Resumos
O objetivo deste artigo é analisar as relações entre os investimentos em Ciência e Tecnologia (C&T) e as desigualdades socioespaciais no Brasil no período recente. Parte-se do pressuposto de que o desenvolvimento brasileiro continua assentado em uma dinâmica socioeconomicamente excludente. Logo, a hipótese é de que o desenvolvimento científico e tecnológico pode estar contribuindo para um aumento nas desigualdades no território, favorecido por investimentos em C&T mais expressivos nas unidades da federação e regiões do país onde as forças produtivas estão mais desenvolvidas. Para verificar essa hipótese analisam-se a evolução dos investimentos em C&T (com especial atenção para os sujeitos e as instituições que produzem e consomem C&T) e o desenvolvimento socioespacial ocorrido no Brasil na última década.
Brasil; Ciência e Tecnologia; Desenvolvimento regional; Desigualdades socioespaciais; Investimentos em ciência e tecnologia
Our purpose here is to analyse the links between investments in science and technology (S&T) and the growing socio-spatial inequalities in Brazil over recent years. We set out from the premise that Brazil's development remains based on a socioeconomic dynamic of benefit to just a small portion of its population. Our hypothesis, therefore, is that scientific and technological development may be contributing to this increase in inequality, favoured by more substantial investments in S&T in those states and regions where the productive forces are already more developed. To verify this hypothesis we analyse the evolution of investments in S&T (with special attention to social groups and institutions that produce and consume S&T) and the socio-spatial development taking place in Brazil during the last decade.
Brazil; Science and Technology; Regional development; Socio-spatial inequalities; Investments in S&T
ARTIGOS
Investimentos em C&T e desigualdades socioespaciais no Brasil** Uma versão anterior deste artigo foi apresentada durante as IX Jornadas Latinoamericanas de Estudios Sociales de la Ciencia y la Tecnología, Cidade do México, 5 a 8 de junho de 2012.
Investments in S&T and socio-spatial inequalities in Brazil
Ana Cláudia MoserI; Ivo Marcos TheisII
Ianinhamoser@gmail.comIIIvo Marcos Theis é economista e doutor em geografia pela Universität Tübingen (Alemanha), professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Regional de Blu menau. E-mail: theis@furb.br
RESUMO
O objetivo deste artigo é analisar as relações entre os investimentos em Ciência e Tecnologia (C&T) e as desigualdades socioespaciais no Brasil no período recente. Parte-se do pressuposto de que o desenvolvimento brasileiro continua assentado em uma dinâmica socioeconomicamente excludente. Logo, a hipótese é de que o desenvolvimento científico e tecnológico pode estar contribuindo para um aumento nas desigualdades no território, favorecido por investimentos em C&T mais expressivos nas unidades da federação e regiões do país onde as forças produtivas estão mais desenvolvidas. Para verificar essa hipótese analisam-se a evolução dos investimentos em C&T (com especial atenção para os sujeitos e as instituições que produzem e consomem C&T) e o desenvolvimento socioespacial ocorrido no Brasil na última década.
Palavras-chave: Brasil; Ciência e Tecnologia; Desenvolvimento regional; Desigualdades socioespaciais; Investimentos em ciência e tecnologia.
ABSTRACT
Our purpose here is to analyse the links between investments in science and technology (S&T) and the growing socio-spatial inequalities in Brazil over recent years. We set out from the premise that Brazil's development remains based on a socioeconomic dynamic of benefit to just a small portion of its population. Our hypothesis, therefore, is that scientific and technological development may be contributing to this increase in inequality, favoured by more substantial investments in S&T in those states and regions where the productive forces are already more developed. To verify this hypothesis we analyse the evolution of investments in S&T (with special attention to social groups and institutions that produce and consume S&T) and the socio-spatial development taking place in Brazil during the last decade.
Keywords: Brazil; Science and Technology; Regional development; Socio-spatial inequalities; Investments in S&T.
Introdução
O tema deste artigo centra-se nas relações entre investimentos em Ciência e Tecnologia (C&T) e desigualdades socioespaciais no Brasil. O objetivo é analisar em que medida os investimentos (governamentais e privados) em C&T influenciam na redução, na preservação ou, mesmo, no agravamento das desigualdades socioespaciais. Do ponto de vista temporal, abarca-se a década de 2000.
Partindo do pressuposto de que o desenvolvimento brasileiro assenta-se em uma dinâmica excludente em termos socioeconómicos, defende-se aqui que vem ocorrendo um aumento das desigualdades no território, favorecido pelo desenvolvimento científico e tecnológico, em decorrência do maior volume de investimentos em C&T no Sudeste/Sul -; a região concentrada (cf. Santos e Silveira, 2001) -;, onde as forças produtivas estão mais desenvolvidas. Para verificar essa hipótese, são analisados a evolução dos investimentos em C&T (com especial atenção nos sujeitos e nas instituições que produzem e consomem C&T) e o desenvolvimento socioespacial que teve lugar no país na última década.
A análise baseia-se em dados obtidos de pesquisa bibliográfico-documental (qualitativa) e estatística (quantitativa). Como pano de fundo, toma-se como referência a concepção de desenvolvimento geográfico desigual, que permite compreender a dinâmica espacial do capitalismo. Enfatiza-se, portanto, o processo de acumulação do capital como produtor de diferenciações geográficas (tanto em termos de riqueza quanto de poder), ou seja, à luz da concepção de desenvolvimento geográfico desigual busca-se explicar por que as regiões mais ricas tendem a se tornar cada vez mais ricas, e as mais pobres tendem a se tornar cada vez mais pobres11. Estamos conscientes de que as regiões (como quer que as definamos), em si mesmas, não são ricas -; isto é, detentoras de propriedades e concentradoras de rendas -; ou pobres, mas sim que os sujeitos (grupos e classes sociais), que vivem em diferentes regiões, é que definem quais delas são ricas -; e quais são pobres. -; e o que C&T tem a ver com isso.
O artigo estrutura-se em quatro seções principais: a introdução; uma seção de caráter teórico, em que se discutem as relações entre desenvolvimento geográfico desigual e desenvolvimento científico e tecnológico; uma seção em que são analisadas as relações entre os investimentos realizados em C&T e as desigualdades socioespaciais no Brasil; e a última seção, em que se apresentam as considerações finais.
O marco teórico: desenvolvimento desigual e C&T
O desenvolvimento desigual é produto da expansão do capitalismo, que ganhou maior velocidade a partir da Revolução Industrial. O desenvolvimento do capitalismo levou à exploração do mercado mundial e deu um caráter cosmopolita aos modelos de produção e consumo em escala planetária. No período mais recente, após a década de 1980, a reestruturação industrial nos países capitalistas centrais contribuiria para configurar uma nova divisão territorial do trabalho. Essa nova configuração espacial do capitalismo pode ser analisada à luz da concepção de desenvolvimento desigual (cf. Theis e Butzke, 2012).
A origem da noção de desenvolvimento desigual remete aos escritos de Lênin que fazem a análise política do desenvolvimento capitalista na Rússia, tema que adquire posteriormente maior importância na obra de Trotsky, para quem a noção de desenvolvimento desigual permite compreender as contradições econômicas e sociais das formações capitalistas periféricas. A análise fundada na noção de desenvolvimento desigual capta a totalidade, já que o capital integrou o mundo em um todo, tanto político quanto econômico. A superação da realidade econômica e socialmente contraditória de formações periféricas seria possível através de uma revolução social.
Países centrais e países periféricos desenvolvem-se, uns em relação aos outros, em ritmo desigual. Mais ainda: os países periféricos se desenvolvem, internamente, de forma desigual -; ou de forma mais desigual que os países centrais. A formulação mais avançada da noção de desenvolvimento desigual -; que traz à superfície as desigualdades políticas, econômicas e sociais intrínsecas às formações capitalistas periféricas (e entre essas e as formações centrais) - resultou, a partir da obra de Trotsky, na lei do desenvolvimento desigual e combinado (cf. Löwy, 1998).
Uma teoria do desenvolvimento geográfico desigual concentra sua preocupação no processo e no padrão do desenvolvimento desigual especificamente capitalista. Levando em consideração que a geografia do capitalismo é uma parte integral do modo de produção, o espaço passa a ser um conceito-chave para a compreensão do capitalismo. A partir da geografia pode-se explicar o desenvolvimento econômica e politicamente desigual entre regiões e entre nações.
O capital consolida-se sobre um espaço geográfico que já se encontrava diferenciado por complexos padrões espaciais. Na medida em que esse espaço é ocupado pelo capital, ele se torna mais funcional ao processo de acumulação de capital devido aos padrões hierárquicos que, sistematicamente, são incorporados às diferentes escalas espaciais. Em uma perspectiva geográfica, o capital concentra-se em um lugar à medida que vai sendo retirado de outros lugares. Nesse sentido, "o desenvolvimento desigual é [...] a expressão geográfica das condições do capital" (Smith, 1988, p. 217).
O caráter geográfico da análise do desenvolvimento desigual é mais recente e encontra-se na teoria do desenvolvimento geográfico desigual. Qual é a diferença fundamental entre a lei do desenvolvimento desigual e combinado e a teoria do desenvolvimento geográfico desigual ? Enquanto a primeira propicia uma explicação politicamente plausível para o fato de que uma formação social periférica (onde as forças produtivas não estão desenvolvidas nem são controladas pela burguesia nacional) pode vivenciar uma revolução política, a segunda constitui uma tentativa teórico-metodológica de conceber a natureza geográfica da desigualdade econômica entre regiões e entre países produzida pelo capitalismo (cf. Theis e Butzke, 2012).
O desenvolvimento geográfico desigual baseia-se em dois elementos: a produção das escalas espaciais e a produção da diferença geográfica. O primeiro diz respeito à produção de uma hierarquia de escalas espaciais que organiza as atividades humanas. As escalas de realização da atividade humana dependem do nível de desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, do grau de desenvolvimento tecnológico e das condições políticas e econômicas dominantes no espaço e no tempo. O segundo resulta da conformação de um complexo e dinâmico mosaico geográfico em escala planetária, assim como da forma como as diferenças geográficas são modificadas pelos processos político-econômicos e socioecológicos que ocorrem permanentemente. É importante compreender como as diferenças geográficas vão sendo produzidas no presente, mas sem descurar de como elas foram geradas no passado. O desenvolvimento geográfico desigual diz respeito tanto à mudança de escalas quanto à produção das diferenças geográficas. De maneira que se deve pensar em "diferenciações, interações e relações tanto interescalares como intraescalares" (Harvey, 2004, p. 112).
A geografia do desenvolvimento desigual tem início na diferenciação do espaço geográfico, determinada pela acumulação primitiva, e é presentemente definida pela nova divisão territorial do trabalho. Aqui importa analisar o desenvolvimento científico e tecnológico no contexto mais específico de uma divisão inter-regional do trabalho, em que as regiões geográficas experimentam diferentes graus de desenvolvimento de suas forças produtivas. Um dos elementos responsáveis por essa diferenciação é, precisamente, a inserção de novas técnicas de produção que elevam a produtividade do trabalho. A tecnologia é, ao mesmo tempo, uma forma de expansão para o capital e, por isso, um fator que impulsiona o desenvolvimento das forças produtivas (cf. Theis e Butzke, 2012).
A C&T tem sido fundamental para a conformação do desenvolvimento geográfico desigual. Seu uso permitiu à sociedade humana um maior domínio da natureza. No entanto, é a Revolução Industrial inglesa que representará, de uma perspectiva tecnológica, o verdadeiro marco na descontinuidade entre práticas sociais tradicionais e modernas.
Nos países centrais, as condições em que se deu o desenvolvimento da C&T levaram a defini-la como pura, teórica, desvinculada de pressões práticas, enfim, neutra. Paradoxalmente, ao mesmo tempo, passaram-se a explorar ao máximo as possibilidades da C&T com fins militares e industriais. A diferenciação entre conhecimento puro e conhecimento aplicado refletiu-se, institucionalmente, na divisão entre centros de pesquisa acadêmicos e centros de pesquisa tecnológicos. Contudo, a disposição de recursos dos países centrais fez com que essas duas esferas passassem a caminhar em aparente harmonia. Neste ponto, é fundamental destacar que a realidade das formações sociais periféricas é distinta. E, não obstante, também aí a atividade científica tendeu a seguir os padrões internacionais ditados pelas formações centrais. A consequência tem sido um desenvolvimento científico e tecnológico nas mesmas áreas de pesquisa dos países centrais, de forma que a atividade científica nas formações periféricas tende a ser alienada, distante das necessidades de suas populações (cf. Schwartzman, 1979).
Em geral, em formações sociais capitalistas, em que predomina a produção de mercadorias, a C&Ttende a impulsionar o desenvolvimento econômico - mas não (linear e inexoravelmente) conduzir à satisfação das necessidades dos indivíduos, ou seja, ao desenvolvimento social. Em formações periféricas, devido ao já mencionado caráter alienado da atividade científica nelas prevalecente, a C&T é ainda menos acoplada às demandas de suas populações (cf. Theis, 2009).
Note-se, a propósito, que a tecnologia produzida/disseminada nos países periféricos é, também, o que tem sido chamado de Tecnologia Convencional(TC). A TC é, basicamente, poupadora de mão de obra. Como boa tecnologia capitalista, ela reduz o trabalho humano mais do que seria conveniente, porque o lucro das empresas é dependente da redução do tempo de trabalho socialmente necessário para a produção das mercadorias. A TC maximiza a produtividade em relação à mão de obra ocupada. O indicador de produtividade não é neutro: ele considera mais produtiva a empresa que diminui o denominador da fração em relação à mão de obra utilizada, ou seja, a produtividade representa, a um só tempo, aumento da produção e redução da força de trabalho.
Mais importante talvez seja o fato de que a TC é concebida nos países centrais a partir das demandas de suas populações. O conhecimento produzido nesses países - que resulta de 95% dos gastos em pesquisa no mundo - é, portanto, baseado nas necessidades de consumo (e tem como objetivo satisfazê-las) de populações de rendas mais altas. As novas e mais modernas tecnologias satisfazem as demandas nesses países, enquanto as tecnologias em uso nos países pobres servem para satisfazer necessidades básicas, produzir infraestrutura e/ou gerar valor às matérias-primas. Não há, pois, como falar em C&T neutra (cf. Dagnino, 2010).
Assim, a TC é fundamental para o processo de acumulação de capital. As inovações tecnológicas permitem que se realizem reinvestimentos dos excedentes. A tecnologia como capital fixo no processo de produção conduz à expansão do capital e impulsiona o desenvolvimento das forças produtivas. E a competição generaliza a necessidade pela inovação em todas as áreas da economia. Daí por que muitos recursos são destinados ao desenvolvimento(e às aplicações) da ciência. De forma que a C&T já se tornou um negócio, uma mercadoria cujo objetivo é desenvolver capital fixo (cf. Smith, 1988). Mas em que direção, afinal, a C&T é desenvolvida?
Parece que o capitalismo logra, ao mesmo tempo, impulsionar o desenvolvimento científico e tecnológico através da aplicação da ciência à produção e orientar os caminhos do complexo mecanismo que define e seleciona as prioridades de pesquisa e das inovações que realmente serão aplicadas. A mais-valia relativa é, então, o principal condutor da aplicação da ciência à produção de mercadorias. E assim como outros elementos que compõem as forças produtivas, a C&T é marcada por um caráter antagônico das relações sociais, por um desenvolvimento contraditório (cf. Chesnais, 1983).
O desenvolvimento contraditório do capitalismo está expresso na racionalização geográfica do processo produtivo, dependendo de inúmeras variáveis. Em todas elas, contudo, exige constante inovação tecnológica. É que a racionalização do processo produtivo, em sua expressão geográfica, depende de infraestruturas (em constante transformação), de recursos para transporte e comunicação, de matérias-primas e insumos, que os mercados impõem às indústrias (cf. Harvey, 2005).
De forma que boa parte do conhecimento científico e tecnológico concebido e produzido nos países periféricos segue os moldes da C&T gerados nos países centrais. As demandas tecnológicas dos países periféricos têm sido satisfeitas pela importação de equipamentos e assistência técnica estrangeiros. Como a tecnologia estrangeira é facilmente adquirida, não há pressão suficiente sobre a comunidade científica local para a produção de alternativas tecnológicas adequadas à realidade social dos países periféricos (cf. Sagasti, 1986). Assim, boa parte da tecnologia utilizada nos países periféricos, importada dos países centrais, não atende às demandas e às expectativas de suas populações, já que foram produzidas de acordo com as necessidades das populações dos países centrais.
Esse modelo de desenvolvimento científico e tecnológico dependente concebe a tecnologia como um processo independente dos desejos humanos e dos fatores externos, resultando em um processo fechado e neutro. Em decorrência, a tecnologia assim concebida deveria, em primeiro lugar, interagir com o sistema produtivo (sobretudo a indústria) para satisfazer as demandas do mercado internacional; e, em segundo, gerar inovações para competir nesse mercado (cf. Herrera, 2003).
Não obstante, o desenvolvimento científico e tecnológico tornou-se um fator de grande importância para o crescimento econômico dos países centrais. Com efeito, estes têm destinado recursos crescentes à pesquisa e ao desenvolvimento (P&D), ampliando, assim, o conteúdo tecnológico dos artigos manufaturados. Em consequência, tem se tornado cada vez mais difícil para os países periféricos competir na produção de artigos com maior conteúdo tecnológico e quase proibitivo disputar espaço no mercado internacional. Ora, com a concentração da maioria das atividades de P&D nos países centrais, e aí em um número reduzido de grandes empresas, há limites óbvios para um desenvolvimento científico e tecnológico que, nos países periféricos, desemboque em desenvolvimento social (cf. Sagasti, 1986).
A desconsideração desses fatos explica, em grande medida, por que o desenvolvimento científico e tecnológico permanece sendo compreendido (ao menos do ponto de vista do senso comum e dos atores ligados à C&T) como um encadeamento linear que converte, automaticamente, investimentos em C&T em desenvolvimento econômico e bem-estar. Aqui, pretende-se contribuir, também, para desmistificar a ideia de que a pesquisa básica conduz à pesquisa aplicada, que, por sua vez, conduz a inovações, levando assim ao desenvolvimento econômico e social (cf. Dagnino, 2003). Se, nos países centrais, o desenvolvimento científico pode levar ao desenvolvimento tecnológico e, este, ao desenvolvimento econômico e social, o modelo de desenvolvimento científico e tecnológico fundado nos valores e nas demandas de populações de rendas relativamente mais elevadas tende a agravar as desigualdades socioespaciais em formações periféricas, como o Brasil (cf. Theis, 2011).
Desigualdades regionais e investimentos em C&T no Brasil
As desigualdades socioespaciais são uma das principais características do desenvolvimento brasileiro no período recente. Tanto o desenvolvimento científico e tecnológico como o desenvolvimento econômico e social, a rigor indissociáveis entre si, têm obedecido a uma dinâmica excludente.
De modo geral, o processo de desenvolvimento dos países periféricos ocorreu mediante uma industrialização truncada, que tentava seguir o modelo dos países centrais. No decorrer desse processo, as características específicas das formações sociais periféricas foram consideradas somente em função da sua capacidade de adequação ao conceito dominante de progresso. As diferenças culturais foram apagadas pelos imperativos do desenvolvimento econômico (cf. Herrera, 2003).
No Brasil, o território foi sendo apropriado em frentes de expansão que permitiram ganhos extraordinários, mesmo com os baixos rendimentos físicos da terra. Esse modelo de ocupação territorial do capitalismo brasileiro implicou a concentração perversa da estrutura de propriedade e renda. Isso resultou, especialmente para as regiões periféricas, em impedimentos para a conformação de espaços de produção com características regionalizadas. Além disso, as decisões sobre esses territórios passaram a ser tomadas, cada vez mais, fora deles: "se, por um lado, não se constitui endogenia no processo de desenvolvimento, por outro, a correlação de forças políticas não logra constituir base identitária mínima no sentido da construção de cidadania" (Brandão, 2010, p. 53).
Desde os anos de 1970, o Estado vinha reforçando seu papel estruturante no território. Foram implantados equipamentos urbanos sofisticados, novos padrões de consumo, de moradia e deslocamento, que exigiram a construção de um modelo urbano moderno sobre o já existente, o qual avançou em porte e complexidade. Esse esforço visava à integração da economia nacional. Seus resultados acabariam seguindo em duas direções: primeiro, houve um conjunto de mudanças em termos espaciais e na política externa; segundo, ocorreu um esforço para a formação de polos tecnológicos, que visavam integrar pesquisa, empresas e uma localização favorável. Contudo, o acesso a essa infraestrutura se deu de forma desigual: as regiões Sudeste e Sul concentrariam a atividade industrial e se beneficiariam do desenvolvimento científico e tecnológico (cf. Brandão, 2010; Diniz, 1995).
As políticas adotadas nos três decênios entre 1980 e 2010, portanto desde a presidência de Sarney até a de Lula, pouco alterariam a paisagem de desigualdades socioespaciais herdada da ditadura civil-militar. De fato, as políticas de Collor e FHC parecem ter agravado o quadro de disparidades entre as regiões do país (cf. Oliveira, 2006; Theis, 2009).
As desigualdades socioespaciais no Brasil podem ser expressas por meio de diversas variáveis. A distribuição da população no território é uma delas. Em 2010, o número de habitantes alcançou 190,7 milhões (cf. IBGE, 2010), distribuídos em um território de 8,5 milhões de metros quadrados (cf. IBGE, 2002). A distribuição desigual da população entre as macrorregiões do país pode ser observada considerando, por exemplo, a região Sudeste, que concentra 42% da população e possui a segunda menor área do país (menos de 11%) (cf. IBGE, 2007).
A distribuição do PIB de acordo com as regiões é outra variável que revela as desigualdades no Brasil. Segundo dados do IBGE (2010), o Sudeste, no início da década de 1990, era responsável por 58% do Produto Interno Bruto (PIB), e o Sul, por 17%, concentrando ambas as regiões mais de três quartos da riqueza produzida no território brasileiro. Mesmo com o aumento da participação das demais regiões ao longo das últimas décadas, o Norte, o Nordeste e o Centro-Oeste, que juntos somam mais de 82% do território e possuem 43% da população brasileira, representavam, em 2008, apenas 27,4% do PIB do Brasil. Assim, é possível afirmar que a capacidade de produção de riqueza se concentra de forma bastante expressiva no Sudeste/Sul do país (cf. Theis, 2011).
As desigualdades socioespaciais identificáveis no Brasil parecem relacionarse com seu desenvolvimento científico e tecnológico. Uma evidência é que também as atividades de C&T estão concentradas nas regiões Sudeste/Sul do país. Com efeito, essa concentração em algumas poucas unidades da federação, especialmente naquelas em que as forças produtivas se encontram mais avançadas, parece resultar de um desenvolvimento geográfico desigual. Na medida em que o capital se consolida em um dado espaço, ele traz consigo uma complexa configuração dos padrões espaciais (cf. Smith, 1988). No caso brasileiro, a expansão do capital apoia-se no desenvolvimento científico e tecnológico regionalmente concentrado.
Assim, a distribuição desigual das atividades científicas e tecnológicas pelo território brasileiro vem acompanhando a acumulação do capital. A base técnica propagou-se do centro para outros espaços, dinamizando e reforçando a capacitação tecnocientífica das regiões centrais. Umas das características desse processo é que ele não se deu de forma linear. De modo geral, o desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro concentrou suas atividades nas regiões Sudeste/Sul, propagando-as apenas lentamente para as demais regiões. No período recente, como se verá a seguir, vem tendo lugar uma leve desconcentração das atividades de C&T, com aumento da participação relativa das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Os investimentos em C&T tendem a acompanhar o movimento do desenvolvimento científico e tecnológico. O maior volume dos investimentos está concentrado nas regiões mais dinâmicas, Sudeste e Sul, contribuindo assim para a manutenção das desigualdades regionais ao fortalecer e dinamizar, cada vez mais, a capacidade tecnocientífica das regiões centrais. O desenvolvimento científico e tecnológico das regiões periféricas apoia-se em um volume crescente de investimentos em C&T, insuficiente, porém, para modificar a dinâmica produtora das desigualdades regionais.
A adesão das autoridades federais aos pressupostos da cadeia linear de inovação fica evidente quando se analisam os investimentos em C&T. O primeiro elo da cadeia, a pesquisa básica para o desenvolvimento científico e tecnológico, é privilegiado por intermédio de investimentos - das instituições de ensino superior (ies) - na pós-graduação stricto sensu. É possível verificar um aumento nos dispêndios com a pós-graduação em todas as regiões entre 2003 e 2010. Contudo, a despeito de, no período, Norte e Centro-Oeste (excetuando Distrito Federal) terem experimentado crescimento mais elevado (325,5% e 232%, respectivamente), os dispêndios com pós-graduação, em 2010, permanecem comparativamente mais baixos do que nas demais regiões.
A aposta no segundo elo da cadeia de inovação -; a pesquisa aplicada seria impulsionada, de forma natural, pelo desenvolvimento da pesquisa básica -; também pode ser identificada nos investimentos em C&T. Dessa aposta decorre a grande importância conferida à relação universidade-empresa: quanto mais próximas estiverem universidades e empresas, mais sólida seria a ligação entre pesquisa básica e pesquisa aplicada.
A relação universidade-empresa mostra-se distante quando se consideram dados como os da relação entre número de artigos publicados, que acompanha o crescimento da pesquisa básica, e número de pedidos de patente, demonstrando a evolução da pesquisa aplicada. O número de artigos brasileiros publicados em periódicos científicos indexados pela Thomson/ISI cresceu significativamente nas duas últimas décadas, passando de 2.049, em 1985, para 30.415, em 2008. Na América Latina, representava 34,3% do total de artigos publicados em 1985 e passou a representar 54,6% em 2008. No mundo, representava menos de 0,5% do total de artigos publicados em 1985 e passou a representar 2,6% em 2008.
Há, ademais, uma distância entre desenvolvimento científico e desenvolvimento tecnológico, expressa na distância entre o número de artigos publicados e o número de patentes concedidas pelo escritório de marcas e patentes dos Estados Unidos. É certo que se passou de trinta concessões, em 1985, para 131 concessões, em 2008, segundo dados dos indicadores do U.S. Patent and Trademark Office (USPTO). Todavia, em comparação com outros países de mesmo potencial econômico, a posição do Brasil é deplorável.
Constata-se um desajuste entre o âmbito de produção do conhecimento e o âmbito de aplicação desse conhecimento, o que explica a debilidade da relação entre pesquisa e produção. Assim como nos demais países latino-americanos, também no Brasil ocorre um deslocamento entre a esfera de produção e a de aplicação do conhecimento devido à sua condição periférica. Há, pois, uma fratura entre a produção e a aplicação do conhecimento científico. O conhecimento não é transformado em bens ou serviços que poderiam promover desenvolvimento econômico e bem-estar para a sociedade. Assim, o "ciclo virtuoso que [...] legitima e impulsiona o capitalismo nos países centrais não está ocorrendo nos países latino-americanos" (Dias e Dagnino, 2007, p. 110) - nem, obviamente, no Brasil.
No que diz respeito aos investimentos em C&T, os dispêndios públicos não empresariais apresentaram um aumento significativo entre 2003 e 2010, passando de 11 bilhões de reais, no ano de 2003, para 32,7 bilhões de reais em 2010. Mais da metade desses investimentos vem da União, o que demonstra a importância do governo federal para o desenvolvimento científico e tecnológico do país. No que diz respeito aos dispêndios empresariais, a situação é menos interessante: a parcela dessa macrorrubrica reduziu de 48,1%, em 2003, para 46,2%, em 2010. Também é preciso considerar que "empresariais" não se limita a capital privado, mas inclui empresas estatais e IES federais. O total dos dispêndios passou de 21 bilhões de reais, em 2003, para 60 bilhões de reais, em 2010, o que representa um aumento de cerca de 185%.
A relação entre dispêndio em C&T e pib vem aumentando significativamente. Em 2010, 1,66% do pib brasileiro já era investido em C&T. Contudo, a proporção entre dispêndios não empresariais (públicos, bancados pela União e pelos governos estaduais) e empresariais (públicos e privados) continua desequilibrada: o capital privado permanece como responsável pela menor fatia dos investimentos em C&T, embora seja (em tese) seu maior beneficiário.
O aumento dos investimentos em C&T, como verificado, a despeito de sinais de leve desconcentração, não significou umaredução nas desigualdades socioespaciais, uma vez que os investimentos permanecem concentrados nas UF mais dinâmicas. Em termos globais, houve um aumento de 127,3%, embora os dispêndios em C&T tenham crescido mais nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste, respectivamente.
Assim, as disparidades regionais no país têm se mantido elevadas. Mesmo com o aumento dos investimentos em C&T desde 2003 nas regiões citadas, em 2009 o Sudeste/Sul era responsável por 81,6% do total de investimentos dos governos estaduais. O caso de São Paulo é emblemático: em 2003, esse estado respondiasozinho por 73,7% do total de investimentos dos governos estaduais em C&T no país; em 2009, esse percentual baixou para 57,4%.
Como já verificado, os investimentos privados em C&T representam uma fatia pouco significativa, quando comparados à fatia dos investimentos estatais no Brasil. Quando se tomam como referência dados da Pintec, tem-se que o Sudeste/Sul concentra 87,7% do total dos dispêndios das empresas ditas inovadoras nas atividades inovativas. O estado de São Paulo, sozinho, responde por 50,2% de tais dispêndios. Do total das empresas inovadoras no Brasil (100.496), mais da metade (54.418) está localizada na região Sudeste. Em termos de localização espacial da atividade produtiva, isso mostra que o desenvolvimento tecnológico também está concentrado na região economicamente mais desenvolvida do país.
É evidente, portanto, que o aumento dos investimentos em C&T não contribuiu para a redução das desigualdades regionais. Os investimentos em pesquisa básica não têm tido a repercussão esperada na pesquisa aplicada, e esta tampouco tem desembocado em inovação e desenvolvimento econômico e social. O desenvolvimento científico e tecnológico não tem contribuído para a redução das desigualdades inter-regionais herdadas, um legado de fragmentação regional sobre o qual foi sobreposto um processo de industrialização excludente no país (cf. Brandão, 2010).
No Brasil, a industrialização excludente esteve desconectada (e continua) das atividades de C&T, que replicam no país áreas de pesquisa já desbravadas nos países centrais (cf. Schwartzman, 1979). Essa talvez seja uma das características decorrentes das circunstâncias históricas do subdesenvolvimento que impede que o processo de acumulação responda às necessidades da maioria da população. Logo, trata-se de uma característica-chave em uma formação social que se submete ao ritmo da reprodução ampliada do capital internacional (cf. Prado Junior, 1970). Ou, ainda, em termos furtadianos: a estrutura centro-periferia impede que em uma formação social periférica, como o Brasil, tenha lugar um avanço tecnológico -; o progresso técnico! -; compatível com o desenvolvimento das forças produtivas, configurando-se aí uma desarticulação entre a modernização dos bens de consumo e a modernização das forças produtivas (cf. Furtado, 1992).
Assim, à luz de dados empíricos, constata-se que o desenvolvimento científico e tecnológico impulsionado por dispêndios públicos crescentes no período recente não tem alterado, substancialmente, a lógica do desenvolvimento geográfico desigual. Pelo contrário: como demonstrado, o desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro parece ser funcional na reprodução das desigualdades socioespaciais no país.
Considerações finais
O propósito que se perseguiu aqui foi analisar em que medida os investimentos em C&T influenciam na redução, na preservação ou mesmo no agravamento das desigualdades socioespaciais no Brasil, centrando a atenção nos anos 2000. A hipótese inicial era a de um aumento nas desigualdades favorecido pelo desenvolvimento científico e tecnológico. Os investimentos em C&T seriam maiores na região concentrada porque também ali as forças produtivas estariam mais desenvolvidas.
O que, então, se pode inferir dos dados apresentados e analisados? Sobretudo que, em conformidade com a lógica do desenvolvimento geográfico desigual, o capital permanece sendo acumulado privilegiadamente na região concentrada. E o desenvolvimento científico e tecnológico -; amparado em elevados dispêndios públicos em C&T (mas em poucos dispêndios privados em P&D) -; não apenas mantém inalteradas as desigualdades socioespaciais que prevalecem no Brasil neste início da segunda década do século XXI, mas parece mesmo favorecer a sua reprodução. É no Sudeste/Sul que a atividade científica e tecnológica do país permanece concentrada.
Por certo, as estratégias seguidas pelas autoridades públicas repousam na convicção de que investimentos em C&T podem ser convertidos, de forma automática, em desenvolvimento econômico e bem-estar, de que a pesquisa básica pode conduzir, sem mais, à pesquisa aplicada que, por sua vez, pode conduzir a inovações, levando assim ao desenvolvimento econômico e social.
A realidade brasileira especificamente, mas talvez a de outras formações sociais periféricas, em geral, mostra de forma eloquente que o desenvolvimento científico e tecnológico permanece concentrado nas UF centrais -; isso porque ali se localiza a atividade econômica mais dinâmica do país. A capacidade tecnocientífica do país está onde se encontra a atividade econômica mais dinâmica, e é reforçada por investimentos em C&T em proporções correspondentes. De modo que as uF e regiões mais desenvolvidas científica e tecnologicamente são aquelas em que a atividade econômica também é mais dinâmica.
Essa inferência talvez sugerisse um "fim de papo", a desconsideração de alternativas que levem à superação dos obstáculos aqui discutidos -; como a natureza do desenvolvimento científico e tecnológico que teve lugar no Brasil no período recente -;, que travam a promoção de um desenvolvimento econômica e socialmente mais igualitário. Remando contra a maré, deve-se considerar a possibilidade de um planejamento distinto, cujo objetivo central seja o atendimento das necessidades sociais que permanecem não contempladas até o presente. Um planejamento desse tipo, por certo, teria que lidar com a enorme concentração de poder econômico e político que, a um só tempo, restringe o desenvolvimento científico e tecnológico social e ambientalmente adequado às múltiplas realidades identificáveis no território brasileiro e limita a participação dos grupos sociais excluídos tanto do processo decisório quanto dos benefícios derivados pela alocação de recursos públicos. Um planejamento desse tipo haveria de repousar em um amplo processo de democratização política que culminasse numa autêntica democratização econômica (cf. Dagnino e Thomas, 1999).
Texto recebido em: 31/7/2012 e aprovado em:20/8/2013
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Jan 2015 -
Data do Fascículo
Dez 2014
Histórico
-
Recebido
31 Jul 2012 -
Aceito
20 Ago 2013