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Comentário: As fronteiras fenomenológicas entre cognição e mundo

Referência do texto comentado: BOUYER, Gilbert Cardoso. O caráter antirrepresentacionalista da cognição no pensamento de Merleau-Ponty. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, Número Especial, p.145-166, 2020.

O texto de Gilbert Cardoso Bouyer, intitulado “O caráter antirrepresentacionalista da cognição no pensamento de Merleau-Ponty” (BOUYER, 2020)1. BOUYER, Gilbert Cardoso. O caráter antirrepresentacionalista da cognição no pensamento de Merleau-Ponty. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, Número Especial, p.145-166, 2020., aborda com cuidado e profundidade uma questão relevante e profícua, cuja temática tem sido objeto de intenso debate, nos últimos anos, particularmente em abordagens interdisciplinares: a confluência entre o pensamento de Merleau-Ponty e a teoria cognitiva, notadamente aquela descrita no ensaio como não representacionalista. Para a realização de seu projeto, o autor se apoia em algumas noções centrais dos dois campos e constrói, paulatinamente, a proposta de um caminho de aproximação. Neste breve comentário, gostaríamos de chamar a atenção para algumas dessas noções, buscando, de algum modo, contribuir para a reflexão sobre esse espaço possível de proximidades e distâncias.

Desde seu início, o ensaio destaca o caráter situacional e relacional da experiência, aquilo que o autor descreve como um “existencial”. A percepção - e com ela, segundo ele, a própria cognição - não pode ser compreendida como um processo de representação, como a formação de uma imagem mental. Ao contrário, ela se faz no Umwelt, no mundo tal qual experienciado pelo sujeito, não de forma inteiramente consciente ou refletida.

Aqui, parece-nos, dois pontos merecem especial atenção: a noção de representação e a noção de Umwelt. Será a partir delas que buscaremos formular, de maneira sucinta, uma questão que consideramos pertinente como desdobramento da discussão apresentada. A primeira dessas noções é referida no ensaio a partir do arcabouço teórico formulado pela própria teoria da cognição, e é esse recorte que nos possibilita propor algumas observações.

Ao descrever a aproximação entre Merleau-Ponty e a cognição não representacionalista, por meio da recusa do conceito de representação, o ensaio é bastante efetivo em sua apreciação geral, mas mantém pressupostos alguns caminhos cujas direções não necessariamente confluem, pelo menos não de modo imediato. A noção de representação sobre a qual a reflexão merleau-pontyana se volta, em consonância com sua matriz fenomenológica mais ampla, é aquela constituída especialmente no século XVII, notadamente por Descartes, mas não apenas. Trata-se de um operador epistemológico que alicerça todo o pensamento moderno, sustentando um modo próprio de formulação do conhecimento e de sua relação com a verdade. Nesse sentido, os termos visados pelas duas correntes, embora aparentados, não são necessariamente os mesmos. A ideia, retomada e criticada por diversos teóricos da cognição destacados pelo texto, de que o caráter representacionalista se aloja no processo de formação da ideia mental, contempla apenas em parte o “problema da representação” tal qual ele se apresenta na reflexão filosófica à qual Merleau-Ponty se vincula. Como mostra Foucault, em As Palavras e as Coisas, o problema da epistémê aí configurada remete a operadores como a finitude, a circularidade do conhecimento, o duplo empírico-transcendental e, por sob eles, a figura central que surge nesse período: a noção de homem.

Na mesma direção, a segunda observação diz respeito à noção de Umwelt. Novamente, parece-nos, o texto se aprofunda na discussão do conceito e constrói com propriedade sua apreciação geral, todavia, alguns pontos demandam mediações. Sobretudo, uma questão deve ser considerada, quando se trata, não de um viés fenomenológico em sentido amplo, mas de um aspecto próprio à reflexão de Merleau-Ponty. O Umwelt, no ensaio, é descrito, por diversos momentos, como constituído pelo agente - de forma não representativa, posicional ou deliberada, porém, ainda assim, como instaurado por ele, especialmente em sua dimensão de sentido e de valor. Trata-se de uma constituição prática, vinculada à ação e à motricidade do corpo, a qual se traduziria, com algumas aproximações, naquilo que a teoria da cognição descreve como “enação”.

Esse caráter não representativo e não inteiramente individual, mostra Gilbert, tem sido amplamente destacado por seus principais teóricos, através de noções como as de gênero (Clot) e de affordance (Thompson), evidenciando um tipo de processo sensoriomotor geral e não redutível aos atos expressos de um sujeito. Dentro desse escopo mais amplo, embora a descrição apresentada seja bastante próxima à proposição merleau-pontyana, um aspecto nos parece importante: a ideia de que o mundo é constituído pelo agente. Tal formulação não se encontra desse modo no filósofo e contempla apenas parcialmente suas proposições mais centrais. Pois há, aí, ainda, uma espécie de inércia do mundo - apresentado como termo posto, e não como elemento operante. Ao contrário, para Merleau-Ponty, trata-se não apenas de afirmar que o mundo é configurado pelo agente (proposição que pouco o faria se distanciar, naquilo que tem de essencial, dos alicerces do pensamento moderno), mas sobretudo de defender a compreensão segundo a qual, na mesma medida e no mesmo movimento, o agente é também configurado pelo mundo. A ideia, amplamente defendida ao longo da Fenomenologia da Percepção, é de que há um sentido do mundo, uma atividade das próprias coisas, e que o “milagre da expressão” se faz no próprio sensível. A correlação fenomenológica, herança do pensamento husserliano, implica agora o reconhecimento de uma atividade que opera nos dois polos da relação, e o mundo não é apenas o entorno posto ou significado pelo sujeito; ele próprio é configurador de sentido, acarretando uma passividade estrutural em todo ato e em todo agente.

Nessa perspectiva, a própria noção de corpo, a qual, no ensaio, é descrita como sendo o próprio ser bruto, não é exatamente sinônima a ele, pois o ser bruto, embora o envolva, não o faz de maneira exclusiva, referindo-se a uma totalidade reversível e dinâmica entre o visível e o invisível, na qual a corporeidade toma parte, contudo, não isoladamente. O ser bruto não se deixa reduzir a uma experiência corporal - ou, se preferirmos, o corpo “alargado” descrito nos últimos textos do filósofo é corpo do próprio ser, operante no homem, mas não esgotável nele: a carne do mundo.

Assim, por meio desta breve retomada de algumas noções trazidas pelo ensaio, o que estamos procurando mostrar é a existência de um “alargamento” do sentido do mundo no decorrer da filosofia de Merleau-Ponty, a afirmação cada vez mais explícita da passividade do sujeito e de sua dimensão instituída, vinculada a uma ampla crítica ao modelo de representação, envolvendo o próprio modo de formulação do conhecimento e de compreensão da noção de homem. (Não se trata de afirmar, como defendem alguns estudiosos do pensamento do filósofo, que haja uma mudança de direção ou mesmo uma “ruptura” em sua obra. Ao contrário, como descrito acima, compreendemos que essa perspectiva já se encontra em suas obras iniciais, sendo intensificada, ao longo de sua filosofia.)

Sob essa perspectiva, uma das questões que o presente ensaio pode suscitar, e que permite desdobrar a reflexão sobre a possibilidade da aproximação sugerida e de suas implicações, poderia ser formulada nos seguintes termos: qual o “espaço” que pode ser dado a uma teoria da passividade, no interior de uma teoria da cognição ou, em outras palavras, a teoria da cognição permite a compreensão - central no pensamento de Merleau-Ponty - de que há uma atividade (ou mesmo, se adotarmos o arcabouço proposto pelos teóricos do pensamento cognitivo, uma cognição) das próprias coisas? Cabe, nela, o reconhecimento de uma instituição espontânea do sentido, não alheia ao homem, mas não mais dependente dele, para sua constituição? A reflexão sobre esse aspecto e seus desdobramentos pode ser um caminho frutífero, na tentativa de mover-se nesse espaço de fronteiras.

Referencia

  • 1
    BOUYER, Gilbert Cardoso. O caráter antirrepresentacionalista da cognição no pensamento de Merleau-Ponty. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, Número Especial, p.145-166, 2020.
  • 1
    . Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. https://orcid.org/0000-0002-5867-0774. E-mail: alexmoura@usp.br.
  • 2
    . http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43esp.13.p173

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2020
  • Aceito
    27 Jun 2020
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