticas de acesso à academia, mas são reproduzidas também em outros espaços e situações vivenciadas ao longo da vida acadêmica. Para explorar as linhas abissais na vida acadêmica de sujeitos migrantes racializados, na próxima seção, discuto como as divisões coloniais e a racialização dos corpos permeiam as experiências universitárias de um estudante negro migrante em uma universidade pública brasileira.
3. AS DIVISÕES ABISSAIS NO ESPAÇO UNIVERSITÁRIO A PARTIR DE NARRATIVAS DE UM ESTUDANTE NEGRO MIGRANTE
Nesta seção, apresento narrativas do estudante Jean4, nas quais o jovem relata sua vinda ao Brasil e algumas de suas experiências como aluno de graduação em uma universidade pública brasileira. O aluno Jean, migrante haitiano com visto humanitário no Brasil, foi aprovado no processo seletivo especial para migrantes e refugiados no final de 2017. Em 2018, iniciou o curso de graduação em Geografia em uma universidade pública no Sul do Brasil. As narrativas que compõem este trabalho me foram cedidas durante o primeiro semestre de curso.
Os dados que compõem as narrativas de Jean foram gerados através de entrevista etnográfica e diário acadêmico, que consiste em registros escritos semanais, produzidos pelo próprio participante, sobre seu cotidiano na universidade. Para a análise, parto de uma abordagem interpretativista com vistas a compreender as perspectivas do participante sobre as experiências cotidianas e, assim, possibilitar a discussão a respeito das hierarquizações coloniais na trajetória acadêmica do participante.
As experiências trazidas nas narrativas sustentam a problematização de como o estudante migrante negro enfrenta divisões abissais no espaço universitário e responde a essas categorizações com tentativas de legitimar sua presença no ensino superior. As discussões propostas a seguir estão organizadas de maneira a questionar o acesso do estudante migrante à universidade brasileira, a racialização dos corpos e o epistemicídio no espaço universitário.
3.1 O aluno migrante e o acesso à educação
Jean é um jovem haitiano que chegou ao Brasil no início de 2017 interessado em cursar o ensino superior. Ele deixou seu país em busca de estabilidade financeira para que pudesse realizar o sonho de seguir a formação acadêmica, pois a situação social e econômica de sua família no Haiti o impediu, algumas vezes, de continuar estudando.
Eu sempre iniciei um estudo, nunca terminei as vezes causa de dinheiro ou não foi o momento certo em relação com o trabalho. Antes 2010, ano aconteceu o terremoto no Haiti, vivia uma vida tranquila, tinha certeza alcançar com meu objetivo sem precisar sair do meu país. Mudou tudo objetivo, expectativa, plano, etc. Mas continuei vivendo uma vida não tão boa [...] no sentido de futuro, de construção de uma vida como um jovem intelectual que prepara sua vida social e econômica (Jean, diário, 18/03/2018)
Devido à situação de vulnerabilidade social no Haiti, que não oferecia muitas perspectivas de futuro, o jovem recebeu incentivo de alguns familiares que já viviam no Brasil e passou a enxergar o acesso à universidade brasileira como um caminho possível. A vinda dele para o Brasil representou a possibilidade de seguir a vida acadêmica e profissional.
Meu cunhado me falou do programa de reingresso que existe aqui ele faz parte. Eu que tinha vontade de estudar fora do país me tornei interessado muito do programa e de mais novas oportunidades económico. Eu comecei a fazer o processo de pedir visto no embaixada do Brasil no Haiti. (Jean, diário, 18/03/2018)
No final do ano de 2017, após meses de expectativas e preocupações, o estudante haitiano foi selecionado para ingressar no curso de bacharelado em Geografia, com base na análise de documentação comprobatória de que ele já havia ingressado em um curso superior no país de origem. De acordo com as políticas de ingresso da universidade na qual ele pleiteou a vaga, além da análise de documentos, Jean passou por uma entrevista oral em LP para comprovar se a proficiência dele era compatível com o nível exigido para um estudante estrangeiro de graduação.
Cheguei aqui no Brasil o dia 24 de janeiro 2017, a partir desse momento uma nova vida começa com novas expectativas, depois 3 meses as dúvidas aparecem. Não achava trabalho, informação de mudança que vai ter no programa, fiquei preocupado e me perguntei sobre presença no Brasil. Até o dia saiu o edital. Fiz a inscrição, uma pequena prova de nivelamento em português e o resultado foi ótimo para mim. (Jean, diário, 18/03/2018)
Após a aprovação para ingresso no primeiro semestre de 2018, o estudante foi matriculado em uma disciplina acadêmica de recepção de novos alunos migrantes, intitulada “Português como Língua de Acolhimento para Fins Acadêmicos”.
Apesar de ter optado pelo ingresso no curso de bacharelado em Geografia, Jean conta que essa não era a opção que pretendia estudar quando chegou ao país. O estudante narra que a falta de vagas em um curso de sua área o levou a tomar essa decisão para poder continuar a formação acadêmica no Brasil.
Como eu falei para você, lá no Haiti eu comecei fazer a Ciência Política. Eu fiz 2 anos lá, estudei Ciência Política, depois eu teve uma oportunidade de fazer a Ciência da Educação, eu ficar lá também 3 anos. Depois eu parei para entrar aqui no Brasil (Jean, entrevista, 23/06/2018)
Quando saiu a lista do curso que teve lá, não tem nenhum curso que tem a ver com o que eu queria, e também com o que eu estudava realmente lá no Haiti. Eu escolhi fazer a Geografia, mas sabe que a Geografia não foi uma escolhida que eu fiz no sentido de ‘quero estudar Geografia’ mesmo. É isso que aconteceu. (Jean, entrevista, 23/06/2018)
Como o ingresso no ensino superior representava, para o jovem haitiano, a possibilidade de realizar um sonho e seguir uma carreira profissional, houve a necessidade imediata de optar pelo curso que estava disponível no momento. Jean desistiu da carreira na Ciência Política para cursar Geografia na esperança de que o ingresso na graduação lhe desse oportunidade de mudar de vida, mesmo em um curso que não era diretamente de seu interesse.
A experiência de Jean em um processo seletivo especial para migrantes e refugiados remete à discussão de Bizon e Camargo (2018) sobre acolhimento ao migrante. Mesmo com direito à educação garantido por lei a migrantes no Brasil, nem sempre o acesso à educação corresponde às expectativas do aluno “acolhido” no país. Ser “acolhido” pode significar ter um conjunto limitado de opções de carreira, apenas com as alternativas de cursos de graduação que o “sujeito acolhedor” julgou válidas e disponibilizou aos “acolhidos”. Percebo que a relação entre o “sujeito acolhedor” na definição dos caminhos acadêmicos e profissionais do “sujeito acolhido” reforça a proposta do sistema moderno/colonial, ou seja, permite aos sujeitos do lado superior da linha abissal definirem quais conhecimentos são pertinentes para serem adquiridos pelos sujeitos do lado de baixo da linha.
O Brasil me dá a possibilidade de começar um dos meus sonhos mais importante apesar algumas coisas ruim que acontece. Eu espero para ver o que tem mais adiante (Jean, diário, 18/03/2018)
Embora o curso de graduação escolhido não ter sido a primeira opção, Jean afirma estar muito feliz e grato pela aprovação no processo seletivo especial para migrantes no ensino superior brasileiro. O jovem, porém, questiona o viés assistencialista das políticas para migrantes e assegura que seu ingresso na graduação não foi possível apenas porque foi facilitado. Ele, como estudante negro, haitiano, migrante, teria todas as condições de ingressar em qualquer outra universidade por ser comprometido e dedicado.
Tô feliz, mas não é no sentido de ‘É um milagre’, né. Não é um milagre porque eu sei que tenho capacidade de entrar no qualquer universidade, passar num concurso, né. Eu sei, eu pode fazer isso. Mas o jeito, a facilidade que eu entrei é boa? É boa. Por isso eu agradece de coração, né. Eu me senti feliz mesmo, eu me senti feliz... É uma oportunidade, né, para conseguir fazer um estudo fora porque é um dos meus sonhos. O meu motivo de fazer um curso fora, de ver o que tem lá, de fazer uma experiência nova, novas oportunidades econômico... Mas, como eu já falei, eu possui toda qualidade para fazer o estudo no qualquer universidade do mundo porque o que é mais importante para mim é a motivação. A capacidade você tem, o resto depende de você, seu objetivo. (Jean, entrevista, 23/06/2018)
Compreendo a crítica de Jean ao assistencialismo como forma de legitimar sua identidade de estudante negro migrante no ensino superior brasileiro, que parece sempre ofuscada por seu status social de refúgio (RODRIGUES, 2019). Reafirmar-se como estudante comprometido com os estudos contrapõe a visão assistencialista, que visa facilitar ao estudante o acesso ao ensino, que supostamente não possui conhecimento suficiente acadêmico e de mundo para ingresso em uma universidade devido ao seu status social de refugiado. Ao se afirmar como estudante que “possui toda qualidade para fazer o estudo no qualquer universidade do mundo”, percebo a resposta de Jean à ordem hierárquica epistemológica produzida pelas linhas abissais, na qual seu conhecimento como negro migrante na graduação é deslegitimado no espaço universitário.
3.2 Racialização do corpo negro no espaço universitário
A experiência de Jean na universidade brasileira é marcada pela diferença racial em diversos âmbitos. Em apenas um semestre de graduação, o estudante viveu situações nas quais as divisões abissais determinaram essa diferença no que diz respeito a espaços de fala e silenciamento, legitimidade e exclusão dentro e fora da sala de aula na universidade, entendida por Jean como instituição marcada pela branquitude.
A universidade é uma lugar que... que é branco! Posso dizer isso, que é branco, que tem uma história segregacionista. É uma lugar bem complicado nesse sentido, né. Quando estou na universidade, é como se fosse um lugar estranho [...] Eu fico mais tranquilo, mais feliz, quando eu tô na rua do que lá dentro da faculdade porque eu sou estranho; sou um corpo estranho no conjunto. É uma coisa bem, bem... Lá na faculdade é outro mundo, né; um mundo que tem uma visão bem diferente das coisas, né; um mundo você tem que lutar pra conseguir fazer seu lugar, né; um mundo bem caótica. (Jean, entrevista, 23/06/2018)
Para analisar as experiências vividas por Jean, parto do entendimento de raças como “construções sociais, políticas e culturais produzidas nas relações sociais e de poder ao longo do processo histórico” (GOMES, 2005, p. 49). Por esse viés, percebo diferenças raciais como construídas em contextos culturais e em relações de poder, que criam hierarquizações sociais e dividem os corpos entre os eixos superior e inferior das linhas abissais.
O racismo assume diferentes formas de manifestação de acordo com a história colonial de cada contexto (GROSFOGUEL, 2016b). No Brasil, devido ao histórico de escravização e extermínio de negros e indígenas, para além da definição de estereótipos e preconceitos com a cor da pele, a naturalização das diferenças raciais se encontra na estrutura das relações sociais que determina a superioridade de sujeitos lidos como brancos sobre sujeitos lidos como negros (ALMEIDA, 2019).
Para Gomes (2005), o racismo pode ser expressado na aversão ou ódio a pessoas com determinadas características físicas (como cor da pele e tipo de cabelo), ou ideias que afirmam a existência de raças superiores. A autora enfatiza que a expressão do racismo pode ocorrer a nível individual, com atos discriminatórios contra pessoas negras; institucional, pela definição de políticas públicas que negam ao sujeito negro ocupar determinados espaços ou acessar determinados serviços; ou em massa, como racialização de corpos e a discursivização do corpo negro como inferior na mídia.
De acordo Almeida (2019), o racismo se manifesta por meio da discriminação racial direta, como o desprezo a certos sujeitos determinados pela condição racial, e indireta, como um processo que pode ser marcado por uma suposta “neutralidade” que culmina em desvantagem para as pessoas racializadas. Em consonância com Gomes (2005), Almeida (2019) indica que as manifestações de racismo podem chegar a diferentes níveis de inferiorização, exclusão e negação da identidade do sujeito negro, até atingir violência física.
Ao discursivizar a universidade como um lugar que é branco e de história segregacionista, Jean dá indícios das manifestações de racismo que enfrenta cotidianamente. O aluno afirma o sentimento de ser um estranho e tentar constantemente legitimar sua presença no espaço universitário, percepção fundamentada nas formas de racismo individual e institucional que vivenciou ao longo do semestre.
O motorista do Intercampi5 não quis parar o ônibus pra mim porque não acredita que eu sou aluno da UFPR. Perdi a primeira aula (Jean, relato informal, 25/04/2018).
Sábado passado, a gente teve uma aula de campo. A gente tava junto lá esperando o ônibus. O Intercampi chegou para ir na aula [...] Tem uma menina, uma colega de nós, que chegou e, no momento que ela chegou, ela dar um abraço em todo mundo. Quando ela chegou até mim, nada de abraço, ela disse ‘Oi, tudo bem?’, eu respondi pra ela ‘Sim, tudo bem’. É isso... Bem recente, mas tem bastante coisa que aconteceu, mas isso não é meu foco, né. Isso não é meu foco. Só eu carrega tudo isso pra ver, pra ter um comportamento melhor, pra seguir um caminho reta do meu jeito, pra evitar algumas coisas e algumas pessoas. Mas isso não é coisa pra eu se preocupar... Pra se preocupar já tem bastante coisa! (Jean, entrevista, 23/06/2018)
O estudante opta por não enfatizar como as manifestações de racismo estruturam as relações sociais dentro da universidade, apesar de relatar por diversas vezes o distanciamento estabelecido desde as primeiras aulas entre ele e seus colegas de turma. Para o haitiano, as diferenças linguísticas e culturais entre os países o afastam de seus pares, porém, ao analisar sua experiência acadêmica a partir das delimitações abissais, entendo que as diferenças entre os alunos brasileiros e o jovem migrante vão além de linguísticas e culturais e se entrelaçam a relações raciais ao determinar seu envolvimento nas práticas sociais no espaço universitário.
Os estudantes são bem fechados comigo e um pouco de preconceito econômico. Enfim vou levar tempo para me adaptar é um processo pelo qual eu tenho que passar por aqui. (Jean, diário, 13/03/2018).
Nessa semana nada ruim aconteceu, a relação entre mim e os alunos não muda acho que é normal, isso precisa tempo para se construir no meu lado e no lado deles também. Quando eu falo que não tem mudança entre mim e os alunos quero falar do modo geral (Jean, diário, 20/03/2018).
Eu acho que eu não tenho uma relação. Não é no sentido que os professores têm um problema comigo, os alunos têm um problema comigo... Não é isso! Mas a causa da língua, da cultura diferente, causa da sociedade mesmo, a relação não é boa, né. Eu ficar no meu jeito, eles também ficam no jeito deles... Quando eu preciso uma coisa, eu falei. Eles também quando precisam alguma coisa, falam. Mas não tem uma relação. (Jean, entrevista, 23/06/2018)
Anya (2017), ao problematizar experiências de aprendizagem de línguas por alunos negros, destaca como a racialização das identidades dos estudantes impacta seu processo de aprendizagem e formas de engajamento na comunidade de falantes. Conforme essa autora, oportunidades de praticar habilidades linguísticas e construir sentido no grupo social são orientadas por diferenças raciais e noções de privilégio racial e epistêmico branco. À luz das discussões propostas por Anya (2017), ao analisar a experiência universitária de Jean, noto como a racialização de sua identidade impacta o desenvolvimento acadêmico dele, como aprendiz de LP e estudante universitário. O aluno haitiano, embora disponha das mesmas possibilidades de participação nas aulas e auxílio acadêmico igual a alunos estrangeiros e brasileiros na graduação, tem seu acesso ao apoio educacional comprometido pela não legitimação de sua identidade de estudante na universidade.
Não achei a ajuda dos monitores vou tentar falar com o professor acho ele poderia falar com eles. (Jean, entrevista, 02/05/2018)
Eu fui no monitor, ajudou mas não é o que eu esperava. (Jean, entrevista, 10/05/2018)
Para Santos (2007), as hierarquias sociais que definem diferenças de acesso a direitos que deveriam ser comuns são manifestações de novas configurações das linhas abissais. Na sociedade moderna, as linhas abissais assumem novos contornos, tendo em vista que sujeitos abaixo da linha têm circulado junto a sujeitos por espaços do lado superior da linha. Segundo Santos (2007, p. 78), “os espaços metropolitanos que se encontravam demarcados desde o início da modernidade ocidental deste lado da linha, agora estão sendo invadidos ou perpassados pelo colonial”. Esse entrelaçamento geográfico entre grupos hegemônicos e marginalizados gera práticas confusas e demarcações abissais mais estreitas, já que “a linha tem que ser desenhada a uma distância curta o bastante para garantir segurança” (ibidem, 2007).
Novas relações sociais modernas delineiam outras maneiras de divisão e de exclusão. O estudante negro perpassa esse espaço colonial, mas sente que sua presença ali não é legitimada. As linhas abissais impostas localmente demarcam literalmente os espaços dos corpos brancos e negros na universidade. Em resposta à racialização de identidade, Jean acredita que quanto mais se esforçar para aprender a língua da universidade, mais chance terá de legitimar sua fala e presença.
Se eu tem um nível melhor (de português), eu acho isso não acontece com eu, não. (Jean, entrevista, 23/06/2018)
Ao associar sua participação pouco legitimada na universidade ao seu nível de proficiência linguística, o próprio estudante desconsidera que passou por uma prova de LP e atestou suas habilidades linguísticas como suficientes para ingressar na graduação quando foi aprovado no processo seletivo. Mesmo sendo capaz de narrar suas experiências em português, participar semanalmente de aulas de língua e ter vivido por um ano no Brasil antes de ingressar na graduação, o aluno acredita não ter habilidades suficientes para ser legitimado como estudante universitário. Os relatos de Jean reforçam a relação entre a racialização de sua identidade e seu desenvolvimento acadêmico, como destacado por Anya (2017), e a hierarquização linguística e epistêmica reforçada pelas linhas abissais, como discuto a seguir.
3.3 Racialização da língua e do conhecimento do negro migrante na universidade
O projeto colonial de hierarquização racial e linguística estabeleceu uma relação de dependência do sujeito negro, lido como subalterno, de saber a língua do colonizador como forma de garantir sua sobrevivência (NASCIMENTO, 2019). No sistema-mundo moderno/colonial, a lógica de dependência continua a mesma, pois o sujeito racializado, no lado abaixo da linha abissal, precisa legitimar sua identidade perante o outro, que está no lado superior da linha, entre tantas formas, pela língua.
A experiência acadêmica do aluno Jean em uma universidade brasileira é permeada pela legitimação de sua identidade pela língua. O jovem haitiano vê na aprendizagem da LP um mecanismo para chegar à altura dos colegas e ser percebido como semelhante.
Esta semana é uma semana bem difícil, semana de prova, é a semana em que eu devo me colocar à altura para enfrentar meu pior inimigo à língua portuguesa. O início de um curso numa língua estrangeira não é nada fácil, meus antecessores são heróis parabéns para eles. (Jean, diário, 17/04/2018)
A postura de Jean em relação às habilidades em LP reflete as relações de hierarquização racial e linguística na estrutura das relações sociais da universidade. Apesar de seu curso de graduação não ser relacionado aos estudos da linguagem, o estudante demonstra preocupação excessiva em desenvolver habilidades linguísticas e alcançar um determinado nível de LP, que lhe garanta a possibilidade de ter sua fala legitimada pelas outras pessoas na comunidade acadêmica.
Causa da língua, eu faço bastante esforço, bastante esforço... Leva bastante tempo pra conseguir entender uma coisa bem simples, um texto. (Jean, entrevista, 23/06/2018)
Vou ser melhor com o tempo [...] Eu sempre falei: se foi na minha língua... Se foi na minha língua eu sei bem, eu conseguia fazer bastante coisa! Eu queria fazer coisas maravilhosas, eu queria demonstrar que eu sou, o que eu posso trazer nessa comunidade, mas enfim...A língua é a barreira mais complicada pra mim. Meu sonho é bem difícil de acontecer... Não sei quanto tempo isso vai levar, mas tem que ficar esperando, né. (Jean, entrevista, 23/06/2018)
Essa percepção de aprender a língua do brasileiro a fim de ser percebido como igual é discutida pelo estudioso martinicano Frantz Fanon (2008), como uma tentativa de branqueamento através da linguagem. Segundo Fanon (2008), a língua é tomada como primeiro espaço de dominação, da qual o sujeito subalterno se apropria para se aproximar no colonizador, porém, a partir da estrutura de hierarquização colonial, a adoção de “máscaras brancas” não modifica como são percebidas as “peles negras” dos falantes.
A racialização da língua do falante negro não se restringe às habilidades de expressão, ela se relaciona também com a racialização do conhecimento produzido pelo sujeito. As divisões abissais que determinam a invisibilização da negritude não se desassociam do silenciamento da voz do negro, que acontece a partir da racialização de sua língua e de seu conhecimento. Ante as discussões de Carneiro (2005), neste trabalho, entendo a racialização linguística e epistêmica como epistemicídio.
o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. (CARNEIRO, 2005, p. 97)
Em consonância com Carneiro (2005), Nascimento (2019) afirma que o epistemicídio também é linguístico tendo em vista que “desapropria o sujeito de seu próprio direito de produção do saber. Ou seja, quando ao sujeito negro ou indígena é negada a possibilidade de ser sujeito na língua” (NASCIMENTO, 2019, p. 26).
O epistemicídio dentro da universidade, pautado nas divisões abissais de privilégio epistêmico branco (GROSFOGUEL, 2016a), manifesta-se no silenciamento das práticas de linguagem do aluno negro, a quem não é dada a oportunidade de se expressar e transitar na(s) língua(s) de sua escolha, muito embora uma instituição de ensino superior conte com profissionais que transitem linguisticamente entre diferentes línguas. As divisões abissais no espaço universitário atuam para deslegitimar modos de ser no mundo e de expressar o mundo pela linguagem.
Tem duas provas, só cada professor tem um jeito de dar a prova dele, mas... O que eu posso te dizer... tempo é igual, problema para mim, não sei para outras pessoas (Jean, entrevista, 23/06/2018)
A causa da língua aqui, fazer a prova não é uma coisa confortável para mim, por isso eu não quero fazer uma comparação (com o curso de graduação haitiano) porque a língua me atrapa bastante, né, tenho mais dificuldade... Portanto o prova pode ser um prova bem, bem fácil, mas conseguir entender, fazer as reflexões, construir as frases, tudo isso é um processo que complica demais as provas para mim. [...] Lá (no Haiti) foi bem fácil porque foi na minha língua. [...] Aqui eu precisa entender... Precisa compreender as frases, as palavras, tudo isso antes de compreender a ideia que tem lá na frase (Jean, entrevista, 23/06/2018)
Embora o processo seletivo para migrantes e refugiados seja diferente para esses estudantes estrangeiros, não há espaço para suas práticas de linguagem e seus saberes dentro da universidade. As divisões coloniais na academia perpassam as políticas de acesso ao ensino, permitindo a presença e limitando a legitimidade dos corpos, das línguas e dos conhecimentos dos sujeitos que estão do lado de baixo da linha abissal.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Ainda que haja a tentativa de garantir os direitos do migrante de acesso ao ensino público no país, as políticas de ingresso e experiências de estudantes migrantes no ensino superior são atravessadas por linhas abissais que implicam na forma como o aluno negro é percebido nesse espaço universitário. A análise das experiências vividas por Jean no primeiro semestre, como aluno de graduação no Brasil, aponta como as divisões abissais invisíveis erguem separações visíveis que transpassam a vida do acadêmico negro migrante dentro e fora do campus da universidade. As linhas abissais, estruturantes do sistema-mundo moderno/colonial, atuam na racialização do corpo, da língua e do conhecimento do estudante negro migrante e o colocam em situação de silenciamento e exclusão.
As narrativas do aluno Jean reforçam a necessidade de pensar a universidade a partir de uma perspectiva decolonial, intentando reestruturar as noções de sujeito, línguas e conhecimentos legitimadas no cenário educacional. A elaboração de políticas de inclusão de negros migrantes no ensino superior precisa começar com o questionamento da abissalidade estruturante das relações sociais no sistema-mundo moderno colonial, fundamentadas no racismo e no epistemicídio do corpo e do conhecimento negro.
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1
De acordo com Pennycook (2006), a LAC consiste em “uma forma antidisciplinar ou conhecimento transgressivo, como um modo de pensar e fazer sempre problematizador” (p.68). Seguindo essa lógica problematizadora, Moita Lopes e Fabrício (2019) ressaltam que o foco das pesquisas a partir de uma abordagem crítica da Linguística Aplicada é trazer o conhecimento situado e as subjetividades dos sujeitos para a exploração do contexto e das práticas de linguagem.
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Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/07/Refugio-em-nu%CC%81meros_versa%CC%83o-23-de-julho-002.pdf. Acesso 26 de outubro de 2020.
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3
De acordo com o último relatório da CSVM de 2019. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/09/Relatorio-Anual-CSVM_Digital.pdf. Acesso em 20 de outubro de 2020.
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Atribuo ao estudante um pseudônimo a fim de garantir seu anonimato.
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Ônibus para alunos e servidores que circula entre oscampida universidade, utilizado exclusivamente para atividades acadêmicas. O acesso é gratuito mediante apresentação de crachá ou carteirinha de estudante da instituição ao motorista.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
14 Maio 2021 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2021
Histórico
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Recebido
31 Out 2020 -
Aceito
03 Mar 2021 -
Publicado
23 Mar 2021