RESUMO
Este artigo pretende analisar a conexão entre os elementos narrativos, o sucesso comercial alcançado pelo filme Spartaco (Giovanni Enrico Vidali, Pasquale Film, Itália, 1913), a cobertura midiática da Revolta da Chibata, o enquadramento de um senso comum por parte do público quanto a esses eventos e, de modo mais geral, quanto ao passado recente da escravidão e ao papel da população afro-brasileira na conquista de direitos no momento imediato pós-Abolição. Em se tratando de uma leitura racialmente dirigida à obra, nosso argumento principal é o de que o consumo de Spartaco por parte dos espectadores brasileiros atuou no apagamento do referente negro de heroísmo e de rebelião a partir de episódios temporalmente muito próximos à exibição do filme – a Revolta da Chibata e o julgamento de João Cândido – e conectados à herança do período escravocrata. Como metodologia para análise das fontes escritas, adotamos o paradigma indiciário, tal como preconizado por Carlo Ginzburg (2007).
Palavras-chave: cinema; Primeira República; Revolta da Chibata; épico; pós-abolição
RESUMEN
Este artículo pretende analizar la conexión entre los elementos narrativos, el éxito comercial alcanzado por la película Spartaco (Giovanni Enrico Vidali, Pasquale Film, Italia, 1913), la cobertura mediática de la Revuelta de Chibata, el encuadramiento de un sentido común por parte del público cuanto a esos eventos y, de modo más general, cuanto al pasado reciente de la esclavitud y al papel de la población afrobrasileña en la conquista de los derechos después de la su abolición. Tratándose de una lectura racialmente dirigida a la obra, nuestro argumento principal es el de que el consumo de Spartaco por parte de los espectadores brasileños actuó en la eliminación del referente negro de heroísmo y de rebelión a partir de episodios temporalmente muy próximos a la exhibición de la película – la Revuelta de Chibata y el juicio de João Cândido – y conectados a la herencia del periodo esclavista. Como metodología para el análisis de las fuentes escritas, adoptamos el paradigma indiciario, tal como preconizado por Carlo Ginzburg.
Palabras Clave cine; Primera República; Revuelta de Chibata; épico; pos-abolición
ABSTRACT
This article analyzes the connection between the narrative elements and commercial success of the film Spartaco (Giovanni Enrico Vidali, Pasquale Film, Italy, 1913), the media coverage surrounding the Revolt of the Lash, the construction of common sense for the public regarding these events and, more generally, the recent past of slavery and the role of Afro-Brazilian citizens in the claiming of rights during the immediate post-Abolition period. In regard to a racially oriented reading of the film, this article argues that the consumption of Spartaco by Brazilian spectators worked to erase Black references of heroism and rebellion from events close in time to the exhibition of the film and connected to the legacy of slavery – the Revolt of the Lash and the trial of João Cândido. Concerning the methodology for analyzing written sources, this article adopts the evidential paradigm, as advocated by Carlo Ginzburg.
Keywords: Cinema; First Republic; Revolt of the Lash; Epic; Post-Abolition
Para atenuar a dura rotina que havia previsto naquela semana, um leitor compra a edição do jornal O Paiz de segunda-feira para se inteirar das últimas notícias e, talvez, pegar alguma sessão de teatro ou de cinema. Ao ver um anúncio do cinema Paris sobre a estreia de Spartaco naquele dia, fica surpreso e animado. Atraído pela foto do galã intérprete do herói romano, pela grandiosidade prometida pela produção e pelos luxos da sala de cinema, apressa-se em comprar o ingresso antes que a sessão lotasse.
Não muito antes dessa estreia, o mesmo leitor foi sistematicamente alvo, por meses, de notícias direta ou indiretamente relacionadas a um fato que marcou a memória nacional e, especificamente, a do Rio de Janeiro: a Revolta da Chibata. Desde sua eclosão em novembro de 1910 até o julgamento de João Cândido pelo Conselho de Guerra, o tema retornava aos noticiários, aos editoriais e às charges políticas.
Por sua vez, Spartaco (Giovanni Enrico Vidali, Pasquale Film, Itália, 1913) entrou em cartaz nos cinemas de diferentes cidades brasileiras entre março e abril de 1914, tendo sido exibido na então Capital Federal, em diversas capitais de estados e em várias cidades de médio porte pelo interior do país. Isso ocorreu pouco mais de um ano após a conclusão do julgamento de João Cândido e de outras lideranças dos revoltosos sobreviventes dos massacres impostos pelos militares e pelo governo Hermes da Fonseca1 em dezembro de 1912, com repercussão na imprensa até o mês seguinte (MOREL, 2009a, p. 229-245).
Em continuidade ao exposto por Lapera (2023), a questão a ser explorada por este artigo é a conexão entre os elementos narrativos do filme, o sucesso comercial alcançado por ele, a cobertura midiática da Revolta da Chibata2, o enquadramento de um senso comum por parte do público quanto a esses eventos e, de modo mais geral, quanto ao passado recente da escravidão e ao papel da população afro-brasileira na conquista de direitos no momento imediato pós-Abolição.
Em se tratando de uma leitura racialmente dirigida à obra, nosso argumento principal é que o consumo de Spartaco por parte dos espectadores brasileiros atuou no apagamento do referente negro de heroísmo e de rebelião, a partir de episódios temporalmente muito próximos à exibição do filme – a Revolta da Chibata e o julgamento de João Cândido – e conectados à herança do período escravocrata3. Ao investir em um apagamento pelo esquecimento de rastros (RICOEUR, 2007, p. 452-457), o consumo do filme disseminou entre seus espectadores o protagonismo de uma rebelião por um escravo branco, obliterando protagonistas negros temporalmente muito próximos a esses espectadores4.
Em conexão a ele, lançamos três argumentos complementares. O primeiro é que houve, com o sucesso do filme, o amortecimento de um medo branco (AZEVEDO, 2004) difundido desde meados do século XIX quanto ao potencial de subversão da ordem por parte da população negra e atualizado pela recente revolta. Esse medo havia sido reforçado após os desdobramentos da Revolta da Chibata, pelas bombas que caíram sobre o Rio de Janeiro à época, pela ameaça de bombardeio de toda a cidade pelos revoltosos e, sobretudo, pela cobertura sensacionalista de parte da imprensa corporativa, que o amplificou5.
Além disso, a substituição de João Cândido por Spartaco no plano simbólico pode ser vista como um mecanismo de compensação psíquica (ADLER, 1955). No caso analisado, ele atuaria a partir da posse simbólica de um bem inatingível – um herói branco de um passado remoto – para reparar uma perda sentida no plano afetivo e/ou moral. Nesse sentido, a compensação viria através do consumo imagético desse herói branco e atenuaria o sentimento de vergonha nutrido por uma parte considerável do público, que se identificou, na época da Revolta, com os oficiais mortos durante o motim e com os militares e políticos humilhados pela anistia aprovada aos soldados revoltosos no Congresso brasileiro.
Por fim, a ampla exibição de Spartaco pelos cinemas no Brasil inseriu-se na construção pública da Revolta da Chibata como um não evento (TROUILLOT, 1995, p. 70-107). Isto é, a projeção massiva de um herói clássico auxiliou a mitigar a imprevisibilidade, o protagonismo por parte de homens negros e sua habilidade em conduzir a revolta contemporânea aos republicanos6. Em conjunto, esses argumentos nos permitem traçar algumas linhas de interpretação quanto à presença do filme no circuito exibidor nacional, que, evidentemente, não pretendem esgotar a discussão7.
A respeito dos debates intelectuais ocorridos durante a Primeira República e popularizados através da imprensa, é importante destacarmos o papel da ideologia do branqueamento na conformação de práticas relacionadas ao Estado e ao senso comum dos estratos superiores da população (SCHWARCZ, 2005), tendo sido também abordada em relação à cultura massiva do período (CAMINHA, 2020).
Conectado a isso, o debate sobre o “helenismo” – isto é, a constante referência ao repertório da cultura clássica greco-romana – encontrava eco não apenas entre os intelectuais, mas também entre os setores médios da população que liam jornais, livros e frequentavam as diversões ofertadas nas grandes cidades (teatro, cafés-concerto, cinemas, praias, competições desportivas etc.). Além das disputas intelectuais com referências abertas à Antiguidade Clássica e uma leitura racialmente orientada a esse conteúdo (BARBOSA, 2017; BROCA, 2005; SEVCENKO, 1983), esses setores médios também eram inseridos nesse debate através de filmes exibidos nas salas de cinema nas primeiras décadas do século XX (LAPERA, 2023). Diversos filmes projetados tinham temas relacionados à Grécia e à Roma Antigas, em uma franca expansão da “mania da Grécia” (BROCA, 2005, p. 157) pela cultura massiva8, dentro da integração percebida por Martín-Barbero (2004, p. 209-210) a partir dessa cultura massiva e não somente do domínio letrado nas sociedades latino-americanas.
No caso de João Cândido, seguimos uma pista deixada por Morel (2009a). Ao relatar a discussão acalorada no Congresso sobre o bombardeio à cidade de Salvador, ocorrido em janeiro de 1912, o autor constatou que o líder da revolta havia sido enquadrado em um horizonte semelhante ao de nossa análise:
No Congresso Nacional, a oposição, que fez restrições ao ato de anistia concedida aos insurretos navais de 1910, voltou a agitar as questões do bombardeio de Salvador, exaltando João Cândido como marinheiro humanitário e de sentimento cristão, que não jogou uma só bomba sobre a população carioca. Compararam-no aos grandes heróis da Era Antiga, colocando-o em confronto o Marechal Hermes da Fonseca (MOREL, 2009a, p. 202, grifos nossos).
Em termos de percurso de pesquisa, identificamo-nos com o exposto por Martín-Barbero (2004, p. 18) sobre sua proposta de mapa noturno: “um mapa para indagar a dominação, a produção e o trabalho, mas a partir do outro lado: o das brechas, o do prazer”. Apesar de o autor ter pensado isso para a comunicação contemporânea, é possível situá-lo historicamente e reconhecer, nos momentos de lazer propiciados pela ida ao cinema nas primeiras décadas do século XX, algumas inflexões bastante reveladoras das categorizações sociais do período. Assim, podemos perceber, nos vestígios desses processos, marcadores de hierarquizações e exclusões em momentos aparentemente “relaxados”, “negligenciados”.
Como fontes, adotaremos o próprio filme, os anúncios veiculados pelos exibidores e a cobertura da Revolta da Chibata e do julgamento dos marinheiros revoltosos nos periódicos custodiados pelo setor de Publicações Seriadas da Biblioteca Nacional e depositados na Hemeroteca Digital da instituição. É preciso enfatizar que não encontramos fontes qualitativas referentes à recepção de Spartaco pelo público brasileiro – cartas de espectadores, editoriais, artigos de cronistas etc. Diante dessa ausência de fontes qualitativas que relacionem de modo direto os dois eventos, nossa empreitada está focada em outros indícios que nos permitam traçar paralelos entre eles: a proximidade temporal entre a Revolta em si, seu julgamento e a exibição do filme, em um momento histórico cuja percepção de tempo era experimentada individual e coletivamente de modo mais lento do que a atual9; o grau de circularidade do filme junto ao público brasileiro; e as aproximações entre as estruturas narrativas da obra ficcional e da cobertura midiática sobre os eventos envolvendo a revolta, bem como a construção dos heróis pelos jornalistas e cronistas da época e pela obra cinematográfica abordada.
A metodologia para o tratamento das fontes escritas é o paradigma indiciário, de Carlo Ginzburg (2007), tal como exposto por Lapera e Souza (2010). É importante frisar que o método proposto por Ginzburg parte do princípio de que vestígios incidentais seriam capazes de revelar processos socialmente estruturais e, sendo um método de crítica textual, pretende inferir, a partir de um universo heterogêneo de fontes escritas, alguns desses processos (GINZBURG, 2007, p. 143-171). Na análise do filme, transitaremos entre autores que se debruçaram sobre o épico em suas conformações modernas nacionais ou transnacionais (MORETTI, 1996; FREITAS, 2016).
Ainda sobre as fontes, enfatizamos que os filmes produzidos à época sobre a Revolta e João Cândido são considerados desaparecidos. Após uma consulta à base Filmografia Brasileira da Cinemateca Brasileira, verificamos que algumas obras foram referenciadas graças a fontes de imprensa catalogadas por pesquisadores10 a respeito de sua circulação. Diante da impossibilidade de comparar fontes fílmicas, a cobertura midiática sobre a Revolta ganha destaque em razão da questão e dos argumentos levantados aqui.
À procura de um herói branco: a presença de Spartaco (1913) nos cinemas brasileiros
Spartaco11 centra sua narrativa nas aventuras do escravo gladiador homônimo e acompanha a revolta contra a escravidão no Império Romano. É importante notar que o próprio filme é construído como uma janela para o passado (ROSENSTONE, 1995), visto que anuncia em sua cartela inicial: “e vamos passar em nossa imaginação pelos portões de Roma”12. Tal característica era comum às obras do cinema silencioso que abordavam temas históricos (ROSENSTONE, 1995).
Muscio (2013, p. 163-164) enquadra o filme em um conjunto de produções italianas do cinema silencioso. A pesquisadora argumenta que os filmes sobre a Antiguidade Clássica – notadamente sobre a expansão e a decadência do Império Romano – eram o tipo de produção mais valorizada pelos estúdios nacionais, tanto para a demanda do público local quanto para exportação. Desse modo, a reconstrução histórica proposta por Spartaco estaria situada em um horizonte de usos do passado clássico a ser massivamente consumido por espectadores de vários países.
No filme, Spartaco é aclamado nos confrontos entre gladiadores no Coliseu pelas autoridades romanas, ferindo seus adversários e sendo ovacionado pelo público. Após isso, retorna à sua terra natal – Trácia – e tenta articular uma revolta de escravos contra Roma, algo enfatizado nas cenas em que uma multidão enfurecida caminha pelas ruelas e vales da região. Em outros momentos da obra, Spartaco é mostrado discursando para a multidão de escravos, o que marca sua posição de liderança. Para frustrá-la, arma-se uma intriga na qual Spartaco é acusado do assassinato de Heronius (que, na verdade, havia sido cometido por Noricus – o vilão do filme – e isso só é revelado na última cena).
Späth e Thrõler (2013) apontam questões que nos interessam diretamente quanto ao corpo do personagem e sua projeção midiática. Primeiramente, os autores destacam que um corpo musculoso para representar o escravo era algo projetado desde o cinema silencioso e citam a versão de Vidali como exemplo (2013, p. 47). Em seguida, conectam esse elemento à exploração comercial do filme, na medida em que esse corpo atlético era retratado na propaganda do filme para distribuidores, exibidores e público (2013, p. 57-58). Esse fato pode ser confirmado pelos anúncios de cinema veiculados em jornais do Rio de Janeiro, como o reproduzido abaixo:
Sobre o público alcançado pelo filme, algumas inferências são possíveis a partir da disposição desses anúncios nos jornais de diferentes cidades brasileiras. Ao longo de nosso levantamento, verificamos exibições nas seguintes cidades: Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Manaus, São Luís, Curitiba, Florianópolis, Caxias do Sul e São Félix. Não se trata de uma lista que esgota o número de cidades onde essas projeções ocorreram, sendo apenas um vestígio do amplo grau de circulação da obra pelo mercado exibidor brasileiro13.
Embora os dados sobre as cidades sejam assimétricos e, em alguns casos, bastante esparsos, é possível deduzir do material coletado pela imprensa que Spartaco foi exibido em várias salas destinadas às elites e aos setores médios locais, reforçando o recorte de público alcançado pelas projeções cinematográficas na então Capital Federal em suas áreas recém-reformadas (ARAÚJO, 1985; BERNARDET, 1995; LAPERA, 2020; 2023). Inferimos que essas exibições seguiram padrões semelhantes aos adotados no Rio de Janeiro, isto é, anúncios com semanas de antecedência sobre o filme, lançamento em cinemas situados em áreas nobres e/ou recentemente reformadas e, em seguida, apenas em algumas localidades, a expansão dessa exibição para cinemas em lugares mais afastados dessas áreas14.
Em suma, podemos afirmar que os exibidores cinematográficos nas diferentes cidades brasileiras visaram ao consumo por parte da elite e dos setores médios em expansão durante o período em diferentes níveis: apelo à qualidade artística do próprio filme; destaque de características das salas de cinema que as diferenciavam dentro de seus circuitos exibidores locais15; e engajamento com o público com um grau de letramento maior e conhecedor dos códigos de conduta quanto às diversões frequentadas por esses grupos – sobretudo o teatro16.
Ainda, algumas notas na imprensa referendavam esse lugar de classe acionado pelo consumo do filme, tal como o comentário do jornal A Notícia (1914, p. 3) sobre o público:
Sempre muito bem frequentado, o theatro Phenix tem sempre os seus logares disputados e esgotadas as lotações para as sessões em que é exibido o estupendo film “Spartaco”, o gladiador da Thracia.
Hontem á noite, como nas sessões anteriores, o deslumbramento do artístico film bem se casava com o aspecto da platea, camarotes e demais logares, completamente ocupados por uma sociedade muito fina17.
Tendo em vista esse público-alvo não apenas de Spartaco, mas da diversão cinematográfica em geral, realizamos a análise comparativa entre a obra e a cobertura midiática em torno da Revolta da Chibata em quatro aspectos: a) a liderança das revoltas por figuras carismáticas – Spartaco e João Cândido, cujas imagens foram midiaticamente apresentadas e reconstruídas em diferentes momentos; b) a dimensão militar das revoltas, que as aproxima simbolicamente; c) as conspirações contra os líderes; e d) a questão da anistia e do julgamento.
Antes de passarmos aos pontos de nossa análise, é preciso enfatizar que uma leitura racialmente dirigida à figura de Spartaco não é algo totalmente novo em se tratando da historiografia sobre o filme. Ao abordar a versão de Ricardo Freda sobre o mesmo personagem, Lapeña Marchena (2015) inferiu que este pode ser lido em relação ao movimento de libertação das populações negras nos EUA e na América Latina ao longo do século XIX. Em suas palavras, “essa visão particular de Spartacus promove a dicotomia entre liberdade versus escravidão e transforma o herói trácio em um precursor do pensamento abolicionista do século XIX” (2015, p. 173).
Por sua vez, Davis (2000, p. 34) equipara o esforço da firma Pasquale em retratar a escravidão na Antiguidade ao de Griffith em lidar com as heranças do sistema escravocrata norte-americano em O nascimento de uma nação, em momentos muito próximos no mercado cinematográfico internacional. Em vários momentos, a autora estabelece relações entre os diferentes momentos da escravidão antiga e moderna no cinema, situando-as na construção da sensibilidade dos espectadores do século XX pelo então novo meio (DAVIS, 2000, p. 61).
Spartaco, um desvio de João Cândido: heróis, vilões e duplos embranquecidos
O herói fílmico é apresentado in crescendo aos espectadores. De guerreiro capturado em combate com os trácios na primeira sequência do filme, é mostrado como líder na escola de gladiadores e nas lutas travadas no Coliseu. Derrota vários oponentes, inclusive seu principal rival, Noricus.
Na primeira sequência, é ostentado como um troféu de guerra pelo general romano Crassus. O filme apresenta Crassus em um plano conjunto com a legenda “Para testemunhar o retorno do conquistador Crassus – revigorado pela conquista da Trácia”18 e, na sequência, Spartaco é mostrado com sua irmã Idamis caminhando sob a vigilância do general e acompanhado por uma multidão que aplaude o cortejo. Sua apresentação é finalizada com “antes um guerreiro da Trácia – jovem, feliz, triunfante – hoje um escravo algemado de Roma”19.
No primeiro combate mostrado no Coliseu, Spartaco aparece como o único sobrevivente de seu batalhão e, mesmo assim, impõe uma derrota humilhante a Noricus, derrubando-o e empinando a espada sobre sua barriga. Após o reconhecimento da vitória de Spartaco por parte do imperador romano que assistia aos combates, o gladiador ajuda Noricus a se levantar, o que ele faz muito contrariado.
Por sua vez, os marinheiros revoltosos foram apresentados ao público de forma bastante difusa em um primeiro instante. A imprensa relatava que não se sabia ao certo quem comandava a revolta nem os motivos para que ela tivesse eclodido, tal como Morel (2009a, p. 73-76) o abordou. O jornal Correio da Manhã, em sua edição de 23 de novembro de 1910, destaca o estado de espírito da cidade diante dos últimos fatos: “A cidade está completamente em panico. A revolta na Armada, que parecia circumscrever-se a alguns navios apenas, propagou-se rapidamente a todos elles, e já não se trata, apenas, como sublevação de marinheiros, mas da sublevação da esquadra”20.
Além da dimensão difusa da revolta, também foi questionada pela imprensa não apenas a capacidade dos marinheiros em conduzir a revolta pelos navios21, como também o fato de serem capazes de se rebelar por conta própria, sem uma motivação ou patrocínio político, tendo sido o jornal O Paiz o mais explícito em expor esse debate que acontecia nas ruas. Ao abordar o telegrama dos marinheiros ao presidente Hermes da Fonseca com as reivindicações do movimento, a edição de 23 de novembro de 1910 do periódico assim descreve o clima:
Alguns espíritos enxergaram no facto uma filiação politica. Para esses, os disparos dos canhões de guerra não podiam ser obra exclusiva da maruja.
Devia existir na alma daquelles canhões tonantes um segredo, um mysterio...
Outros, mais attreitos aos factos, mais ponderados, viam na sublevação apenas uma perturbação disciplinar interna, uma verdadeira questão domestica a bordo de algumas das unidades da nossa esquadra22.
Desse modo, o contraste entre o protagonismo de Spartaco, traçado desde o início da narrativa no filme, e esse aspecto difuso e desdenhoso em relação aos marinheiros revoltosos pode ser percebido como o elemento de partida na construção desse herói escravo embranquecido na cena pública, constituindo a base da substituição a ser operada em relação aos protagonistas do movimento de 1910.
A isso, poderia ser contrastado o fato de que a figura de João Cândido já era bastante conhecida em 1914, quando o filme foi exibido no circuito brasileiro. Contra esse argumento, lembramos a reflexão de Moretti (1996, p. 11-34) sobre a instabilidade em torno da figura do herói na modernidade, uma vez que ela estaria deslocada de seus referentes na cultura clássica e no gênero épico. No caso avaliado, essa instabilidade seria traduzida tanto pelo herói fílmico marcado por signos dessa modernidade – corpo musculoso, ênfase em uma relação amorosa que se mostra relevante à sua ação, o que marca também uma mistura entre épico e melodrama – quanto pela representação dos marinheiros como uma “onda negra” pela imprensa, um elemento caro ao “medo branco” (AZEVEDO, 2004).
Essa representação dos marinheiros23 foi acentuada por um curioso fait divers trazido pelo jornal Correio da Manhã em sua 1a edição de 23 de novembro de 1910. Ao relatar a apreensão que assolava o Rio de Janeiro, o jornal assim narrou o encontro com um marinheiro de uma das embarcações amotinadas na Polícia Marítima:
Este marinheiro era do scout Bahia, alto, negro, trazendo no canto dos beiços um enorme charuto.
Escutámos atentos o que elle dizia. Parecendo meio embriagado, cambaleava, murmurando pegajosamente:
— Às seis horas, o meu comandante chamou-me e disse que eu fosse mudar logo a sua família para o ponto mais distante da cidade, para Cascadura. Eu mudei e aqui estou para embarcar. O negro ria-se, mastigando as syllabas. E concluiu:
— E digo que ás duas horas os senhores vão ver... tudo isso vai virar em fréje...24
O tom de ameaça e vingança, o marcador racial e a caracterização do marinheiro como um tipo cômico – na linha de um humor racista que permeava a cultura midiática do período (CAMINHA, 2020) – podem ser percebidos diretamente em oposição à imponência, à magnitude e à personalização em torno de Spartaco, que seria performada em um momento imediatamente posterior pela narrativa do filme e potencializada pelo seu consumo.
Em outra sequência, no momento da revolta dos escravos, Spartaco é retratado como um guia carismático capaz de converter mais soldados à causa da revolta. Estes são mostrados marchando por Roma aos gritos e levantando suas espadas, tridentes e escudos na exaltação à figura do gladiador. Sua coroação como herói acontece no seu discurso perante o imperador Crassus após a vitória da revolta: “Como preço de sua liberdade, pedimos somente o direito comum dos homens, o de viver em paz e em liberdade”25.
Quanto a João Cândido, a imprensa oscilou bastante no seu tratamento como líder da Revolta, aspecto já sublinhado por Morel (2009a), Nascimento (2010; 2016), Almeida (2010; 2011) e Silva (1982). A crônica de Gilberto Amado publicada no jornal O Paiz, já analisada pela historiografia (MOREL, 2009a, p. 60-63), depois de exaltar João Cândido e os revoltosos e de destacar os motivos justos para a insurreição, assim finaliza sobre a presença dele na cena pública:
Por mais logar comum que pareça é inevitável repetir que precisamos trabalhar com seriedade e intensidade, cuidar com pressa dos verdadeiros assumptos, dos problemas básicos da sociologia brazileira, com a solução dos quaes, unicamente, o Brazil será um paiz forte, uma Nação sisuda, que não possa, emfim, comicamente oscillar, á vontade de outros Joões Candidos que appareçam (AMADO, 1910, p. 3, grifo nosso).
Sob a ótica do escritor, por mais que os marinheiros possuíssem força de vontade e razão e que pudessem ser vistos como heróis nessa situação, o objetivo final era o apagamento. Em uma espécie de “sutura” (BHABHA, 2005), a linguagem de Amado é bastante reveladora do desejo de impedir que a figura de João Cândido ganhasse ressonância no jogo político e pudesse ser vista como um modelo para futuras reivindicações. E essa ambiguidade que permeia a crônica de Amado pode ser vista como a síntese dos enquadramentos midiáticos em torno da imagem de João Cândido.
Além disso, é preciso recordar as observações de Freitas (2016, p. 62-72) quanto ao debate sobre o gênero épico no Brasil ao longo do século XIX. Ao inventariar os argumentos de vários autores sobre a afirmação do épico na literatura brasileira, a autora destacou a presença em primeiro plano do colonizador branco e do indígena como elemento nativo no papel de heróis, enquanto o negro se encontrava apagado do protagonismo literário. A isso, complementamos que, no âmbito do consumo massivo, o apagamento do negro como herói foi levado a cabo em diversos momentos durante a Primeira República, sendo a cobertura da Revolta e a exibição de Spartaco dois desses momentos que se encontram em uma linha de continuidade com a sua exclusão da imaginação nacional quanto ao seu papel de herói. Desse modo, esse consumo se situa no mesmo horizonte de expectativas do debate travado ao longo do século XIX no campo literário brasileiro.
Ainda, é necessário complementar com o argumento de Moretti (1996, p. 52, grifos do autor) a respeito de que, no épico moderno, a “contemporaneidade dos não-contemporâneos conduz ao primeiro plano; o ‘antes-e-depois’ é transformado em um ‘simultaneamente’ – e assim a história se transforma em uma gigante metáfora para geografia”. A substituição de João Cândido por Spartaco no plano simbólico encontra-se em sintonia também com esse esvaziamento de uma temporalidade “antes-e-depois” no épico moderno, sendo isso potencializado pela dimensão massiva do consumo cinematográfico, que nivela no mesmo momento histórico figuras de diferentes tempos.
Observemos duas imagens veiculadas pela imprensa por ocasião da Revolta:
Foto de pessoas na Praça XV correndo das balas de canhão disparadas pelos dreadnoughts na Baía de Guanabara por ocasião da Revolta
O teor racista da charge no enquadramento da imagem de João Cândido26 é complementado por um comandante branco representado em proporção bem menor, vestido de farda e prestando continência ao marinheiro. Tal charge simboliza o sentimento de humilhação experimentado pelos oficiais da Marinha e, no limite, a inferiorização da capacidade intelectual e de luta do homem branco, com o qual uma parcela significativa do público cinematográfico se identificava27.
Esse sentimento era complementado pelo medo amplamente difundido junto à população quanto ao risco de uma revolta generalizada contra a instituição, na qual a Capital Federal sofreria graves consequências, sendo a foto publicada na revista Fon-fon uma síntese da situação. Nesse sentido, a humilhação, a inferiorização e o medo experimentados por ocasião da Revolta da Chibata seriam a base para a construção midiática de Spartaco ao longo de sua exibição.
O filme destaca o heroísmo de Spartaco ao longo da revolta contra os generais romanos, a partir da legenda: “A História não registrou ato mais glorioso e ousado que a fuga dos gladiadores do morro do Vesúvio”28. Em seguida, é mostrado guiando os gladiadores na descida do morro Vesúvio e seu corpo musculoso é ainda mais evidenciado pelo uso da força física durante essa fuga.
Em consonância com a narrativa fílmica, a imprensa também explorou a dimensão heroica no comportamento de Spartaco perante o público. O jornal O Paiz publicou que o filme retratava um “drama maravilhoso, cheio de scenas de amor e de combate pela liberdade”29, reconhecendo a centralidade do protagonista “príncipe da Thracia, e invencível lutador em prol da liberdade dos opprimidos”30.
Recuperamos o argumento de Späth e Thrõler (2013, p. 45-47) de que os heróis da Antiguidade Clássica, como Spartaco, foram apresentados mediante uma roupagem moderna, na medida em que a iconografia em torno de seus corpos era desconhecida e demandava um investimento na imaginação do público. Com isso, podemos perceber que, no caso brasileiro, a ocupação da cena pública por Spartaco através da exibição cinematográfica auxiliou na construção desse herói escravo embranquecido e, por consequência, no abrandamento da presença de João Cândido e dos marinheiros amotinados em 1910.
Enquanto a figura de Spartaco não sofria nenhum tipo de constrangimento para sua circulação na cena pública, havia uma pressão pela censura ao líder do movimento contra a Chibata na Marinha. Realizado entre a Revolta e seu julgamento, o filme A vida de João Cândido, dirigido por Alberto Botelho, foi interditado em janeiro de 1912. Tendo Almeida (2011, p. 64-65), Araújo (1985, p. 382) e Kushnir (2004, p. 86-87) se debruçado sobre o fato, os autores compilaram artigos publicados na imprensa, nos quais o ato de censura era atribuído a Belisário Távora, então Chefe de Polícia do Rio de Janeiro. Almeida (2011, p. 65) chega a mencionar que Távora esteve na plateia de um espetáculo encenado pelo circo Spinelli em homenagem ao líder da revolta no ano seguinte à censura ao filme sobre sua vida, o que poderia ser visto como uma conduta contraditória.
Um documento encontrado em nosso trabalho de campo no Arquivo Nacional lança nova luz sobre esse episódio de censura. O Ofício 58/1912, emitido em 19 de janeiro de 1912 pelo Capitão de Mar e Guerra, chefe da Superintendência de Pessoal da 5a Secção do Almirantado Brasileiro, ordena a retirada dos cartazes de divulgação do filme e a proibição de sua exibição:
Expondo alguns cinematógrafos desta capital, como por exemplo o que funciona na rua do Marechal Floriano, proximo a Igreja de Santa Rita, grandes cartazes com um marinheiro pintado e com o dístico “João Candido”, proximamente! – e sendo altamente inconveniente a disciplina na Marinha não só estes cartazes em exposição como a exhibição das fitas que lembram os tristes episódios dos motins ultimamente occorridos entre os marinheiros; rogo vossas ordens para que sejam retirados aquelles cartazes e prohibida a exhibição das fitas correspondentes31.
Ao lado esquerdo do texto datilografado assinado pelo Capitão de Mar e Guerra, uma rubrica manuscrita assinada por Belisário Távora se limitou a dar encaminhamento interno ao caso: “Comunique-se ao Dr. 2º. Delº. [Delegado] Auxiliar para providencias”, responsável pela censura a diversões públicas.
Podemos pontuar a preocupação do militar na veiculação massiva da imagem de João Cândido como herói, sendo este visto como uma figura a ser apagada e não exaltada. Há comprovação de que alguns sujeitos – que inclusive extrapolavam a ação policial – investiram em um esquecimento ativo pelo apagamento dos rastros da recente Revolta (RICOEUR, 2007, p. 452-457), tentando enquadrar oficialmente a Revolta da Chibata como um não evento (TROUILLOT, 2005, p. 70-107). Assim, a possibilidade do engajamento por parte do público com a figura de um herói negro precisava ser previamente eliminada, pois era percebida como um perigo ou, parafraseando o Capitão de Mar e Guerra, “altamente inconveniente”.
Há indícios de que essa possibilidade foi motivo de preocupação desde o desenrolar da própria revolta. Na edição de 27 de novembro de 1910, os jornais Correio da Manhã e O Paiz noticiaram a prisão de fotógrafos e cinegrafistas que haviam abordado alguns marinheiros amotinados do São Paulo, com Correio da Manhã enfatizando que a prisão foi efetuada por sentinelas do Arsenal da Marinha32. Podemos extrair disso que a ordem da prisão foi dada pelo oficialato da Marinha e que se tratou de (mais uma) invasão de competência. Nesse caso, a intenção foi malograda e as imagens de João Cândido e dos marinheiros revoltosos circularam amplamente pela imprensa e pelos cinematógrafos nas semanas seguintes.
Desse modo, podemos constatar que Spartaco conseguiu catalisar as qualidades de herói tanto na narrativa quanto nos anúncios do filme, sendo sua construção midiática passível de ser associada à de João Cândido através de diversos elementos: a personificação desde o início do filme em contraposição à representação do movimento dos marinheiros como uma “onda negra”; a exaltação do corpo, da força física e do comportamento de Spartaco em direta antítese à figura de João Cândido, alvo de uma comicidade de cunho racista por parte de segmentos da imprensa da época, com sua capacidade intelectual e de liderança questionada em diversos momentos, além de sua conduta ter sido caracterizada como excessiva e mesmo destemperada em vários artigos e editoriais. O “embaçamento” entre o herói fílmico e o herói popularizado pela então recente Revolta ganha uma dimensão de esquecimento de projeto (RICOEUR, 2007), na medida em que “a consciência moral busca neles seu arsenal de desculpas para sua estratégia de desculpação” (RICOEUR, 2007, p. 454), em uma postura defensiva por parte dos sujeitos que investem nesse esquecimento.
Anistias esvaziadas e conspirações das memórias impedidas: embranquecimento da experiência épica na Belle Époque carioca
No filme, a conspiração contra o sucesso da revolta é testemunhada por Idamis (irmã de Spartaco). Noricus combina com dois homens o assassinato de Heronius, conselheiro do imperador, para que este seja apunhalado e a culpa seja atribuída ao herói. Em uma montagem paralela, são mostrados o assassinato de Heronius, a prisão de Spartaco e o rapto de Idamis pelos conspiradores, que a trancam em uma cela no Coliseu.
Heronius é atacado no jardim de seu palácio pelas costas por um dos conspiradores. Em seguida, Noricus coloca a espada de Spartaco sobre o cadáver e envia um bilhete ao herói, falsamente atribuído a Heronius: “Saudações! Gostaria de ter uma conversa com você e estou esperando no meu jardim”33. Narona (filha de Crassus e namorada de Spartaco) é alertada por um dos conspiradores de que Spartaco atentaria contra a vida de Heronius, enquanto o herói cai na armadilha: ao mexer no cadáver de Heronius, constata seu óbito e, neste momento, um dos conspiradores e Narona testemunham a cena. Narona grita em desespero, e o conspirador acusa falsamente Spartaco, chamando pelos guardas, que o prendem e o conduzem até Crassus.
Em seguida, o corpo de Heronius é levado em um cortejo pelos soldados romanos e pela população, que clamam por vingança. Em um julgamento sumário, o conspirador se dirige ao imperador e pergunta: “Como é possível duvidar de sua culpa? Não bastam seu manto e sua espada manchados de sangue?”. Spartaco se dirige a Narona e implora: “Ah, Narona, onde está a fé que você tinha em mim?”, sendo renegado por ela. O herói é condenado à morte e preso no Coliseu, onde ouve os gritos de Idamis. Consegue libertá-la e a conduz até o imperador com a ajuda de Narona. Diante dele, o herói prova sua inocência com o testemunho de Idamis, que desmascara Noricus. Como recompensa, Spartaco é inocentado e Noricus é jogado aos leões.
O plot narrativo da obra é bastante semelhante aos desdobramentos da Revolta da Chibata, massivamente acompanhados pela imprensa à época. Exceto pelo desenlace, a conspiração presente no filme e o julgamento de Spartaco remetem àquele operado em torno da figura de João Cândido e da participação dos marinheiros na Revolta.
Assim como o herói do filme, a Revolta da Chibata também foi alvo de uma conspiração, de uma falsa anistia e de um julgamento falacioso, amplamente abordados pela historiografia (MOREL, 2009a; SILVA, 1982; NASCIMENTO, 2010; 2016). Enquanto no filme a anistia foi a consagração da vitória dos gladiadores escravizados, aquela concedida a João Cândido e aos marinheiros rebeldes em 1910 foi permeada de disputas e contradições. Após um amplo debate no Parlamento entre correntes representadas por Rui Barbosa – a favor da anistia – e por Irineu Machado – contra e com um discurso muito virulento dirigido aos rebeldes -, a anistia foi concedida mediante uma onda de insatisfação e de ressentimento, cuja ressonância foi amplificada pela cobertura da imprensa. Uma interessante síntese desse clima pode ser conferida abaixo:
É possível ver a tensão expressa nos gestos dos deputados, mostrados bem exaltados diante dos canhões dos torpedeiros apontados em sua direção. O medo no título da charge quanto a um possível bombardeio da capital pelos revoltosos pode ser interpretado a partir de um viés racializado, na medida em que os protagonistas da Revolta foram enquadrados pela cobertura da imprensa. Recordamos o fato apontado por Nascimento (2010, p. 15) a respeito de uma percepção generalizada entre as classes superiores e médias na Belle Époque sobre a relação entre homens negros, “atraso” e falta de civilidade. Nesse contexto, homens brancos das classes superiores (políticos, no caso) são representados como afrontados pelos sentimentos de medo e de frustração diante do sucesso por parte dos marinheiros negros.
O ressentimento advindo da anistia assinada no final de novembro de 1910 pelo Parlamento não ficaria sem resposta. Uma segunda revolta foi duramente reprimida com a prisão dos líderes do primeiro motim na Ilha das Cobras, seguida por um massacre do qual apenas João Cândido e outro marinheiro sairiam vivos (MOREL, 2009a, p. 161-163; NASCIMENTO, 2010, p. 26; ALMEIDA, 2011, p. 62-63). Em seguida, marinheiros que haviam participado do motim foram enviados à força pelo navio Satélite para o norte do país, viagem na qual muitos foram alvo de execuções sumárias e outros de degredo (MOREL, 2009a, p. 177-188; ALMEIDA, 2011, p. 62).
Esse sentimento de vingança também teve ecos na imprensa. Reproduzimos abaixo duas charges que o simbolizam e o referendam:
Além do viés racista das charges, pela forma como retrataram o corpo negro e se referiram a ele, situando-as no horizonte das “narrativas cômicas racistas [, que se] tornam uma máscara conveniente de projeção de uma política colonizadora que faz da raça um dos critérios centrais de discriminação” (CAMINHA, 2020, p. 129), o riso pretendido por elas é amargo, permeado de ressentimento pelo protagonismo de homens negros na cena pública. Na visão dos que acionavam esse ressentimento, era necessário apagar a presença deles, daí o alívio de enfiá-los – mesmo que simbolicamente – em um cesto carregado pelo Diabo. Essa expulsão institucional ironizada nas charges foi acompanhada por outra simbólica da cena pública da Belle Époque. É nesse ponto que atua a compensação psíquica (ADLER, 1955) pretendida no consumo da figura de Spartaco.
Na obra, a dimensão militar da revolta é acentuada na articulação entre o protagonista e os gladiadores após a ameaça de prisão por parte do imperador Crassus, que queria vê-lo lutar contra seu conterrâneo e amigo Artemon. Os guardas romanos se recusam a prender Spartaco e aderem à sua convocação (“Sigam-me! Vou guiá-los à liberdade”34). Em um momento seguinte, as tropas de escravos lideradas por Spartaco aparecem encurraladas em um monte pelo exército romano, quando aquele descobre que os galhos de vinha poderiam suportar o peso dos escravos em uma eventual fuga e tem a ideia de usá-las na descida do monte.
O plano é bem-sucedido; os gladiadores escravos conseguem fugir do cerco ao monte e encurralam o exército romano que, totalmente surpreendido pela iniciativa das tropas lideradas por Spartaco, sucumbe à revolta de forma humilhante, visto que muitos soldados romanos correm para fugir dos rebeldes e os que tentam lutar são mortos ou feridos.
Assim, a vitória de Spartaco e dos gladiadores na revolta contra os romanos e a superioridade técnica demonstrada por eles na narrativa operam como a substituição dessa primazia técnica dos marinheiros no lidar com os dreadnoughts e de sua vitória em abolir a chibata da Marinha. O consumo desse herói pode ser lido como um mecanismo de compensação (ADLER, 1955) para os sentimentos de frustração e de inferioridade advindos com a humilhação pública dos oficiais da Marinha devido à anistia concedida pelo governo Hermes da Fonseca e com a morte de alguns oficiais durante a Revolta.
Em diversas ocasiões, esses afetos foram publicamente admitidos pelos segmentos militares e seus representantes civis. A título de exemplo, por ocasião de um debate na Câmara dos Deputados a respeito do julgamento de João Cândido, o deputado Mauricio de Lacerda (1912, p. 189) – representante dos militares – assim se manifestou sobre o líder da revolta: “Generosa féra! Cuja generosidade foi paga pelo preço de nossa vergonha, pela dignidade da Nação, amortalhada na amnistia”35.
Sobre esse último tópico, é interessante observarmos o desenho In Memoriam Baptista das Neves e seus companheiros, veiculado na capa do Jornal do Brasil na edição de 25 de novembro de 191036. Simbolizando o luto em torno da morte do comandante de Minas Gerais, o desenho mostra um homem jovem branco depositando uma coroa de flores e, ao fundo, um torpedeiro com um mastro que se assemelha a uma cruz. Sendo um desenho e não uma charge – um marcador de distinção -, este faz apelo a um sentimento de compaixão por parte dos leitores e de identificação com o oficial morto. E essa compaixão é construída de modo antitético em relação às figuras de João Cândido e dos marinheiros negros, apontados como os responsáveis por essas mortes e representados como bárbaros por parte da imprensa.
Esse tipo de opinião reapareceria por ocasião do final do julgamento do líder dos amotinados em 1912.
Embora comemorada por parte da imprensa (MOREL, 2009a, p. 217-220), outra parcela considerável zombou do veredicto proferido pelo tribunal militar, considerando a absolvição dos revoltosos de 1910 uma afronta às instituições, tal como pode ser depreendido da charge acima. Novamente, o ressentimento contra João Cândido e a Revolta da Chibata foi acionado de modo que as causas que a originaram fossem suplantadas por uma imagem teratológica em torno dos rebeldes. A anistia e a inversão de hierarquias na época da revolta sairiam condenadas, sendo mais um ponto de contato com a narrativa apresentada por Spartaco.
Moretti (1996, p. 13-14) recorda a contradição entre a experiência do épico e a modernidade. Nela, o herói épico é enquadrado pela modernidade como bárbaro/selvagem. No caso do consumo de Spartaco, podemos afirmar que essa dimensão bárbara da experiência do herói moderno aparece bastante atenuada na narrativa, podendo ser lida como uma atualização que ameniza o perigo representado pelos marinheiros negros na visão da elite e dos setores médios.
Além disso, a humilhação dos generais e dos soldados romanos no filme, a partir da consagração de Spartaco e de seu exército, pode ser vista, no momento do consumo, como uma projeção em um passado distante da inversão de hierarquias provocada pelo sucesso da revolta contra a chibata e, com isso, proporcionava, via consumo imagético, um alívio do medo branco (AZEVEDO, 2004) quanto ao potencial de rebelião por parte da população negra no pós-Abolição.
Nesse sentido, podemos inferir que a popularização do gênero épico pretendida pelo campo literário brasileiro ao longo do século XIX (FREITAS, 2016, p. 48-49) foi ironicamente alcançada por um filme estrangeiro. As potencialidades e a pedagogia do então novo meio massivo permitiram a disseminação de uma narrativa na qual o herói branco era o responsável por libertar as massas escravizadas.
Em suma, a anistia e o final redentor do herói protagonista em Spartaco funcionam como a conciliação, no plano da ficção, das diferenças ressaltadas e bastante exploradas no caso da Revolta da Chibata. Assim, o ressentimento e a frustração de parte do público após o desenlace da Revolta e do julgamento de seus líderes são relidos por um duplo embranquecido. Nesse contexto, o reconhecimento, como ato mnemônico (RICOEUR, 2007, p. 438), é deslocado para a figura do herói branco no plano da ficção. Com isso, a mudança social pretendida pelos marinheiros revoltosos sairia amortecida pelo prazer proporcionado pelo consumo da imagem desse herói via cinema e, finalmente, pelo reposicionamento desse homem branco – Spartaco na ficção, oficiais da Marinha após a Revolta – na hierarquia social, além do apagamento do protagonismo do homem negro como um possível herói nacional.
Considerações finais
Em mais de um século, a figura de Spartaco teve ampla projeção midiática através do cinema e da televisão, com numerosas adaptações já analisadas por uma vasta historiografia (DAVIS, 2000; MUSCIO, 2013; LAPEÑA MARCHENA, 2015; SPÄTH; THRÖLER, 2013). Sendo um herói bastante explorado pela imaginação moderna, sua circulação contribuiu para uma popularização da história da Antiguidade Clássica em vários setores da população de diferentes continentes, que dificilmente teriam acesso à discussão acadêmica em torno dos textos clássicos.
Por sua vez, é possível constatar algumas ocasiões em que as realizações dos marinheiros revoltosos de 1910 foram retomadas na cena pública, como em obras audiovisuais, peças de teatro, livros e músicas. Almeida (2011), Morel (2008; 2009b) e Nascimento (2010, p. 29-35) fizeram interessantes inventários sobre a circulação dessas memórias nas culturas popular, midiática e letrada. Além dos produtos abordados por esses autores, destacamos os documentários Abolição, de Zózimo Bulbul (1988) – que inclui uma entrevista de Edmar Morel sobre a Revolta da Chibata -, e João Cândido e a luta pelos direitos humanos, de Tania Quaresma (2008). Também recordamos projetos que, embora não tenham sido levados a cabo, demonstram a força e o impacto desse movimento, como o documentário pensado por Sílvio Tendler nos anos 1960, mencionado por Marco Morel (2009b, p. 16) na reedição da obra de seu avô.
Ao longo deste artigo, nossa intenção foi se debruçar no encontro entre as figuras de João Cândido e Spartaco e a presença delas na cultura midiática veiculada durante a Primeira República, bem como as formas de hierarquização racial advindas desse encontro. É importante sublinhar que a Revolta da Chibata, como um não evento (TROUILLOT, 1995), foi uma estratégia parcialmente bem-sucedida, na medida em que foi rememorada poucas vezes nas décadas seguintes até o lançamento do livro de Morel, em 1959. O autor chega a mencionar que João Cândido estava esquecido nos anos 1920 e 1930 (MOREL, 2009a, p. 236-239), ao que Almeida (2011, p. 67) adicionou: “se já era difícil tratar do movimento dos marinheiros até o início da década de 1930, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) o assunto parece ter desaparecido das livrarias e da vida pública”.
Desse modo, investigar os vestígios em torno dos apagamentos e do investimento ativo de numerosos sujeitos no esquecimento (RICOEUR, 2007, p. 452-457) dessa revolta mostrou-se relevante para a compreensão das hierarquias racializadas no período focado.
Quase uma década após a Revolta, Lima Barreto (2010) ironizaria os militares no conto satírico “Coisas parlamentares”37. Temido por seus colegas, um deputado militar sobe à tribuna do parlamento e faz um discurso completamente insólito, trocando referências entre os exércitos brasileiro e o da Roma Antiga. Após falar em “centuriões”, “fabri”, “tribunos” e “manípulos”, termina alvo do riso generalizado e conclui: “li a coisa num livro; mas esqueci-me de adaptar, a ponto de não me lembrar de que não temos mais centuriões etc. Para outra vez, faço a coisa mais limpa” (BARRETO, 2010, p. 425).
Ao expor o medo de ser alvo de sátira por parte dos militares, o escritor sintetizou a apropriação indevida dos referentes caros à cultura clássica por parte do debate no período. Intuitivamente, explorou os vínculos e as continuidades entre esse passado clássico e as atualidades. Praticamente um deslocamento de Spartaco pelas sombras dos acontecimentos mais recentes e o reconhecimento das contradições nos discursos racializados de seus contemporâneos.
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1
Morel (2009a, p. 207-227) destacou o tom revanchista do julgamento contra os líderes da revolta, que desconsiderou a anistia concedida pelo governo em dezembro de 1910, alegando o estopim de uma segunda revolta, cuja única fonte é o relato dos oficiais da Marinha (NASCIMENTO, 2016).
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2
Adotamos o nome consagrado a partir da publicação do livro homônimo do jornalista e historiador Edmar Morel em 1959.
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3
Nascimento (2016, p. 155-156) argumenta que a chibata era diretamente associada à escravidão pelos marinheiros no momento da revolta.
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4
Apesar de João Cândido ser um homem livre à época da revolta, a conexão com as experiências referentes à escravidão era muito próxima e recente a ele, aos marinheiros revoltosos (MOREL, 2009a; NASCIMENTO, 2016) e também ao público de cinema da época, de modo que isso nos permite o paralelo entre ele e Spartaco.
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5
Por exemplo, através da exploração do caso de duas crianças moradoras do Morro do Castelo mortas pelas granadas disparadas dos couraçados, cujas fotos foram divulgadas por vários periódicos, como Correio da Manhã, Correio Paulistano, Careta e Fon-fon, e abordado por Morel (2008, p. 50).
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6
Não é nossa intenção realizar uma revisão historiográfica sobre a Revolta da Chibata em si. Apenas utilizaremos a historiografia disponível sobre o tema para dar conta da questão e dos argumentos que lançamos.
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7
Além disso, não se trata de superdimensionar o papel de um filme isoladamente, mas somente de o inserir em um circuito maior de produção do esquecimento.
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8
Encontrei dezoito filmes cujo tema era a escravidão na Antiguidade Clássica, em um levantamento feito nos periódicos Gazeta de Notícias, Jornal do Brasil e O Paiz, entre 1907 e 1916 (LAPERA, 2023).
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9
Um intervalo de pouco mais de um ano é algo que pode ser considerado historicamente recentíssimo diante dessa temporalidade. Agradecemos ao/à parecerista anônimo/a que destacou esse aspecto quanto à nossa análise.
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10
Eis a lista do material encontrado: A revolta da esquadra (William Auler, 1910), Revolta no Rio ([s.a.], 1910), A vida de João Cândido (Alberto Botelho, 1912), Revolta da esquadra na baía do Rio ([s.a.], 1910), A Revolta do Batalhão Naval ([s.a.], 1910), Revolta do Batalhão Naval e a Ilha das Cobras antes da revolução ([s.a.], 1910) e A revolta dos marinheiros (Paulino Botelho, 1910).
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11
Uma cópia do filme, da qual extraímos alguns elementos para nossa análise, está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3PhWK6JMmz8. Acesso em: 21 mar. 2023.
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12
Trecho aos 0’28 do filme. Trad. livre do autor. Todas as legendas do filme expostas ao longo do artigo foram traduzidas a partir do inglês.
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13
É interessante destacar uma nota publicada no jornal A Província, na qual se explica que algumas famílias pediram diretamente ao responsável pela exibição de Spartaco que o fizesse mais uma vez, já que haviam perdido as primeiras exibições no Theatro Santa Isabel, o que é mais um vestígio do sucesso comercial do filme. Cf.: Diversões. A Província, Recife, p. 1, 16 mar. 1914. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=128066_01&pesq=Spartaco&pasta=ano%20191&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=27314. Acesso em: 22 jun. 2022.
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14
Nesse sentido, Recife mostrou-se um caso bem interessante que conseguimos mapear com maior precisão. O filme estreou no Theatro Santa Isabel (região central) em 12 de março de 1914, tendo ficado aproximadamente 10 dias em cartaz. Entre maio e julho de 1914, encontramos registros de projeções nos cinemas Polytheama (região central), Popular (região central afastada da área então reformada), Variedades (Olinda, cidade próxima à capital pernambucana) e Santo Amaro (no bairro homônimo). Em outubro e novembro de 1914, o cinema Royal publicou anúncios de que exibiria Spartaco em algum momento desse período. Finalmente, em 1915, houve reprises nos cinemas High Life (Casa Amarela) e Victória, o que indica que o filme alcançou diferentes estratos dos setores médios a partir dessa lógica de disseminação pelo espaço urbano recifense. Para a relação entre cinematógrafos, localização na cidade e público por recorte de classe social, conferir Silva (2018).
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15
O anúncio do Cinema Theatro Phenix veiculado no jornal O Paiz no dia da estreia do filme faz menção a vários marcadores de distinção, tal como “grande orchestra na sala de exibições”, apresenta-se como “o mais amplo e luxuoso cinema da America do Sul” e ressalta sua localização em frente ao prédio do Jockey Club para, finalmente, enfatizar que o “nosso Theatro, depois do Municipal, pelo seu luxo, riqueza, conforto e belleza, é a melhor sala de espectaculos desta capital e não um armazem arvorado em sala de diversões”. Cf. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 12, 16 mar. 1914. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=178691_04&pasta=ano%20191&pesq=Spartaco&pagfis=22004. Acesso em: 22 jun. 2022.
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16
A título de exemplo, reproduzimos parte do conteúdo do anúncio do Theatro Santa Isabel, onde o filme estreou em Recife, publicado em A Província, p. 2, 12 mar. 1914: “N.B. – Não será permitida a entrada no recinto antes de terminada cada sessão da ’soirée’, a fim de evitar-se atropello e má acomodação do respeitavel publico. Pede-se, pois, encarecidamente aos senhores espectadores que, terminada cada sessão, deixem seus logares, por já estarem vendidos para a sessão immediata”. Dela, podemos deduzir que era esperado do público um padrão de comportamento caro aos espetáculos teatrais, não somente pelo fato de a exibição cinematográfica ocorrer nesse espaço, mas também dentro do horizonte de expectativas de um público pagante com um grau razoável de engajamento nesse tipo de diversão. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=128066_01&pesq=Spartaco&pasta=ano%20191&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=27275. Acesso em: 22 jun. 2022.
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17
Chronica theatral. A Notícia, Rio de Janeiro, p. 3, 18-19 mar. 1914. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=830380&pasta=ano%20191&pesq=Spartaco&pagfis=21175. Acesso em: 22 jun. 2022.
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18
Trecho aos 1’06 do filme.
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19
Trecho aos 1’45 do filme.
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20
A Esquadra Revoltada. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 2. ed., p. 1, 23 nov. 1910.
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21
Essa ideia equivocada a respeito da falta de capacidade de operar os torpedeiros e de organização por parte dos marinheiros revoltosos foi largamente rebatida por Morel (2009a), Nascimento (2016, p. 153; 2019, p. 390-397) e Almeida (2010), inclusive apontando a dimensão racista nessa desqualificação.
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22
Uma revolta de marinheiros da esquadra. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 1, 23 nov. 1910.
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23
Nascimento (2016, p. 162-163) e Almeida (2010, p. 93-94) destacam que, embora houvesse diversidade na composição étnico-racial dos marinheiros, a maioria era de fato negra e enquadrada dessa forma pela imprensa contemporânea.
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24
Alguns navios da esquadra revoltam-se. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 1, 23 nov. 1910.
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25
Tradução do letreiro aos 43’46 do filme.
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26
Morel (2009b, p. 15) relacionou essa imagem do líder da revolta ao estereótipo do malandro.
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27
Nascimento (2016, p. 156) analisa que o oficialato da Marinha era majoritariamente branco e pertencente às classes superiores à época da revolta e conclui: “seus privilégios e imagens foram corrompidos naquele momento por marinheiros negros, pobres e de parca instrução”.
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28
Legenda aos 40’32 do filme.
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29
Cinematographos. O Paiz, p. 5, 16 mar. 1914. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/do-creader.aspx?bib=178691_04&pasta=ano%20191&pesq=Spartaco&pagfis=21997. Acesso em: 22 jun. 2022.
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30
Idem, ibidem.
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31
Arquivo Nacional, Gifi – Fundo Ministério da Justiça e Negócios Interiores, cx. 6C-378.
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32
Os photographos são presos. Correio da Manhã, p. 1, 27 nov. 1910; A prisão de photographos. O Paiz, p. 2, 27 nov. 1910.
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33
Tradução do letreiro aos 54’17 do filme.
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34
Tradução do letreiro aos 30’34 do filme.
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35
Annaes da Camara dos Deputados, sessão de 2 de outubro de 1912, p. 189. Disponível em: https://me-moria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=060917_03&pasta=ano%20191&pesq=Jo%C3%A3o%20Candido&pagfis=23401. Acesso em: 19 mar. 2023.
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36
A imagem pode ser visualizada no link https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_03&pasta=ano%20191&pesq=Jo%C3%A3o%20Candido&pagfis=5282. Acesso em: 19 mar. 2023. Não reproduzimos o desenho no corpo do artigo por se tratar de material protegido por copyright. Fonte: Jornal do Brasil, p. 1, 25 nov. 1910.
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37
O conto foi originalmente publicado em outubro de 1919 (BARRETO, 2010, p. 563).
Agradecimentos
Aos pareceristas do artigo, pelas sugestões para a sua melhoria. Ao Prof. Dr. Irineu Corrêa, pelas indicações bibliográficas sobre a obra de Alfred Adler. Aos funcionários da Fundação Biblioteca Nacional e do Arquivo Nacional, pelo árduo trabalho diário e pela atenção a este pesquisador. À Luiza Conde pela revisão de minha tradução para o inglês. Às minhas amigas Marina Caminha, Luiza Conde, Christianne de Jesus e Juliana Amorim Silva e ao meu amigo Felipe Davson P. da Silva, pelas trocas intelectuais ao longo de todo o processo de pesquisa. Pelo afeto, não há como agradecer, apenas viver.
Referências
- ADLER, Alfred. The Individual Psychology of Alfred Adler: A Systematic Presentation in Selections from His Writings. Organização e comentários: Heinz e Rowena Ansbacher. Nova Iorque: Basic Books, 1955.
- ALMEIDA, Sílvia Capanema Pereira de. Vidas de marinheiro no Brasil republicano: identidades, corpos e lideranças da revolta de 1910. Antíteses, v. 3, n. esp., p. 90-114, dez. 2010.
- ALMEIDA, Sílvia Capanema Pereira de. Do marinheiro João Cândido ao Almirante Negro: conflitos memoriais na construção do herói de uma revolta centenária. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 31, n. 61, p. 61-84, 2011.
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Editores responsáveis: Vinícius Liebel e Silvia Liebel
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
25 Abr 2023 -
Aceito
31 Out 2023