Open-access Por um Novo Estatuto Temático da Carta a D’Alembert

A new approach to the Letter to d’Alembert

RESUMO:

A réplica rousseauniana a d’Alembert, autor do verbete Genebra da Enciclopédia, foi batizada como Carta sobre os espetáculos, em respeito ao tema nela tratado após os dez primeiros parágrafos, os quais abordam explicitamente o tema da intolerância religiosa. Contudo, o presente artigo apresenta, sob a perspectiva de uma moral da tolerância que não se resume às questões religiosas, a defesa de que a Carta a d’Alembert é uma integral e avançada Carta sobre a Tolerância, por contemplar, além do discurso iluminista de recusa à inquirição ou inspeção da fé alheia em matéria de religião, uma atualizada recusa multiculturalista ao etnocentrismo.

PALAVRAS-CHAVE: Tolerância; Religião; Multiculturalismo

ABSTRACT:

Rousseau’s letter to d’Alembert, author of the Encyclopedia entry on Geneva, is known as the Letter on Spectacles. The title subject is dealt with after the letter’s first ten paragraphs, which explicitly address the issue of religious intolerance. The present article presents, from a perspective of a moral tolerance that is not limited to religious affairs, the argument that the letter to d’Alembert is a comprehensive and advanced Letter on Tolerance. In addition to its Enlightenment discourse of refusal of inquiry or inspection of the faith of others on religious matters, the letter contains an up-to-date multiculturalist rejection of ethnocentrism.

KEYWORDS: Tolerance; Religion; Multiculturalism

Em seu artigo Genebra, publicado como verbete da Enciclopédia, no ano de 1757, o matemático d’Alembert avança sobre a religião protestante na qualidade de um católico e, na qualidade de um philosophe, sobre os caracteres culturais da cidade de Genebra. O estatuto de católico é confessado pelo próprio d’Alembert, em sua treplicante Carta a J.-J. Rousseau, Cidadão de Genebra:

[...] a Igreja Romana tem uma linguagem consagrada sobre a divindade do Verbo e nos obriga a encarar impiedosamente como arianos os que não usam desta linguagem. Os pastores de Genebra dirão que não reconhecem a Igreja romana como seu juiz; mas hão de tolerar, aparentemente, que eu a considere como o meu. (D’ALEMBERT, 1993a, p. 190).

É como súdito da Igreja romana que d’Alembert faz requisições favoráveis à sua fé religiosa, chegando a assumir um tom de chacota ante os objetos do culto genebrino. Aludindo à chave que Genebra utiliza como símbolo junto à divisa post tenebras lux (“luz após a escuridão”), destaca que esse emblema tem origem católica e insinua que a manutenção deste e de outros indica que o rompimento genebrino dos laços com o cristianismo romano, e com a postura religiosa em geral, não passaria de um engodo:

[...] depois de ter rompido com uma espécie de superstição todos os laços que a podiam ligar a Roma, ela [Genebra] julgou, ao que parece, que a divisa post tenebras lux, que exprime perfeitamente, segundo ela, seu estado atual com relação à religião, lhe permitisse nada mudar do resto de seus emblemas. (D’ALEMBERT, 1993b, p. 148, grifo nosso).

Em seguida, o autor de Genebra ousa fazer um requerimento à cidade, para que esta retire das portas do seu palácio municipal a inscrição a qual ele considera ofensiva aos sentimentos católicos:

Vemos ainda entre as duas portas do palácio municipal de Genebra uma inscrição latina em memória da abolição da religião católica. O papa é chamado “Anticristo”; essa expressão, que o fanatismo da liberdade e da novidade se permitiu num século ainda semi-bárbaro, hoje nos parece pouco digna de uma cidade tão filosófica. Ousamos convidá-la a substituir esse monumento injurioso e grosseiro por uma inscrição mais verdadeira, mais nobre e mais simples. Para os católicos, o papa é o chefe da verdadeira Igreja; para os protestantes prudentes e moderados, é um soberano que respeitam como príncipe sem obedecer-lhe: mas, num século como o nosso, ele já não é o Anticristo para ninguém. (D’ALEMBERT, 1993b, p. 148).

No mesmo texto, Calvino é chamado de “herético” (D’ALEMBERT, 1993b, p. 149) e tido por autor de atos tão repreensíveis quanto o da noite de São Bartolomeu, e o clero genebrino acusado de contradição por estarem, os seus membros, “[...] longe de pensarem todos da mesma forma sobre os artigos que em outros lugares são considerados os mais importantes para a religião” (D’ALEMBERT, 1993b, p. 156). É nesse particular que o enciclopedista católico adentra na questão do dogma da divindade de Jesus e do inferno, acerca do qual declara:

O inferno, um dos pontos principais de nossa crença, não o é para muitos ministros de Genebra; seria, segundo eles, injuriar a divindade imaginar que o Ser cheio de bondade e de justiça fosse capaz de punir nossas culpas com tormentos eternos: explicam do modo menos mau que podem os trechos formais das Escrituras que são contrários à sua opinião, pretendendo que nunca se deve tomar ao pé da letra nos livros santos tudo o que parece ferir a humanidade e a razão. Acreditam, portanto, que há castigos numa outra vida, mas durante algum tempo; assim, o purgatório, que foi uma das principais causas da separação entre os Protestantes e a Igreja romana, hoje é o único castigo que muitos deles admitem para depois da morte: novo traço a acrescentar à história das contradições humanas. (D’ALEMBERT, 1993b, p. 157, grifo nosso).

Por fim, na sequência, d’Alembert chega ao ponto que Rousseau entenderá ser merecedor de uma réplica defensiva em favor dos pastores de Genebra:

Para resumir, muitos pastores de Genebra têm como única religião um socinianismo perfeito, rejeitando tudo o que chamamos “mistérios”, e imaginando que o primeiro princípio de uma verdadeira religião é não propor à crença nada que se choque com a razão: assim, quando os interrogamos sobre a necessidade da revelação, este dogma tão essencial ao cristianismo, muitos deles a substituem pelo termo “utilidade” [...] o respeito por Jesus Cristo e pelas Escrituras são talvez a única coisa que distingue de um mero deísmo o cristianismo de Genebra. (D’ALEMBERT, 1993b, p. 157, grifo do autor).

Além da perspectiva católica com a qual descreve a fé dos pastores de Genebra, d’Alembert assume também uma elitista identidade philosophique, para justificar o projeto de instalar um teatro em Genebra sob a sugestão de que o povo genebrino seria formado por almas comuns, as quais precisariam de esclarecimento:

[...] se os séculos esclarecidos não são menos corrompidos do que os outros, é porque a luz é difundida muito desigualmente; porque está limitada e concentrada num número pequeno demais de mentes; porque os raios que escapam dali para o povo têm força suficiente para revelar às almas comuns o atrativo e as vantagens do vício, e não para as fazer ver os seus perigos e o seu horror: o grande defeito deste século filósofo é ainda não o ser o bastante. (D’ALEMBERT, 1993a, p. 183, grifo nosso).

Ante tal gênero de requisição, Rousseau (1995b, p. 14) recusará com uma argumentação semelhante à que Helvétius2 utilizara contra a existência dos corpos clericais no Estado: “V. Sa. será certamente o primeiro filósofo a incitar um povo livre, uma pequena cidade e um Estado pobre, a assumir as despesas de um espetáculo público”, e indagará, em face da cultura local e antecipando-se a uma noção multiculturalista de tolerância, “se [tais espetáculos] devem ser tolerados3.

Como o tema da tolerância na Carta a d’Alembert não é apenas matéria de uma introdução sobre religião, mas o fio condutor de todo o texto que Rousseau dirige contra os abusos cometidos pelo autor do artigo Genebra, é justo que tal Carta possa ser designada como Carta sobre a tolerância, ou melhor, como uma crítica à intolerância enquanto inspeção exercida sobre a fé alheia e enquanto pressão etnocêntrica exercida sobre culturas locais.

No tocante ao primeiro ponto, já se disse que d’Alembert acusara os ministros religiosos de assumirem uma fé sociniana4. Rousseau, embora nutrindo alguma reserva em relação à vulgata dos socinianos — pela qual eles eram associados a um racionalismo radical e abolidor de todo mistério — prefere-os aos ortodoxos católicos, por entender que estes não veriam quaisquer absurdos em toda espécie de mistérios. Reconhecendo em d’Alembert esse ortodoxo e supondo-o portador de uma orgulhosa intolerância e destituído de bastante razão para perceber os absurdos de alguns dos mistérios nos quais acredita, o genebrino argumenta:

[...] se o sociniano descobre neles [nos mistérios] esse absurdo, que lhe havemos de dizer? Provar-lhe-emos que não há ali nenhum absurdo? Por sua parte, ele vai começar por provar que é um absurdo raciocinar sobre o que não somos capazes de entender. Que fazer, então? Deixá-lo em paz. (ROUSSEAU, 1995b, p. 10).

A consideração pela qual Rousseau justifica sua não aceitação da pecha de “socinianismo perfeito”, isto é, de “abolidores de todos os mistérios” atribuída aos pastores de Genebra5 por d’Alembert é de que, embora o clero genebrino recuse o dogma da trindade e das penas eternas como mistérios absurdos, ou seja, como mistérios pertencentes à ordem das contradições, esse mesmo clero acredita em Deus como um mistério não absurdo, isto é, como um mistério da ordem da incompreensibilidade. Uma reflexão inserida em nota na Carta a d’Alembert explica com minúcias a diferença entre esses dois tipos de mistérios:

O mundo intelectual, sem excetuarmos a geometria, apresenta-se cheio de verdades incompreensíveis e, todavia, incontestáveis, porque a razão que demonstra sua existência não pode, por assim dizer, alcançá-las através dos limites que a detêm, mas apenas percebê-las. Desse modo, apresentase o dogma da existência de Deus, tais são os mistérios admitidos nas comunhões protestantes. Os mistérios que chocam a razão, para me servir dos termos do Sr. d’Alembert, constituem uma coisa inteiramente diversa. A sua própria contradição os faz entrar para os limites da razão. Ela possui todos os dados imagináveis para sentir que eles não existem, pois, apesar de não se poder ver uma coisa absurda, nada é mais claro do que o absurdo. Eis o que acontece quando se defende, simultaneamente, duas proposições contraditórias. Se me afirmas que o tamanho de uma polegada é a de um pé, não me dizeis uma coisa misteriosa, obscura, incompreensível, mas, pelo contrário, um absurdo luminoso e palpável, uma coisa evidentemente falsa. De qualquer gênero que sejam as demonstrações que a estabeleçam, elas não poderiam sobrepor-se às que a destroem, porque ela é tirada imediatamente das noções primitivas que dão base a qualquer certeza humana. De outro modo, a razão, depondo contra si mesma, faria com que a recusássemos e, longe de fazer-nos crer isto ou aquilo, impedirnos-ia de crer em mais alguma coisa, visto que todo princípio de fé seria destruído. Todo homem, seja qual for sua religião, que diz crer em tais mistérios, mente ou não sabe o que diz. (ROUSSEAU, 1995b, p. 11).

É ainda à questão dos mistérios que Rousseau (1995b, p. 11) se refere, quando escreve que

[...] é preciso tornar a lembrar que estou respondendo a um autor que não é protestante e creio, com efeito responder-lhe mostrando que aquilo que ele acusa os nossos ministros de fazer em nossa religião, se faria inutilmente em nosso caso, e se faz necessariamente em outras religiões sem que se deem por isso.

A passagem é uma resposta direta ao comentário d’alembertiano de que os pastores genebrinos não reconheceriam a necessidade da revelação, mas tão somente sua utilidade. Rousseau se opõe a esse comentário, afirmando que tal “necessidade” é, na perspectiva protestante, um mistério absurdo e portanto inútil aos pastores genebrinos. Outrossim, aquilo que os pastores consideram como útil, ou seja, a conduta moral, é que é o verdadeiro elemento necessário em todas as religiões. Tal réplica encontra-se em franca convergência com os princípios expostos no capítulo da religião civil e nas demais obras rousseaunianas sobre o tema. Segundo Rousseau, tudo que não é de natureza exclusivamente moral em matéria de religião é indiferente e deve assim ser tomado quando se declara algo de alguém, a fim de que não se dê azo à prática da “[...] inspeção sobre a fé uns dos outros” (ROUSSEAU, 1964d, p. 341) que caracteriza toda sociedade intolerante. Para Rousseau, toda discussão sobre o cumprimento das obrigações religiosas deve versar exclusivamente sobre política e moral, sacrificando-se totalmente às questões de fé em nome das obras e oferecendo estas como os únicos objetos legítimos de juízos. Esse silêncio em matéria de fé não deve ser quebrado nem pelo soberano nem pela autoridade governamental, pois “[...] a autoridade de todo governo humano limita-se por sua natureza aos deveres civis” (ROUSSEAU, 1969b, p. 1078) e “[...] os súditos [...] só devem ao soberano contas de suas opiniões enquanto elas interessam à comunidade” (ROUSSEAU, 1964e, p. 467). Tal significa que os juízos sobre a fé não são admitidos em hipótese alguma na perspectiva teórico-política rousseauniana, nem na relação horizontal dos particulares entre si, nem na relação vertical entre particulares e instituições sociais. Assim, a resposta de Jean-Jacques ao fato de d’Alembert, o qual, sem qualquer autoridade ou soberania sobre os genebrinos, adentrara em questões moralmente indiferentes e pertinentes à fé dos concidadãos de Rousseau (1995b, p. 12), não poderia ter sido outra: “[...] senhor, julguemos as ações dos homens e deixemos Deus julgar sua fé”.

Acerca da natureza institucional da convicção à qual d’Alembert se encontraria engajado, quando cometeu o deslize de julgar a fé religiosa, Rousseau tece o seguinte comentário:

[...] nas matérias de puro dogma e que não tratam de moral, como se pode julgar a fé de outrem por conjectura? Como é possível mesmo julgá-la através da declaração de um terceiro, contra a pessoa interessada? Quem sabe melhor do que eu o que creio ou não creio, e a quem devem perguntar sobre este ponto, além de a mim mesmo? Que, depois de ter tirado dos discursos ou dos escritos de um homem de bem consequências sofísticas e desmentidas, um padre teimoso persiga o autor em razão dessas consequências, isso é a sua profissão e não espanta a ninguém; mas devemos honrar as pessoas de bem quando um patife as persegue; e imitará o filósofo os raciocínios capciosos de que tantas vezes foi vítima? (ROUSSEAU, 1995b, p. 10, grifo nosso).

Embora se possa ver nessa passagem uma ligação com o que Rousseau (1959, p. 889) chamará, em seus Diálogos, de “intolerância filosófica”, o mais exato seria conceber que foi como católico, e não como filósofo6, que d’Alembert escrevera sobre a fé protestante. As considerações, na Carta, as quais se submeteriam melhor ao nome de “intolerância filosófica” são as que dizem respeito ao tema do espetáculo. Em relação a este, o autor oferece o argumento geral de que os espetáculos não se resumem às peças de teatro — pois a festa7também é um espetáculo — e que tais peças não teriam o poder de promover um aperfeiçoamento da moral e dos costumes de repúblicas bem constituídas, a exemplo de Esparta e Genebra8. Falando de Genebra, o autor aponta para a existência de uma intolerância pedagógica por parte da razão philosophique em relação aos costumes locais de uma república bem constituída. Para contrariar frontalmente o pedagogismo humanista do teatro philosophique, Rousseau pinta com belas cores os espetáculos marciais das festas patrióticas ao tempo em que acinzenta o espaço elitista do teatro, declarando-o incapaz de bem instruir moralmente9 e ainda menos de divertir o povo10.

O etnocentrismo de d’Alembert e, em geral, dos homens de bel espritda Paris setecentista, consistia em pensar a diversidade de povos a partir da perspectiva de uma indesejável desigualdade entre eles, enquanto Rousseau compreendia essa diversidade como desejáveis diferenças: os povos, para o autor do Discurso sobre a desigualdade, deveriam ser pensados como independentes uns dos outros, tais como os indivíduos do primitivo estado de natureza. Como atesta Garcia (1999, p. 73), “[...] se desigualdades recebe uma marca negativa, em vários contextos do Segundo Discurso, diferençasreceberá, usualmente, uma valoração positiva em textos como a Carta a d’Alembert”.

Em sua forma mais abrangente, a argumentação multiculturalista de Rousseau encontra-se dirigida a Voltaire, para quem as luzes filosóficas teriam, através do teatro francês, um meio de se difundir e assim agir contra a moral obscurantista. O paradoxo linguístico da expressão rousseauniana “intolerância filosófica” — pois “tolerância” e “filosofia” eram tidas no século XVIII como palavras praticamente sinônimas — revela um paradoxo real no contexto da Carta a d’Alembert: o tolerantismo filosófico em matéria de religião tornara-se, por meio da pretensão em instruir os povos, um intolerantismo em matéria de cultura. É sob esse prisma da cultura que podemos concordar com Salinas Fortes (1997, p. 85), quando declara que “Rousseau baniria de sua República ideal, ao contrário de Platão, justamente os ‘filósofos’”.

Segundo Franklin Matos (1993, p. 11), a antropologia e filosofia de Rousseau apresentadas na Carta a d’Alembert “[...] denunciam o procedimento metodológico dos iluministas, cujo etnocentrismo, no caso, pretende resolver a questão do teatro sem passar pelo ‘inventário das diferenças’”. É de se supor, a partir dessa lúcida consideração, que a questão especial dos espetáculos pode ser contemplada sob uma atualmente mais ampla perspectiva da tolerância e, por essa razão, a Carta sobre os espetáculosdeveria ser mais propriamente chamada de Carta sobre a (in)tolerância.

Ao inaugurar uma crítica à intolerância a qual ultrapassa a concepção estritamente religiosa do século XVIII, a Carta a d’Alembert antecipa-se ao multiculturalismo. Não deve causar surpresa que um iluminista do século XVIII apresente uma retórica da tolerância com base no tradicional e lockiano argumento epistemológico de que há um limite cognitivo da razão humana o qual se explica pela incapacidade dos recursos que a razão dispõe para a pesquisa sobre os conteúdos da fé de outrem. O que deve surpreender é que um iluminista, sem deixar de sê-lo, possa ter antecipado uma argumentação multiculturalista e o seu fundamento sociológico, ao escrever que

[...] o homem modificado pelas religiões, pelos governos, pelas leis, pelos costumes, pelos preconceitos e pelos climas torna-se tão diferente de si mesmo que agora já não devemos procurar o que é bom para os homens em geral, e sim o que é bom para eles em tal tempo e em tal lugar. (ROUSSEAU, 1995b, p. 16).

Se a tese esboçada no Contrato Social é de que o povo deve ser o protagonista das leis que regem sua consciência civil, na Carta a d’Alembert, esse protagonismo refere-se à cultura. Nesse sentido, o republicanismo rousseauniano aparece como alternativa ao ceticismo encampado pelas correntes de pensamento as quais buscam reduzir a diversidade cultural a uma lógica que faz parecer que “[...] todos os espíritos foram atirados num mesmo molde” (ROUSSEAU, 1964c, p. 8).

  • 2
    Tratando das condições sem as quais uma religião é destrutiva à felicidade nacional, Helvétius (2001, p. 59) escreve: “Uma religião intolerante, uma religião em que o culto exige um dispêndio considerável, é incontestavelmente uma religião nociva. É preciso que sua intolerância despovoe império, e que seu culto demasiado custoso o arruine. É o caso dos reinos católicos onde se contam, pelo menos, quinze mil conventos, doze mil priorados, quinze mil capelas, mil e trezentas abadias, noventa mil padres empenhados a servir quarenta e cinco mil paróquias; nas quais se encontram também mais uma infinidade de abades, seminaristas e eclesiásticos de toda espécie. Seu número total consiste em pelo menos trezentos mil homens. Sua despesa bastaria para manter uma marinha e um exército formidável. Uma religião tão onerosa a um estado não pode ser por muito tempo a religião de um império esclarecido e civilizado. Um povo a ela submetido só trabalha para manter o luxo e a opulência dos padres e cada um dos cidadãos é apenas um servo do sacerdócio. Para ser boa, é preciso que uma religião seja pouco custosa e tolerante. É preciso que seu clero não possa exigir nada do cidadão”.
  • 3
    É, ao que parece, a primeira vez em que a noção tolerância é em favor de um multiculturalismo.
  • 4
    O Socinianismo foi a designação pela qual ficou conhecido o movimento religioso marcadamente intelectualizado que se elevou na Polônia, em meados do século XVI, sob os auspícios de Fausto Socino (1539-1604) e que se vulgarizou como sendo a heresia que nega todos os mistérios do cristianismo. Apesar de, em alguns registros, estar associado a “[…] uma heresia que nega o dogma da trindade e a divindade de Jesus” (DUFLO, 2010, p. 26), na Histoire du Socinianisme, de Guichard (1623, p. 555), seu autor conclui que o socinianismo é uma seita que prega “[…] princípios evidentemente heréticos que abrem caminho à ruína dos Mistérios do Cristianismo”.
  • 5
    Tal gênero de defesa torna problemática a afirmação de que o genebrino só teria aceitado advogar em favor do seu affaire íntimo chamado Jean-Jacques e que, neste especial, ele se afastaria radicalmente do Voltaire militante e defensor dos direitos civis e políticos de famosos affaires reais (Jean Calas, Pierre-Paul Sirven e Jean-François de la Barre).
  • 6
    A designação de filósofo, atribuída a d’Alembert nesse particular, é um recurso de Rousseau para permanecer no plano da argumentação. Senão, vejamos: “[…] vários pastores de Genebra têm apenas, segundo V. Sa., um socinianismo perfeito. Eis o que V. Sa. declara em voz alta, diante da Europa. Ouso perguntar a V. Sa. como ficou sabendo disso. Só pode ter sido através de suas próprias conjecturas, ou através dos testemunhos de outrem, ou pela palavra dos pastores em questão” (ROUSSEAU, 1995b, p. 10, grifo nosso). A enumeração desses três recursos de acesso à fé dos pastores de Genebra — a conjectura, o testemunho de terceiros e a palavra desses mesmos pastores — é, aqui, completa pelo fato de se supor que Rousseau considera que d’Alembert é um filósofo capaz de reconhecer que o recurso da revelação está fora de questão, por não ser um recurso da razão. Desse modo, a razão deve se obrigar a reconhecer que nenhum dos recursos por ela admitidos são válidos como meios de conhecimento sobre a fé, mormente a fé alheia, posto que, por sua natureza, esta é inacessível à conjectura e não se deixa representar por palavras, quer as de terceiros, quer as da própria pessoa portadora da fé.
  • 7
    A inclusão da festa na categoria dos espetáculos é um marco teórico de grande importância para a compreensão do pensamento político e antropológico de Rousseau. O tema da festa aparece na obra rousseauniana sempre como atividade própria das pequenas sociedades. No Ensaio sobre a origem das línguas, o momento em que o fenômeno da festa faz sua primeira aparição na história humana tem como cenário um oásis e uma pequena comunidade formada por jovens dos dois sexos: “As moças vinham procurar água para a casa, os moços para dar de beber aos rebanhos. Olhos habituados desde a infância aos mesmos objetos, começaram aí a ver outras coisas mais agradáveis. O coração emocionou-se com esses novos objetos, uma atração desconhecida tornou-o menos selvagem, experimentou o prazer de não estar só. A água, insensivelmente, tornou-se mais necessária, o gado teve sede mais vezes: chegava-se açodadamente e partia-se com tristeza. Nessa época feliz, na qual nada assinalava as horas, nada obrigava a contá-las, e o tempo não possuía outra medida além da distração e do tédio. Sob velhos carvalhos, vencedores dos anos, uma juventude ardente aos poucos esqueceu a ferocidade. Acostumaram-se gradativamente uns aos outros e, esforçando-se por fazer entender-se, aprenderam a explicar-se. Aí se deram as primeiras festas” (ROUSSEAU, 1995a, p. 405). No Discurso sobre a desigualdade, na afirmação de que os antigos celebravam festas aos deuses, ou na citação sobre a ação heróica de um indígena durante uma festa pública, a festa é referida como um costume posto em prática por uma determinada comunidade pouco numerosa, como a polisgrega ou a tribo indígena. Tal característica aproxima a ideia de festa com a de república que, na obra de Rousseau, é quase que necessariamente a de uma sociedade ou comunidade de pequenas dimensões. À pequena dimensão da sociedade junta-se outra exigência igualmente necessária à existência da festa: a espontaneidade de seus atores. Na Carta a d’Alembert, a escolha de Rousseau pela festa em detrimento do teatro se dá, dentre outras razões, porque a diversão oferecida por este supõe a criação de uma esfera particular e artificial constituída de uma sala em que uma elite de atores responsáveis pelo espetáculo e um povo espectador encontram-se separados, uma esfera, portanto, construída à parte da esfera pública retratada pelo movimento do povo nas praças da cidade. Na quase totalidade de suas obras, Rousseau circunscreve as descrições da festa com uma situação que surge de um encontro quase casual e espontâneo. No Ensaio sobre a origens das línguas, a festa brota quase que naturalmente de um encontro dos jovens meridionais nos oásis d’águas no deserto; na Carta a d’Alembert, a festa entre os cidadãos genebrinos se dá pelo acercamento de pessoas que passam a dançar à luz do sol quase que em razão de estar uma fita colorida amarrada num mastro do centro da praça, ou ainda em razão de mulheres, crianças e criados acordarem à noite e saírem de suas casas para participarem de uma cantiga de roda iniciada pelo círculo de seus pais, maridos e senhores embriagados pelo vinho. Na passagem de seu romance ficcional Julie, ao tratar da vida do casal de senhores da pequena comunidade de Clarens, cuja dinâmica de vida deve “[…] reunir o útil ao agradável” (ROUSSEAU, 1961, p. 603), a festa é o resultado imediato do próprio trabalho: “[…] que encanto ver bons e sábios administradores fazerem do cultivo de suas terras o instrumento de seus benefícios, seus divertimentos, seus prazeres, derramar às mãos-cheias de dons da providência, fazer prosperar tudo o que os rodeia, homens e gado, com os bens que transbordam de suas granjas, de suas adegas, de seus celeiros; acumular a abundância e a alegria ao redor deles e fazer do trabalho que os enriquece uma festa contínua” (ROUSSEAU, 1961, p. 603, grifo nosso). A espontaneidade da festa, na medida em que assume a forma de uma festa cívica republicana, faz desta um espetáculo em que nada haveria para ser apresentado ao povo a não ser, conforme pretende o interlocutor de d’Alembert, o próprio povo ele mesmo: “Quais serão, porém, os objetivos desses espetáculos? Que se mostrará neles? Nada, se quisermos. Com a liberdade, em todos os lugares onde reina a abundância, o bem-estar reina também. Plantai no meio de uma praça uma estaca coroada de flores, reuni o povo e tereis uma festa. Ou melhor ainda: oferecei os próprios espectadores como espetáculo; tornai eles mesmos atores; fazei com que cada um se veja e se ame nos outros, para que com isso fiquem mais unidos” (ROUSSEAU, 1995b, p. 115). A importância teórica dessa identidade entre espectadores e espetáculo, no que concerne ao ideal de estrutura e de dinâmica da vida política, não passou despercebida a alguns comentadores rousseauístas, que viram nessa descrição de festa cívica republicana o que haveria de mais próximo de uma representação do que, no Contrato Social, é denominado Vontade Geral.
  • 8
    Importa destacar que, até então, Rousseau não tinha em vista a Genebra de Tronchin, a república depravada que constitui o objeto das Cartas da Montanha.
  • 9
    Para Rousseau, boas ações morais nos espetáculos não induzem à ação, e sim à purgação da responsabilidade pelas boas ações morais: se um homem — salienta o autor — “[…] foi admirar belas ações fabulosas, e chorar desgraças imaginárias, que mais se pode exigir dele?” (ROUSSEAU, 1995b, p. 23).
  • 10
    Rousseau teria visto, conforme sugere Matos (1993, p. 14), que “[…] o espetáculo precisa tratar de satisfazer a paixão dominante do povo para o qual se destina, pois, caso contrário, provocará desprazer e fracassará”; que a ideia de teatro que alia divertimento e instrução “[…] é uma quimera que jamais poderá ser posta ‹em prática›: ao agradar, o espetáculo não ensina e, ao ensinar, não agrada» (MATOS, 1993, p. 14). Nesse particular, a posição rousseauniana seria diametralmente contrária à de seu interlocutor, para quem “[…] as boas peças de teatro parecem reunir essas duas últimas vantagens [instruir e divertir]. É a moral em ação, são os preceitos reduzidos a exemplos; a tragédia oferece-nos as desgraças produzidas pelos vícios dos homens, a comédia os ridículos ligados a seus defeitos; uma e outra põem diante dos olhos o que a moral só mostra de uma maneira abstrata e como que à distância” (D’ALEMBERT, 1993a, p. 168).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2015

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2015
  • Aceito
    24 Jun 2015
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