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Imagem, existência e autenticidade no contexto dos social media: uma reflexão hermenêutico-fenomenológica

Image, existence and authenticity in the age of social media: an hermeneutical-phenomenological aproach

RESUMO:

Neste texto, procurar-se-á defender que os Social Media podem ser compreendidos como um conjunto de plataformas digitais potenciadoras de uma “imagem da existência” que, mais do que estar sujeita à vontade do seu utilizador, se mostra capaz de nele criar uma ideia de si, assim como do seu “mundo-em-torno”, a qual se encontra já tecnicamente circunscrita. Tomando o pensamento fenomenológico como pano de fundo, reflectir-se-á sobre a dimensão hermenêutica da criação de uma “imagem da existência” que é instaurada através dos Social Media. Procurar-se-á por essa via construir uma problematização fenomenológica do impacto que os Social Media possuem sobre a interpretação do ser humano, delimitando o modo como essas plataformas se revelam capazes de influenciar a concepção que este constrói do “mundo” e da sua própria existência, tornando-as “inautênticas”.

Palavras-chave:
Filosofia da Técnica/Tecnologia; Heidegger; Ge-stell; Social Media; Imagem da Existência

ABSTRACT:

Throughout this text, we will try to comprehend how Social Media can be understood as a set of digital platforms that are able to bias human understanding towards the creation of an “image of existence”. An “image” that, more than being subjected to its users will, is capable of creating on them a specific idea of self as well as of their worldview, an idea that is already technologically predetermined. Taking the phenomenological tradition as its fundamental thinking ground, in this article we will think about the hermeneutical dimension that is at stake in the creation of an “image of existence” such as the one that is empowered by Social Media platforms and mobile Apps. We will pay special attention to the phenomenological problems inherent to the impact that Social Media has on human interpretation and understanding of himself as well as of its world, while making them “inauthentic”.

Keywords:
Philosophy of Technology; Heidegger; Ge-stell; Social Media; Image of Existence

1.

O filme Blade Runner 2049 conta a história de K, um replicant cuja função consiste em reformar outros replicants renegados do paradigma operatório que foi sobre eles biologicamente imposto. K2 2 Para além da clara referência a Philip K. Dick - cujo Do Android’s Dream of Electronic Sheep? (1968) inspira o universo original de Blade Runner apresentado por Ridley Scott, em 1984 - o nome de K parece querer também fazer uma referência à personagem de Joseph K, n’O Processo (1925) de Franz Kafka. é odiado pela comunidade humana, devido à sua condição biológica de replicant, sendo também odiado pela comunidade replicant, por ser um Blade Runner, um skinner, caçador daqueles que pertencem à sua própria espécie. As nuances de film noir que caracterizam o ambiente criado por Denis Villeneuve são cimentadas por Joi, a namorada virtual de K. Um dispositivo de inteligência artificial que se torna presente para K, por via de uma projecção halográfica. Joi (alegria), representa o contraponto do mundo frio e mecanicista pelo qual se define a vida de K; ela é apresentada no início do filme como uma resposta tecnológica que tem por intuito apaziguar a dura existência de K, através de uma “imagem”, um artifício audiovisual construído sob o estereotipo misógino de uma mulher subserviente que oferece a K “tudo aquilo que ele quer ouvir e ver.3 3 Everything you want to hear/see é o slogan que, no filme, acompanha os vários outdoors que publicitam Joi como a companheira perfeita.

Na relação que K estabelece com Joi, este artigo compreende uma metáfora para a relação que a humanidade tem vindo a estabelecer com os Social Media, no decorrer das duas primeiras décadas do século XXI. Tal como Joi, também os Social Media podem ser compreendidos como um paliativo tecnológico que incide sobre a dor que advém da dureza da existência, pois também eles se mostram capazes de transformar a concepção que o ser humano faz de si e do “mundo” onde se encontra lançado, ao filtrar as experiências que este daí retira. As frustrações e angústias do quotidiano, fundamentais para a construção de uma experiência “autêntica” do ser que se manifesta no humano, são descartadas em prol de uma representação “inautêntica”, previamente ensaiada, e apropriada pelo ser humano por via da ilusão criada pelo retorno imediato do reconhecimento superficial que se manifesta com os likes e fav’s que caracterizam as principais interacções estabelecidas nesse tipo de plataformas.

Nesse sentido, e muito embora não possam ser eles próprios compreendidos como uma “imagem”, neste texto, ir-se-á defender que os Social Media se constituem como um conjunto de plataformas digitais potenciadoras de uma “imagem da existência” que, mais do que estar sujeita à vontade do seu utilizador, se mostra capaz de nele criar uma ideia de si, assim como do seu “mundo-em-torno”, a qual se encontra já tecnicamente circunscrita. O problema que neste texto se coloca, com a designação “imagem da existência”, é então o da perda da “autenticidade”, da queda do ser humano numa subjectividade tecnologicamente potenciada, que o encerra numa existência “fáctica”, indiferente aos vários modos como o ser se manifesta nesse “aí” que é o ser humano (Dasein).

Este texto procura, assim, numa primeira fase, reflectir sobre a dimensão hermenêutica da criação de uma “imagem da existência” através dos Social Media. Tomando o pensamento fenomenológico - sobretudo, mas não apenas - na sua reformulação heideggeriana como o seu principal pano de fundo, a interpretação dos conceitos de “imagem” e de “técnica moderna” é aqui feita na tentativa de determinar a objectivação da existência que se constrói através das plataformas de Social Media como uma “imagem” para, a partir daí, e numa segunda fase, demonstrar como essa “imagem” poderá compreender-se como o resultado de uma “com-posição” (Ge-stell) da existência humana como “representação”. Com este texto, procurar-se-á então construir uma problematização fenomenológica do impacto que os Social Media possuem sobre a interpretação do ser humano, delimitando o modo como essas plataformas se mostram capazes de influenciar a concepção que este constrói do “mundo” e da sua própria existência, tornando-as “inautênticas”.

2.

Em O Tempo da Imagem do Mundo, Martin Heidegger propõe uma interpretação para a “mundividência” que caracteriza a ciência moderna; uma proposta de reflexão onde se destaca o carácter representativo do “mundo” que a ciência acaba por determinar como uma “imagem”. Embora faça referência à técnica de máquinas, à estética, à cultura e à crescente desdivinização, como alguns dos principais fenómenos pelos quais se impulsiona a “mundividência” moderna, em O Tempo da Imagem do Mundo, Heidegger vem enfatizar a concepção imagética do “mundo” como o resultado do conhecimento científico que, a par da técnica moderna, compreende como o paradigma orientador do pensamento desse período.4 4 Embora Heidegger aponte a essência da ciência moderna como o principal impulsionador do pensamento moderno, o autor não descarta a importância desempenhada pela técnica moderna na determinação desse mesmo pensamento, chegando mesmo a criar expectativa sobre a importância que esse tema irá desempenhar, nos seus trabalhos mais tardios. Logo nos primeiros parágrafos de O Tempo da Imagem do Mundo, assevera Heidegger (2002, p. 97): “A técnica de máquinas permanece o rebento até agora mais visível da essência da técnica moderna, a qual é idêntica à essência da metafísica moderna.” Ao atentar sobre a ciência moderna, destacando-a, na sua essência, das suas circunscrições clássica e medieval, Heidegger compreende que a concepção do “mundo” como “imagem” que é por ela construída, apenas se torna possível mediante uma objectivação do ente que é alvo dos seus estudos, i.e., a partir de uma representação que determina o ente como um “objecto”.

De acordo com Heidegger (2002HEIDEGGER, M. O Tempo da Imagem do Mundo [1938]. In: HEIDEGGER, M. Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 97-138.), foi sobretudo graças a essa concepção objectiva do ente, na sua representação como “imagem” - cujas origens o autor remete para o pensamento cartesiano5 5 Veja-se, a esse respeito: BORGES-DUARTE, 1998, p. 519-521. - que se possibilitou a concepção da ciência como “investigação”; a concepção pela qual hoje se circunscreve o conhecimento científico desenvolvido em contexto académico. Na leitura de Heidegger, “imagem” delimita aquela que é a concepção objectiva do “mundo” criada por cientistas e investigadores; uma representação que o dispõe como um objecto susceptível à análise feita por um sujeito (cientista/investigador) capaz de o compreender como tal. No entanto, sobre a objectividade positiva que se encontra pressuposta na “imagem do mundo” cientificamente delimitada, o autor encontra uma fundamentação antropológica que vem enraizar a ciência moderna sob a percepção do sujeito representador. Nas palavras de Heidegger (2002HEIDEGGER, M. O Tempo da Imagem do Mundo [1938]. In: HEIDEGGER, M. Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 97-138., p. 112-113):

Onde o mundo se torna imagem, o ente na totalidade está estabelecido como aquilo para que o homem se prepara, como aquilo que […] ele quer trazer para e ter diante de si e, assim, pôr diante de si num sentido decisivo. Imagem do mundo, compreendida essencialmente, não quer, por isso, dizer uma imagem que se faz do mundo, mas o mundo concebido como imagem. O ente na totalidade é agora tomado de tal modo que apenas e só é algo que é, na medida em que é posto pelo homem representador-elaborador.

O problema para o qual Heidegger procura chamar a atenção com o seu texto manifesta-se nessa fundamentação subjectiva da representação do “mundo” como “objecto”. Segundo Heidegger, a objectividade positiva da representação que se constrói, aquando da determinação de uma “imagem do mundo”, é apenas possível na medida em que existe um sujeito prévio (subjectum), capaz de compreender nessa mesma “imagem” o ente que ela representa. A ciência moderna, na medida em que constrói uma “imagem do mundo”, possui por isso uma fundamentação antropológica, uma raiz subjectiva que, muito embora proporcione uma representação exacta dos objectos, não permite, contudo, “desencobrir” a verdade (aletheia) que se “encobre” nos entes com os quais o “mundo” se constitui como tal. Ao criar a sua delimitação através de uma “imagem”, a ciência moderna determina, por isso, uma concepção do “mundo” enquanto representação, sobre a qual Heidegger considera que se tem vindo a fundamentar todo o pensamento moderno.

A “imagem do mundo”, muito embora exacta, apresenta uma compreensão da verdade que se esconde nos entes e que se encontra, contudo, enraizada sobre uma concepção subjectiva do “mundo”. Uma “mundividência” que, por se encontrar antropologicamente determinada, não se mostra capaz de representar o “mundo” aletheiologicamente, i.e., no seu ser. Assinala Heidegger (2002HEIDEGGER, M. O Tempo da Imagem do Mundo [1938]. In: HEIDEGGER, M. Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 97-138., p. 117):

Que mesmo assim a palavra mundividência se afirme como o nome para a posição do homem no meio do ente, tal fornece a prova de quão decisivamente o mundo se tornou imagem, assim que o homem trouxe a sua vida, enquanto subjectum, para a primazia do centro de referência. Tal significa que o ente só vale como algo que é, enquanto e na medida em que está envolvido e remetido para esta vida, ou seja, na medida em que é vivenciado [er-lebt] e se torna vivência [Erlebnis].

É ainda nesse sentido que, ao atentar sobre o funcionamento dos algoritmos que regem a interacção que o ser humano estabelece com os Social Media, se torna também possível compreender, nessas plataformas, um processo de objectivação, de construção de uma representação da existência humana como uma “imagem” que, embora com as devidas reservas, poderá ser interpretado como análogo daquele que Heidegger compreende inerente aos processos de representação científica do “mundo”.

Aquando da utilização das plataformas de Social Media, o utilizador é convidado a construir com elas um “perfil”, uma representação de si que procura figurar - i.e. representar digitalmente - a sua existência. A representação digital que se constrói nessas plataformas pretende-se, à partida, como uma “transcodificação” do real, como uma representação digital que procura ser um espelho das relações significativas que se dão no “mundo” do sujeito, “traduzindo-as” como um conjunto de dados que se inscrevem sobre um plano virtual.6 6 Veja-se, a esse respeito: ROMELE, 2020, p. 17-18; 89-134. Essa transcodificação encontra-se, por isso, também ela fundamentada sobre um subjectum, mais especificamente sobre o utilizador que inscreve intencionalmente sobre as plataformas de Social Media aquela que compreende ser uma representação de si, uma objectivação da sua vida e do seu mundo, assim como das relações que nesse plano crê estabelecer, e que resulta, finalmente, naquela que considera ser uma “imagem” da sua existência.

Dessa forma, e do mesmo modo que a “imagem do mundo” heideggeriana objectifica os entes que são alvo da análise científica, também a “imagem da existência” que o sujeito utilizador constrói acerca de si, no contexto dos Social Media, acaba também por determinar uma objectivação positiva do seu “mundo-da-vida” fundamentando-o, por sua vez, na concepção subjectiva que cria sobre si mesmo. A representação do “mundo-da-vida” que o sujeito utilizador cria, nesse tipo de plataformas digitais, constitui-se, por isso, como o resultado de uma objectivação voluntária de si próprio.7 7 Sobre a questão da objectivação voluntária dos utilizadores das plataformas de Social Media, veja-se: ROMELE et. al., 2017. Muito embora a “imagem” que é assim construída se destine à compreensão que o “outro” dela faz, aquando da sua recepção - chegando mesmo a possibilitar uma abertura para o “ser”, a partir da relação que aí se compreende entre o “eu” e o “outro” (Mitsein) -, a representação que é nela manifesta encontra-se, contudo, sempre circunscrita pela subjectividade inerente à vontade do sujeito que manipula a representação da sua existência, no sentido de criar essa mesma “imagem”.

O conceito de “imagem”, nesse contexto, deixa de se referir apenas a uma representação pictórica do sujeito - i.e., não diz apenas respeito àquela que Vilém Flusser, em O Elogio da Superficialidade (2008FLUSSER, V. O Universo das Imagens Técnicas - O Elogio da Superficialidade [1985]. São Paulo: Annablume, 2008.), designou como uma “imagem técnica”, a qual, nos Social Media, pode ser publicada e partilhada, mas, antes, à percepção de si que é construída pelo utilizador -, ela é, antes, uma construção digital da sua “consciência de si” como representação, como “imagem”. Num contexto social cada vez mais circunscrito ao digital, a “imagem da existência”, mais que uma mera “imagem”, acaba por tornar-se para o sujeito utilizador na própria afirmação da sua existência.

O “mundo”, que nos Social Media se determina através dessa “imagem da existência”, deixa por isso de possuir um correlato significativo concreto com a realidade do “mundo-da-vida” do sujeito, chegando, em muitas circunstâncias, a suprimi-la em prol da “ilusão”, da representação de si, que é assim criada. Uma “imagem”, que, para além de “inautêntica”, visto que - e como será defendido na conclusão - nela não se representa uma apropriação do ser do, e pelo sujeito, não é também exacta. As próprias “disposições afectivas”, as quais se mostram no Heidegger de Ser e Tempo (2008aHEIDEGGER, M. Being and Time [1927]. Oxford: Blackwell, 2008a.) como condição pré-hermenêutica fundamental da abertura ontológica para o ser que se manifesta no “aí” que é o humano,8 8 Acerca da abertura ontológica proporcionada pelas disposições afectivas em Heidegger, veja-se BORGES-DUARTE, 2012. são falseadas, “filtradas”, em prol de uma representação “inautêntica” desse mesmo “aí”, limitando assim a possibilidade de compreender a forma como o ser se manifesta, no nível ôntico e, por consequência, a possibilidade de aceder à sua compreensão ontológica mais fundamental.

O carácter aditivo dos Social Media pode desde logo ser filosoficamente problematizado por essa via, pois, na medida em que o ser humano se mostra capaz de moldar a sua própria existência - “filtrando” os aspectos do “mundo-da-vida” que lhe vêm causar desconforto -, ele vem criar, para si e para os outros, uma representação, uma “imagem” que procura delimitar a ilusão de uma vida que se enraíza inteiramente sobre a vontade do sujeito utilizador; um modo de “ser-no-mundo” que, embora “inautêntico”, o compraz. Mesmo no que diz respeito às representações digitais dos eventos menos positivos da vida de um utilizador, é ainda possível compreender neles a presença desse processo de representação da existência como “imagem”. Mesmo nessas situações, é construída uma representação que é tecnicamente potenciada por via do esquema do retorno pressuposto na resposta digital, também ele já tecnicamente circunscrito, tanto pela possibilidade de receber comentários quanto pelas próprias reacções “e-motivas” que - e.g., em plataformas tais como o Facebook - podem ser dadas como resposta às publicações feitas por um utilizador.

É nesse sentido que - e do mesmo modo que na relação que K estabelece com Joi, em Blade Runner 2049 - a relação que o ser humano tem vindo a travar com os Social Media, no decorrer das duas primeiras décadas do século XXI, se apresenta também ela como uma relação “unidimensional”, tecnicamente circunscrita.9 9 Sobre o conceito de unidimensionalidade aqui em uso, veja-se: MARCUSE, 2011. Ao potenciar a representação da sua existência como “imagem”, os Social Media, da mesma forma que Joi, proporcionam ao seu utilizador a ilusão de um “mundo” talhado à medida da sua vontade, revelando-se como uma alternativa ao desconforto existencial pelo qual se caracteriza a experiência “autêntica” do “mundo-da-vida”, no contexto de uma cultura moldada pela técnica. Tal como Joi, também os Social Media providenciam o seu utilizador com tudo aquilo que ele “quer ouvir e ver”, influenciando o sentido que este atribui à sua existência, sempre em função da crescente ilusão que é criada com a “imagem” de si, a qual, não obstante, se encontra tecnicamente circunscrita já de antemão.

Como consequência dessa ilusão, e da mesma maneira que, na relação que K estabelece com Joi, também o ser humano passa a compreender-se a si mesmo a partir da sua representatividade, deixando de reconhecer nas plataformas de Social Media o dispositivo tecnológico que elas são, i.e., um instrumento digital ao serviço de interesses subjectivos, na sua maioria comerciais, os quais o afundam cada vez mais sobre a estrutura de uma existência determinada pelos seus algoritmos. Como se pode compreender das palavras de Byung-Chul Han (2014HAN, B.-C. A Sociedade da Transparência [2012]. Lisboa: Relógio d’Água, 2014., p. 22), “[a] época do Facebook e do Photoshop torna o ‘rosto humano’ uma face que se dissolve por completo no seu valor de exposição. A face é o rosto exposto sem a ‘aura do olhar’. É o ‘rosto humano’ sob a forma de mercadoria.”

Cabe por isso questionar sobre a razão pela qual as plataformas digitais de Social Media, mesmo ao encontrar-se fundamentadas sobre uma estrutura normativa técnico-racional - i.e., o “código técnico”10 10 Sobre a definição do conceito de “código técnico” aqui em uso, veja-se: FEENBERG, 1991. - que visa potenciar a comunicação intersubjectiva, acabam antes por potenciar uma concepção da existência que se encontra já tecnicamente circunscrita, tal como aquela que se manifesta na “imagem” que o seu algoritmo parece promover. Não obstante o potencial democrático e comunicacional que subjaz à estrutura normativa dos Social Media,11 11 Veja-se, a título de exemplo, o impacto que a utilização desse tipo de plataformas digitais teve no despoletar da Primavera Árabe. A esse respeito, veja-se: SMIDI/SHAHIN, 2017, p. 196-209. a sua utilização tem vindo a ser orientada no sentido de construir a “imagem da existência” que aqui se problematiza. Resta, por isso, perceber se o enviesamento da sua utilização, nesse sentido, pressuposto desde o design da sua estrutura até ao layout da própria plataforma digital já materializada, é da responsabilidade do sujeito utilizador que, voluntariamente, aí se representa como “imagem”, ou se, pelo contrário, e tal como Joi, essa circunscrição de seu uso se encontra já determinada (ou programada) de antemão como parte do seu funcionamento.

3.

Em A Pergunta pela Técnica, Martin Heidegger (2008bHEIDEGGER, M. The Question Concerning Technology [1954]. Basic Writings. London and New York: Routledge, p. 217-238, 2008b.) desenvolve uma reflexão hermenêutica, onde problematiza o impacto que a técnica possui sobre o pensamento ocidental. A interpretação heideggeriana desenvolve-se em torno daquela que o autor entende como a essência da técnica moderna, e que delimita como princípio determinante do modo como a verdade oculta nos entes tem vindo a ser “desencoberta”, no contexto da modernidade tardia. Segundo Heidegger, a essência da técnica moderna compreende-se em função do seu poder instigador, no modo como as essências dos vários entes que se encontram no “mundo” são “desencobertas” como matérias-primas, i.e., como um conjunto de recursos que se encontram disponíveis para um uso que lhes será subsequentemente imposto. Percorrendo o sulco criado pelo pensamento heideggeriano, a essência da técnica moderna poderá ser delimitada com base no termo “com-posição” (Ge-stell),12 12 Apropriamo-nos da proposta de tradução do termo Ge-stell por “com-posição”, tal como esta é avançada por Irene Borges-Duarte, em Arte e Técnica em Heidegger (2014). pelo qual Heidegger procura demonstrar o carácter provocador que caracteriza a acção transformadora levada a cabo tecnicamente, i.e., uma acção instigadora que dispõe as essências sob aquele que o autor designa como um “fundo-consistente” (Bestand), onde ficam dispostas como um conjunto de recursos sujeitos à vontade humana que sobre eles será posteriormente exercida.13 13 Veja-se, ainda, a esse respeito: BORGES-DUARTE, 2014.

De acordo com a leitura heideggeriana (2008bHEIDEGGER, M. The Question Concerning Technology [1954]. Basic Writings. London and New York: Routledge, p. 217-238, 2008b.), a técnica moderna, embora compreendida como um processo aletheiológico de “desencobrimento” da verdade que se oculta nos entes, consiste, na sua essência, num modo de “desencobrir” a natureza, “com-pondo-a” de acordo com uma pré-determinação racionalizante. Por via do “desencobrimento” tecnológico, os entes são compreendidos, não como os entes que eles são, i.e., na sua essência (no seu ser), mas com base em uma provocação que os revela na sua potencialidade técnica. Dessa forma, e ainda na senda do pensamento heideggeriano, por força do “poder” inerente à técnica moderna, o rio deixa de ser compreendido como o rio que é, passando a ser perspectivado sob o seu potencial energético, dispondo-se sob o “fundo consistente” na sua forma utilitária, e.g., como uma possível barragem.14 14 É também nesse sentido que a técnica moderna se distingue da técnica tradicional, em Heidegger, i.e., a partir do seu carácter instigador que “desencobre” as essências no seu potencial utilitário. Tal como se pode compreender pelo exemplo que Carl Mitcham apresenta, para destacar essa distinção (1994, p. 51): “Heidegger contrasts the traditional windmill or waterwheel with an electric power plant. Each harnesses the energy and puts it to work to serve human ends. Yet the windmill and the waterwheel remain related to nature in a way that makes them, Heidegger suggests, similar to works of art. First, of course, they are dependent on the earth in ways that modern technology is not, simply because they only transfer motion. If the wind is not blowing or the water not running, nothing can be done. Second, even as structures, they generally tend to fit into a landscape, intensifying and deepening its character, often revealing and throwing into relief geographic features that otherwise would be easily overlooked.”

É nesse sentido que Heidegger considera como, no “poder” subjacente à essência da técnica moderna, acaba por se manifestar uma determinação da interpretação que o Dasein pode fazer das essências dos entes que o rodeiam e a partir das quais constrói a concepção do “mundo” onde se encontra lançado; uma determinação “inautêntica” da verdade que neles se revela como encoberta, e que é por isso capaz de o destituir do seu papel enquanto “ente-privilegiado” para o qual o ser se manifesta no “aí” que o ente delimita. Em suma, por força do “poder” que a essência da técnica moderna exerce sobre o Dasein, a abertura ontológica que se manifesta sob o plano ôntico acaba por se fechar, sendo ainda por essa via que o ser humano acaba por ser alienado do seu papel enquanto “cuidador” do mostrar-se do ser, remetendo-se para o lugar de mero compilador/ordenador das essências tecnicamente dispostas sob o “fundo-consistente”. Tal como Heidegger o refere (2008bHEIDEGGER, M. The Question Concerning Technology [1954]. Basic Writings. London and New York: Routledge, p. 217-238, 2008b., p. 232):

O ser humano mantém-se tão decididamente na sua subserviência para com a provocação dimanante da com-posição que ele próprio deixa de tomar a com-posição como um apelo, que deixa de conseguir tomar-se a si próprio como aquele que é chamado a desencobrir, e, consequentemente, a não compreender os modos que lhe indicam como ele ek-siste a partir da sua essência no âmbito do apelo, de modo a nunca poder encontrar-se apenas a si mesmo.

Heidegger compreende, por isso, que a essência da técnica moderna exerce o seu “poder” não apenas sobre os entes que se encontram no “mundo”, mas também sobre o Dasein que leva a cabo o processo instigador de “desencobrimento” das essências, as quais, por via da “com-posição”, se mostram sob uma configuração que as dispõe como energias/matérias-primas. O “poder” da “com-posição” evidencia-se, assim, por um lado, no modo como as essências dos entes vêm a ser “desencobertas”, tendo em vista a sua potencial funcionalidade e, por outro, na maneira como o ser humano é também ele levado a “desencobrir” essas essências tecnicamente, alienando-se progressivamente da sua função enquanto “ente-privilegiado” ao qual o “ser” se dá a manifestar na sua verdade.

Ao reflectir sobre a estrutura que determina o funcionamento dos Social Media, sobretudo no que diz respeito ao funcionamento dos seus algoritmos, torna-se desde logo possível compreender como o “poder” inerente à “com-posição” acaba também por aí se manifestar. Nessas plataformas, a “com-posição” não se mostra, contudo, como o processo de “desencobrimento” que se impõe sobre as essências dos entes que encontra dispostos na natureza, mas, antes, na forma como configura o ser humano como utilizador e consumidor do digital. Nessas plataformas digitais, o humano é também apresentado sob uma configuração utilitária, como um recurso, uma figura assim determinada pelo “poder” “com-positivo” inerente ao próprio algoritmo que rege as interacções experimentadas pelo ser humano, nesse contexto.15 15 Na proposta heideggeriana de compreensão da essência da técnica como Ge-stell (“com-posição”), é já possível compreender a sua determinação das essências como uma representação, como uma imagem. No aditamento à Origem de Obra de Arte, que escreveu em 1950, Martin Heidegger acaba por alargar a extensão do conceito de Ge-stell (“com-posição”) enquanto determinação de uma figura, especialmente quando discorre sobre a correlação que a sua interpretação estabelece com a noção de Gestalt proposta por Ernst Jünger. Em Arte e Técnica em Heidegger (2014), Irene Borges-Duarte desenvolve com bastante perspicácia esse carácter “figurativo” que Heidegger interpreta como inerente à essência da técnica moderna. De acordo com Irene Borges-Duarte (2014, p. 184-200), o poder da “com-posição” mostra-se também na representação imagética do mundo que é construída pelos mass media como “espectáculo”, assim como na indiferença que advém da sua trivialização. Tal como se compreende das suas palavras (p. 186): “Nada nos liga às imagens com que os mass media nos bombardeiam. Mas sentimo-nos presos delas (das imagens, não do que elas transmitem). Entre nós e elas interpôs-se uma ‘técnica’ de construção e difusão de informações que suscita o desejo de possuir a imagem, a ‘informação’, e de ficar com isso satisfeitos, mesmo que a fonte da qual a imagem é apenas mero signo continue a ser-nos estranha.”

Recorrendo da proposta interpretativa do digital que é avançada por Alberto Romele, em Digital Hermeneutics (2020ROMELE, A. Digital Hermeneutics. New York and Oxon: Routledge, 2020.), ao atentar sobre o funcionamento dos Social Media, torna-se possível evidenciar esse processo pelo qual se determina a relação “com-positiva” que o ser humano trava com as tecnologias digitais, aquando da sua utilização. Em Digital Hermeneutics, Romele acaba por reflectir sobre a forma como a essência “com-positiva” dos algoritmos se mostra capaz de determinar o crescimento exponencial da influência que estes exercem sobre o ser humano e, por consequência, sobre a sua compreensão do “mundo”. Muito embora se procure afastar da concepção heideggeriana da técnica da qual aqui nos apropriamos - assim como da própria hermenêutica pressuposta no trabalho do pensador de Friburgo - na reformulação que Romele propõe para o conceito de habitus como “habitus digital” - originalmente proposto por Pierre Bourdieu -, apresenta-se uma delimitação do modo como essa influência se constrói e, subsequentemente, se impõe sobre o homem como uma das suas apropriações. Segundo Romele (2020ROMELE, A. Digital Hermeneutics. New York and Oxon: Routledge, 2020., p. 152),

[…] há dois elementos que caracterizam o habitus digital: (1) primeiro, que as práticas dos algoritmos e do Big Data são indiferentes ao sujeito. Visto que operam a um nível infra-individual, na medida em que desmembram os indivíduos em algumas das suas tendências, gostos, etc. Mas também porque operam a um nível supra-individual, uma vez que organizam estes elementos em categorias gerais; (2) segundo, embora seja indiferente para connosco, o digital continua a ser sobre nós muito influente. Propõe-nos continuamente imagens e imaginários das nossas identidades com os quais, a um certo nível, nos adaptamos inconscientemente, e que acabamos finalmente por tornar nossos.

Na leitura de Romele, é nesse sentido que as plataformas digitais de Social Media se apresentam, na sua essência, como máquinas geradoras de habitus. Nas interacções que um utilizador com elas estabelece - por exemplo, no uso de uma plataforma tal como o Facebook -, fica registado o seu “rasto digital”, um registo das suas interacções com os diversos elementos significativos que aí encontra dispostos. Operando hermeneuticamente sobre esse “rasto digital”, os algoritmos que regem o funcionamento das plataformas digitais de Social Media se tornam capazes de o transformar em dados, por seu turno interpretáveis, a partir dos quais acabam por compreender os seus hábitos, tornando possível traçar com base neles o seu “perfil” de utilizador, i.e., criar acerca dele uma identidade digital.

O problema que Romele vê aqui pressuposto, e que pode desde logo ser compreendido da citação feita atrás, concerne à indiferença que os algoritmos possuem para com a subjectividade de cada um dos utilizadores das plataformas digitais. As particularidades que definem os traços mais essenciais de cada ser humano, enquanto sujeito, não são normalmente tidas em conta pelo algoritmo, sobretudo uma vez que dificultam o processo de homogeneização inerente à construção de uma identidade digital. Por ser indiferente à subjectividade do seu utilizador, o “perfil” que é criado, e em função do qual são decididos os conteúdos digitais e restantes elementos significativos que são apresentados aos utilizadores, nessas plataformas, obedece também a um padrão que se encontra já tecnicamente circunscrito, i.e., determinado de antemão pela influência que os interesses comerciais, políticos etc. exercem sobre essas plataformas e que acaba por ditar as linhas de funcionamento dos próprios algoritmos. O utilizador, por seu turno, também ele indiferente ao funcionamento dos algoritmos, expõe-se assim a esses conteúdos que, de forma sub-reptícia, acabam por se mostrar capazes de moldar os seus comportamentos e acções, que se tornam também assim tecnicamente circunscritas, sempre de forma a prever e, subsequentemente, determinar mais facilmente a sua interacção com o digital.

Em suma, e muito embora os pressupostos sobre os quais assenta a estrutura racional que define as possibilidades de uso desse tipo de plataformas tenham em vista potenciar a comunicação intersubjectiva, a sua utilização tem vindo a ser direccionada no sentido de criar “câmaras de eco” que encaminham os seus utilizadores, no sentido de construir uma “imagem da existência”, a qual, por sua vez, obedece a uma pré-determinação ideológica, tecnicamente determinada, que se encontra inscrita sobre a sua estrutura fundamental de funcionamento - i.e., sobre aquilo que Andrew Feenberg (1991FEENBERG, A. Critical Theory of Technology. New York and Oxford: Oxford University Press, 1991.) define como “código técnico”. A abertura para o “ser”, que poderia ser potenciada no espaço intersubjectivo criado pelos Social Media, fecha-se em função dessa mesma pré-determinação, dessa representação que Alberto Romele (2020ROMELE, A. Digital Hermeneutics. New York and Oxon: Routledge, 2020.) compreende como resultado de um “habitus digital”, ele próprio já “com-posto” e que determina o modo como o ser humano com elas se irá relacionar.

É então nesse sentido que a “com-posição” heideggeriana acaba por se constituir como o elemento que vem determinar a fundamentação e o funcionamento desse tipo de plataformas digitais, impondo-se sobre a sua estrutura normativa fundamental e definindo, não só, os parâmetros da sua utilização, mas também o seu design. É a própria essência da técnica moderna o que determina o emprego desse tipo de plataformas, no sentido de criar uma representação objectiva do ser humano, seu utilizador, como “imagem”. Uma representação do ser humano, que, para além de potenciar uma representação figurativa da sua existência, depois de construída, ficará também disposta sobre um “fundo-consistente” (e.g., uma base de dados), sob o qual poderá ser facilmente funcionalizada, de modo a cumprir com as mais diversas solicitações, principalmente no que tange àquelas que dela serão feitas pelos interesses comerciais, económicos ou políticos que dela procuram tomar partido.

A “imagem” que o ser humano constrói da sua existência, no contexto dos Social Media, resulta, por isso, não apenas de uma representação inautêntica de si mesmo, mas como um produto da “com-posição” que instiga a construção dessa mesma representação. Mediante a pré-determinação técnica inerente à estrutura normativa dos Social Media, em função da construção de uma “imagem da existência”, o ser humano vê-se também ele “com-posto”, aquando da sua utilização, a representar-se essencialmente como “imagem” de si, como um produto que, sob essas plataformas, se dispõe, simultaneamente, como consumidor e como bem de consumo (um prosumer). O instigar técnico da criação de uma “imagem” da existência se revela, por isso, como o “perigo” que é inerente ao “poder” exercido pela essência da técnica moderna no contexto dos Social Media. Porém, e tal como Heidegger vem chamar a atenção, ao invocar os versos de Hölderlin em Patmos (HÖLDERLIN apudHEIDEGGER, 2008bHEIDEGGER, M. The Question Concerning Technology [1954]. Basic Writings. London and New York: Routledge, p. 217-238, 2008b., p. 237):

Mas onde há perigo,

cresce também o que salva.

Essa invocação de Hölderlin em A Pergunta pela Técnica, procura lançar o leitor de Heidegger na interpretação do carácter salvífico que o último considera que também se manifesta com a essência da técnica moderna. Uma salvação que consiste, fundamentalmente, numa tomada de consciência do “perigo” que lhe é inerente, numa compreensão dos pressupostos inerentes à essência da técnica moderna, e que se mostra capaz de preparar o Dasein para as consequências nefastas que dela podem advir. No final de A Pergunta pela Técnica, com a compreensão do “perigo” inerente à “com-posição”, abre-se também para Heidegger a possibilidade de o ser humano poder estabelecer para com ela uma “livre relação”. Com efeito, só na medida em que se encontra consciente do “perigo” que subjaz na sua essência, poderá o ser humano interpretar as possibilidades poiéticas da técnica moderna, assim como o “acontecimento de apropriação” (“Er-eignis”) que com elas se poderá proporcionar.16 16 Veja-se, a esse respeito: BORGES-DUARTE, 2014, p. 200-208. Nas palavras de Heidegger (2008bHEIDEGGER, M. The Question Concerning Technology [1954]. Basic Writings. London and New York: Routledge, p. 217-238, 2008b., p. 235):

Tudo isto depende, então, de um ponto: que ponderemos sobre esta ascensão [da “com-posição”] e, ao reflectir sobre ela, a tenhamos sob a nossa atenção. Como poderá tal ser feito? Sobretudo por via do esforço em construir uma compreensão essencial do processo técnico de desencobrimento, em vez de nos deslumbrarmos simplesmente com ele.

É com a tomada de consciência das implicações inerentes a uma representação da sua existência como “imagem” que o ser humano, enquanto utilizador das plataformas digitais de Social Media, poderá então encontrar os pressupostos dos quais necessita para compreender o “perigo” que também lhes subjaz e, assim, preparar uma “livre relação” para com a essência da técnica moderna. Os textos heideggerianos O Tempo da Imagem da Mundo e A Pergunta pela Técnica renovam, por isso, a sua pertinência histórica, uma vez que fornecem alguma da estrutura conceptual que é necessária para construir uma tal reflexão em torno dos Social Media, e sobre a qual se poderá alicerçar essa mesma consciencialização.

No final de Digital Hermeneutics,Alberto Romele (2020ROMELE, A. Digital Hermeneutics. New York and Oxon: Routledge, 2020.) acaba também por se aproximar dessa ideia pressuposta pela Filosofia da Técnica heideggeriana. Por se encontrar consciente do perigo inerente à indiferença que, tanto do lado dos algoritmos como do lado humano, se tem vindo a manifestar mediante as profundas implicações criadas na relação de influência que se estabelece entre o digital e o humano, Romele finaliza o seu texto, advogando a necessidade de uma educação para o digital. O propósito de tal orientação educativa, que, segundo o autor, se compõe como uma resposta institucional aos problemas éticos levantados pelo digital, terá de focar-se precisamente na criação de um esforço social colectivo que visa a acabar com a indiferença que se tem vindo a manifestar para com a influência do digital. Uma educação que promove uma consciencialização para os perigos que esse novo contexto interpretativo pressupõe, nomeadamente para o modo como a humanidade aí se relaciona intersubjectivamente, assim como para com a construção e compreensão do “mundo” que sobre ele se encontra fundamentado. Nas palavras de Romele (2020ROMELE, A. Digital Hermeneutics. New York and Oxon: Routledge, 2020., p. 157-158):

Estou a referir-me, como é claro, a exortar e a ensinar acerca de como se podem proteger, e de como podem alcançar, através dos meios digitais, as suas próprias expectativas assim como as das suas comunidades. Mas refiro-me também, de forma ainda mais abrangente, à intervenção de instituições nacionais e internacionais na harmonização da relação que se estabelece entre os indivíduos e comunidades e os sistemas sócio-técnicos, sempre com o objectivo preciso de capacitar esses mesmos indivíduos e comunidades.

Muito embora a proposta de uma Hermenêutica Digital de Romele procure ultrapassar algumas das limitações ontológicas subjacentes à filosofia da técnica heideggeriana, no que a esse aspecto diz respeito, ambas as propostas acabam, porém, por se aproximar. Uma aproximação que se compreende na maneira como ambos os autores consideram fundamental lançar uma chamada de atenção para o “poder” que a tecnologia é capaz de exercer sobre o ser humano, e que se torna ainda mais urgente, quando se tem em conta o alcance da sua materialização digital sob as plataformas de Social Media.

4.

Voltando à figura de Joi, em Blade Runner 2049, torna-se então possível nela compreender, por essa via, uma metáfora para todo o processo de “com-posição” pelo qual um sujeito utilizador passa a compreender a sua existência, em conformidade com possibilidade da sua representação; de acordo com a possibilidade de uma construção do sujeito como uma “imagem” que, não obstante, já se encontra previamente configurada. Muito embora, nas interacções que, ao longo do filme, a personagem K estabelece com Joi, pareça, à primeira vista, mostrar-se a verdadeira identidade de K - i.e., a apropriação “autêntica” que faz do seu “ser-no-mundo” (in-der-welt-sein) e do seu “ser-com” (mit-sein) -, tal apropriação está, contudo, já determinada de antemão pelas subtis sugestões que lhe são dadas por Joi. Veja-se, e.g., como a memória do cavalinho de madeira com a inscrição da data da morte de Rachel, implantada em K, foi sugerida por Joi como sendo uma memória de K, uma experiência verdadeira pela qual K passou, na sua infância.

Ao dirigir-se a K, de seguida, atribuindo-lhe um nome próprio - Joe -, Joi reforça essa sugestão, a qual, quando conjugada com os desejos de pertença, de aceitação social, de reconhecimento, em suma, quando conjugada com todas as emoções que Joi já interpreta como parte do “perfil” que construiu para K, ela o leva a acreditar que ele é alguém efectivamente único, especial: o filho de Rick Deckard e Rachel, o primeiro replicant concebido e nascido, ao contrário de todos os restantes criados em laboratório. Com essas subtis sugestões, Joi cumpre com o seu “programa”, de criar para K uma “imagem da existência” pela qual este irá guiar o seu estar no mundo, ao lado dos entes. Na medida em que Joi fornece a K “tudo aquilo que ele quer ouvir e ver”, acaba por cimentar assim a percepção “inautêntica” que K faz da sua própria existência, de uma vida que não lhe é própria, tecnicamente determinada de acordo com um padrão já estabelecido de antemão, de uma circunscrição pré-determinada da sua existência, e da qual K não se encontra consciente.

Neste, assim como noutros possíveis exemplos da relação que com ele estabelece, é a figura de Joi que se encontra na raiz da fundamentação “inautêntica” da existência pela qual se caracteriza a vida de K; é Joi quem incentiva “com-positivamente” a compreensão que K faz si e do mundo que o envolve, uma compreensão que não lhe é própria, e da qual resulta uma representação “inautêntica” do seu “ser-no-mundo” e do seu “ser-com” em conformidade com as linhas pré-definidas pela essência “com-positiva” da técnica moderna. Pela força do “poder” “com-positivo” inerente ao programa de Joi, o Dasein que se mostra representado sob a figura de K se afasta da sua função enquanto “cuidador” do ser que através dele se manifesta, e em cuja apropriação se fundamenta a possibilidade de uma existência “autêntica”. Em suma, na relação tecnicamente “com-posta” que K estabelece com Joi,

[…] o aí em que o ser se dá e aparece é o da “inautenticidade” ou ser “em sentido impróprio”: o exercício neutro e indiferente de estar ocupado a fazer pela vida à beira dos entes, de que nos servimos e gastamos, gastando-nos e desgastando-nos na mera quotidianeidade, isto é, no ficar preso ao mero presente e em-presença como um estender-se ou dilação do sem relevo. (BORGES-DUARTE, 2018BORGES-DUARTE, I. Banalidade e Exitência Inautêntica. Uma Reflexão a Propósito de Hannah Arendt. In: BORGES-DUARTE, I. Fios de Memória: Liber Amicorum para Fernanda Henriques. Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2018. p. 265-272., p. 268-269).

Tal como se procurou demonstrar, ao longo do texto, também os Social Media potenciam essa representação “inautêntica” de si que se materializa com a “imagem da existência”. Por se encontrar tecnicamente determinado, o ser que se manifesta na representação da existência humana (Dasein) como “imagem”, surge, a par do próprio sujeito, representado de forma “inautêntica”, pois a “imagem da existência” que se constrói nesse tipo de plataformas é circunscrita por uma via externa, não lhe sendo, por isso, própria. A “imagem da existência”, tal como compreendida nesse contexto, é o resultado da “com-posição”, de uma imposição exterior que se exerce sobre o sujeito utilizador, alienando-o do seu papel enquanto “cuidador” do ser que, no seu estar a ser, se manifesta. Com a “imagem da existência”, é construída uma representação onde “[…] o Dasein foge de si mesmo enquanto ser-aí, enquanto abertura ao ser” (CABESTAN, 2010CABESTAN, P. Being Oneself: A Phenomenological Approach to Authenticity and Inauthenticity. Winnicott e-prints. v. 5, n.1, p. 1-16, 2010 Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-432X2010000100004&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 17 nov. 2020.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, n.p.), uma vez que deixa por essa via de o experienciar na sua abertura.

No entanto, e da mesma forma que K, depois de perder Joi (alegria) às mãos de Luv (amor), acaba por compreender a verdade que com Joi se vinha até então encobrir - descobrindo-se a si próprio a ser “autenticamente” no tempo -, também uma reflexão sobre a instigação técnica da representação da existência como “imagem” poderá proporcionar as condições para que o ser humano se torne capaz de ganhar consciência da “ilusão” que é perpetrada pela “imagem da existência”; de, por essa via, o sujeito utilizador se compreender a si mesmo “autenticamente”, como o ente que, embora evolvido no digital, está a ser no “mundo” e “com-os-outros”. Só por essa via poderá o ser humano compreender-se imerso no “perigo” que o digital pode representar, e voltar a compreender-se dessa forma como “[…] um ser-no-mundo que, enquanto clarão ou clareira do ser (Lichtung), é o lugar do ser (Dasein).” (CABESTAN, 2010CABESTAN, P. Being Oneself: A Phenomenological Approach to Authenticity and Inauthenticity. Winnicott e-prints. v. 5, n.1, p. 1-16, 2010 Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-432X2010000100004&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 17 nov. 2020.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, n.p.).

Em suma, só através de uma reflexão capaz de “desencobrir” o “perigo” inerente às plataformas digitais de Social Media - assim compreendidas como uma materialização da essência da técnica moderna - se poderá criar a tão necessária consciencialização para a qual Heidegger (2008bHEIDEGGER, M. The Question Concerning Technology [1954]. Basic Writings. London and New York: Routledge, p. 217-238, 2008b.), e também Alberto Romele (2020ROMELE, A. Digital Hermeneutics. New York and Oxon: Routledge, 2020.), vêm alertar. Uma consciencialização que também é figurativamente representada por Villeneuve, na cena que abre o último acto de Blade Runner 2049, onde K, ao olhar para o modo como a Joi de um outdoor publicitário se dirige a ele sensualmente, compreende nesse mesmo gesto - muito semelhante aos da Joi que acabou de perder às mãos de Luv - o resultado de um programa, de um algoritmo tecnicamente determinado para “com-pôr” o “mundo-da-vida” do seu utilizador, de forma fazê-lo sentir-se único, especial, nas palavras de Joi: “a good Joe”. Tal como K, ao dar-se conta de que a Joi que dava sentido à sua existência mais não era que um dispositivo tecnológico, um bem de consumo, um produto, também uma reflexão sobre o conceito de “imagem” que impera nos Social Media deverá mostrá-la como a ilusão que ela é, como uma representação “inautêntica” da existência que nos procura fornecer tudo aquilo que se quer ouvir e ver”.

Referências

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    » http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-432X2010000100004&lng=en&nrm=iso
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  • 2
    Para além da clara referência a Philip K. Dick - cujo Do Android’s Dream of Electronic Sheep? (1968) inspira o universo original de Blade Runner apresentado por Ridley Scott, em 1984 - o nome de K parece querer também fazer uma referência à personagem de Joseph K, n’O Processo (1925) de Franz Kafka.
  • 3
    Everything you want to hear/see é o slogan que, no filme, acompanha os vários outdoors que publicitam Joi como a companheira perfeita.
  • 4
    Embora Heidegger aponte a essência da ciência moderna como o principal impulsionador do pensamento moderno, o autor não descarta a importância desempenhada pela técnica moderna na determinação desse mesmo pensamento, chegando mesmo a criar expectativa sobre a importância que esse tema irá desempenhar, nos seus trabalhos mais tardios. Logo nos primeiros parágrafos de O Tempo da Imagem do Mundo, assevera Heidegger (2002HEIDEGGER, M. O Tempo da Imagem do Mundo [1938]. In: HEIDEGGER, M. Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 97-138., p. 97): “A técnica de máquinas permanece o rebento até agora mais visível da essência da técnica moderna, a qual é idêntica à essência da metafísica moderna.”
  • 5
    Veja-se, a esse respeito: BORGES-DUARTE, 1998BORGES-DUARTE, I. Descartes e a Modernidade na Hermenêutica Heideggeriana. In: CARDOSO, A.; SANTOS, L. R.; ALVES, P. M. S. Descartes, Leibniz e a Modernidade. Lisboa: Colibri, 1998. p. 507-524., p. 519-521.
  • 6
    Veja-se, a esse respeito: ROMELE, 2020ROMELE, A. Digital Hermeneutics. New York and Oxon: Routledge, 2020., p. 17-18; 89-134.
  • 7
    Sobre a questão da objectivação voluntária dos utilizadores das plataformas de Social Media, veja-se: ROMELE et. al., 2017ROMELE, A. et al. Panopticism is not Enough: Social Media as Technologies of Voluntary Servitude. Surveillance & Society, Kingston, v. 2, n. 15, p. 204-221, 2017..
  • 8
    Acerca da abertura ontológica proporcionada pelas disposições afectivas em Heidegger, veja-se BORGES-DUARTE, 2012BORGES-DUARTE, I. A Afectividade no Caminho Fenomenológico Heideggeriano. Phainomenon - Revista de Fenomenologia, v. 24, p. 43-62, 2012..
  • 9
    Sobre o conceito de unidimensionalidade aqui em uso, veja-se: MARCUSE, 2011MARCUSE, H. O Homem Unidimensional [1964], Lisboa: Letra Livre, 2011..
  • 10
    Sobre a definição do conceito de “código técnico” aqui em uso, veja-se: FEENBERG, 1991FEENBERG, A. Critical Theory of Technology. New York and Oxford: Oxford University Press, 1991..
  • 11
    Veja-se, a título de exemplo, o impacto que a utilização desse tipo de plataformas digitais teve no despoletar da Primavera Árabe. A esse respeito, veja-se: SMIDI/SHAHIN, 2017SMIDI, A.; SHAHIN, S. Social Media and Social Mobilization in the Middle East: A Survey of Research on the Arab Spring. India Quarterly: A Journal of International Affairs, v. 73, n. 2, p. 196-209, 2017., p. 196-209.
  • 12
    Apropriamo-nos da proposta de tradução do termo Ge-stell por “com-posição”, tal como esta é avançada por Irene Borges-Duarte, em Arte e Técnica em Heidegger (2014BORGES-DUARTE, I. Arte e Técnica em Heidegger. Lisboa: Sistema Solar/Documenta, 2014.).
  • 13
    Veja-se, ainda, a esse respeito: BORGES-DUARTE, 2014BORGES-DUARTE, I. Arte e Técnica em Heidegger. Lisboa: Sistema Solar/Documenta, 2014..
  • 14
    É também nesse sentido que a técnica moderna se distingue da técnica tradicional, em Heidegger, i.e., a partir do seu carácter instigador que “desencobre” as essências no seu potencial utilitário. Tal como se pode compreender pelo exemplo que Carl MitchamMITCHAM, C. Thinking Trough Technology: The Path Between Engineering and Philosophy. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1994. apresenta, para destacar essa distinção (1994, p. 51): “Heidegger contrasts the traditional windmill or waterwheel with an electric power plant. Each harnesses the energy and puts it to work to serve human ends. Yet the windmill and the waterwheel remain related to nature in a way that makes them, Heidegger suggests, similar to works of art. First, of course, they are dependent on the earth in ways that modern technology is not, simply because they only transfer motion. If the wind is not blowing or the water not running, nothing can be done. Second, even as structures, they generally tend to fit into a landscape, intensifying and deepening its character, often revealing and throwing into relief geographic features that otherwise would be easily overlooked.”
  • 15
    Na proposta heideggeriana de compreensão da essência da técnica como Ge-stell (“com-posição”), é já possível compreender a sua determinação das essências como uma representação, como uma imagem. No aditamento à Origem de Obra de Arte, que escreveu em 1950, Martin Heidegger acaba por alargar a extensão do conceito de Ge-stell (“com-posição”) enquanto determinação de uma figura, especialmente quando discorre sobre a correlação que a sua interpretação estabelece com a noção de Gestalt proposta por Ernst Jünger. Em Arte e Técnica em Heidegger (2014), Irene Borges-Duarte desenvolve com bastante perspicácia esse carácter “figurativo” que Heidegger interpreta como inerente à essência da técnica moderna. De acordo com Irene Borges-Duarte (2014BORGES-DUARTE, I. Arte e Técnica em Heidegger. Lisboa: Sistema Solar/Documenta, 2014., p. 184-200), o poder da “com-posição” mostra-se também na representação imagética do mundo que é construída pelos mass media como “espectáculo”, assim como na indiferença que advém da sua trivialização. Tal como se compreende das suas palavras (p. 186): “Nada nos liga às imagens com que os mass media nos bombardeiam. Mas sentimo-nos presos delas (das imagens, não do que elas transmitem). Entre nós e elas interpôs-se uma ‘técnica’ de construção e difusão de informações que suscita o desejo de possuir a imagem, a ‘informação’, e de ficar com isso satisfeitos, mesmo que a fonte da qual a imagem é apenas mero signo continue a ser-nos estranha.”
  • 16
    Veja-se, a esse respeito: BORGES-DUARTE, 2014BORGES-DUARTE, I. Arte e Técnica em Heidegger. Lisboa: Sistema Solar/Documenta, 2014., p. 200-208.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    08 Jan 2021
  • Aceito
    27 Fev 2021
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