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Comentário a “Ser para a morte, possibilidade existencial e finitude da existência em Ser e tempo”

Demonstrando particular segurança e, por assim dizer, um “senso de localização” preciso, em seu hábil trânsito pelo complexo labirinto da analítica existencial, o Prof. André Silveira reconstrói, com rigor e clareza na exposição, em constante diálogo com intérpretes brasileiros e estrangeiros da fenomenologia heideggeriana, o conceito existencial de fim, buscando justamente compreender em que consiste a sua existencialidade. Parece mesmo trivial, senão até redundante e, portanto, supérfluo, buscar tal coisa como a existencialidade das estruturas de um ente que existe! De fato, assim parece. No entanto, nós, intérpretes da ontologia fundamental, bem sabemos que interpretar existencialmente um fenômeno não é tarefa simples, impõem-se dificuldades essenciais, reconhecidas já na introdução do tratado Ser e tempo e constantemente enfrentadas pelo próprio Heidegger, pois “[...] são dificuldades que se fundam no tipo de ser do objeto temático e do próprio comportamento tematizador, e não num aparelhamento deficiente da nossa faculdade de conhecer” (1967HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1967., SZ, p. 16). Onticamente tão perto de si mesmo quanto ontologicamente de si mesmo tão longe, reside no ser do existente uma curiosa tendência a não se compreender como ele mesmo é, ou seja, o sentido do seu ser e estruturas sempre se encontrará para ele próprio, de saída e na maioria das vezes, parcial ou completamente obstruído, desfigurado, retorcido e, com isso, também tenderá a não compreender a finitude estrutural característica do ser enquanto existência.

Estritamente guiado pelos olhos que lhe pôs Husserl (1988, GA 63, p. 5), é na direção contrária desse caminho que conduz “naturalmente” o ser-aí a afastar-se de si mesmo, isto é, que o leva à incompreensão do seu próprio ser como existência, que Heidegger se coloca em suas reflexões, caminho que o Prof. André Silveira retrilha, ao delinear o sentido existencial de fim, a morte, enquanto possibilidade da impossibilidade da existência em geral, e o fará impulsionado pelo motor sem dúvida mais adequado para movimentar-se de maneira firme, na contracorrente da (auto)compreensão cotidiana mediana encobridora deste e de tantos outros fenômenos concernentes ao ser do ser-aí, a saber, a existencialidade do possível, isto é, da possibilidade enquanto poder-ser e sua constituição projetiva.

Não é necessário reconstruir, aqui, de forma sinóptica, as reconstruções das construções fenomenológicas conceituais heideggerianas levadas a cabo, no escrito já apreciado pelas leitoras e pelos leitores deste prestigiado periódico científico-filosófico; todas elas reconstruções necessárias, porém não suficientes (como reconhece e deixa claro o próprio autor, nas suas considerações finais) para o estabelecimento de um pleno conceito existencial de finitude. Assim, o presente comentário, produzido em atendimento ao gentil e recebido com entusiasmo convite de Trans/Form/Ação, concentra-se em tecer algumas considerações acerca de um problema que, discreta e silenciosamente, se impõe em meio a qualquer investigação filosófica que estabeleça como o seu ponto de partida o pluralismo ontológico modal e o característico princípio da irredutibilidade dos modos de ser. Trata-se do problema formal das possibilidades (e dos eventuais limites) de articulação entre modalidades ontológicas, problema este que, nas reflexões do Prof. André Silveira, surge com o estabelecimento da distinção entre perecer (Verenden), morrer (Sterben) e falecer (Ableben). Respectivamente, o fim do ente que vive, o fim do ente que existe e o fim do ente que existe a “sua” vida. Essa distinção é central para o autor, pois, “[...] com a tese de que a morte é a possibilidade da impossibilidade da existência em geral, Heidegger elabora um conceito de morte existencial que possui independência do sentido comum e mundano de morte, apresentado mediante o conceito de falecer” (Silveira, 2024SILVEIRA, André Luiz Ramalho da. Ser para a morte, possibilidade existencial e finitude da existência em Ser e tempo. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 1, e0240071, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14947.
https://revistas.marilia.unesp.br/index....
, p. XX). Ademais, “[...] a interpretação que fazemos é a de que o falecer é um fenômeno entre o âmbito fisiológico e o âmbito existencial” (Silveira, 2024SILVEIRA, André Luiz Ramalho da. Ser para a morte, possibilidade existencial e finitude da existência em Ser e tempo. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 1, e0240071, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14947.
https://revistas.marilia.unesp.br/index....
, p. XX; nota n. 8).

Certamente o autor tem razão, ao interpretá-lo desse modo. Mas o problema central, intocado e de difícil solução, reside justamente em fixar o sentido desse “entre”, problema que se expressa na seguinte pergunta: como devemos compreender fenomenologicamente um fenômeno intermediário (Zwischenphänomen) (1967HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1967., SZ, p. 247)? Como eles são possíveis? Quer dizer, qual o fundamento da possibilidade interna de fenômenos desse tipo? Quem morre é o ser-aí. “Quemperece é o vivente. Quem falece? Poder-se-ia responder - o ser-aí, na medida em que vive? Porém, o ser-aí não vive, o ser-aí existe! E, no entanto, escreve Heidegger (1988HEIDEGGER, Martin. Ontologie (Hermeneutik der Faktizität). Gesamtausgabe Bd. 63. Hrsg. K. Bröcker-Oltmanns. Vittorio Klostermann: Frankfurt am Main, 1988., GA 27, p. 328): “O ser-aí é corpo-material (Körper) e corpo-existido (Leib) e vida; ele não tem natureza apenas e em primeiro lugar como objeto de consideração, porém ele é natureza [...]”. Se o ser-aí é natureza viva e inanimada (e “ser” tem de significar, aqui, existência), então, como os dois modos de ser, os quais, por princípio, estão separados por um abismo, encontram a unidade no ente?

O problema é bem conhecido. Entre as tentativas de solução, destaco aquela seminal, a qual chamarei de “solução-Cerbone”. Segundo esta, modos de ser são qualificados como determinantes constitucionais ou composicionais de um ente. Enquanto uma certa entidade é composta por outras entidades, fatos, eventos ou acontecimentos de uma ou mais de uma modalidade ontológica, a

Constituição se relaciona ao sentido ou, nos termos de Heidegger, ao ser de algo: dizer que x constitui y é dizer que x especifica ou explicita o que significa para algo ser y ou ser considerado como y [...] constituição se ocupa de articular as condições de identidade para diferentes entidades (Cerbone, 1999CERBONE, David. Composition and Constitution: Heidegger’s Hammer”. Philosophical Topics, v. 27, n. 2, p. 309-329, 1999., p. 311).

Essa solução seria recentemente desdobrada por Róbson R. dos Reis, com o intuito de clarificar o mesmo problema levantado pelo nosso interlocutor, no artigo ao qual este comentário se dedica:

[...] a relação entre existência e vida [...] pode ser entendida como de composição. Neste caso, os fatos, eventos e acontecimentos composicionais na existência são dotados do modo de ser da vida. Conclui-se que conceber o ser-aí como pura vida significa considerar sua dimensão composicional, e não a sua dimensão constitucional (Reis, 2021REIS, Róbson Ramos dos. Vida na existência: a unidade dos modos de ser composicional e constitucional. Síntese, Belo Horizonte, v. 48, n. 151, p. 483-505, 2021., p. 492).

Para esclarecer como esse desdobramento nos ajuda a encaminhar uma solução para o problema da possibilidade interna de fenômenos intermediários, retornemos ao famigerado martelo de Heidegger. Tenho à mão esse ente, ele é disponível, é constituído por respectividade (Bewandtnis), isto é, em seu ser, ele diz respeito a... (outros utensílios) - eis a estrutura ontológica ou categoria básica desse ente cujo modo de ser é Zuhandenheit e que o determina constitucionalmente enquanto utensílio. Nesse ente, enquanto e apenas enquanto um utensílio, não pode ser encontrado nenhum traço de subsistência (Vorhandenheit): utensílios não são coisas cujas propriedades podem ser descobertas pela percepção: “[...] quanto menos se aprende a coisa martelo, mais adequadamente ele é usado, mais originário se torna o relacionamento com ele, mais desencoberto ele vem ao encontro enquanto o que ele é, enquanto utensílio” (1967HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1967., SZ, p. 69). A serventia desse ente não reluz, não pesa e não soa.

Consideremos agora esse ente aí simplesmente dado diante de mim, quando posso apontá-lo com o dedo, o martelo enquanto coisa. Ele é constituído, entre outras coisas, pela subsistência revelada nas cores que vejo, no peso revelado ao tato, e, se o deixo cair, ouvirei o som que emite ao encontrar o solo. Assim como no martelo enquanto utensílio, nada se mostra como propriedade subsistente e, no martelo enquanto coisa, nada se mostra como serventia. Não há nada como uma coisa-utensílio. Mas para ser usado, o martelo tem de ser visível e adequadamente pesado! Assim como em André, enquanto ser-aí, nada se mostra como pulsão e perturbação (vida), em André, enquanto animal, nada se mostra como poder-ser e compreensão (existência). Não há nada como um ser-aí-vivente. Todavia, para existir, ele tem de respirar e o sangue circular no seu organismo! Noutras palavras, constituído por respectividade, o utensílio é composto por elementos subsistentes; constituído por existência, o ser-aí é composto por elementos vitais.

Dessa maneira, o falecimento pode ser compreendido como o perecimento enquanto um acontecimento composicional do ser-aí, ente constituído por transcendência, compreensão projetiva ou, ainda, abertura de possibilidades de ser. Ou seja, afirmar que o ser-aí falece não significa apenas (o que também pode ser eventualmente o caso) uma interpretação desajustada ao fenômeno ontológico-existencial do fim do ser-aí, do ser para a morte, uma distorção hermenêutica que tornaria o ser-aí cego para “a coisa mesma”, contudo, um fenômeno estruturante do existente, em virtude da sua configuração constitucional-composicional.

Ainda sobre a interpretação cotidiana mediana da morte, que oculta seu sentido ontológico-existencial genuíno, temática central do artigo, gostaria de tecer uma última consideração, tomando como base a seguinte passagem que expressa uma compreensão corrente, no texto, com o intuito de apresentar um outro entendimento, visando ao diálogo proporcionado por Trans/Form/Ação:

[...] o discurso público encobre o sentido existencial de morte. Isso significa que a morte enquanto possibilidade é velada, restando assim um tipo específico de certeza com relação à possibilidade da morte, isto é, uma certeza da morte enquanto morte vital e que acontece apenas com os outros, nunca consigo próprio. A morte passa a ser um evento público, em que a interpretação impessoal contabiliza esse fenômeno e o vê apenas de um modo ambíguo e externo, isto é, apenas “o outro é que morre. (Silveira, 2024SILVEIRA, André Luiz Ramalho da. Ser para a morte, possibilidade existencial e finitude da existência em Ser e tempo. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 1, e0240071, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14947.
https://revistas.marilia.unesp.br/index....
, p. 09).

Se bem compreendi, o Prof. André Silveira reconstrói a descrição heideggeriana da morte, segundo a sua interpretação pública, característica da compreensão cotidiana do fenômeno, afirmando que o si-mesmo impessoal, com o seu discurso “todo mundo morre”, visa a se excluir dessa possibilidade, a qual, nesse contexto, se mostra enquanto uma possibilidade vital (não existencial). Quando talvez Heidegger simplesmente, nas passagens dedicadas à análise da interpretação da morte pelo ser-aí mediano, aponte para o fato de que o existente bem sabe que “todo mundo morre”, ou “a gente morre”, inclusive ele mesmo, e precisamente, nesse saber, se revela um não saber fundamental que ademais estrutura o modo cotidiano de ser do existente: a) que nesse “ele mesmo” se expressa o si-mesmo impróprio que “morre”, tal como “todo mundo” e b) que nesse “ele mesmo”, o si-mesmo próprio e propriamente finito se oculta, uma vez que a morte é sempre minha, tal como toda possibilidade qualificável como existencial. Então, a princípio, o ser-aí impessoal não se exclui do morrer, mas se inclui nele (falecer), porém, ele o faz no modo “como se morre”, isto é, a morte do impessoal que eu mesmo posso ser e, na maior parte das vezes, sou e permaneço sendo. Não há ser-aí que se compreenda imortal.

Referências

  • CERBONE, David. Composition and Constitution: Heidegger’s Hammer”. Philosophical Topics, v. 27, n. 2, p. 309-329, 1999.
  • HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1967.
  • HEIDEGGER, Martin. Ontologie (Hermeneutik der Faktizität). Gesamtausgabe Bd. 63. Hrsg. K. Bröcker-Oltmanns. Vittorio Klostermann: Frankfurt am Main, 1988.
  • REIS, Róbson Ramos dos. Vida na existência: a unidade dos modos de ser composicional e constitucional. Síntese, Belo Horizonte, v. 48, n. 151, p. 483-505, 2021.
  • SILVEIRA, André Luiz Ramalho da. Ser para a morte, possibilidade existencial e finitude da existência em Ser e tempo. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 1, e0240071, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14947
    » https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14947

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2024
  • Aceito
    26 Jan 2024
  • Publicado
    28 Mar 2024
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