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A dimensão literária do diagnóstico do presente em Foucault

Resumo

Neste artigo, propõe-se uma investigação sobre a definição foucaultiana do papel da filosofia enquanto a construção de um diagnóstico do presente. Sustenta-se que o pensamento de Foucault em torno à figura do diagnóstico incorpora algumas de suas considerações sobre a linguagem e literatura modernas. Destaca-se essa apropriação notadamente a partir dos temas do apagamento do rosto, a relação entre linguagem e morte, e seu artigo sobre Georges Bataille2. BATAILLE Georges. Histoire de l'oeil. Paris: Gallimard, 1993.. Para sustentar essa hipótese de leitura, elenca-se uma série de encadeamentos e deslocamentos de ideias em textos de diferentes momentos de Foucault, o que sugere a existência de uma dimensão literária do diagnóstico. Termina-se, apresentando algumas repercussões ético-políticas de todas essas considerações em alguns dos seus textos derradeiros. Com isso, sugere-se que há, da parte de Foucault, um prolongado diálogo e apropriação de certos elementos do pensamento literário. Esse diálogo e apropriação podem ser encontrados em meio às suas considerações sobre história e sobre o funcionamento de seus próprios livros enquanto livros-experiência.

Palavras-chave:
Foucault; Diagnóstico; Literatura; Experiência; Bataille

Abstract

In this article we propose a research on the foucauldian definition of the role of philosophy as the construction of a diagnostic of the present. We sustain that the foucauldian thought on the diagnostic of the present incorporates some of his considerations on the modern language and literature. This appropriation is highlighted through the themes of the erase of one’s own face, the relation between language and death, and his article on Georges Bataille. In order to sustain this hypothesis of reading, we list a series of threads and displacements of ideas in texts published in different moments of his work, which suggest the existence of a literary dimension of the diagnostic. We conclude by presenting further ethical and political repercussions of all those considerations in some of his later works. So, we suggest that, from the part of Foucault, there might be a long dialog and appropriation of certain elements of the literary thought. These dialog and consideration can be found throughout his considerations on history and the functioning of his own books as books-experience.

Keywords:
Foucault; Diagnostics; Literature; Experience; Bataille

Introdução

Será a partir de 1966, especialmente durante entrevistas, que encontraremos as primeiras afirmações de Foucault acerca de sua visão da tarefa da filosofia, em seu tempo. Essa tarefa não seria mais aquela de guiar, fornecer fundamentações e limites para as outras áreas do conhecimento, mas sim aquela de construir um diagnóstico do presente. Na entrevista Michel Foucault e Gilles Deleuze querem dar a Nietzsche seu verdadeiro rosto, de 1966, será dito que “o problema filosófico contemporâneo é o de delimitar o saber no seu extremo, de definir seu próprio perímetro” (FOUCAULT, 2001a, p. 580). Na entrevista O que é um filósofo?, agora apenas com Foucault e publicada na mesma época, novamente será atribuída a Nietzsche uma definição do trabalho filosófico nos termos de diagnosticar o estado do pensamento no presente. Foucault deixará implícita a sua concordância quanto a esse ponto. Segundo Foucault (2001a, p. 581), o pensamento nietzschiano nos ensina que

[...] o filósofo era aquele que diagnostica o estado do pensamento. Pode-se então vislumbrar dois tipos de filósofos, aquele que abre novos caminhos ao pensamento, como Heidegger, e aquele que, de certo modo, faz o papel do arqueólogo, que estuda o espaço no qual se desenvolve o pensamento, assim como as condições deste pensamento, seu modo de constituição.

Para um olhar desatento, diagnosticar o presente seria uma tarefa muito menos trabalhosa e profícua que procurar estabelecer o fundamento de tudo aquilo que é, ou de fornecer os limites que legitimam e fundam os outros saberes. Contudo, como veremos posteriormente, para o pensamento foucaultiano, o diagnóstico não consiste numa descrição desinteressada de nosso presente. Desde as primeiras aparições desse tema, em entrevistas, trata-se de uma tarefa que, de início, já levanta o problema do espaço que pode ocupar aquele que está fazendo o diagnóstico. Qual espaço ocupa, então, aquele que tenta diagnosticar o presente, isto é, aquele cujo papel é descrever o estado do pensamento de sua própria atualidade? Por acaso aquele que diagnostica faria parte dessa atualidade, do mesmo modo que os saberes que ele busca delinear? Estaria ele dentro ou fora desse pensamento? O diagnóstico teria algum efeito para além da descrição? Tratar-se-ia de uma descrição que busca apenas representar esse real, dando a nós uma justa ideia daquilo que ele é, e sem qualquer forma de comprometimento para com sua transformação?

Ressaltamos o modo como Foucault enfrenta esse conjunto de problemas, tomando como base, especialmente, textos e entrevistas dos anos de 1968 e 1969. Serão utilizados fundamentalmente textos de reflexão metodológica e textos sobre literatura e linguagem. A complementariedade entre esses dois conjuntos textuais ajuda a fundamentar nossa hipótese de que Foucault se apropriou de certos elementos do pensamento literário. Mostramos ainda como existem evidências suficientes para sustentar que esses textos repercutem algumas ideias apresentadas muito antes, no Prefácio à transgressão, de 1963. Ao final, apontamos que a reflexão em torno ao diagnóstico, com todos os desdobramentos que ela carrega, repercute também em textos tardios de Foucault, notadamente nos momentos em que seu pensamento se volta para si mesmo.

1 Diagnóstico e finitude

Em uma entrevista de 1968, com Claude Bonnefoy, intitulada O belo perigo, Foucault estabelece uma relação entre a atividade de diagnóstico e uma reflexão sobre a morte. A morte, por sua vez, não será pensada em termos de destruição ou anulação, mas sim enquanto um limiar diferencial. Em suas respostas, também encontraremos uma vinculação entre escrita, morte, multiplicidade e diferença. O vínculo entre diagnóstico e morte começa a aparecer, quando Foucault afirma que, para fazer um diagnóstico do presente e, assim, poder falar daquilo que está próximo de nós, é preciso haver “[...] entre as coisas que estão próximas e o momento no qual eu escrevo, este ínfimo desnível [décalage], essa fina película por onde se instaurou a morte” (FOUCAULT, 2011, p. 39). Por conseguinte, o filósofo pode escrever apenas a partir da diferença estabelecida pela morte, sem buscar, com isso, remontar a qualquer origem proveniente da vida ou do ser mesmo das coisas. Ademais, Foucault ainda atribui à escrita do diagnóstico certo poder de deslocamento do olhar: “A escrita consiste essencialmente em empreender uma tarefa graças à qual e ao final da qual poderei, por mim mesmo, encontrar algo que eu não havia visto de início” (FOUCAULT, 2011, p. 41). Desse modo, a morte instaura uma distância entre as coisas demasiadamente próximas e o momento da escrita, estando intimamente articulada ao deslocamento do olhar produzido pela escrita.

Semelhante afirmação de Foucault nos leva a considerar que o ato de diagnóstico, por mais que evidentemente necessite de um conjunto de saberes com base nos quais será delineada a atualidade, assim como apesar de ele resultar na produção de um saber, apresenta igualmente uma faceta irredutível ao saber identificado a conhecimentos adquiridos e acumulados. Diagnosticar também é um ato que provoca uma transformação no olhar, movimento do qual o conhecimento não pode dar conta, a menos se ele for pensado enquanto desvelamento da presença de algo que já estava presente, ou enquanto acúmulo progressivo de verdades. Foucault afirma, nesse sentido: “Eu somente descubro aquilo que tenho a demonstrar no próprio movimento pelo qual eu escrevo, como se escrever fosse precisamente diagnosticar aquilo que eu queria dizer no momento mesmo em que comecei a escrever” (FOUCAULT, 2011, p. 41).

A partir desse tipo de afirmação, podemos dizer que, além de sua dimensão descritiva, o diagnóstico repercute sobre aquele que diagnostica, dimensão esta que não é evidente, quando pensamos no sentido dessa palavra, em seu contexto estritamente médico. Enquanto, no contexto médico, o diagnóstico em nada incide sobre o médico e nem sobre o corpo do paciente, o diagnóstico filosófico incide sobre aquele mesmo que lança o olhar. Dessa maneira, podemos enfatizar que há, no diagnóstico, uma dimensão reflexiva de ação sobre si mesmo que o declina numa voz média. Isso significa que, no pensamento foucaultiano, diagnosticar seria, portanto, um verbo em que o sujeito é imanente ao processo do qual ele seria a fonte, sendo, por conseguinte, afetado pelo mesmo processo. Essa dimensão reflexiva do diagnóstico será evidenciada e reforçada também na Resposta ao círculo de epistemologia, publicada no verão de 1968.

Nessa densa resposta, aparentemente distante da entrevista com Bonnefoy, focada em literatura, Foucault afirma que seu trabalho de descrição das regularidades discursivas e do caráter acontecimental do discurso caminha paralelamente a uma operação de desfundamentação dessas mesmas regularidades. Tal descrição e desfundamentação simultâneas evocam um deslocamento do olhar. Como se o trabalho de descrever, fazer aparecer, ou diagnosticar uma ordem discursiva, que ainda não fora reconhecida enquanto tal, não se detivesse na simples descrição fotográfica que permitiria reconstituir seu verdadeiro rosto. Com efeito, essa descrição, que aparentemente se resume em reconstituir o rosto que identificaria uma determinada ordem, faz parte de um procedimento ao final do qual a ordem delineada será desestabilizada - como se houvesse fotografias que, mesmo realistas, contribuíssem para fazer desaparecer aquilo que elas retratam. Num primeiro momento, contudo, Foucault reconhecerá um pertencimento ou certa interioridade de sua empreitada relativamente ao presente que ele procura analisar: “Oras, devo reconhecer que esse projeto de descrição, tal como tento agora circunscrevê-lo, encontra-se ele também preso na região que pretendo analisar numa primeira abordagem” (FOUCAULT, 2001a, p. 738).

No entanto, Foucault reconhece que a atividade de diagnóstico só é possível se esse presente que ele busca delinear apresenta alguma rachadura, desnível ou diferença que torna possível certo distanciamento com relação a si mesmo. É perfeitamente possível que essa descontinuidade no presente tenha se constituído mesmo sem o propósito de permitir tal diagnóstico, sendo inteiramente fruto de motivos alheios a essa empreitada. Mesmo nesse caso, é a descontinuidade que torna possível a constituição de um diagnóstico. Isso significa que o diagnóstico foucaultiano não pode estar exatamente no interior, pertencer inteiramente ao presente que ele tenta descrever. Todavia, se ele estivesse completamente fora, numa relação de exterioridade absoluta, seu diagnóstico deixaria de referir-se ao presente e diria respeito apenas ao modo como nós uma vez pensamos, mas não pensamos mais; se o diagnóstico se situasse completamente fora do presente, constituiria uma descrição longínqua e desinteressada, que não diz muita coisa de nós mesmos e nossa atualidade, pois pertenceríamos a outro solo claramente separado e exterior. Defendemos, então, que o lugar do diagnóstico foucaultiano parece ser muito mais aquele do limite ou do limiar, pensado enquanto espaço de diferença. Apenas ao situar-se no limite do presente é possível olhar para ele e construir um diagnóstico que mantenha, para com esse presente, uma relação de simultâneo pertencimento e não pertencimento.

Nesse sentido, podemos estender para o diagnóstico do presente vários elementos da reflexão de Foucault sobre a transgressão no pensamento de Georges Bataille, tal como ela foi analisada no artigo Prefácio à transgressão, de 1963. Assim como a posição daquele que diagnostica não pode ser inteiramente dentro e nem fora da atualidade, a transgressão batailliana não pode igualmente ser entendida enquanto a negação do limite para atingir um lado absolutamente exterior. Diversamente das opções do dentro e do fora, a transgressão remete ao ser do limite:

A transgressão é um gesto que concerne o limite; é lá, na fina espessura da linha, que se manifesta o fulgor da sua passagem, mas talvez também a totalidade da sua trajetória, a sua própria origem. A linha que ela cruza poderia também ser todo o seu espaço (FOUCAULT, 2001a, p. 264).

Uma vez que remete ao ser do limite, a transgressão batailliana não opõe um lado ao outro. Por esse motivo, ela deve ser afastada da negação determinada de matriz hegeliana, isto é, afastada “daquilo que é animado pela potência do negativo”. Dessa forma, Foucault ainda defende que a transgressão não pode ser concebida enquanto a violação voluntária de uma lei moral. Por mais que os textos bataillianos, especialmente seus romances, tenham sido marcados pelo escândalo provocado, aquilo que ele entende por transgressão deve ser antes de tudo compreendido a partir de uma perspectiva ontológica, ao invés de ética. Segundo esse viés ontológico, a transgressão “talvez ela não seja nada mais que a afirmação da partilha”, mantendo-se a ressalva de que, antes de um simples corte que identifica, ao separar duas partes, deveríamos pensá-la “apenas aquilo que nela pode designar o ser da diferença” (FOUCAULT, 2001a, p. 266).

Ao que tudo indica, a leitura de Foucault sustenta não apenas que o espaço no qual o pensamento de Bataille se desenvolve é esse espaço limiar de diferença, como também está ciente de que o próprio pensamento transgressivo é instaurador de diferença. Acreditamos ainda que o próprio diagnóstico foucaultiano se desenvolve, à sua maneira, levando em consideração o campo de problemas levantados no artigo de 1963, apesar do fato de ele evidentemente operar com outros conceitos. Pelo lado de Foucault, poderíamos afirmar que, ao mesmo tempo em que, para diagnosticar o presente, é preciso localizar continuidades entre certos segmentos discursivos, assim como descontinuidades entre outros segmentos (por exemplo, separar a história natural da biologia e, ao mesmo tempo, aproximá-la da gramática geral e da história das riquezas), o próprio ato de diagnóstico fabrica diferença, produz descontinuidade.

Essa produção de diferença através do diagnóstico será explicitada em sua Resposta ao Círculo de Epistemologia, de 1968. Em seu texto, Foucault reconhece que o próprio lugar que ele tenta descrever “arrisca a se dissociar sob o efeito da análise”, isto é, sob o efeito do próprio diagnóstico. Mas ,se diagnosticar o presente é descrever o próprio lugar a partir do qual se pensa, isso significa que o diagnóstico acaba por deslocar o lugar a partir do qual se pensa, obrigando a um deslocamento daquele mesmo que diagnostica. Por conseguinte, a diferença, desnível ou ruptura produzida pelo diagnóstico no seu objeto também é declinada numa voz média, enquanto operação que afeta o próprio sujeito. Em sua resposta, Foucault (2001a, p. 738) escreve:

Eu analiso o lugar de onde falo. Exponho-me a desfazer e a recompor esse lugar que me indica os pontos de referência primeiros do meu discurso; tento dissociar suas coordenadas visíveis e sacudir sua imobilidade de superfície; logo, eu arrisco suscitar, a cada instante, sob cada uma de minhas proposições, a questão de saber de onde meu discurso pode nascer: pois tudo aquilo que digo poderia muito bem ter por efeito deslocar o lugar de onde eu o digo [nosso grifo]. De maneira que à questão: de onde você pretende falar, você que quer descrever - de tão alto e de tão longe - o discurso dos outros? Eu responderia apenas: eu pensei [nosso grifo] que eu falava do mesmo lugar que esses discursos, e que ao definir o espaço deles eu situaria minha observação; mas agora [nosso grifo] devo reconhecer: eu mesmo não posso falar a partir de onde eu mostrei que eles falam sem dizê-lo, mas somente a partir dessa diferença, dessa ínfima descontinuidade [grifo nosso] que meu discurso já deixou atrás dele.

Pensamos que é preciso tomar com rigor essas palavras de Foucault, pois, nesse caso, até mesmo os tempos verbais utilizados são indicadores do pensamento em movimento e do próprio pensamento enquanto procedimento de alteração de si mesmo e da realidade. Ao responder à pergunta sobre o lugar no qual seu diagnóstico se situaria, Foucault primeiramente faz referência ao passado: “[...] eu pensei que [...]”. Porém, a mesma resposta também remete ao presente, ao “agora”; e, então, ele responde a partir da diferença em relação ao momento em que havia iniciado o diagnóstico. Cremos que semelhante recurso não é apenas retórico, assim como também não quer dizer que Foucault havia se enganado nas linhas ou nos anos anteriores, e que agora ele se deu conta do verdadeiro lugar de seu pensamento. O uso da diferença entre passado e presente, na própria resposta de Foucault, parece ser proposital, evidenciando que o próprio sujeito da enunciação é alterado pelo enunciado.

Esse uso remete ao fato de que o diagnóstico fabricou uma diferença na ordem discursiva que ele delineou, o que faz com que seu próprio espaço seja aquele do limite pensado enquanto diferença e deslocamento incessantes. Resumidamente, em sua resposta, Foucault realiza uma manobra linguística através da qual, com diferentes tempos verbais, que, postos em relação, indicam um deslocamento do sujeito, ele pode responder à questão sobre o lugar de seu pensamento. Essa relação entre diferentes tempos verbais indica que o lugar do diagnóstico foucaultiano não é nem aquém ou além de nosso presente, não tão alto ou tão longe quanto se supõe, mas sim o próprio limiar diferencial de nossa organização discursiva. O lugar do pensamento foucaultiano é o agora e a atualidade enquanto diferença e deslocamento, de sorte que o diagnóstico que descreve essa atualidade coincide com a transgressão desta última, estando situado no ser do seu limite. Foucault não poderia responder de outro modo a essa pergunta, senão empregando uma referência ao passado e outra ao presente. Apenas assim ele poderá dizer que seu lugar é a diferença do presente com relação ao passado, assim como para consigo mesmo, pois o diagnóstico é sempre relativo ao presente: sendo lançado a partir deste, ele se volta para o passado e, consequentemente, opera uma transformação no próprio solo ao qual ele pertencia (mas agora não pertence mais).

Dessa maneira, o diagnóstico faz com que o presente perca algo de sua identidade, de sua autoevidência ou de sua presença. Nesse caso, estamos de acordo com a leitura de Javier De La Higuera, segundo a qual, em Foucault, a compreensão do presente caminha ao lado de sua destruição: “compreender o presente é o mesmo que destruir o presente - na forma de uma destruição das evidências que o definem” (DE LA HIGUERA, 2007, p, L). Dessa forma, o diagnóstico não visa a estabelecer a identidade do presente, em função da definição da identidade do passado e do jogo da diferença entre ambas. O diagnóstico apresenta o próprio presente enquanto diferença, assim como também produz diferença no mesmo. Resumidamente, o diagnóstico não usa referências ao passado para, ao mostrar aquilo que uma vez fomos e não somos mais, poder, então, definir aquilo que nós realmente somos. O diagnóstico faz com que o olhar para o passado fomente maneiras para deixarmos de ser aquilo que somos, no presente.

Encontramos novamente essa mesma temática do diagnóstico e da diferença em A arqueologia do saber, quando Foucault pensa sobre seu próprio trabalho. Mais precisamente, o mesmo tipo de reflexão em torno ao diagnóstico é invocado na definição de uma concepção de arquivo enquanto sistema de formação e transformação dos enunciados, ou como o sistema de funcionamento destes. Nesse momento, Foucault acabará retomando a figura do diagnóstico do presente, declarada de suma importância nas entrevistas anteriores. Reencontraremos, por conseguinte, em meio à abordagem da questão do diagnóstico do presente, em outro texto fundamentalmente metodológico, os temas do limite e da transgressão enquanto diferença, ou mesmo alteridade. Segundo as palavras de Foucault (1969, p. 172):

A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da borda do tempo que se projeta sobre nosso presente e que o indica na sua alteridade; é aquilo que, fora de nós, nos limita.

Se a análise do arquivo comporta a região que, fora de nós, nos limita, é porque ela se situa nos nossos próprios limites. Nossa atualidade pode muito bem ser aquilo que está aquém desses limites, mas ela só pode ser pensada, quando nos esforçamos para atingir esses limites. O espaço limiar do diagnóstico é definido, pois, enquanto o espaço do limite que define nosso presente enquanto diferença, porém, sem remetê-lo a qualquer processo fundamentado numa identidade ou origem da qual ele se distancia ou se aproxima. Logo, podemos afirmar que, embora a descrição do arquivo requeira certo afastamento em relação àquilo que não podemos mais dizer, visto não pertencer mais à nossa linguagem, semelhante afastamento não se faz fincando-se as bases noutro solo seguro previamente descoberto. De fato, descrever o arquivo também exige, por parte daquele que o descreve, um esforço para se afastar com relação ao seu próprio solo. Trata-se, por conseguinte, de um processo de afastamento com respeito ao seu próprio solo e linguagem, e não de se posicionar num lugar completamente exterior, a partir do qual a descrição poderia ser feita sem qualquer perturbação e de um ponto de vista pretensamente imparcial.

Dessa maneira, a descrição do arquivo serve para a construção de um diagnóstico que inquieta o presente, assim como o sujeito do diagnóstico perturba e agita a coincidência de ambos para consigo mesmos, mostrando fissuras no encadeamento lógico que os definiria enquanto desenvolvimento ou afastamento de uma origem. Nesse caso, segundo Foucault (1969, p. 172-173), o diagnóstico não é aquilo que permite

[...] fazer o quadro de nossos traços distintivos e esboçar antecipadamente a figura que nós teremos no futuro. Mas ele nos desprende de nossas continuidades; dissipa essa identidade temporal na qual gostamos de nos olhar para conjurar as rupturas na história; rompe o fio das teleologias transcendentais, e lá onde o pensamento antropológico interrogava o ser do homem ou sua subjetividade, ele faz irromper o outro e o fora [dehors no original; nosso grifo]. O diagnóstico, assim entendido, não estabelece a autenticação de nossa identidade pelo jogo das distinções. Ele estabelece que nós somos diferença [nosso grifo], que nossa razão é a diferença dos discursos, nossa história a diferença dos tempos, nosso eu a diferença das máscaras. Que a diferença, longe de ser origem esquecida e recoberta, é esta dispersão que somos e fazemos.

De acordo com a leitura de Roberto Machado, A arqueologia do saber marcaria um significativo afastamento de Foucault da literatura. Conforme Machado (2005, p. 121),

[...] outro aspecto importante dessa mudança de direção do pensamento de Foucault nessa época é que não há em A arqueologia do saber nada que diga respeito à linguagem literária, nem para demarcar sua especificidade, nem muito menos seu privilégio, sua importância por seu poder de transgressão ou de contestação, como se via anteriormente.

Contudo, pensamos que, se Foucault não escreve sobre literatura, por outro lado, ele escreve e pensa de modo literário. Isso não quer dizer que ele escreva com uma preocupação retórica, ou que não haja diferença alguma entre seus trabalhos e uma obra literária. Isso significa que reflexões que encontramos em textos focados em literatura e linguagem modernas são retrabalhadas e apropriadas quando, por exemplo, ele escreve sobre o diagnóstico do presente. Veremos, em seguida, mais indícios de que esse diálogo com o pensamento literário nunca cessou.

2 Instaurar distância para ver aquilo que está demasiado próximo: apagar o próprio rosto ou enuclear o olho

2.1. Apagar o próprio rosto

Na entrevista O belo perigo, Foucault será questionado se a escrita do diagnóstico não buscaria, de toda forma, uma verdade, o que supostamente a faria diferir da produção literária. Foucault responde que, de fato, sua escrita é corriqueira, visto ser transitiva. Isso significa que ela versa sobre algo, não tendo a intenção de tentar erigir-se sobre si mesma, como no caso da literatura. Contudo, se a escrita foucaultiana carrega algum aspecto de referencialidade, assim como procura fazer aparecer alguma verdade, ela não se posiciona no campo da hermenêutica, pois não procura encontrar o sentido que ficou oculto em meio aos campos analisados. A partir dessa primeira distinção concernente à literatura, Foucault praticamente dirá que, se o diagnóstico busca alguma verdade, trata-se de uma verdade que opera um deslocamento do olhar, de modo a possibilitar ver aquilo que, de tão próximo, nós não enxergávamos até então:

Eu tento simplesmente fazer aparecer aquilo que está muito imediatamente presente e, ao mesmo tempo, invisível [...]. Eu gostaria de fazer aparecer aquilo que está próximo demais de nosso olhar para que nós consigamos vê-lo, aquilo que está aí, muito perto de nós, mas que nosso olhar atravessa para vermos outra coisa. [...]. Apreender esta invisibilidade, este invisível daquilo que é demasiado visível, esse afastamento daquilo que é demasiado próximo, esta familiaridade desconhecida é, para mim, a operação importante da minha linguagem e do meu discurso (FOUCAULT, 2011, p. 60-61).

Foucault trata os discursos do passado, mas acreditamos que também as práticas de poder e as técnicas de si analisadas alguns anos depois, em suas pesquisas, de sorte a mostrar que a pretensa familiaridade demasiadamente visível que pensamos ter para com eles, ao final, escondem uma estranheza e singularidade com relação ao nosso próprio pensamento. Ao tentar medir a distância que separa essas práticas das nossas, o diagnóstico pode revelar que nós somos a diferença com relação àquilo que não somos mais. Contudo, não se trata de definir nossa identidade a partir dessa diferença, pois o próprio ato de medir a distância que separa os discursos do passado com relação aos nossos só é possível a partir do momento em que saímos de nosso próprio lugar, isto é, da organização discursiva (mas também dos poderes e da ética) que nos definia até então, e que nos instalamos nessa distância. Apenas assim podemos entender que a perda da própria identidade, bem como da identidade do presente, ocorre mediante um deslocamento de olhar que conduz ambos aos seus respectivos limites, os quais não cessam de se deslocar. Nesse caso, apesar de afastar-se da faceta intransitiva da literatura, o diagnóstico foucaultiano assume um viés literário, na medida em que faz da escrita um processo de alteração daquele que escreve. Ainda em O belo perigo, encontraremos essa figura, através de uma reflexão sobre a escrita do diagnóstico pensada nos termos de um processo de apagamento do rosto:

Escreve-se também para não ter mais rosto [nosso grifo], para esvair a si mesmo sob a própria escrita. Escrevemos para que a vida que temos ao redor, ao lado, por fora, longe da folha de papel, esta vida que não é engraçada, mas incômoda e cheia de preocupações e que é exposta aos outros, se absorva neste pequeno retângulo de papel que temos sob os olhos e do qual somos os donos. Escrever, no fundo, é tentar fazer escorrer toda a substância não somente da existência, mas do corpo, através dos canais misteriosos da pluma e da escrita, nesses traços minúsculos que se depositam sob o papel (FOUCAULT, 2011, p. 57).

Mais uma vez, fica claro como a escrita, para Foucault, não é um processo do qual o sujeito permanece preservado e exterior. Pelo contrário, ele é afetado pelo ato da escrita - tal como a diátese da voz média evidencia. Escrever é uma ação que altera a existência daquele que escreve, de modo tão grave, que a melhor analogia seria o apagamento do próprio rosto. Mesmo em momentos posteriores da mesma entrevista, Foucault ainda insistirá no tema do apagamento do rosto. Para ele, diagnosticar o presente seria uma maneira de escrever para apagar o próprio rosto. Finalmente, apagar o próprio rosto será compreendido nos termos de uma experiência da finitude:

Medir a diferença com relação àquilo que nós não somos, é neste sentido que eu exerço minha linguagem, e é por isso que lhe dizia agora a pouco que escrever é perder o próprio rosto, perder sua própria existência. Não escrevo para dar à minha existência uma solidez de monumento. Eu tento antes absorver minha existência na distância que a separa da morte e, provavelmente, por isso mesmo, a guia para a morte (FOUCAULT, 2011, p. 63-64).

Por conseguinte, conforme apresentado anteriormente, o ato de medir a distância com relação àquilo que nós não somos mais não visa a definir aquilo que somos realmente, todavia, é parte de um engajamento com vistas a não mais ser aquilo que nós éramos. Nessa perspectiva, o diagnóstico do presente é uma forma de apagar tanto o próprio rosto quanto o rosto do presente, no sentido de fazer com que ambos percam sua identidade.

A importância do tema do apagamento do rosto é atestada por seu uso, ao final da introdução d’A arqueologia do saber, livro lançado no mesmo ano da entrevista O belo perigo. Através da construção de um pequeno diálogo com um interlocutor imaginário, podemos perceber que o apagamento do próprio rosto, o qual destacamos como efeito do diagnóstico, perpassa o âmbito da escrita e sua relação com a morte. Vejamos:

- Você não está seguro do que diz? Você vai novamente mudar, deslocar-se em relação às questões que lhe são colocadas, dizer que as objeções não apontam realmente para o lugar desde o qual você se pronuncia? Mais uma vez você se prepara para dizer que você nunca foi aquilo que se critica em você? Você já arranja a saída que lhe permitirá, em seu próximo livro, ressurgir em outro lugar e zombar como o faz agora: não, não, eu não estou onde você me espreita, mas aqui de onde eu te observo rindo.

- Como?! Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em escrever, que eu teria obstinado-me tanto nisso, cabeça baixa, se não preparasse - com as mãos um pouco febris - o labirinto onde me aventurar, deslocar meu propósito, abrir-lhe subterrâneos, forçá-lo para longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e deformam seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos que eu não terei mais que encontrar? Vários, como eu, sem dúvida, escrevem para não ter mais um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever (FOUCAULT, 1969, p. 28).

Se o diagnóstico mostra que nossa identidade é apenas uma máscara, ele não se detém nessa simples constatação. Assim como nesse diálogo imaginário, o qual não pode ser lido enquanto mero recurso retórico, porém, enquanto afirmação de um modo de pensar, o diagnóstico também é uma prática pela qual quebramos essa máscara para fazer surgirem outras máscaras. É nesse sentido que o diagnóstico pode ser um exercício ou uma prática de morte, sem que isso signifique um movimento de autoanulação. Ao demonstrar que nosso eu é uma máscara, o diagnóstico confecciona igualmente novas máscaras, o que faz com que ele possa ser caracterizado como um exercício de alteração de si mesmo. Nesse caso, não há profundas diferenças entre as figuras do apagamento do rosto e a afirmação de que ests rosto não é nada mais que uma máscara. Afinal, um rosto só pode ser denunciado enquanto uma máscara, quando essa máscara é quebrada e se revela que, por trás dela existem apenas outras máscaras.

2.2 Enuclear o olho

Sustentamos que, para entender esse gênero de reflexão em torno ao diagnóstico, podemos retomar a figura batailliana do olho, novamente retornando ao Prefácio à transgressão. Diagnosticar o presente do qual aquele mesmo que diagnostica faz parte pode ser pensado, num plano estético, de forma análoga à maneira como Foucault pensou a figura do olho enucleado ou revirado, em Bataille.

O final do artigo sobre Bataille é o momento em que aparece com destaque a figura do olho. Essa figura do olho, por sua vez, é catalisadora de uma reflexão acerca do ser da linguagem, na modernidade. Desvinculada da representação, a linguagem moderna também não pode ser submetida às funções transcendentais de um sujeito puro que seria a condição de possibilidade das representações. O pensamento de Bataille faz Foucault considerar a linguagem moderna enquanto uma experiência não fundacional da finitude. Na medida em que deve ser concebida enquanto experiência da finitude, a linguagem moderna não pode ser assenhorada pelo filósofo, de modo a romper, assim, a unidade de sua função gramatical. Trata-se, portanto, de uma linguagem que mostra ao filósofo “que ele não está alojado no interior da sua linguagem da mesma maneira; e que no lugar do sujeito falante da filosofia [...] escavou-se um vazio onde se ligam e se desatam, se combinam e se excluem, uma multiplicidade de sujeitos falantes” (FOUCAULT, 2001a, p. 270).

Essa passagem, publicada alguns anos antes das primeiras referências de Foucault ao diagnóstico do presente, indica que o parentesco entre linguagem e morte, pensado dessa maneira, impede que a morte seja tomada como pura aniquilação ou anulação do sujeito. Assim como a figura do apagamento do rosto no diagnóstico, a forma assumida pela morte já era entendida enquanto espaço aberto pela ruptura da unidade do sujeito, o qual dá lugar a possibilidades imprevistas de formas irredutíveis de subjetividade (diferentes de sua figura constituinte). Nesse sentido, escrever de modo a guiar a própria existência para a morte, conforme afirma Foucault, não é o mesmo que escrever para anular ou mortificar a si mesmo. Trata-se de fazer da escrita um exercício para romper com a unidade daquele mesmo que escreve e, assim, dar lugar a outras formas de subjetividade.

É possível que as partes finais do artigo sobre Bataille forneçam as bases para compreendermos como a reflexão em torno ao vínculo entre linguagem moderna e morte também diz respeito ao diagnóstico. Foucault termina seu artigo, ressaltando como, na construção de seu pensamento, Bataille utiliza figuras clássicas da reflexão e do conhecimento na filosofia, como o olho e a luz. Contudo, esse emprego é feito de forma que o olho e a luz tenham seu uso e seu sentido desviados com relação àqueles estabelecidos por certa tradição de pensamento. De acordo com essa tradição, tais figuras normalmente dizem respeito a uma “filosofia da reflexão”, na qual o olho é o órgão da visão e a luz é aquilo que faz com que esse órgão possa cumprir sua função de enxergar a verdade. Esse olho pode se multiplicar e tornar-se cada vez mais interior: “Ele ganha um centro de imaterialidade onde nascem e ligam-se as formas não tangíveis do verdadeiro: este centro das coisas que é o sujeito soberano” (FOUCAULT, 2001a, p. 273). Contudo, o que temos em Bataille, especialmente em romances como História do olho ou O azul do céu, é o movimento através do qual, com o olho enucleado ou voltado para o interior do crânio, se constitui uma forma de olhar que, ultrapassando seu limite globular, visa àquilo que constitui seu próprio ser. Dessa maneira, o clássico órgão do conhecimento - assim como a luz, que faz com que ele possa enxergar - é desviado de sua função e uso estabelecidos por certa tradição (cujo maior expoente talvez seja o “conhece-te a ti mesmo” socrático-platônico), para se tornar operador de uma experiência do ser do limite - ou seja, da finitude.

Esse movimento de olhar para seu próprio olhar apenas pode acontecer quando o sujeito sai de si mesmo. O ser do limite visado pelo olhar e o tipo de conhecimento que ele propicia, em Bataille, são designados através do olho exorbitado ou revirado. Nesse momento, a filosofia se torna uma experiência de pensamento na qual o sujeito é jogado de encontro aos seus limites:

Nessa distância de violência e arrebatamento o olho é visto absolutamente, mas fora de todo olhar: o sujeito filosófico foi jogado para fora de si mesmo, perseguido até seus confins, e a soberania da linguagem filosófica é aquela que fala do fundo dessa distância, no vazio sem medida deixado pelo sujeito exorbitado (FOUCAULT, 2001a, p. 273).

O olho revolucionado remete a esse momento do limite da linguagem em que ela coincide com a morte. Trata-se de um instante de interrupção de sentido no qual, ao voltar-se para a cavidade orbital, aquilo que o olho vê não é um outro mundo ou as profundezas da alma, mas o próprio ser do limite. Assim como a morte não é a linha de um horizonte sempre existente, mas o vazio que o torna possível, o olho revirado olha o seu próprio lugar, “o limite que ele não cessa de transgredir, fazendo-o surgir como absoluto limite no movimento de êxtase que lhe permite lançar-se para o outro lado” (FOUCAULT, 2001a, p. 274). O espaço do pensamento batailliano pode ser designado através dessas figuras de olhos exorbitados ou revirados. É um espaço em que, segundo Foucault (2001a, p. 275),

[...] a morte de Deus [...], a experiência [épreuve] da finitude [...] e o retorno da linguagem sobre si mesma no momento em que ela falha, encontram uma forma de ligação anterior a todo discurso, a qual sem dúvidas tem equivalência com a ligação, familiar em outras filosofias, entre o olhar e a verdade ou a contemplação e o absoluto. Aquilo que se desvela a este olho que, ao girar se vela para sempre, é o ser do limite.

É preciso ressaltar, todavia, que esse movimento pelo qual o olho é transgredido não revela nenhuma positividade, assim como não integra um sentido predeterminado. Se Foucault pode dizer que a figura batailliana do olho designa uma origem, trata-se de uma origem sem positividade: “Para dizer a verdade, o olho revirado em Bataille não significa nada na sua linguagem, pela única razão de que marca o limite dela. Ele indica o momento em que a linguagem, levada aos seus confins, faz irrupção fora de si mesma [...]” (FOUCAULT, 2001b, p. 275). Isso significa que conduzir a linguagem até sua região vazia de sentido, onde ela coincide com a morte, é uma maneira de fazer com que o sujeito que procurava portá-la seja, ele também, conduzido para fora de si mesmo. Foucault percebeu como Bataille opera sobre si mesmo essa transgressão ou transvaloração de seu ser de filósofo, a qual se dá concomitantemente ao modo como as figuras clássicas do conhecimento na filosofia, notadamente o olho e a luz, são levadas aos seus respectivos limites.

Se um pensamento cuja base é esse vazio sem medida deixado pelo sujeito exorbitado produz algum saber, esse saber não pode, contudo, operar de acordo com a revelação de uma presença. Nesse caso, estamos muito próximos de algumas considerações de Bataille, em A experiência interior. Ao procurar separar sua própria concepção de experiência daquela dos místicos cristãos, Bataille afirma que o misticismo submete a perda de si mesmo ao reencontro intelectual para com o divino. Aquilo que ele designa por experiência, por sua vez, não pode ser pensado nos termos de tornar presente uma visão intelectual divina:

Da mesma forma, eu considero a apreensão de Deus, ainda que sem forma e sem modo (sua visão ‘intelectual’ e não sensível), enquanto uma parada no movimento que nos leva à apreensão mais obscura do desconhecido: de uma presença que não é mais em nada distinta de uma ausência (BATAILLE, 2009, p. 17).

Por essa razão, Bataille pode afirmar que “a experiência não revela nada, não pode fundar a crença e nem partir dela” (BATAILLE, 2009, p. 16). Pensamos que o diagnóstico foucaultiano do presente pode ser descrito de forma muito semelhante, pois ele também não fornece um conhecimento positivo fundado nas funções transcendentais de um sujeito, mas um conhecimento cuja principal característica é a de jogar contra seus próprios limites o sujeito que conhece e exerce esse conhecimento, subtraindo-lhe as respostas que ele assumia enquanto estáveis e o mundo no qual ele se reconhecia.

O olho que, revirado ou exorbitado, é lido por Foucault enquanto um indicador da saída do sujeito para fora de si mesmo, pode ser uma boa ilustração desse viés inquietante do saber produzido pelo diagnóstico do presente, pois, da mesma maneira que o diagnóstico é uma atividade, a qual, simultaneamente, mede e instaura diferença, sendo inseparável do deslocamento em relação ao solo a partir do qual se pensa, o olho só pode olhar para sua própria posição, a partir de sua autotransgressão enquanto olho, isto é, ao ser revirado ou exorbitado. É transgredindo sua posição de olho que o olho pode tentar enxergar a atmosfera através da qual ele olhava para ver outras coisas. Ao deslocar-se de sua posição de olho, ele pode ver aquilo que está de tal maneira próximo de nós, que nós não podíamos enxergar.

Por conseguinte, o diagnóstico deve ser considerado enquanto uma atividade transfiguradora tanto do presente quanto daquele mesmo que diagnostica, que faz irromper o outro e o fora em ambos, conduzindo-os sempre para uma margem que pouco tem de asseguradora e que está em constante deslocamento; uma margem à qual nunca se chega, porque ela é uma permanente saída. Dessa maneira, podemos afirmar finalmente que, por um lado, no artigo de 1963, a transgressão batailliana é afastada da figura da violação de uma lei moral e, com isso, retirada do campo da ética (nesse caso, a ética é pressuposta nos termos de uma lei moral). Entretanto, por outro lado, a transgressão ganha outra dimensão ética irredutível à figura da lei quando, vinculada ao diagnóstico do presente, ela se torna uma ação sobre si mesmo cujo resultado é uma perda do próprio rosto e um deslocamento do olhar.

Logo, defendemos que Prefácio à transgressão, para além de um comentário sobre Bataille, também é um texto que repercute na forma com que Foucault constrói seu próprio pensamento, muito tempo depois de 1963. Podemos, nessa medida, afirmar que o diagnóstico foucaultiano, ao incorporar parte da reflexão sobre Bataille, assume a figura de uma experiência-limite. O diagnóstico propicia um saber eminentemente transfigurador do real e se declina numa voz média, na medida em que também é uma ação transformadora de si mesmo. Nesse sentido, se, para Foucault, o papel da filosofia é construir um diagnóstico do presente, para isso não é proposta nenhuma correção de nosso olhar, de sorte a remover os obstáculos que impedem nossos olhos de enxergar. Se fosse esse o caso, Foucault deveria reconduzir seu pensamento ao esforço kantiano de nos fornecer, como base de seu pensamento, uma justa ideia de nosso próprio conhecimento. Nessa perspectiva, seria válida a reprovação de Béatrice Han, para quem falta ao pensamento de Foucault “fundar, em direito, sua própria possibilidade teórica” (HAN, 1998, p. 257). Contudo, na medida em que o diagnóstico foucaultiano tem como efeito alterar tanto o presente quanto o sujeito do diagnóstico, ele é um procedimento de apagamento do rosto e enucleação do olhar, e não de sua correção. Censurar sua falta de fundação em direito é tentar impor uma teleologia a uma alteração de si e do mundo fundamentalmente ateleológica.

3 História e livros-experiência

Se, em torno à questão do diagnóstico do presente, Foucault incorpora todo esse conjunto de reflexões sobre a escrita e a linguagem modernas, a relação destas com a morte, e as figuras da transgressão e da experiência-limite no pensamento batailliano, é preciso levar em conta que essa apropriação ocorre apenas mediante alguns deslocamentos dessas reflexões. Desse modo, concluímos, ressaltando dois desses deslocamentos. Em primeiro lugar, Foucault vai atribuir à história uma centralidade no papel filosófico do diagnóstico, de maneira que muitas das considerações que apontamos até agora sobre o diagnóstico serão estendidas também à história. Com isso, a possibilidade de transformar o presente e aquele mesmo que diagnostica será pensada enquanto parte de um trabalho histórico-filosófico. Essa especial atenção à história, no pensamento foucaultiano, se inicia já em meados e final da década de 1960, o que significa dizer que ela é concomitante às reflexões sobre o diagnóstico. Da mesma forma, o vínculo entre história e diagnóstico não parece ter sido abandonado posteriormente, apesar dos deslocamentos de foco no pensamento foucaultiano em direção às relações de poder e às práticas de si.

Em segundo lugar, o modo como Foucault volta a enfatizar o pensamento de Bataille e Blanchot, a partir de 1978, nos momentos em que ele pensa sobre seu próprio pensamento, é um indício derradeiro de que esses autores não são alvo de um interesse episódico, por parte de Foucault. Pelo contrário, as menções tardias a esses pensadores constituem um sinal de que parte do pensamento deles estava sendo retrabalhada por Foucault. Nesse caso, enfatizamos a noção de livro-experiência, a qual aparece numa longa entrevista de 1978, na qual a dimensão ética da noção batailliana de experiência é posta em evidência. Inventando o termo livro-experiência, Foucault explora a dimensão ético-política dos seus próprios livros. De acordo com essa dimensão ético-política, seus livros devem operar uma alteração na forma com que ele mesmo pensa e na forma com que nossa atualidade se organiza e se reconhece. Nossa relação conosco mesmos, com os outros e com aquilo que está em questão nos seus livros deve ser colocada em jogo, tanto pela escrita quanto pela leitura. Analogamente, esse questionamento deve ser atravessado pelos outros, de forma a ser inserido numa prática coletiva. Vejamos pormenorizadamente esses dois deslocamentos através dos quais as considerações sobre linguagem e diagnóstico se articulam com a história e com a noção batailliana de experiência.

Com relação à dimensão literária do diagnóstico, estendida por Foucault à história, ela parece acompanhar suas reflexões sobre o vínculo do diagnóstico com a linguagem moderna e a morte. Isso se passa já na década de 1960, quando a história será pensada, não enquanto uma forma de identificar o passado e o presente, mas de afastar-se de um passado próximo que ainda ressoa no presente. Com efeito, na entrevista Sobre as maneiras de se escrever a história, de 1967, encontraremos uma reflexão análoga àquela que desenvolvemos junto às entrevistas, segundo a qual o diagnóstico precisa situar-se no ser dos limites do presente e também daquele que diagnostica, produzindo, com isso, uma alteração em ambos. Ao abordar o modo como foram estabelecidos os limites epocais apresentados em As palavras e as coisas, Foucault responde que, no caso da modernidade, foi preciso fazer com que seu próprio discurso produzisse uma diferença que nos afastasse de certos elementos do presente (evidentemente, trata-se de afastar-se dos pensamentos que fizeram do homem sujeito e objeto de conhecimento):

De fato, eu posso definir a idade clássica em sua configuração própria pela dupla diferença que a opõe, por um lado, ao século XVI, e, por outro lado, ao XIX. Contudo, eu posso definir a idade moderna em sua singularidade apenas opondo-a, de um lado, ao XVII, e, de outro lado, a nós; deste modo, para poder operar a partilha sem cessar, é preciso fazer surgir sob cada uma de nossas frases, a diferença que nos separa dela. Logo, trata-se de desprender-se desta idade moderna que começa por volta de 1790-1810 e vai até 1950, enquanto que, com relação à idade clássica, trata-se apenas de descrevê-la (FOUCAULT, 2001a, p. 626-627).

Evidentemente, nessa passagem específica, Foucault se refere à necessidade desprender-se dos pensamentos que fizeram do homem sujeito e objeto de conhecimento. Porém, essa mesma afirmação pode ser feita para todos os seus trabalhos, incluindo aqueles que focalizam as disciplinas e o dispositivo da sexualidade. Tratar-se-á sempre de desprender-se dos mecanismos de sujeição e assujeitamento descritos em suas obras posteriores. Nessa mesma passagem, mais uma vez, podemos ainda notar a exposição da dimensão reflexiva do diagnóstico. Para além de descrever, o diagnóstico provoca igualmente um afastamento ou desprendimento com relação a um passado que, de tão próximo, ainda perpassa nossas maneiras de agir e pensar no presente. Com esse afastamento, escava-se um interstício pelo qual o presente deixa de ser aquilo que ele é. No momento em que o diganóstico provoca semelhante afastamento com relação a certas “palavras que ainda ressoam em nossas orelhas”, Foucault escreve que “o arqueólogo, como o filósofo nietzschiano, é obrigado a operar com golpes de martelo” (FOUCAULT, 2001a, p. 627). Ou seja, ao lidar com um passado que ainda não passou completamente, o diagnóstico do presente integra um esforço para se desprender ativamente desse passado e transformar o presente. A história, quando vinculada ao diagnóstico, se torna, então, um instrumento de distanciamento com relação a esse presente que ressoa um passado próximo, ao mesmo tempo em que ela dá espaço a um presente outro.

Semelhante valorização da história para a construção de um método não pode ser compreendida, contudo, enquanto uma ingênua retomada contemporânea daquilo que foi parte do historicismo no século XIX. Não se trata, para Foucault, de fazer com que a história mostre a verdade da filosofia, assim como não se trata de fazer história da filosofia e nem filosofia da história. Para o pensamento foucaultiano, a história tem sua importância, por ser análoga a uma etnologia de nós mesmos, a saber, uma descrição de nossa própria cultura:

Mas, com isso, a história não deve ter o papel de uma filosofia das filosofias, prevalecer enquanto a linguagem das linguagens como, no século XIX, pretendia um historicismo que visava atribuir à história o poder legislador e crítico da filosofia. Se a história tem um privilégio, ele estaria muito mais na medida em que ela desempenharia o papel de uma etnologia de nossa própria cultura e de nossa racionalidade, e, em consequência, encarnaria a possibilidade mesma de toda etnologia (FOUCAULT, 2001a, p. 626).

Para pensarmos como a história poderia funcionar enquanto uma etnologia de nós mesmos, é preciso levar em conta que, como descrição de uma cultura diferente daquela do etnólogo, a etnologia de nossa racionalidade só seria possível por meio de certo distanciamento para com essa cultura e racionalidade da qual fazemos parte e a partir da qual nós pensamos. Para fazermos uma etnologia de nós mesmos, é necessário que nos afastemos de tudo aquilo que consideramos propriedades que marcam nossa identidade. Enquanto etnologia de nós mesmos, a história deve trabalhar com as descontinuidades históricas; porém, ao mesmo tempo, seu próprio trabalho deve provocar descontinuidades naquilo que ela descreve. Por esse motivo, Foucault pode dizer que a história encarna a possibilidade de toda etnologia, pois a história se torna o espaço da própria diferença cultural, a qual torna possível que se escreva sobre outra cultura. Essa cultura, contudo, é aquela que pensávamos ser a nossa própria cultura, mas da qual nos afastamos, durante a construção do diagnóstico.

Nesse caso, a história segue com as mesmas características do diagnóstico desenvolvidas anteriormente, através das considerações sobre a relação entre diagnóstico, diferença, transgressão e morte, em O belo perigo, A arqueologia do saber e Prefácio à transgressão. Ao declarar que a história pode desempenhar o papel de uma etnologia de nós mesmos, e se levarmos em conta que essa história deve mostrar que as identidades do passado e do presente são como máscaras, podemos sustentar que a história integra um procedimento para apagar o rosto de nossa própria cultura e, logo, apagar nosso próprio rosto. O diagnóstico histórico mostra que tanto o rosto do passado quanto o do presente são nada mais que máscaras cuja identidade é somente um efeito tardio da relação com outras máscaras. O martelo nietzschiano, mencionado por Foucault, serve para testar os reflexos de um organismo e avaliar sua vitalidade. Entretanto, ele também pode ser usado para produzir fissuras no presente e transfigurar o rosto do filósofo. Da mesma maneira que Foucault encontrava na escrita moderna um exercício de morte que o fazia deslocar-se da forma como ele pensava, o diagnóstico também faz com que aquele que o formula, assim como o presente ao qual ele se refere, se desprendam de si mesmos. Esse desprendimento ou afastamento, contudo, seguindo a lógica do artigo de 1963 sobre Bataille, não pode nos situar fora de nossa cultura, mas sim em seus limites, funcionando, por isso, enquanto uma experiência-limite.

A importância desse vínculo entre diagnóstico, história e experiência-limite pode ser notada pela sua recorrência, em textos e entrevistas posteriores. Durante a mesa-redonda da conferência A verdade e as formas jurídicas, ocorrida em 1973, momento no qual as investigações genealógicas estão em pleno funcionamento, encontraremos um exemplo do referido vínculo. Foucault dirá que, de fato, a maquinaria metodológica de seu trabalho, apesar de trabalhar com a história, não obedece às mesmas leis de verificação do discurso histórico. As pesquisas arqueogenealógicas não têm por finalidade reproduzir exatamente aquilo que se passou. Todavia, isso não é um sinal de descompromisso para com a verdade, mas indica que a história, em seu caso, não está submetida à memória, à representação ou à descoberta do passado, porém, a uma forma de afastamento ou esquecimento ativo desse passado. Assinala Foucault (2001a, p. 1512):

Eu diria, de maneira muito mais pragmática, que no fundo minha máquina é boa; não na medida em que ela transcreve ou que ela fornece o modelo daquilo que se passou, mas na medida em que ela consegue dar àquilo que se passou um modelo tal que ele permita que nós nos liberemos daquilo que se passou.

Finalmente, a retomada desse conjunto de reflexões, muitos anos depois, é sinal de que sua importância não é secundária. Se, por um lado, Foucault as incorpora para a constituição de seu pensamento, por outro, elas parecem ser retrabalhadas à luz das novas vias abertas por suas pesquisas. Isso pode ser detectado em textos como a entrevista mais longa de toda a compilação dos Ditos e escritos, concedida no final de 1978, mas publicada apenas em 1980. Ao prestar contas sobre a constituição de seu pensamento e escrita, Foucault irá mobilizar novamente o conjunto de considerações que apresentamos anteriormente, em função de textos muito mais antigos. Quando, logo a primeira pergunta, faz referência às transformações ocorridas em seu pensamento, desde História da loucura, Foucault (2001b, p. 860-861) responde que elas se devem a seus livros funcionarem antes enquanto experiências que como demonstrações:

Eu nunca penso exatamente a mesma coisa pela razão de que meus livros são como experiências para mim, e isso no sentido que eu gostaria que fosse o mais pleno possível do termo. Uma experiência é algo de que se sai transformado [on sort soi-même transformé] [...]. Se devesse escrever um livro para comunicar aquilo que eu já penso antes mesmo de começar a escrever, eu não teria a coragem de fazê-lo. Eu somente escrevo porque eu ainda não sei exatamente o que pensar dessa coisa que eu gostaria tanto de escrever. De modo que o livro me transforma e transforma o que eu penso.

A noção de experiência invocada por Foucault é o eixo em torno ao qual são retomadas algumas de suas reflexões mais antigas sobre o diagnóstico, notadamente quando ele menciona, em O belo perigo e A arqueologia do saber, que escreve para apagar o próprio rosto, e que a escrita guia sua existência rumo à morte. Nesse caso, quase dez anos depois, estamos diante de mais uma evidência direta de que a escrita e o próprio pensamento são práticas que se declinam numa voz média enquanto ação que repercute sobre si mesmo. Contudo, nesse momento, o pensamento de Foucault se organiza em torno a uma noção de experiência que, para ser explorada, não é preciso deter-se essencialmente na linguagem moderna, tal como feito na década de 1960. Apesar de essa reflexão se iniciar com o tema da escrita, Foucault aborda fundamentalmente temas ético-políticos, os quais dizem respeito à noção de experiência que ele aprendeu com suas leituras de Bataille, Blanchot, Klossowski e Nietzsche. Logo, ao invés de se focar na experiência da linguagem a partir desses autores, Foucault se concentra na dimensão ético-política.

Primeiramente, Foucault define melhor essa concepção de experiência, ao afastá-la de sua correlata fenomenológica. A fenomenologia analisa os desdobramentos da experiência cotidiana, isto é, do vivido, para buscar seu fundamento nas funções transcendentais de um sujeito, ainda que em sua dimensão pré-reflexiva e mais fundamental que o cogito cartesiano. Já a experiência em Bataille, Blanchot e Nietzsche é aquilo que fez com que todos os livros de Foucault, por mais cinzentos que sejam, devido às suas minuciosas genealogias, funcionassem como experiências que o impedissem de continuar a pensar como ele pensava. Segundo Foucault (2001b, p. 862), a experiência, nesses pensadores,

[...] é tentar chegar a certo ponto da vida que seja o mais próximo do invivível. Aquilo que é requerido é o máximo de intensidade e, ao mesmo tempo, de impossibilidade. [...]. [A experiência] tem por função arrancar o sujeito de si mesmo, de fazer com que ele não seja ele mesmo ou que ele seja levado ao seu aniquilamento ou dissolução. Trata-se de uma empreitada de dessubjetivação.

Podemos afirmar que essa noção de experiência carrega um viés ético-político, devido à necessidade de que, além daquele que escreve, os outros estejam de alguma forma implicados na experiência fomentada pelo livro. Assevera Foucault: “Uma experiência é algo que se faz completamente a sós, mas que não pode ser feito plenamente senão na medida em que ela escapará à pura subjetividade, e que outros poderão, eu não digo retomá-la exatamente, mas ao menos cruza-la e atravessa-la” (FOUCAULT, 2001b, p. 866). Este é o caso de livros como História da loucura e Vigiar e punir, em que, particularmente no último caso, não há nenhuma menção à noção de experiência referida por Foucault. Todos esses livros lidam com temas que perpassaram a vida de Foucault, desde seu trabalho em hospitais psiquiátricos, até sua militância no G. I. P. Mas esses trabalhos também dizem respeito a questões coletivas muito mais amplas. Sua abrangência mais ampla é atestada pelas reações que as obras causaram, notadamente naqueles que trabalhavam nos hospitais psiquiátricos, nos agentes penitenciários e trabalhadores do serviço social. Muitos afirmaram que esses livros bloqueavam suas atividades nesses meios, de sorte a se tornarem um obstáculo à continuidade de certas práticas cotidianas. Para Foucault, se os seus livros ajudaram a operar uma paralização das atitudes e procedimentos corriqueiros, isso é justamente um sinal de que eles funcionaram mais que experiências que verdades meramente demonstrativas:

O livro é lido, então, como uma experiência que transforma, que impede de ser sempre os mesmos, ou de ter para com as coisas, para com os outros, o mesmo tipo de relação que se tinha antes da leitura. Isso mostra que no livro é expressa uma experiência muito mais ampla que a minha. Ele não fez nada mais que se inscrever em algo que estava efetivamente em curso; pode-se dizer, na transformação do homem contemporâneo com relação à ideia que ele tem de si mesmo (FOUCAULT, 2001b, p. 866).

Essa definição parece fomentar uma tensão entre, de um lado, livros que funcionam como uma experiência antes que como uma verdade, e, de outro lado, os rigores exigidos pela pesquisa. O entrevistador não deixa de notar essa tensão, ao que Foucault responde que, evidentemente, é necessário que o livro respeite critérios de rigor acadêmico. Todavia, uma experiência pode destituir uma determinada forma com que a produção da verdade se articula com certos modos de governo dos outros e de si mesmo, sem que essa experiência seja classificada ela mesma enquanto verdadeira ou falsa. Logo, mais importante que a verificação das verdades do livro é a alteração ética, política e da verdade que ele enseja, processo este pensado por Foucault, nos termos de uma ficção:

Contudo, o essencial não se encontra na série de constatações verdadeiras ou historicamente verificáveis, mas sim na experiência que o livro permite fazer. Oras, esta experiência não é nem verdadeira e nem falsa. Uma experiência é sempre uma ficção; é algo que se fabrica para si mesmo, que não existia antes e que passará a existir depois. Esta é a relação difícil para com a verdade, o modo como esta última se encontra engajada numa experiência que não está ligada a ela [à verdade DVG] e que, até certo ponto, a destrói (FOUCAULT, 2001b, p. 864).

O modo como um livro pode ensejar uma experiência capaz de destruir uma verdade e, mais precisamente, destruir o modo como ela está circularmente articulada a formas de governar os outros e a si mesmo que sustentam essa verdade e que ela também ajuda a sustentar, é muito semelhante ao modo como Foucault pensou a escrita do diagnóstico, nos termos de apagamento do próprio rosto. Nessa perslpectiva, a experiência-limite, pensada através de Bataille e Blanchot, é como um exercício ético de morte, o qual deve ser integrado a práticas coletivas de luta política. Essa figura da morte, como já mencionamos, não pode ser definida nos termos de aniquilamento ou anulação, mas de uma alteração tanto do mundo quanto de si mesmo. Assim como o diagnóstico assume a figura batailliana do olho revirado, isto é, daquele que transgride sua própria posição de olho de modo a olhar para si mesmo, um livro-experiência precisa enfrentar-se com o mundo ao qual ele pertence, fabricar uma alteração, seja nele, seja naquele que o escreve.

É nesse sentido que, tanto em 1969 quanto em 1978, Foucault pode argumentar que sempre escreve de modo a ver ou diagnosticar algo sobre o que ele não sabe exatamente o que pensar, no momento imediatamente anterior ao início da escrita. Se Foucault já soubesse o que escrever acerca desse algo, ele estaria aplicando um sistema puro que revelaria a verdade sobre o objeto da escrita. Porém, ele afirma algo diverso:

Cada livro transforma o que eu pensava quando eu terminava o livro precedente. Sou um experimentador e não um teórico. Chamo de teórico aquele que constrói um sistema geral de dedução ou análise, e o aplica de modo uniforme a diferentes campos. Este não é o meu caso. Sou um experimentador no sentido que escrevo para mudar a mim mesmo e não mais pensar a mesma coisa que antes (FOUCAULT, 2001b, p. 861).

Esse movimento atesta que a escrita, assim como o diagnóstico, rompeu com a unidade subjetiva do próprio autor Michel Foucault. Ademais, ao ser cruzada pelos outros, a experiência do livro faz com que o diagnóstico de nosso presente seja uma forma de conduzir a si mesmo de um modo diverso daquele preconizado por um regime de verdade. Um livro-experiência interrompe, assim, o vínculo entre as formas de poder, saber e governo de si as quais permitem nosso autorreconhecimento. Nesse sentido, cada um de seus livros pode muito bem fazer uso de documentos verdadeiros,

[...] mas de modo que através deles seja possível de se efetuar não somente uma constatação de verdade, mas também uma experiência que autoriza uma alteração, uma transformação da relação que nós temos para com nós mesmos e com o mundo em que, até então, nós nos reconhecíamos sem problemas (numa palavra, com nosso saber) (FOUCAULT, 2001b, p. 864-865).

Por conseguinte, se a noção de experiência incorporada por Foucault, a partir dos pensamentos de Bataille e Blanchot, retira toda teleologia da transformação de si mesmo, do mundo e dos saberes que os envolvem, isso não faz, contudo, que ela seja irracional. As práticas sociais pelas quais certas formas de subjetividade são recusadas e retrabalhadas, em pequena ou larga escala, fazem com que essa experiência não seja absolutamente irracional ou remeta a alguma exterioridade selvagem. Na medida em que uma experiência precisa ser atravessada por outros, retrabalhada em práticas coletivas, isso significa que ela é condizente a um contexto específico. Uma experiência provocada por um livro será, portanto, tão histórica quanto os mecanismos que esses livros procuram descrever.

Considerações finais

Se nos voltarmos ao conjunto dos trabalhos de Foucault, é possível assegurar que fazer uma história das práticas que separam a razão de seu outro, ou da relação da medicina com a morte, ou dos métodos de punição e de produção de verdade sobre os homens, ou, ainda, fazer a história pela qual os homens se produziram e produziram os outros, enquanto sujeitos que encontram na sua sexualidade a sua própria identidade, é um modo de deixar de ter para com a loucura, a morte, a sexualidade, os saberes sobre os homens, a mesma relação que mantínhamos até então. Pensamos que essa dimensão de livro-experiência está presente no prefácio a O uso dos prazeres e O cuidado de si, quando Foucault, novamente, interroga sobre seu próprio pensamento:

Mas o que é a filosofia hoje em dia - quero dizer, a atividade filosófica - senão o trabalho crítico do pensamento sobre si mesmo? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? Existe sempre algo de derrisório no discurso filosófico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua verdade e de que maneira encontrá-la, ou quando se obstina em processá-los através de uma ingênua positividade. Mas é seu direito explorar o que deve ser mudado, no seu próprio pensamento, através do exercício de um saber que lhe é estranho. O ‘ensaio’ - que é necessário entender como experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação - é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela ainda for hoje o que era outrora, isto é, uma ‘ascese’, um exercício de si no pensamento [grifo nosso] (FOUCAULT, 1984a, p.14-15).

Uma vez que a filosofia, enquanto atividade crítica, é uma experiência modificadora de si, no jogo da verdade, e não um acúmulo de conhecimentos, nós nos deparamos, mais uma vez, com as ideias que giram em torno à noção de livro-experiência. Muito embora esse texto de Foucault ecoe seus estudos sobre as práticas de si na antiguidade, notadamente quando orientadas pelo eixo do cuidado de si, ele também parece dialogar com os escritos mais antigos que mencionamos anteriormente. O caminho filosófico que mais interessa a Foucault é aquele que torna possível uma saída de si mesmo. Essa via, por sua vez, não deve ser um movimento solipsista, mas uma provocação estendida aos outros. Tal provocação se dá, metodologicamente, ao se interrogar “em que medida o trabalho de pensar sua própria história pode liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente” (FOUCAULT, 1984a, p. 15). Ao que parece, nesse prefácio Foucault opera mais um deslocamento, desta vez com relação à separação entre verdade e experiência. No caso do prefácio de 1984, o trabalho crítico do pensamento sobre si mesmo, o qual se dá em ensaios que são experiências modificadoras de si no jogo da verdade, parece apagar a distinção entre verdade e experiência da entrevista de 1978. No prefácio, a própria verdade parece ser pensada a partir da força de alteração de si e do mundo mencionada na entrevista com Trombadori, tornando-se, ela também, uma experiência ficcionante.

Nesse caso, a história aparece enquanto um elemento que faz do saber não um modo de nos orientar numa via pré-determinada, ou de estabelecer nossas identidades, porém, uma maneira de nos desidentificarmos - tal como uma etnologia de nossa própria cultura. De certo modo, a história mobilizada pelo diagnóstico assume a função da escrita e da literatura modernas, tratadas por Foucault nas entrevistas que mencionamos anteriormente, fazendo com que aquele que escreve seja alterado. Nesse sentido, podemos dizer que, muito embora não haja, em Foucault, uma filosofia da alteridade que desempenhe o papel de uma filosofia primeira, as considerações que ele faz sobre si mesmo indicam claramente que esse pensamento visa a propiciar uma alteração, tanto no filósofo quanto no mundo ao qual ele pertence. Trata-se de uma alteridade imanente, a qual designamos através do termo alteração, incorporada por Foucault em seu pensamento, através da importância da história, e de uma noção crítica de diagnóstico que objetiva pensar e situar-se no ser mesmo dos limites da atualidade investigada, assim como nos limites do próprio investigador.

Referências

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    FOUCAULT Michel. L'archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.
  • 15
    FOUCAULT Michel. Le beau danger. Paris: EHESS, 2011.
  • 16
    FOUCAULT Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
  • 17
    FOUCAULT Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2006.
  • 18
    GALANTIN D V. A dimensão literária da genealogia em Foucault. IN: Kriterion. Vol.60, N.143. Agosto de 2019, Belo Horizonte, p. 297-317.
  • 19
    GROS Frédéric. Situation du cours. IN : FOUCAULT, Michel. Le courage de la vérité : le gouvernement de soi et des autres II. Paris : Seuil ; Gallimard, 2009. p. 314-328.
  • 20
    HAN Béatrice. L'ontologie manquée de Michel Foucault. Grenoble: Millon, 1998.
  • 2
    . Para uma análise mais aprofundada acerca da voz média, ver o capítulo “Ativo e médio no verbo”, de Problemas de linguística geral I (BENVENISTE, 1991, p. 183-191). Segundo Benveniste, a oposição verbal entre ativo e médio é anterior à oposição entre ativo e passivo. Em linhas gerais, nas línguas indo-europeias, a diátese ativa indica um processo em que o sujeito se encontra numa posição exterior, enquanto na média, o sujeito é afetado pelo próprio processo do qual ele é a sede.
  • 3
    . Nesse trecho, a noção de fora parece remeter ao modo como este foi tratado por Blanchot. Novamente, assim como a palavra “interior”, de A experiência interior, de Bataille, não remete à interioridade psicológica ou a um sujeito transcendental, mas a um sujeito levado aos seus limites, a noção de “fora” em Blanchot parece muito mais designar um limite que uma exterioridade absoluta. Sobre isso, ver o artigo de Foucault “O pensamento do fora” (FOUCAULT, 2001a, p. 546-567).
  • 4
    . Muito daquilo que, em 1971, Foucault escreverá em Nietzsche, a genealogia, a história, pode ser encontrado nesse livro, especialmente quando a história é pensada como forma de perturbar identidades.
  • 5
    . Sobre a figura da máscara no pensamento de Michel Foucault, notadamente sua presença tanto na genealogia quanto nos escritos sobre o pensamento literário, ver o artigo “A dimensão literária da genealogia em Foucault” (GALANTIN, 2019, p. 297-317).
  • 6
    . Isso é um indício de que Foucault estaria revisitando seu próprio pensamento passado, a partir de novas questões que surgem naquele momento. Cremos que a principal dessas questões novas é repensar as relações de poder nos termos de governo, no curso Segurança, território, população (FOUCAULT, 2008). Pensar o poder nos termos de governo abre a via dupla do governo dos outros e do governo de si mesmo, em que a política e a ética se entrecruzam. Sobre isso, ver o artigo “A governamentalidade política no pensamento de Foucault” (CANDIOTTO, 2010, p. 33-43).
  • . GALANTIN, D. V. The literary dimension of the diagnosis of the present in Foucault. Trans/form/ação, Marília, v. 43, n. 3, p. 71-100, Jul./Set., 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2018
  • Aceito
    27 Dez 2019
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