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A carreira acadêmica como profissão de mulheres: Algumas histórias a partir da FFCL-USP

The academic career as a profession for women: some stories from FFCL-USP

Resumo

Este artigo explora as trajetórias de diferentes mulheres que fizeram carreira acadêmica nas primeiras décadas de funcionamento da FFCL-USP. Para tanto, traça em primeiro lugar um panorama sobre a presença de mulheres no corpo discente e docente da Faculdade entre 1934 e 1969, observando as interseções entre gênero e carreira acadêmica no período. Em segundo lugar, para aprofundar a investigação, aborda o caso de três docentes que atuaram nas Cadeiras de Sociologia I e II: Maria Isaura Pereira de Queiroz, Marialice Foracchi e Maria Sylvia de Carvalho Franco. Argumentamos que diferenças de gênero produziram impactos na distribuição de oportunidades entre homens e mulheres no interior de uma cultura acadêmica e institucional que então começava a se desenhar.

Palavras-chave
Pensamento social; Intelectuais; Gênero; Universidade de São Paulo; Desigualdades de gênero

Abstract

This article explores how different women pursued academic careers in the Faculty of Philosophy, Letters, and Human Sciences at the University of São Paulo (FFCL-USP) from 1934 to 1969. The paper provides an overview of the female presence within the student and faculty body, examining the intersection of gender and the academic profession during this period. To further explore this topic, the study narrows its focus to three female faculty members who served in the Chairs of Sociology I and II: Maria Isaura Pereira de Queiroz, Marialice Foracchi, and Maria Sylvia de Carvalho Franco. The paper highlights the fact that gender disparities have significantly influenced the opportunities available to both male and female individuals in an evolving academic and institutional culture.

Keywords
Social thought; Brazilian intellectual history; Gender; Gender inequality; University of São Paulo

Introdução

Este artigo analisa trajetórias individuais e coletivas de mulheres que, pouco a pouco, passaram a ocupar as salas de aula da antiga Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São Paulo (USP). Recortando o período de vigência do regime de cátedras (1934-1969), argumentamos que diferenças de gênero produziram impactos na distribuição de oportunidades entre homens e mulheres no interior de uma cultura acadêmica e institucional que então começava a se desenhar.

Evidentemente, tal distribuição esteve atravessada por inúmeras ambiguidades e não escapou às contingências que marcam tanto trajetórias individuais quanto histórias coletivas e institucionais. Assimetrias de classe, diferenças de raça, lógicas próprias de atribuição de prestígio e status no interior das variadas áreas do conhecimento que então integravam a FFCL1 1 . No período aqui analisado, estavam reunidos nas FFCL os cursos de Filosofia; Letras Estrangeiras e Português; Letras Clássicas e Português; Ciências Sociais e Políticas; Geografia e História; Ciências Matemáticas; Ciências Naturais e Ciências Químicas. Sobre a história da FFCL, ver Galvão, 2020. também balizaram tal contexto e ajudaram a regulá-lo, uma vez que histórias institucionais e intelectuais são construídas a partir das relações sociais que as tornam possíveis (Connell, 1997CONNELL, Raewyn. (1997), "Why is classical theory classical?". American Journal of Sociology, 102 (6): 1511-1557.; Heilbron, 2022HEILBRON, Johan. (2022), O nascimento da Sociologia. São Paulo, Edusp.).

No entanto, seguindo pistas de pesquisas pioneiras (Trigo, 1994TRIGO, Maria H. (1994), "A mulher universitária: códigos e relações de gênero". In: BRUSCHINI, C.; SORJ, B. (orgs). Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil. São Paulo, Marco Zero/FCC, pp. 89-110.; Pontes, 1998PONTES, Heloisa. (1998), Destinos mistos. Os críticos do grupo Clima em São Paulo 1940-1968. São Paulo, Companhia das Letras. e 2010; Cerdeira, 2001CERDEIRA, Cleide M. B. (2001), O ensino superior e a mulher: aspectos da presença feminina na Universidade de São Paulo. São Paulo, tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.; Corrêa, 2003CORRÊA, Mariza. (2003), Antropólogas & Antropologia. Belo Horizonte, Editora UFMG.; Spirandelli, 2011SPIRANDELLI, Claudinei Carlos. (2011), Trajetórias intelectuais: professoras do curso de Ciências Sociais da FFCL-USP (1934-1969). São Paulo, Humanitas; Fapesp.; Pinheiro, 2016PINHEIRO, Dimitri. (2016), "Jogo de damas: trajetórias de mulheres nas ciências sociais paulistas (1934-1969)". Cadernos Pagu, 46: 165-196, janeiro.), focalizamos o modo como o gênero permeia um amplo domínio das vidas institucionais e intelectuais. Como aponta a bibliografia (Miceli, 1989MICELI, Sergio. (1989), “Condicionantes do desenvolvimento das ciências sociais”. In: MICELI, Sergio (org.). História das ciências sociais no Brasil. São Paulo, Edições Vértice/Idesp, vol. 1, pp. 72-110.; Limongi, 1989LIMONGI, Fernando. M. P. (1989). "Mentores e clientela da Universidade de São Paulo". História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Vértice/Ed. Revista dos Tribunais/Idesp, pp. 111-187.; Trigo, 1994TRIGO, Maria H. (1994), "A mulher universitária: códigos e relações de gênero". In: BRUSCHINI, C.; SORJ, B. (orgs). Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil. São Paulo, Marco Zero/FCC, pp. 89-110.; Blay e Lang, 2004BLAY, Eva & LANG, Beatriz. (2004), Mulheres na USP: horizontes que se abrem. São Paulo, Humanitas.), a fundação da FFCL foi importante para o acesso de uma parcela consistente de mulheres ao Ensino Superior em São Paulo. Ainda assim, observamos que as possibilidades de inserção profissional das mulheres foram menores e reverberaram em suas carreiras acadêmicas, sobretudo quando nos atentamos ao acesso e a posições institucionais de poder e de prestígio no interior da Faculdade.

Procuramos, então, avançar a hipótese de que certa divisão sexual do trabalho intelectual2 2 . De modo sintético, definimos divisão sexual do trabalho como a “separação e a hierarquização das tarefas entre homens e mulheres, a reposição das responsabilidades domésticas e o cuidado com elas e a soma dessas atividades com as do trabalho remunerado são a base da teoria da divisão sexual do trabalho” (Castro e Chaguri, 2020, p. 26). Sobre o tema, ver Hirata e Kergoat, 2007. se desenhou no interior da nascente cultura institucional da FFCL e marcou as possibilidades de acesso – e de reivindicação – da parcela de mulheres que procuravam ingressar no universo profissional que então se constituía na Faculdade. Para desenvolver o argumento, o artigo está organizado do seguinte modo: em primeiro lugar, apresentamos um breve panorama sobre a presença de mulheres no corpo discente e docente da instituição; em seguida, analisamos as possibilidades abertas de profissionalização na carreira acadêmica naquele contexto para mulheres.

Para investigar tais possibilidades de modo mais aprofundado, recortamos o caso das Cadeiras I e II de Sociologia e, em particular, de três docentes vinculadas a elas: Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018), Marialice Foracchi (1929-1973), Maria Sylvia de Carvalho Franco (1930-). A escolha justifica-se pelos seguintes critérios: (1) suas carreiras podem ser vistas como ilustrativas da gênese da distribuição e da consagração de assimetrias entre homens e mulheres no espaço acadêmico da época; (2) suas trajetórias permitem observar os condicionantes de uma posição que nomeamos como a de insiders-outsiders3 3 . Patricia Hill Collins (2016; 2019) cunhou o termo outsider within para descrever o status de mulheres negras na sociedade norte-americana. Em seu argumento, a ambiguidade de estar dentro e fora proporcionaria a tais mulheres um ponto de vista próprio quanto ao self, à família e à própria sociedade. No que se refere à produção do conhecimento, a autora observa que todas as pessoas nelas envolvidas devem ser vistas a partir de suas posições de gênero, raça e nacionalidade, pois tais posições incidem na atribuição de prestígio e status ao conhecimento científico e aos seus praticantes; na atribuição de sentido aos conceitos e às categorias; e nos modos de recortar e construir temas e objetos de pesquisa. É, portanto, neste sentido que utilizamos a expressão insiders-outsiders. , comum a um conjunto mais amplo de mulheres docentes que compartilham a ambiguidade de estarem simultaneamente dentro e fora dos espaços de prestígio e de poder dentro da Faculdade.

Sinteticamente, cabe destacar que as três sociólogas possuem origens sociais semelhantes entre si – e com parcela significativa de seus pares homens do período –; isto é, eram oriundas de famílias brancas que, se não abastadas, mantinham posses e prestígio social. Além disso, possuem alto volume de publicações, atividades regulares de pesquisa e inserção em centros de pesquisa.

Nenhuma das três, no entanto, chegou à posição de catedrática, o que indica suas inserções numa dinâmica coletiva de experiência intelectual, geracional e de gênero, marcada por assimetrias na ocupação de posições de poder institucional no interior da estrutura acadêmica.

Maria Isaura, a mais velha, graduou-se em Ciências Sociais em 1949, doutorando-se sete anos depois, em 1956. Na Cadeira I, sua posição institucional mais elevada foi a de auxiliar de ensino (até 1958). Na Cadeira II, foi promovida à assistente doutor em 1960. Marialice e Maria Sylvia graduaram-se em 1952. A primeira doutorou-se em 1959, enquanto a segunda levou doze anos para defender sua tese. Marialice teve como posição mais elevada na Cadeira I a de primeira assistente, assumida em 1960. Maria Sylvia também foi professora assistente da Cadeira I.

No plano pessoal, Maria Sylvia e Marialice se casaram (ao contrário de Maria Isaura)4 4 . É importante destacar que a visibilização do trabalho de cuidado tem sido contemporaneamente apontada como elemento chave para o enfrentamento de desigualdades de gênero na ciência. Para uma reflexão a partir das Ciências Sociais, ver Candido, Marques, Oliveira e Biroli, 2021. e somente Maria Sylvia teve filhos. Contemporânea de todas elas, Gilda de Mello e Souza, ao ser questionada sobre o impacto da FFCL na experiência das primeiras gerações de mulheres que lá ingressam, observou que existiram três esquemas básicos de ajustamento: “o radical” – das mulheres que optaram por assumir integralmente a vida intelectual, recusando o velho modelo feminino, com todos os sacrifícios afetivos que isso implicava; “o cauteloso” – expressão da tentativa de conciliar o velho e o novo modelo, optando pela carreira, mas sem “radicalismos”; e por último, o “conservador” – voltado à antiga dependência “mas convertendo o papel de prisioneira do lar em secretária dedicada” (Souza, 2014, p. 53). Neste contexto, nota-se como o casamento, mais do que uma decisão de foro íntimo, não escapou ao exame da experiência de gênero coletiva e geracional (Pontes, 2010PONTES, Heloisa. (2010), Intérpretes da metrópole: história social e relações de gênero no teatro e no campo intelectual: 1940-1968. São Paulo, Edusp.).

Numerosas, mas não o suficiente

Os primeiros anos da FFCL foram marcados pelo ingresso de expressivo contingente feminino de estudantes, sobretudo oriundo de camadas médias, tanto da capital quanto do interior de São Paulo. Jandyra França Barzaghi (1915-2010), aluna da primeira turma de Química da FFCL e primeira doutora da USP, em 1942, relata tal processo do seguinte modo: “primeiro poucas, depois cada vez mais; primeiro cautelosamente como ouvintes, depois como alunas regulares; elas se dirigiam a todas as seções da Faculdade de Filosofia” (Blay e Lang, 2004BLAY, Eva & LANG, Beatriz. (2004), Mulheres na USP: horizontes que se abrem. São Paulo, Humanitas., p. 80)5 5 . Jandyra, após o doutoramento, chegou a lecionar, mas desistiu da carreira para ter filhos. .

Em 1936, por exemplo, entre os primeiros vinte e quatro alunos que se diplomaram, apenas duas eram mulheres: Ophélia Ferraz do Amaral, graduada em Ciências Sociais e Políticas, e Adélia Dranger, em Filosofia6 6 . Ophélia Ferraz do Amaral tornou-se membra e sócia fundadora da Sociedade de Etnografia e Folclore (1937-1939). Adélia Dranger, seguiu carreira como técnica em educação. . No ano seguinte, aumenta significativamente o número de mulheres: do total de quarenta e quatro alunos registrados no quadro de formados, nos oito cursos da Faculdade, trinta e dois eram mulheres.

Somados todos os cursos, entre 1936 e 1969, 4.817 mulheres (60,39%) e 3.159 homens (39,61%) se formaram na FFCL (Inventários dos Arquivos do CAPH, 1969). O Gráfico 1 aponta a distribuição de homens e mulheres então presentes nos cursos.

GRÁFICO 1
: Distribuição por sexo do número de formandos na FFCL-USP entre 1936 e 1969

Quando observamos apenas os diplomados na seção de Ciências Sociais e Políticas, a proporção de mulheres no número de formados é expressiva, sobretudo na comparação com outras áreas como a Física ou a Geologia, por exemplo.

Muitas das alunas que se diplomaram na FFCL puderam fazê-lo a partir do recurso de comissionamento. O regime de comissionamento, implementado pela USP um ano após sua criação, dispensava dos encargos docentes, sem prejuízo dos vencimentos, os professores do quadro do magistério público primário das Escolas Normais do Estado para a realização de um curso superior.

GRÁFICO 2
: Distribuição por sexo do número de formandos em Ciências Sociais na FFCL-USP

Segundo Limongi (1989LIMONGI, Fernando. M. P. (1989). "Mentores e clientela da Universidade de São Paulo". História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Vértice/Ed. Revista dos Tribunais/Idesp, pp. 111-187., p. 176), as mulheres representavam 67,5% do total de alunos comissionados, sendo apenas 23,5% entre o corpo discente regular. As alunas comissionadas também compunham a maior taxa de aproveitamento nos cursos da FFCL, ou seja, foram diplomadas na universidade, representando cerca de 70% do total (Limongi, 1989LIMONGI, Fernando. M. P. (1989). "Mentores e clientela da Universidade de São Paulo". História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Vértice/Ed. Revista dos Tribunais/Idesp, pp. 111-187., p. 175)7 7 . Nas seções de exatas, a maior parte da participação feminina era de comissionadas, poucas foram as que ingressaram via vestibular. Na área de humanidades, as comissionadas representavam mais de um terço dos formandos. Sobre a presença das comissionadas, ver Limongi, 1989, pp. 175-176. .

Conforme Maria Helena Bueno Trigo (1994TRIGO, Maria H. (1994), "A mulher universitária: códigos e relações de gênero". In: BRUSCHINI, C.; SORJ, B. (orgs). Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil. São Paulo, Marco Zero/FCC, pp. 89-110., p. 103), entre as alunas, as que tinham um projeto profissionalizante mais claro eram justamente as comissionadas, isto é, aquelas que possuíam uma inserção profissional prévia como professoras primárias (ou de escola normal primária), principalmente no interior de São Paulo, e procuraram a universidade como forma de melhorar a sua posição no mercado de trabalho, ou, até mesmo, ascender na carreira docente, tornando-se professoras do ensino secundário.

No entanto, observando as trajetórias das egressas da FFCL, nota-se que a obtenção de um diploma teve significados variados para os diversos grupos sociais, sendo múltiplas as funções da diplomação. Se para as comissionadas o objetivo do incremento da formação e atuação profissional parecia mais nítido, havia também parcelas que aspiravam, em primeiro lugar, a adquirir uma “boa cultura geral” e, em segundo, uma boa preparação para “a vida do lar” (Gouveia, 1961GOUVEIA, Aparecida J. (1961), "Milhares de normalistas e milhões de analfabetos". Educação e Ciências Sociais, 9 (17): 114-140., p. 128).

Na miríade de possibilidades abertas pela diplomação para o grupo de mulheres egressas dos bancos da FFCL, nos interessa, especialmente, as histórias daquelas que optaram por construir carreiras como docentes no interior da própria Faculdade.

O gênero da carreira acadêmica

Com base em entrevistas realizadas com trinta mulheres de diferentes áreas do conhecimento formadas na USP entre as décadas de 1930 e 1950, Cerdeira (2001)CERDEIRA, Cleide M. B. (2001), O ensino superior e a mulher: aspectos da presença feminina na Universidade de São Paulo. São Paulo, tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. destaca que, na percepção das entrevistadas, era comum naquele período certa resistência em aceitar que elas se profissionalizassem como docentes na universidade: “acreditava-se que o aumento do contingente feminino nos cursos poderia acarretar uma desvalorização do conteúdo, se comparado a um curso composto apenas por homens”. (Cerdeira, 2001CERDEIRA, Cleide M. B. (2001), O ensino superior e a mulher: aspectos da presença feminina na Universidade de São Paulo. São Paulo, tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo., p. 122). Sem ser nominalmente identificada, uma das egressas entrevistadas chegou a afirmar que “os primeiros professores da Faculdade de Filosofia criavam declaradamente obstáculos para suas colegas, sob alegação de defesa da Faculdade, que ainda estava lutando para se implantar” (Cerdeira, 2001CERDEIRA, Cleide M. B. (2001), O ensino superior e a mulher: aspectos da presença feminina na Universidade de São Paulo. São Paulo, tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo., p. 123).

É possível encontrar ecos de tal percepção de época também em depoimentos colhidos por outros pesquisadores. Por exemplo, entrevistada por Blay e Lang (2004BLAY, Eva & LANG, Beatriz. (2004), Mulheres na USP: horizontes que se abrem. São Paulo, Humanitas., p. 102), Alice Canabrava (1911-2003) comentou que a resistência masculina na Faculdade em aceitar que as mulheres ocupassem cargos e funções no interior da instituição era um reflexo da “arraigada consciência de superioridade” e da “predominância dos padrões masculinos”. Tal concepção baseava-se, ainda de acordo com a historiadora, na ideia de que para os colegas e docentes homens “tornava[-se] necessário proteger o ensino superior do baixo nível das professoras oriundas do magistério primário”.

Se o grupo de alunas era considerado “um elemento de fora”, chegando a receber a alcunha de “paraquedistas”, por outro lado, “nenhuma hostilidade se manifestava às mulheres no exercício de algumas funções administrativas: revelavam-se excelentes datilógrafas” (Blay e Lang, 2004BLAY, Eva & LANG, Beatriz. (2004), Mulheres na USP: horizontes que se abrem. São Paulo, Humanitas., p. 102).

Os relatos acima transcritos nos permitem perceber indícios de que habilidades, competências e aptidões eram discriminadas também a partir da diferença de gênero, ajudando a estruturar as bases de uma divisão sexual do trabalho. Entre a discriminação velada e a interdição aberta, assimetrias de gênero se fizeram presentes na distribuição de oportunidades entre homens e mulheres no interior de uma cultura acadêmica e institucional que começava a se desenhar.

Por exemplo, no universo das entrevistas realizadas por Cerdeira (2001CERDEIRA, Cleide M. B. (2001), O ensino superior e a mulher: aspectos da presença feminina na Universidade de São Paulo. São Paulo, tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo., p. 129), 50% delas revelaram que o maior obstáculo para o exercício da profissão era a disputa de cargos e títulos, pois a indicação normalmente incidia sobre o homem, desfavorecendo candidatas mulheres mesmo quando eram qualificadas. Os demais obstáculos apontados se referem à origem social inferior (17%) e outros motivos (33%), incluindo “nepotismo” e a dificuldade de conciliar carreira, casamento e filhos.

Se até o ano de 1950 havia apenas duas professoras na lista de docentes, uma interina8 8 . Annita de Castilho e Marcondes Cabral, licenciada em Filosofia e Ciências Sociais; doutora em Sociologia, em 1945, foi professora interina de Psicologia. e outra catedrática – num total de cinquenta e três professores catedráticos –, a proporção de mulheres aumenta nas categorias hierárquicas mais baixas, as de assistentes (33,3%) e auxiliares de ensino (50%) (Anuário da FFCL, 1950, pp. 19-31).

Até a década de 1960, no que concerne à produção acadêmica, a desigualdade se repete: as mulheres eram mais numerosas nos mestrados e doutorados, enquanto na livre-docência e na tese de cátedra a vantagem das teses escritas por homens aumenta significativamente – nesta última com expressiva desproporção: quarenta teses masculinas e apenas duas femininas (Trigo, 1994TRIGO, Maria H. (1994), "A mulher universitária: códigos e relações de gênero". In: BRUSCHINI, C.; SORJ, B. (orgs). Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil. São Paulo, Marco Zero/FCC, pp. 89-110., p. 104). O Gráfico 3 aponta essa diferença na área de Ciências Humanas.

GRÁFICO 3
: Teses defendidas na FFCL, 1939-1969

Desse modo, as chances de ingressar na graduação por comissionamento, de ser assistente e mesmo de realizar doutoramento eram muito maiores do que a obtenção de uma cátedra. Como apontado em inúmeros depoimentos colhidos por Blay e Lang, era possível “tudo menos a Cátedra!” (Blay e Lang, 2004, p. 113)9 9 . A percepção de que a cátedra esteve fora do alcance das mulheres está presente em quase todos os depoimentos colhidos por Eva Blay e Alice Lang (2004), especialmente nos testemunhos de Gilda de Mello e Souza, Alice Piffer Canabrava, Jandyra França Barzaghi, Maria Vicente de Carvalho e Olga Pantaleão. .

O sistema de cátedras adotava um modelo europeu de organização dos cursos em Cadeiras. Nesse modelo, a figura central era o professor Catedrático, detentor do poder institucional e hierárquico de sua disciplina e de seus subordinados, professores assistentes e auxiliares (Spirandelli, 2011SPIRANDELLI, Claudinei Carlos. (2011), Trajetórias intelectuais: professoras do curso de Ciências Sociais da FFCL-USP (1934-1969). São Paulo, Humanitas; Fapesp., p. 86). Assim, a posição ocupada pelo catedrático, posto final na carreira universitária da época, era também fonte de poder acadêmico, burocrático e científico da universidade e esteve distante do alcance das mulheres.

Em 1937, de acordo com o Anuário da FFCL (1937-1938), as cadeiras de Ecologia, Botânica e Biologia foram as primeiras a contar com mulheres como auxiliares técnicas. O cargo, contudo, restringia-se à prática do laboratório, e suas ocupantes não eram inscritas como membros do corpo docente. Nesse mesmo ano, na área de Ciências Humanas, uma mulher foi contratada para a Cadeira da História da Civilização Americana, mas no posto de auxiliar de ensino.

Entre 1939 e 1949, cresce o número de mulheres no corpo docente, mas nos cargos de interinas e substitutas. As primeiras regências de interinas ocorrem nas cadeiras de Psicologia, Administração Escolar, História da Civilização Moderna e Contemporânea e Biologia.

Noemy Silveira Rudolfer (1902-1980), que veio transferida do Instituto de Educação após sua extinção, foi a primeira mulher a obter a titularidade de uma cátedra na USP, em 1938, substituindo Lourenço Filho (1897-1970) na Cadeira de Psicologia Educacional. Em 1946, Alice Canabrava (1911-2003) disputou com Astrogildo Mello o concurso da Cadeira de História da Civilização Americana; contudo, apesar de ter obtido as melhores notas, não ganhou a titularidade de cátedra, tendo sido escolhido o segundo colocado, um homem, para assumir a regência10 10 . Após o concurso, Alice Canabrava pediu demissão, ainda em 1946, e se transferiu para a Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativa da USP, onde se tornou catedrática de História Econômica Geral e Formação Econômica do Brasil. Alice é considerada a primeira mulher catedrática da USP, via concurso de cátedra. .

A também historiadora Olga Pantaleão regeu interinamente, entre 1946 e 1947, a Cadeira de História da Civilização Moderna e Contemporânea; porém, por “pressão do grupo masculino do curso de Geografia e História”, teve que deixar a FFCL, tendo feito o restante de sua carreira fora da USP (Blay e Lang, 2004BLAY, Eva & LANG, Beatriz. (2004), Mulheres na USP: horizontes que se abrem. São Paulo, Humanitas., p. 114). Annita Cabral tornou-se responsável interina pela cadeira de Filosofia após a saída de Maugüé, entre 1943 e a vinda de Otto Klineberg em 1945.

Os casos se repetem nas Ciências Sociais: a falta de título de doutorado que impediu Gioconda Mussolini (1913-1969) de assumir, como todos “esperavam”, a titularidade da Cátedra de Antropologia, no lugar de Egon Schaden (Ciacchi, 2015CIACCHI, Andrea. (2015), "Mestrança: Gioconda Mussolini e a Antropologia em São Paulo (1938-1969)". Tempos Históricos, 19: 153-186, janeiro., p. 181); Gilda de Mello e Souza, assistente mais antiga da Cadeira de Sociologia I, foi substituída após a saída de Roger Bastide, em 1954, por Florestan Fernandes, e se transferiu para a Filosofia (Pires, 2019PIRES, Bárbara Luisa. (2019), O tecido das contradições e a trama das equivalências: gênero, arte e sociedade no ensaísmo de Gilda de Mello e Souza. Campinas, dissertação de mestrado em Sociologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas., pp. 56-7); Paula Beiguelman (1926-2009), que era candidata “natural” da Cadeira de Política e aguardava havia anos uma vaga para se candidatar, acabou empatando com Fernando Henrique Cardoso, mas ele foi o escolhido por unanimidade pela banca examinadora (Pinheiro, 2016PINHEIRO, Dimitri. (2016), "Jogo de damas: trajetórias de mulheres nas ciências sociais paulistas (1934-1969)". Cadernos Pagu, 46: 165-196, janeiro., p. 187).

Não obstante a hierarquia dos postos e dos espaços acadêmicos, temas classificados como mais “nobres” ou “legítimos” teriam ficado a cargo dos homens, enquanto as mulheres acabaram por se engajar em setores das Ciências Sociais considerados, nas hierarquias acadêmicas da época, menos prestigiosos (Corrêa, 2003CORRÊA, Mariza. (2003), Antropólogas & Antropologia. Belo Horizonte, Editora UFMG.; Pontes, 2006PONTES, Heloisa. (2006), "A paixão pelas formas". Novos Estudos Cebrap, (74): 87-105.). Não raro, produções intelectuais de mulheres se concentravam em áreas consideradas tradicionalmente femininas, ligadas, sobretudo, à Educação, como, por exemplo, a Pesquisa Educacional, a Psicologia Educacional, a Administração Escolar e a Didática.

Inserções profissionais marcadas pela diferença de gênero – ainda que não exclusivamente por ela – foram comuns no cotidiano da Faculdade, produzindo efeitos nas estratégias de profissionalização das diplomadas que pretendiam seguir na carreira acadêmica. Também, como afirma Trigo (1994)TRIGO, Maria H. (1994), "A mulher universitária: códigos e relações de gênero". In: BRUSCHINI, C.; SORJ, B. (orgs). Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil. São Paulo, Marco Zero/FCC, pp. 89-110., processos de reconversão de diplomas ocorreram em larga escala. Não encontrando oportunidades docentes em suas áreas de formação na FFCL, mulheres estudantes migraram de área na própria USP e fora dela.

Se a condição de gênero não foi o fundamento exclusivo na caracterização das Cátedras e das disputas simbólicas em seu interior, como demonstram os trabalhos de Pulici (2008)PULICI, Carolina. (2008), Entre sociólogos: versões conflitivas da condição de sociólogo na USP dos anos 1950-1960. São Paulo, Edusp/Fapesp. e Spirandelli (2011)SPIRANDELLI, Claudinei Carlos. (2011), Trajetórias intelectuais: professoras do curso de Ciências Sociais da FFCL-USP (1934-1969). São Paulo, Humanitas; Fapesp., é impossível ignorá-la quando se trata de compreender as dificuldades e barreiras interpostas ao grupo de mulheres no jogo complexo das relações desenvolvidas no interior da cultura universitária recém-implantada.

Três autoras, duas cadeiras e uma disciplina: o caso da Sociologia

Para aprofundar algumas dessas questões, passamos à análise de aspectos dos percursos profissionais de Maria Isaura Pereira de Queiroz, Marialice Foracchi e Maria Sylvia de Carvalho Franco, a fim de mostrar que, inseridas – primeiro como estudantes, depois como docentes das Cadeiras I e II de Sociologia –, as três acabaram enfrentando obstáculos que indicam como dinâmicas e assimetrias de gênero incidiram em seus percursos profissionais.

Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018)

Transitando entre a Sociologia política e a da cultura, Maria Isaura dirigiu suas pesquisas para o meio rural e para temas da cultura brasileira, afastando-se “de visões disjuntivas de ‘tradição’ e ‘modernidade’”, que orientavam os assuntos privilegiados pela produção sociológica paulista feita nas décadas de 1950 e 1960 (Botelho, 2019BOTELHO, André. (2019), O retorno da sociedade: política e interpretações do Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 93). Foi a única mulher da primeira geração de sociólogas formadas na FFCL a acompanhar, em termos de produção intelectual, os seus colegas mais consagrados, e uma das poucas intelectuais de seu tempo que conseguiram reconhecimento e projeção internacional, o que, contudo, não se deu do mesmo modo no Brasil (Ortiz, 2020ORTIZ, Renato. (2020), "Pequena homenagem a uma grande senhora". Sociologia & Antropologia, 10 (1): 291-298., p. 293).

Maria Isaura nasceu na cidade de São Paulo em 26 de agosto de 1918. Embora tenha passado sua vida em um ambiente urbano, descendia de uma família tradicional da oligarquia cafeeira do Vale do Paraíba e do Oeste Paulista. Era sobrinha-neta do ex-presidente Prudente de Moraes (1841-1902), sua linhagem familiar, tanto pelo lado materno (Queiroz Telles), quanto paterno (Pereira de Queiroz), acumula figuras proeminentes na política local ou do país11 11 . Sobre as origens sociais de Maria Isaura, ver Pulici (2008, p. 126); Lopes (2012, pp. 7-8); Pinheiro (2016, pp. 180-181). . Segundo Maria Arminda Arruda (1999ARRUDA, Maria Arminda. "Desafios de uma geração e a originalidade da interpretação". In: KOSMINSKY, Ethel. (1999), Agruras e prazeres de uma pesquisadora: ensaios sobre a sociologia de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Marília, Unesp-Marília-Publicações; São Paulo, Fapesp., p. 40), tal origem social teria, possivelmente, orientado seus interesses de pesquisa como, por exemplo, em O mandonismo local na vida política brasileira (1969), obra na qual a análise da organização familiar (parentela) é fundamental à interpretação da socióloga sobre dominação e mandonismo12 12 . Sobre a sociologia política de Maria Isaura, ver Botelho (2019) e Villas Bôas (2010). .

O contato com um mundo fora dos limites de sua classe social ocorreu durante sua formação escolar, no ensino público. Maria Isaura estudou no Jardim de Infância da Praça da República, que era porta de entrada para a famosa “Escola Normal da Praça”, também conhecida como Instituto Caetano de Campos, onde sua mãe e tias saíram formadas professoras primárias. No julgamento de seus avós, as mulheres da família deveriam estudar em escolas públicas, “para serem iguais a todas as demais jovens”13 13 . Curiosamente, em uma pesquisa sobre os corsos e bailes carnavalescos da cidade de São Paulo, a socióloga relembrou que na concepção das famílias de elite, inclusive da sua própria, nem todos os lugares eram “frequentáveis” e nem todas as jovens eram iguais, sendo “impensável que meninas de ‘boa família’ se misturassem com imigrantes italianos e espanhóis e seus descendentes!” (Queiroz, 1992, p. 14). (Queiroz, 2000QUEIROZ, Maria Isaura P. (2000), "Palavras da homenageada". In: ANTUNIASSI, Maria & LANG, B. G. (orgs.). Maria Isaura Pereira de Queiroz: a mestra. São Paulo, Ceru/Humanitas., p. 34).

O ingresso na FFCL lhe pareceu bastante familiar, já que nos primeiros anos de funcionamento da instituição os cursos eram oferecidos no terceiro andar do prédio do Instituto Caetano de Campos. Além disso, ela conhecia de antemão parte dos professores e colegas, alguns deles parentes ou pessoas próximas de sua família (Queiroz, 2000QUEIROZ, Maria Isaura P. (2000), "Palavras da homenageada". In: ANTUNIASSI, Maria & LANG, B. G. (orgs.). Maria Isaura Pereira de Queiroz: a mestra. São Paulo, Ceru/Humanitas., p. 35).

Formou-se em 1949 e, no ano seguinte, passou a integrar, na condição de “instrutora extranumerária”, a Cadeira de Sociologia I, então dirigida por Bastide. Em 1951, estabilizou-se na vaga como auxiliar de ensino. Nesse mesmo ano, com bolsa do governo francês, ingressou na École Pratique de Hautes Études, em Paris, onde obteve seu doutorado, no ano de 1956, com a tese La Guerre Sainte au Brésil: le mouvement messianique du “Contestado”, sendo a banca examinadora composta por Bastide, seu orientador, Claude Lévi-Strauss e Gabriel Le Bras.

Com o retorno definitivo de Bastide para a França em 1954, Florestan Fernandes assumiu interinamente a chefia da Cadeira de Sociologia I. Como novo regente, o sociólogo reformulou as atividades e os programas de pesquisa da cátedra. Tal mudança se refletiu na recomposição dos membros da cadeira: Fernando Henrique Cardoso (1931-) e Renato Jardim Moreira (1926-2012) ascenderam, respectivamente, aos postos de primeiro e segundo assistentes. Como consequência, Gilda de Mello e Souza (1919-2005), que era a primeira assistente, e Maria Isaura, que era a auxiliar de ensino mais antiga, foram prejudicadas.

O vínculo formal de Maria Isaura com a Cadeira de Sociologia I se manteve até 1958, quando se transferiu para a Cadeira de Sociologia II, então chefiada por Fernando de Azevedo (1894-1974). Em 1960, obteve o reconhecimento de equivalência acadêmica de sua tese de doutorado pela USP, o que lhe permitiu ascender ao posto de “assistente doutor”. No ano de 1963, foi aprovada no concurso de Livre-docente na FFCL com a tese O messianismo no Brasil e no mundo, publicada três anos depois e que lhe rendeu o prêmio Jabuti pela melhor obra brasileira de Ciências Sociais.

Ainda assim, as credenciais e o prestígio, nacional e internacional, adquiridos pela socióloga não foram suficientes para que ela ousasse concorrer à disputa pela sucessão de Fernando de Azevedo na Cadeira de Sociologia II, em 1964. No concurso da cátedra inscreveram-se Octavio Ianni e Ruy Coelho, sendo este último o vencedor. Com a mudança, Maria Isaura se tornou “segunda assistente”, posição que se manteve até o final do regime de cátedras, em 1968.

Se ela foi uma das poucas cientistas sociais a acompanhar, em termos quantitativos, o padrão de produtividade de seus colegas homens mais consagrados, alcançando renome e prestígio nacional e internacional, como também se destacando por suas atuações em importantes instituições científicas brasileiras, faltou a ela, como afirma Pinheiro (2016PINHEIRO, Dimitri. (2016), "Jogo de damas: trajetórias de mulheres nas ciências sociais paulistas (1934-1969)". Cadernos Pagu, 46: 165-196, janeiro., p. 183), apenas a cátedra, “que aparentemente não teve interesse em disputar”. Tendo em vista o quadro mais amplo que apresentamos anteriormente, pode-se interpretar que essa atitude de recusa na disputa pela posição de catedrática tenha sido uma opção de construção de carreira que buscou transbordar as barreiras impostas pela estrutura do regime de cátedras.

Marialice Mencarini Foracchi (1929-1972)

Entre os poucos pesquisadores que se dedicaram ao estudo da vida e da obra de Marialice Foracchi, Maria Helena Augusto (2005AUGUSTO, Maria H. (2005), "Retomada de um legado: Marialice Foracchi e a sociologia da juventude". Tempo Social, 17 (2): 11-33, novembro., p. 12) classifica sua produção como “clássica”, na medida em que seus trabalhos permanecem atuais para a discussão das diferenças e desigualdades que marcam a experiência da juventude, bem como dos movimentos sociais de base estudantil.

Alguns fatores podem ter contribuído para o relativo esquecimento de seus trabalhos. Entre eles, sua morte prematura, aos 43 anos e, até certo ponto, o retrocesso sofrido pelo tema de sua tese de doutorado – a condição do estudante e seu protagonismo na atuação política –, particularmente após os anos 1980.

Marialice nasceu na cidade de São Paulo, em 16 de setembro de 1929. Onze anos mais nova que Maria Isaura, ambas possuíam uma origem de classe semelhante, visto que ela também pertencia a uma família “quatrocentona” da região do Vale do Paraíba, os Marcondes Ferreira. O irmão de sua mãe, Octalles Marcondes Ferreira (1900-1973), foi fundador, junto a Monteiro Lobato (1882-1948), da Companhia Editora Nacional. Por sua vez, o lado paterno era representado por setores da burguesia imigrante ascendente, tendo seu avô, um alfaiate italiano, fundado a empresa “Café Jardim”. Apesar da origem social mista, tudo indica que a família acumulara posses, pois quando ela se casou com outro italiano, Mário Foracchi, de quem herdou o sobrenome, sua mãe impôs como condição aos noivos o regime de separação de bens (Martins, 2010MARTINS, José de S. (2010), "Luiz Pereira e sua circunstância: entrevista com José de Souza Martins, por Conrado Pires de Castro". Tempo Social, 22 (1): 211-276., p. 239).

Diferentemente de Maria Isaura e de outras colegas de sua geração que se formaram normalistas, Marialice estudou em colégios privados da elite paulista: primeiro no tradicional Colégio Nossa Senhora de Sion e, posteriormente, cursou o ginasial e o clássico no Instituto Mackenzie. Em 1952, concluiu o bacharelado e a licenciatura em Ciências Sociais na FFCL, sendo escolhida a oradora da turma.

No ano seguinte, assumiu o cargo de “professora assistente” da Cadeira de História e Filosofia da Educação, a convite de Laerte R. de Carvalho (1922-1972), que também foi seu orientador de mestrado. Em 1958, fez uma especialização em Sociologia, oportunidade em que realizou um primeiro estudo sobre “Mannheim e Educação”. Como desdobramento dessa pesquisa, em 1959, defendeu a tese Educação e planejamento: aspectos da contribuição de Karl Mannheim para a análise da Sociologia da Educação.

Entre 1955 e 1958, tornou-se “assistente extranumerária” na Cadeira de Sociologia I, exercendo, paralelamente, o cargo de professora interina da Cadeira de Sociologia Educacional no Instituto Caetano de Campos. Após a defesa do mestrado, migrou definitivamente para a Cadeira de Sociologia I, atuando como “auxiliar de ensino” (1959) e “primeira assistente” (1960-1969).

Em 1964, defendeu, sob orientação de Florestan Fernandes, a tese de doutorado O estudante e a transformação da sociedade brasileira, publicada em 1965 pela Editora Companhia Nacional, obra considerada um marco na formação da Sociologia da Educação e da Juventude no Brasil. Marialice inicia sua formação de socióloga com temas voltados para a pesquisa educacional, avançando, em seguida, para o estudo sobre o tema do estudante, da participação política, dos movimentos estudantis e da construção da juventude enquanto categoria social.

Foi integrante do Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (Cesit), membra do Conselho Deliberativo do Centro de Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo e do Conselho Técnico de Política do Trabalho na Secretaria do Trabalho, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo (Spirandelli, 2011SPIRANDELLI, Claudinei Carlos. (2011), Trajetórias intelectuais: professoras do curso de Ciências Sociais da FFCL-USP (1934-1969). São Paulo, Humanitas; Fapesp., p. 59). Em 1970, tornou-se professora livre-docente com a tese A juventude na sociedade moderna, publicada em 1972 e republicada apenas em 2018.

Nos últimos anos de vida, Marialice se dedicou ao tema da marginalidade social. Poucos dias antes de morrer, em 1972, ela havia preparado, nas palavras de José de Souza Martins (2010MARTINS, José de S. (2010), "Luiz Pereira e sua circunstância: entrevista com José de Souza Martins, por Conrado Pires de Castro". Tempo Social, 22 (1): 211-276., p. 251), “como se fosse uma estudante de pós-graduação”, uma comunicação para apresentar na XXIV Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) sobre a noção de “participação-exclusão” no estudo das populações marginais. Apesar de seu renome e de sua competência como pesquisadora no campo da Sociologia dos movimentos sociais, como evidencia a sua tese de livre-docência, ao contrário de seus alunos, ela não fora convidada para participar da mesa de debate principal sobre o tema na reunião.

Maria Sylvia de Carvalho Franco (1930-)

Maria Sylvia ocupa, ainda hoje, um lugar controverso no âmbito do que se convencionou chamar “escola sociológica paulista”. Se, por um lado, sua tese Homens livres na ordem escravocrata, de 1964, obteve diferentes reimpressões ao longo do tempo e continuou sendo revisitada nas disciplinas de “pensamento social” ou de “Sociologia brasileira”, por outro lado, as polêmicas em torno de seus argumentos, suas críticas em relação às interpretações sociológicas hegemônicas, sua trajetória interdisciplinar entre a Sociologia e a Filosofia, parecem ter contribuído para que o legado intelectual da socióloga fosse pouco disputado (Cazes, 2013CAZES, Pedro. (2013), A sociologia histórica de Maria Sylvia de Carvalho Franco: pessoalização, capitalismo e processo social. 178 p. Rio de Janeiro, dissertação de mestrado, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.).

Maria Sylvia nasceu na cidade de Araraquara-SP em 1930. Era filha de um delegado de polícia e, pelo lado materno, descendente dos Pinto Ferraz, família proprietária de terras no interior do estado (Pulici, 2008PULICI, Carolina. (2008), Entre sociólogos: versões conflitivas da condição de sociólogo na USP dos anos 1950-1960. São Paulo, Edusp/Fapesp., p. 134). Ainda na infância, foi morar na capital para estudar em um colégio feminino prestigioso, o Des Oiseaux. Ingressou na USP no ano de 1949, onde concluiu o bacharelado e a licenciatura em Ciências Sociais, em 1952.

Na Cadeira de Sociologia I, atuou como “assistente extranumerária” (1955-1958); “auxiliar de ensino” (1959-1960); e “assistente” (1961-1969). Em 1964, defendeu sua tese de doutorado Homens livres na velha civilização do café, orientada por Florestan Fernandes. A tese foi publicada como livro, cinco anos depois, com o título Homens livres na ordem escravocrata. A tese de Maria Sylvia, com sua interpretação sobre a escravidão e o capitalismo brasileiro, divergia das ideias defendidas pelos integrantes do grupo ligado a Florestan Fernandes e, mais amplamente, da Cadeira de Sociologia I.

Analisando as disputas pela sucessão no cargo de primeiro assistente, aberto com a ida de Fernando Henrique Cardoso para a regência da Cátedra de Ciência Política, Luiz Carlos Jackson (2007JACKSON, Luiz. C. (2007), "Gerações pioneiras na sociologia paulista (1934-1969)". Tempo Social, 19 (1): 115-130, junho., p. 126) sugere que, ao explicitar em sua tese essa diferença de interpretação, “a socióloga talvez pretendesse reforçar sua posição no grupo”. Contudo, esse posicionamento poderia ter gerado uma crise interna, possivelmente relacionada com a transferência dela para a Filosofia.

Após a reforma universitária de 1968, Maria Sylvia se manteve trabalhando no departamento de Ciências Sociais da USP até 1970, ano em que defendeu O moderno e suas diferenças, sua tese de livre-docência. No contexto repressivo da ditadura militar, em meio a cassações e aposentadorias compulsórias, ela migrou para o Departamento de Filosofia, onde se tornou professora titular.

Marilena Chaui (2011)CHAUI, Marilena. (2011), "Entrevista com Marilena Chauí". Trans/Form/Ação, 34: 179-211., relembra que, naquele contexto, o departamento se manteve graças aos esforços de duas mulheres, “não filósofas”: Gilda de Mello e Souza e Maria Sylvia. A primeira, como chefe de departamento, por assegurar as defesas, devolvendo o nível de titulação exigida e garantindo a sua autonomia; e a segunda, por atuar na manutenção da burocracia de titulações contra a intervenção da ditadura:

No caso da Maria Sylvia, a coisa foi muito grave. Maria Sylvia escreveu um trabalho que ela nunca publicou porque não era o trabalho que ela queria fazer, mas que fez para o Departamento de Filosofia sobreviver, sacrificando um livro numa tese acadêmica. Quando, anos depois, ela quis fazer o concurso para professor adjunto, alguns alegaram que era impossível porque ela não era bacharel em Filosofia. Além da injustiça patente, também houve desconsideração pela trajetória intelectual de Maria Sylvia, que cruzara com a filosofia e fizera muitos de nós cruzarmos com a história e a política (Chaui, 2011CHAUI, Marilena. (2011), "Entrevista com Marilena Chauí". Trans/Form/Ação, 34: 179-211., p. 190).

Conclusão

No final dos anos 1950 e início dos 1960, Maria Sylvia esteve encarregada do programa da disciplina de graduação “Técnicas e Métodos de Investigação”, no âmbito da qual dirigiu uma pesquisa sobre a clientela da FFCL. Segundo os resultados da pesquisa, “o número de mulheres [era] acentuadamente maior nas sessões de humanidades [e elas] aparecem em maior proporção no grupo proveniente do interior que no de origem paulistana” (Franco, 1962FRANCO, Maria Sylvia de. (1962), "Os alunos do interior na vida escolar e social da cidade de São Paulo: Técnica e resultados de uma pesquisa de treinamento". Boletim 259 da Cadeira de Sociologia I da FFCL-USP, São Paulo, FFCL-USP., p. 46).

Como destacado por Moraes (2023)MORAES, Paulo Henrique R. (2023), Estratificação social e dominação: formas weberianas no pensamento político de Raymundo Faoro Maria Sylvia de Carvalho Franco (1958-1975). 167 p. Campinas, tese de doutorado em Sociologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp., no entanto, na hipótese de Maria Sylvia, “a presença feminina na FFCL não aparece como ruptura com padrões tradicionais”. Mostra, antes, sua manutenção (Moraes, 2023MORAES, Paulo Henrique R. (2023), Estratificação social e dominação: formas weberianas no pensamento político de Raymundo Faoro Maria Sylvia de Carvalho Franco (1958-1975). 167 p. Campinas, tese de doutorado em Sociologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp., p. 94), pois no argumento da autora:

[…] entre nós existem alguns setores profissionais que têm sido regularmente supridos por elementos femininos e, desses, o magistério é o mais importante. Ensinar constitui atividade feminina sancionada pela tradição, havendo em relação a ela menor carga de preconceitos do que os que cercam outras ocupações que o mundo urbano moderno vem confiando preferencialmente às mulheres (Franco, 1962FRANCO, Maria Sylvia de. (1962), "Os alunos do interior na vida escolar e social da cidade de São Paulo: Técnica e resultados de uma pesquisa de treinamento". Boletim 259 da Cadeira de Sociologia I da FFCL-USP, São Paulo, FFCL-USP., p. 46).

Ao observar que ensinar seria uma “atividade feminina sancionada pela tradição”, Maria Sylvia nos ajuda a compreender aspectos dos temas tratados até aqui. As condições nas quais as ideias e obras de mulheres puderam vir a ser debatidas em seu contexto intelectual não foram as melhores. Em meio às transformações das práticas e da vida intelectual promovidas pela criação de cursos superiores em áreas como Ciências Sociais no Brasil (Miceli, 1989MICELI, Sergio. (1989), “Condicionantes do desenvolvimento das ciências sociais”. In: MICELI, Sergio (org.). História das ciências sociais no Brasil. São Paulo, Edições Vértice/Idesp, vol. 1, pp. 72-110.; Pontes, 1998PONTES, Heloisa. (1998), Destinos mistos. Os críticos do grupo Clima em São Paulo 1940-1968. São Paulo, Companhia das Letras.; Arruda, 2015ARRUDA, Maria Arminda. (2015), Metrópole e cultura: São Paulo no meio do século XX. São Paulo, Edusp.), observamos que a participação do contingente feminino na mudança foi retraduzida a partir de um lugar social tradicional, anterior a tais transformações: a associação entre o feminino e o magistério.

Alocações como auxiliares de ensino ou “instrutoras extranumerárias”, por exemplo, não apenas foram comuns, como também foram tomadas como os espaços mais típicos da presença feminina. Em meio às rotinas de aula e ao trabalho de cuidado – na vida profissional e pessoal –, mulheres pareciam encontrar menos espaços e dispor de menos tempo para a viabilização de suas carreiras acadêmicas, em um dos efeitos mais visíveis do que chamamos de divisão sexual do trabalho intelectual14 14 . O debate sobre usos do tempo, trabalho doméstico e sua delegação é amplo e indica a necessidade de considerar gênero em suas intersecções com raça e classe. Sobre o tema, ver Castro e Chaguri, 2020. .

Impactando os usos do tempo e, portanto, estruturando rotinas pessoais e profissionais, tal divisão do trabalho acabou por inserir no interior da nascente cultura institucional da Faculdade normas de conduta de gênero que tiveram o efeito de naturalizar elementos como os empecilhos no acesso às cátedras, as posições subordinadas em atividades de ensino e de pesquisa, além das dificuldades para a construção de prestígio intelectual no momento mesmo em que produziam e colocavam suas ideias em circulação.

José de Souza Martins (2010MARTINS, José de S. (2010), "Luiz Pereira e sua circunstância: entrevista com José de Souza Martins, por Conrado Pires de Castro". Tempo Social, 22 (1): 211-276., p. 238), por exemplo, comenta sobre um mal-estar envolvendo Marialice Forachini e Luiz Pereira (1933-1985), que ocorreu durante a organização conjunta da antologia Educação e sociedade (1964). O ponto de queixa de Luiz Pereira era que a edição impressa do livro trazia o nome dela antes do dele, transformando-o em “mero coautor”. Na ocasião, Pereira chegou a afirmar que a troca aconteceu porque o dono da Companhia Nacional era o tio de Marialice; sendo assim, foi à editora e exigiu a mudança da capa e do primeiro caderno que começava a ser distribuído, ficando ela como “mera coautora”15 15 . Na edição original e nas posteriores, ficou, contudo, a evidência do que ocorreu na ficha catalográfica, que não foi mudada, em que o nome de Marialice aparece primeiro. .

Também segundo relato de José de Souza Martins (2010MARTINS, José de S. (2010), "Luiz Pereira e sua circunstância: entrevista com José de Souza Martins, por Conrado Pires de Castro". Tempo Social, 22 (1): 211-276., p. 221), com a partida de Fernando Henrique para o exílio no Chile, em 1964, e as cassações e perseguições impostas aos estudantes pela ditadura militar, o grupo de Florestan mudou um pouco de rumo e foi reorganizado pela nova composição assumida por Marialice e Luiz Pereira, que era mais novo que ela. Nessa mudança, Marialice se incumbiu de orientar, muitas vezes informalmente, a maioria dos novos pesquisadores recrutados na Cadeira de Sociologia I, articular o grupo de assistentes e montar um seminário sobre os ensaios de metodologia de Max Weber, no estilo do seminário sobre O capital.

Pertencentes a uma geração posterior à de Maria Isaura, os integrantes da Cadeira de Sociologia I, como Marialice e Maria Sylvia, além de mais novos, foram todos colegas de graduação e alunos de Florestan Fernandes. No grupo mobilizado em torno dessa cátedra e das agendas de pesquisa coordenadas pelo sociólogo, em que se articulavam os projetos individuais e coletivos de pesquisa, foram estabelecidas relações assimétricas e, por vezes, desiguais. Ao contrário da Cadeira de Sociologia II, havia ali uma hierarquia mais notável. Exercendo uma “função reguladora”, Florestan “administrava o desencontro dos assistentes” (Martins, 2010MARTINS, José de S. (2010), "Luiz Pereira e sua circunstância: entrevista com José de Souza Martins, por Conrado Pires de Castro". Tempo Social, 22 (1): 211-276., p. 257).

Na tentativa de afastar um suposto “despotismo de cátedra” e criar um espaço institucional mais democrático, Florestan constituiu em torno da Cadeira de Sociologia I e do Cesit um “pequeno grupo em que o poder era compartilhado em vários níveis, e no qual apenas havia “concentração de autoridade” quando se “tornava indispensável” (Fernandes, 1977FERNANDES, Florestan. (1977), A Sociologia no Brasil. Contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis, Vozes., p. 186). Nesse grupo, segundo o próprio sociólogo, havia uma divisão entre dois escalões: a rotina de trabalho consistia em uma discussão em um primeiro escalão, na qual participavam com ele Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni; havia, em seguida, “um desdobramento da discussão em segundo escalão”, que contava com a participação de Marialice Foracchi e Maria Sylvia de Carvalho Franco (Idem, grifo nosso). Tal divisão intelectual do trabalho mostra que, se às mulheres restava discutir ideias em “segundo escalão”, mais limitadas ainda eram as possibilidades de disputa por postos de poder.

Maria Isaura foi uma das poucas mulheres a, neste contexto, se engajar numa iniciativa mais comum entre os pares homens: a criação de um centro de pesquisa. Aliando trabalho de campo e pesquisa em equipe, no ano de 1964, ela criou o Centro de Estudos Rurais e Urbanos (Ceru), cujo objetivo inicial era realizar estudos do meio rural brasileiro. Tal iniciativa se desdobraria na revista Cadernos Ceru, publicada a partir de 1968, que se consolidou como o principal meio de divulgação das perspectivas teóricas produzidas pelo grupo.

Havia no Ceru uma preponderância feminina de pesquisadoras que foram, direta ou indiretamente, alunas de Maria Isaura. Em depoimento a Spirandelli (2011SPIRANDELLI, Claudinei Carlos. (2011), Trajetórias intelectuais: professoras do curso de Ciências Sociais da FFCL-USP (1934-1969). São Paulo, Humanitas; Fapesp., p. 192), Zeila de Brito Demartini, que foi aluna de Maria Isaura, recordou que ela as fazia escrever “os nomes completos de mulheres nas citações em texto e bibliográficas, para que todos soubessem que foram feitas por mulheres, ao invés das impessoais e assexuadas iniciais”.

Ainda que não esteja no escopo deste artigo, é importante observar que uma presença mais ampla das docentes mulheres na Faculdade se deu após a extinção do sistema de cátedras, fruto da Reforma Universitária de 1968 que criou os Departamentos16 16 . Sobre o tema da Reforma Universitária de 1968, ver Fávero, 2006. . Sem nos determos nas assimetrias de gênero que atravessam também a lógica departamental, nos restringimos aqui a apontar que reformar o padrão anterior de atribuição de cargos e de ascensão nas carreiras foi fundamental para diminuir o hiato de gênero nos quadros docentes da Faculdade.

Este artigo evidencia que foram muitas as histórias coletivas presentes nas primeiras décadas de funcionamento da FFCL. Também foi possível observar que o acesso a oportunidades e aos espaços de poder e de autoridade (institucional e intelectual), possui nas relações de gênero um forte elemento funcional. Assim, ao lado da abertura para pensar as múltiplas trajetórias e inserções profissionais no interior da antiga FFCL, seria possível indagar que história da “escola sociológica paulista” emergiria caso a observássemos a partir da contribuição de diferentes autoras.

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  • VILLAS BÔAS, Glaucia. (2010), "Para ler a sociologia política de Maria Isaura Pereira de Queiroz". Revista Estudos Políticos, 1 (1): 37-44.
  • 1
    . No período aqui analisado, estavam reunidos nas FFCL os cursos de Filosofia; Letras Estrangeiras e Português; Letras Clássicas e Português; Ciências Sociais e Políticas; Geografia e História; Ciências Matemáticas; Ciências Naturais e Ciências Químicas. Sobre a história da FFCL, ver Galvão, 2020GALVÃO, Walnice N. (2020), Sobre os primórdios da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. São Paulo, Edusp..
  • 2
    . De modo sintético, definimos divisão sexual do trabalho como a “separação e a hierarquização das tarefas entre homens e mulheres, a reposição das responsabilidades domésticas e o cuidado com elas e a soma dessas atividades com as do trabalho remunerado são a base da teoria da divisão sexual do trabalho” (Castro e Chaguri, 2020CASTRO, Bárbara & CHAGURI, Mariana M. (2020), "Gênero, tempos de trabalho e pandemia: por uma política científica feminista". Linha Mestra, 41: 23-31, dezembro., p. 26). Sobre o tema, ver Hirata e Kergoat, 2007HIRATA, Helena & KERGOAT, Danielle. (2007), "Novas configurações da divisão sexual do trabalho". Cadernos de Pesquisa, 37 (132): 595-609, dezembro..
  • 3
    . Patricia Hill Collins (2016COLLINS, Patricia H. (2016), "Aprendendo com a outsider within". Sociedade & Estado, 31 (1): 99-127.; 2019) cunhou o termo outsider within para descrever o status de mulheres negras na sociedade norte-americana. Em seu argumento, a ambiguidade de estar dentro e fora proporcionaria a tais mulheres um ponto de vista próprio quanto ao self, à família e à própria sociedade. No que se refere à produção do conhecimento, a autora observa que todas as pessoas nelas envolvidas devem ser vistas a partir de suas posições de gênero, raça e nacionalidade, pois tais posições incidem na atribuição de prestígio e status ao conhecimento científico e aos seus praticantes; na atribuição de sentido aos conceitos e às categorias; e nos modos de recortar e construir temas e objetos de pesquisa. É, portanto, neste sentido que utilizamos a expressão insiders-outsiders.
  • 4
    . É importante destacar que a visibilização do trabalho de cuidado tem sido contemporaneamente apontada como elemento chave para o enfrentamento de desigualdades de gênero na ciência. Para uma reflexão a partir das Ciências Sociais, ver Candido, Marques, Oliveira e Biroli, 2021.
  • 5
    . Jandyra, após o doutoramento, chegou a lecionar, mas desistiu da carreira para ter filhos.
  • 6
    . Ophélia Ferraz do Amaral tornou-se membra e sócia fundadora da Sociedade de Etnografia e Folclore (1937-1939). Adélia Dranger, seguiu carreira como técnica em educação.
  • 7
    . Nas seções de exatas, a maior parte da participação feminina era de comissionadas, poucas foram as que ingressaram via vestibular. Na área de humanidades, as comissionadas representavam mais de um terço dos formandos. Sobre a presença das comissionadas, ver Limongi, 1989LIMONGI, Fernando. M. P. (1989). "Mentores e clientela da Universidade de São Paulo". História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Vértice/Ed. Revista dos Tribunais/Idesp, pp. 111-187., pp. 175-176.
  • 8
    . Annita de Castilho e Marcondes Cabral, licenciada em Filosofia e Ciências Sociais; doutora em Sociologia, em 1945, foi professora interina de Psicologia.
  • 9
    . A percepção de que a cátedra esteve fora do alcance das mulheres está presente em quase todos os depoimentos colhidos por Eva Blay e Alice Lang (2004), especialmente nos testemunhos de Gilda de Mello e Souza, Alice Piffer Canabrava, Jandyra França Barzaghi, Maria Vicente de Carvalho e Olga Pantaleão.
  • 10
    . Após o concurso, Alice Canabrava pediu demissão, ainda em 1946, e se transferiu para a Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativa da USP, onde se tornou catedrática de História Econômica Geral e Formação Econômica do Brasil. Alice é considerada a primeira mulher catedrática da USP, via concurso de cátedra.
  • 11
    . Sobre as origens sociais de Maria Isaura, ver Pulici (2008PULICI, Carolina. (2008), Entre sociólogos: versões conflitivas da condição de sociólogo na USP dos anos 1950-1960. São Paulo, Edusp/Fapesp., p. 126); Lopes (2012LOPES, Aline M. (2012), Vida rural e mudança social no Brasil: tradição e modernidade na sociologia de Maria Isaura Pereira de Queiroz. 259 p. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro., pp. 7-8); Pinheiro (2016PINHEIRO, Dimitri. (2016), "Jogo de damas: trajetórias de mulheres nas ciências sociais paulistas (1934-1969)". Cadernos Pagu, 46: 165-196, janeiro., pp. 180-181).
  • 12
    . Sobre a sociologia política de Maria Isaura, ver Botelho (2019)BOTELHO, André. (2019), O retorno da sociedade: política e interpretações do Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes. e Villas Bôas (2010)VILLAS BÔAS, Glaucia. (2010), "Para ler a sociologia política de Maria Isaura Pereira de Queiroz". Revista Estudos Políticos, 1 (1): 37-44..
  • 13
    . Curiosamente, em uma pesquisa sobre os corsos e bailes carnavalescos da cidade de São Paulo, a socióloga relembrou que na concepção das famílias de elite, inclusive da sua própria, nem todos os lugares eram “frequentáveis” e nem todas as jovens eram iguais, sendo “impensável que meninas de ‘boa família’ se misturassem com imigrantes italianos e espanhóis e seus descendentes!” (Queiroz, 1992QUEIROZ, Maria Isaura P. (1992), Carnaval brasileiro: o vivido e o mito. São Paulo, Brasiliense., p. 14).
  • 14
    . O debate sobre usos do tempo, trabalho doméstico e sua delegação é amplo e indica a necessidade de considerar gênero em suas intersecções com raça e classe. Sobre o tema, ver Castro e Chaguri, 2020CASTRO, Bárbara & CHAGURI, Mariana M. (2020), "Gênero, tempos de trabalho e pandemia: por uma política científica feminista". Linha Mestra, 41: 23-31, dezembro..
  • 15
    . Na edição original e nas posteriores, ficou, contudo, a evidência do que ocorreu na ficha catalográfica, que não foi mudada, em que o nome de Marialice aparece primeiro.
  • 16
    . Sobre o tema da Reforma Universitária de 1968, ver Fávero, 2006FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. (2006), "A universidade no Brasil: das origens à Reforma Universitária de 1968". Educar em Revista, (28), 17-36. https://doi.org/10.1590/S0104-40602006000200003.
    https://doi.org/10.1590/S0104-4060200600...
    .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2023
  • Aceito
    04 Jan 2024
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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