Resumo
O trabalho analisa sete processos-crime da década de 1980 instaurados pela Justiça Pública da comarca de Belém de São Francisco contra agricultores de maconha, provavelmente os primeiros processos desse tipo. Baseada em teorias de Fluxo de Processos, a análise sugere que a morosidade no cumprimento dos atos processuais inviabilizou a condenação dos réus. Os processos parecem revelar que o objetivo das ações judiciais não se concentrava no desmantelamento de grupos ou agentes criminosos que atuavam no sentido de estruturar a atividade ilícita, nem em punir mais veementemente os indivíduos incriminados. Por fim, o artigo explora as contradições inerentes às prioridades das políticas de drogas estabelecida pelo ditadura civil-militar, por meio da lei 6368/76, com a ação do judiciário da referida comarca. O tipo de ação desempenhava mais uma função política de propaganda de combate a esses cultivos do que propriamente uma ação de extermínio das referidas atividades.
Palavras-chave: Sistema judiciário; Processos-crime; maconha
Abstract
The paper analyzes seven legal cases from the 1980s brought by the Public Justice of the district of Belém de São Francisco against Cannabis farmers, probably the first cases of this kind. Based on theories of the Flow of the Justice System, the analysis indicates that the slowness in the execution of procedural acts made the conviction of the defendants unfeasible. The cases seem to reveal that the objective of the legal actions was not focused on dismantling criminal groups or agents who acted to structure illicit activity or to punish incriminated individuals more vehemently. Finally, the article explores the inherent contradictions in the priorities of drug policies established by the civil-military dictatorship through law 6368/76, in conjunction with the actions of the judiciary in the analyzed jurisdiction. The type of legal action performed more of a political propaganda function to combat these crops than an action to exterminate said activities.
Keywords: Judicial system; Criminal proceedings; Marijuana
Introdução: Considerações iniciais e aspectos metodológicos
Na literatura sociológica, os estudos sobre o uso e o tráfico de substâncias psicoativas ilegais ganharam relevância nos últimos anos. Em áreas como a Sociologia do Crime, ocuparam papel de centralidade em pesquisas que investem nas relações entre justiça, democracia e desigualdades sociais e se detêm na violência e na violação de direitos humanos, bem como nas implicações comunitárias e individuais das ações de repressão. Bem menos representativos, no conjunto da produção intelectual sobre o tema, estão os estudos acerca do cultivo de maconha no território brasileiro, notadamente das ações de repressão, não obstante sua importância como consequência do tratamento histórico dado pelo Estado brasileiro à questão do proibicionismo nacional.
A atenção do governo brasileiro desde os anos 1940 à questão pode ter sido um dos fatores a influenciarem a dinâmica da grande, e quase hegemônica, representatividade da maconha paraguaia como produto no mercado consumidor brasileiro, a partir dos anos 1990 (Fraga, 2007). A agricultura de maconha foi notificada em estados do Nordeste no início do século XX (Fraga, Rodrigues e Martins, 2021), e se tornou constante em municípios do sertão pernambucano como Cabrobó, Belém de São Francisco, Serra Talhada e Floresta, em meados de 1970 (Fraga e Iulianelli, 2011; Rosa, 2019; Martins, 2020).
A consolidação dessa agricultura em tal região está ligada a diversos fatores. Dentre esses, as políticas públicas de combate aos plantios ilícitos, entre os decênios de 1940 e 1970, que suscitaram o deslocamento desses cultivos (Rosa, 2019). As condições geoclimáticas da região também contribuíram para a consolidação, uma vez que a caatinga servia para camuflá-los das ações de erradicação. Já os riachos, os açudes e as ilhotas do rio São Francisco contribuíam com solos férteis (Fraga e Iulianelli, 2011; Rosa, 2019). A ausência de políticas públicas de apoio aos pequenos agricultores com dificuldades financeiras também contribui (Fraga e Iulianelli, 2011). Em meio a esse cenário, a agricultura de maconha se reproduziu, a tal ponto que, na década de 1990, a região do Submédio se consolidou como a maior região produtora, sendo denominada “Polígono da Maconha” (Fraga, 2007; Ribeiro 2008; Moreira, 2007).
A repressão estatal se tornou intensa na década de 1990, com o investimento do Governo Federal em ações para a erradicação (Fraga e Silva, 2016). Contudo, foi na década de 1980 que o Estado passou a criminalizar os agricultores de maconha de forma mais incisiva, com a abertura de processos criminais (Moreira, 2007). Assim, é deste período que datam os primeiros processos em que agricultores da região passaram a réus por envolvimento com a agricultura ilícita, por meio da lei 6.368/76. Esse período é marcante, pois representou uma mudança nas ações do Estado, seja na intensificação de operações de combate, seja sancionando leis mais punitivas.
O aspecto jurídico dos cultivos ilícitos é abordado por diferentes pesquisadores em análises que privilegiam uma temporalidade recente. Moreira (2007) e Ribeiro (2008) adotam uma perspectiva analítica que privilegia o modo de funcionamento do sistema judiciário, sua atuação e desdobramentos diante dessa agricultura. Essas autoras partem da análise de processos-crime dos anos 2000 para levantar um conjunto de questões relacionadas ao papel dos agentes - juízes, policiais, testemunhas de acusação - no aumento do encarceramento de envolvidos com o plantio e o tráfico de maconha nessa região.
Ainda nesta perspectiva atual, Fraga e Silva (2017), Rodrigues e Fraga (2020) e Fraga et al. (2021) examinam a participação feminina nos cultivos ilícitos. Por meio de análise de processos e sentenças, demonstram que, ao estudar o sistema judiciário, é necessário considerar a ação dos agentes de controle social e como estes operam as leis, a moral e as crenças, influenciando indiretamente o funcionamento do sistema judiciário e a formulação de políticas de segurança pública. De um modo geral, todos esses trabalhos citados convergem na constatação de que os indivíduos condenados por cultivo ilícito são penalizados por seus crimes, refletindo não somente a problemática atual da região, mas as formas de encaminhamento e de tratamento do Estado à questão.
Em uma perspectiva histórica, Rosa (2019) analisou o caso de um agricultor processado pelo Ministério Público de Alagoas por plantio de maconha, em 1963. O caso foi julgado pela comarca de Palmeira dos Índios e o agricultor foi condenado a um ano de prisão e a uma multa de 2 mil cruzeiros. Já Moreira (2007) examinou um processo-crime, de 1977, que condenou quatro trabalhadores rurais de Cabrobó (PE) por cultivo de 4.50 pés de maconha. O dono da plantação foi preso em flagrante e outras três pessoas foram processadas. A sentença saiu em 1983 e todos os envolvidos foram condenados conforme o grau de participação. O proprietário foi condenado a três anos de reclusão, cinquenta dias de multa - um quinto das custas processuais. As penas seriam cumpridas na cadeia pública, onde o proprietário já estava detido desde a data do flagrante. O processo só foi encerrado em 1988, quando dois dos acusados tiveram seu pedido de extinção de punibilidade deferido.
Apesar desses avanços, persistem lacunas acerca da atuação da Justiça no caso dos trabalhadores rurais envolvidos com o cultivo ilícito, sobretudo acerca das iniciativas processuais produzidas na década de 1980. Este estudo busca suprir parte dessa lacuna ao esmiuçar os primeiros processos movidos pela comarca de Belém de São Francisco contra esses trabalhadores. Essa comarca foi a que mais tratou desses tipos penais na região no período. Tais processos têm uma importância significativa, pois representam um conjunto de casos produzidos por uma comarca na região que comporia o “polígono da maconha”. Logo, o artigo analisa o surgimento de uma estrutura processual em torno desses agricultores, algo que se consolidaria apenas na década de 1990.
Esses processos também apresentam uma particularidade: nenhum deles foi objeto de julgamento, ou seja, não há uma sentença estabelecida pela autoridade judiciária. Nesse aspecto, este artigo se distingue dos dois processos abordados por Moreira (2007) e Rosa (2019), bem como contrasta com a literatura contemporânea que relata inúmeros casos de condenação de agricultores envolvidos no cultivo ilícito (Ribeiro, 2008). Este trabalho apresenta e discute os processos de 1980 e propõe algumas hipóteses para que o sistema de justiça não avançasse contra esses trabalhadores. Este problema de pesquisa será abordado por meio da análise de sete processos judiciais, documentos históricos e entrevistas concedidas na época. A pesquisa leva em conta fatores como a seletividade do Sistema de Justiça Criminal, as leis e regulamentações em vigor na época e o contexto político do país.
Os sete processos examinados neste artigo estão custodiados no Cartório de Processos da comarca de Belém de São Francisco, produzidos entre 1982 e 1989. De trinta processos sobre tráfico de drogas do período, foram selecionados oito que diziam respeito especificamente ao cultivo de maconha. Um processo foi descartado pelo mau estado de conservação. Para facilitar a análise, todos foram digitalizados. Após esta etapa, estabeleceu-se um questionário aplicado em cada um deles, com questões concretas acerca do fluxo de Justiça.
O objetivo de um processo-crime é apontar responsabilidades e estabelecer penalidades para aqueles que praticaram delitos codificados na lei. Por outro lado, os processos também podem se transformar em corpos documentais e se tornar fontes de pesquisa, uma vez que possuem informações sobre a vida de populares que só foram registradas por conta de circunstâncias pontuais (Foucault, 2003). Assim, este estudo é de natureza documental e visa a uma análise retrospectiva de processos concluídos (Reis e Ribeiro, 2023; Ribeiro, 2010; Oliveira e Machado, 2017).
Para tal, foi utilizado o método de análise do fluxo do Sistema de Justiça Criminal. Busca-se com essa metodologia analisar crimes e o Sistema de Justiça recorrendo à reconstrução das fases específicas do processo penal, desde a formação da denúncia até a promulgação da sentença ou finalização do processo (Porto e Machado, 2015; Vargas, 2004). Na pesquisa que originou o presente artigo, utilizou-se o método retrospectivo, ou seja, a análise de processos já encerrados no período supracitado, visando a compreender as narrativas, as ações e as decisões de instituições de justiça e de segurança pública e de seus agentes (Vargas, 2004; Vargas; Ribeiro, 2008; Sapori, 2006). O objetivo da reconstrução do fluxo do Sistema de Justiça Criminal é observar padrões e tendências na atuação das organizações que operam no SJC, a fim de mapear possíveis critérios de seletividade relacionados às pessoas envolvidas ou à natureza do fato, o que faz com que o processamento das demandas assuma o formato de “funil” (chamado “funil da impunidade”), metáfora que faz alusão ao grande número de ocorrências que entram no sistema e ao baixo número de sentenças que delas resulta.
Intenciona-se, assim, verificar falhas, padronizações e propensões das instituições operadoras do Sistema de Justiça Penal e critérios de seletividade do mesmo às pessoas envolvidas em processos criminais, atentando-se à relação de ocorrências de crimes e promulgação de sentenças (Adorno e Pasinato, 2007; Ribeiro, 2010; Ribeiro e Silva, 2010)
Para isso, empregou-se uma combinação de dados qualitativos e quantitativos. A análise de dados quantitativos em conjunto com a de autos de processo e sentenças judiciais são recursos metodológicos cada vez mais utilizados em pesquisas dessa natureza (Rodrigues e Fraga, 2020). Na análise qualitativa, foram examinadas entrevistas com operadores do Sistema de Justiça, concedidas na época, e fontes documentais produzidas por agentes que, no exercício de suas funções, interpretavam e aplicavam a lei 6.368/76. De certo modo, a análise qualitativa contribui para entender a dinâmica do sistema judicial, já que por meio dela é possível apreender a participação dos distintos envolvidos nas diferentes esferas do sistema judicial (Porto e Machado, 2015).
Todos esses aspectos metodológicos apresentados guiaram a análise dos dados. A Tabela 1 traz uma breve descrição dos sete processos analisados.
Este artigo está composto, além desta introdução e das considerações finais, de mais três partes, em que buscamos destacar as relações das políticas de drogas no Brasil, mais especificamente quanto às ações de erradicações dos cultivos de maconha, no período da ditadura civil-militar. Serão ressaltados os casos de processos judiciais em uma comarca da região que ficou conhecida como a de maior produção de maconha no Brasil, as práticas jurídicas sobre a agricultura ilícita e os fluxos de Justiça Penal.
Contexto da formulação da lei 6368/76, que embasou os processos penais da Comarca de Belém do São Francisco
Embora a Cannabis sativa fosse proibida no Brasil desde 1938 (Brasil, 1938), o advento da política de repressão às drogas na geopolítica internacional, instaurado entre 1960 e 1970, engendrou novos contornos à política de drogas. Na década de 1960, os Estados Unidos visavam um “mundo livre de drogas”. A internacionalização desse discurso ocorreu por meio da Convenção Única sobre Estupefacientes, de 1961, pelo Protocolo sobre Psicotrópicos, de 1971, e levou à (cor)responsabilização dos países alinhados com os Estados Unidos (Olmo, 1990; Rodrigues, 2004). Esse cenário internacional influenciou as políticas repressivas em âmbito nacional (Boiteux, 2015).
Nos quadros da sociedade brasileira ditatorial pós-1964, o Estado avançou com o proibicionismo e, dentre as modificações jurídicas realizadas, destaca-se a lei n. 5726 de 1971, que sancionou novas medidas em relação ao tráfico e ao uso de substâncias ilícitas. De forma ampla, o Decreto-Lei 5.726/71 institucionalizou as drogas como uma questão de Segurança Nacional, transpondo para o âmbito penal as nuances da Lei de Segurança Nacional (Rodrigues, 2004; Batista, 1997; Gurgel, 1975).
A lei 1976, a lei 6.368, por sua vez, revogou a anterior, bem como o pareamento entre usuário e traficante, dispondo artigos separados para a conduta de tráfico (artigo 12) e o de posse para uso próprio (artigo 16). De acordo com a nova lei, os usuários seriam punidos com pena de detenção de seis meses a dois anos e multa, enquanto traficantes seriam penalizados com reclusão de três a quinze anos e multa. Segundo Carvalho (1996) com a implementação gradual do discurso jurídico-político no plano da segurança pública, à figura do traficante foi agregado o papel político do inimigo interno, justificando as constantes exacerbações das penas.
Ademais, conforme estipulado pelo artigo 12 do capítulo III, a lei proibia o cultivo de plantas destinadas à preparação de substâncias psicoativas. Assim, a penalidade para traficantes se estendia para aqueles que se envolvessem com os cultivos ilícitos (Brasil, 1976). Neste cenário, o Estado concebia que os produtores de maconha fossem equiparados aos traficantes. Rodrigues (2004) aponta que no arcabouço da Doutrina de Segurança Nacional, a lei 6.368/76 foi promulgada de maneira abrangente, dando margem para diferentes interpretações e atuações. Este trabalho verifica tal atuação no contexto dos agricultores envolvidos com o cultivo de maconha.
É relevante salientar que a relação entre o Estado e potenciais usuários de substâncias ilícitas no período da ditadura civil-militar, em especial os usuários de maconha, tem sido abordada em diversos estudos (Batista, 1997; Toron, 1986; Macrae e Alves, 2016; Carvalho, 1996), inclusive com relatos dos próprios usuários e suas motivações (Fortes, 2012; Velho, 1998; Gil, 2013). Contudo, há uma escassez de pesquisas sobre os agricultores envolvidos com esses cultivos, especialmente quando comparadas aos estudos sobre o consumo e o tráfico urbano. Este trabalho busca contribuir para uma reflexão mais abrangente do cenário, sobretudo no que diz respeito à penalidade instituída na lei 6.368/76, que sentenciava os produtores de maconha na mesma lei de tráfico de qualquer outra substância ilícita.
No contexto de vigilância social imposto pelos militares, a guerra contra os plantios de maconha também ganhou novas discussões no parlamento brasileiro por meio de Projetos de Lei que visavam à desapropriação das propriedades privadas destinadas a plantios ilícitos. Entre 1965 e 1973 foram propostos quatro projetos dessa natureza. Na visão dos legisladores, era necessário aumentar as penalidades para desencorajar o cultivo (Brasil, 1965; Brasil, 1971; Brasil, 1972; Brasil, 1973). Apesar da ausência de sanção para tais projetos, estes manifestam uma tentativa de intensificar medidas repressivas a esses agricultores (Rosa, 2023). A desapropriação como tentativa de coibir o envolvimento com esses cultivares foi sancionada anos mais tarde, no artigo 243 da Constituição Federal de 1988 e na lei n. 8.257 de 1991, que delimitou as condições necessárias para a expropriação de propriedades destinadas aos cultivos ilícitos de plantas psicotrópicas (Brasil, 1988; Brasil, 1991).
Outra justificativa para a proposição dos projetos de lei era que a maconha não estava mais restrita aos denominados criminosos, seu consumo ascendera às altas camadas, nas quais “jovens inexperientes se entregam ao vício” (Brasil, 1971; Brasil, 1973). A preocupação desses legisladores revela uma mudança social em torno do uso de maconha. Nesse sentido, Velho (1988) mostra que, no período ditatorial, houve um aumento no consumo de maconha e a mesma se espalhou para uma juventude branca de classe média que buscava novas formas de entretenimento ou maneira de contestar a ditadura civil-militar (Fortes, 2012).
Assim, ao mesmo tempo que se vai consolidando um mercado consumidor localizado em capitais como Recife, São Paulo e Rio de Janeiro (Velho, 1988; Fortes, 2012; Batista, 1977), também há um recrudescimento nas políticas de repressão aos cultivos de maconha. Neste contexto, o sertão pernambucano vai se firmando nas páginas dos jornais da época como o espaço que produz essa mercadoria (Rosa, 2019; Rosa e Fraga, 2023). O Estado, por sua vez, buscava conter os cultivos por meio da erradicação e das apreensões de produto pronto para o consumo (Rosa, 2019) e, na década de 1980, avança na criminalização dos agricultores envolvidos por meio da abertura de processos-crimes. Vejamos como isso acontece em Belém de São Francisco.
A estrutura produtiva da agricultura de maconha na década de 1980
De maneira geral, os acusados eram homens, entre 23 e sessenta anos, de escolaridade básica (quarta série) ou analfabetos. Em relação à ocupação, todos eram agricultores e não possuíam uma renda fixa. Os envolvidos são pessoas que alegaram dificuldades de obtenção de renda em culturas legais por viverem em região semiárida com poucas políticas públicas para a produção de cultivos agrícolas legais a pequenos produtores (Moreira, 2008; Ribeiro, 2008). Tal perfil contrasta com os operadores do direito, homens que manejavam a lei e possuíam uma carreira profissional estabelecida. Todos os casos analisados ocorreram em propriedades privadas. Contudo, os cultivos ilícitos na região não estavam restritos a esses espaços. Na década de 1970, a agricultura de maconha já era desenvolvida em ilhas do rio São Francisco por apresentarem solos férteis e por dificultarem o trabalho de erradicação (Rosa, 2019)
Nesse sentido, os casos analisados revelam um certo padrão de produção. Em cinco casos (I, III, IV, V e VI), as plantas estavam próximas a riachos e açudes. No caso IV, a irrigação era realizada com o auxílio de um motor de sucção de água. Nos espaços secos do sertão, a agricultura de maconha fez uso das estruturas e dos recursos hídricos existentes. Isso é necessário porque uma planta dessa espécie cultivada ao ar livre consome cerca de quatrocentos litros de água durante o seu ciclo produtivo (Butsic e Brenner, 2016). Nesse sentido, as informações contidas nos processos também vão de encontro com informações oficiais produzidas na época. Em 1983, o Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE) verificou a viabilidade de métodos de sensoriamento remoto para identificar plantações de maconha e constatou que, na área analisada - municípios Araripina (PE) e Simões (PI) -, esses cultivos necessitavam de irrigação duas vezes ao dia. Após o sensoriamento, as plantações descobertas pelo INPE localizavam-se justamente ao longo de cursos d’água e açudes (INPE, 1983).
Do que pode ser apreendido na tabela 1, a agricultura ilícita da década de 1980 mobilizou um número significativo de pessoas. Os autos analisados sugerem a existência de ao menos quatro tipos de relação de produção: proprietários do cultivo, sócios, produção familiar e mão de obra assalariada.
Nos casos I e II, o plantio era responsabilidade de um único proprietário. Nos casos III e VI, os acusados eram ao menos dois sócios, sem grau de parentesco. No caso VII, o proprietário da terra não era dono do plantio. Ou seja, a terra era arrendada para um terceiro, mediante o pagamento de 15% como participação nos lucros. Logo, neste caso ocorre tanto um arrendamento da propriedade quanto uma sociedade, já que havia participação nos lucros. Nos casos I, II, V, e VII, a organização da produção também ocorria por meio de mão de obra familiar: primos, pais, filhos e irmãos.
Os casos IV, V, VI e VII contaram com o uso de pessoas como força de trabalho assalariada temporária. O depoimento do único trabalhador temporário preso em flagrante (caso VI) traz alguns apontamentos: o acusado contou que recebia 10 cruzados novos por dia de trabalho. Diferentemente dos demais atores apresentados acima, os assalariados temporários só tinham sua força de trabalho para vender; logo, não possuíam controle sobre o processo produtivo. Contudo, a principal diferença do mercado lícito para o ilícito advém do fato de que o segundo não tem uma legislação que regulamente a contratação de mão de obra, o recolhimento de impostos e a qualidade dos produtos (Souza, 2015).
O artigo 14 da lei 6.368/76 instituía que a associação de duas ou mais pessoas que infringissem os artigos 12 ou 13 requeria pena de reclusão, de três a dez anos, e pagamento de multa. Nesse sentido, Franco (1993) destaca que a congregação de mais de uma pessoa poderia ser caracterizada pela formação de quadrilha com a finalidade de realizar atividades relacionadas ao tráfico. Logo, tais agricultores poderiam ser incluídos nessa designação, dado o número de pessoas envolvidas em cada cultivo. Contudo, os processos analisados não ressaltavam esse aspecto.
A quantidade de pés de maconha localizados pelos agentes da polícia é outra informação presente em todos os processos analisados. Esses documentos também têm informações sobre apreensão de maconha pronta para o consumo, apreensão de sementes e de outros bens. A tabela 2, abaixo, apresenta essas quantidades, de acordo com cada caso.
A informação mais relevante da tabela 2 diz respeito à quantidade de pés destruídos. Entretanto, não existe uma uniformidade nos números apresentados, haja vista que a quantidade variou ao longo do período. A variação pode estar vinculada ao fato de a apreensão ser consequência de ações de erradicação. Neste caso, as apreensões são em maiores quantidades. Há também a variável tamanho de plantações. Em particular se destacam os casos IV e VII, com volumes da ordem de um milhão de pés. Por outro lado, não é possível afirmar o mesmo em relação à quantidade de produto pronto para o consumo, já que alguns casos não apresentam essas quantidades (caso I e II).
Outro dado relevante evidenciado é a apreensão de objetos supostamente utilizados na produção de maconha. Tais apreensões eram fundamentadas no artigo 13 da lei 6.368/76, que criminalizava a posse de instrumentos destinados à fabricação de substâncias ilícitas. Na percepção destes operadores da lei, os objetos apreendidos estavam associados à prática ilícita. Ao problematizar o artigo 13 da referida lei, Greco Filho (1995) apontava sua generalidade e defendia que não existem aparelhos de destinação exclusivamente a essa finalidade. Portanto, mesmo que o motor de sucção e as armas pudessem ser utilizados no cultivo, ocorria um excesso dos operadores da lei ao confiscar também as motocicletas, que, na perspectiva policial, representavam a comprovação dos ganhos ilícitos. Ademais, cabe ressaltar que o artigo 13 da lei não era referenciado nos processos como embasamento jurídico para a apreensão dos bens.
As informações presentes nos processos referentes à estrutura produtiva do cultivo ilícito na década de 1980 evidenciam a organização e o funcionamento consolidado deste cultivo nesse período. Apesar de inicialmente parecerem situações recorrentes, tais informações indicam que essa prática agrícola já estava profundamente estabelecida, o que ajuda a explicar como a região se firmou como uma produtora capaz de manter sua atividade, mesmo diante dos significativos investimentos do Estado, a partir da década de 1990, com o intuito de erradicar a planta.
Prática jurídica em relação à agricultura ilícita
Os processos analisados tratam de uma realidade regional; no entanto, podem ser entendidos dentro de um quadro mais amplo que compunha o sistema de Justiça da época, uma vez que o contexto particular também pode refletir ou estar interligado a esta conjuntura ampla. Nesse sentido, as ações de erradicação dos plantios ilícitos estão atreladas às políticas de drogas instauradas pela ditadura civil-militar. Período em que o Estado se articulou para erradicar os cultivos ilícitos e a PF assumiu centralidade no planejamento e controle das operações de combate (Rosa, 2019). A descoberta e a destruição dos plantios ocorriam como desdobramento dessas operações e contavam com apoio das polícias locais e do exército. Grande parte da descoberta dos cultivos decorria de ações planejadas pela PF (casos I, III, IV, V e VII), mas também havia casos de denúncias (casos II e VI). De certa forma, a ideologia de Segurança Nacional se transformava em uma “espécie de cumplicidade moral contra as drogas”, e o Estado utilizava-se desse artifício para incentivar as denúncias da população contra possíveis transgressores (Batista, 1997).
Os agentes de segurança pública desempenhavam um papel direto na descoberta e destruição das atividades ilícitas, além de contribuírem para a construção dos autos do processo criminal. Na fase do inquérito policial, eles reuniam as primeiras evidências contra os acusados, apresentando provas diretas, como a prisão em flagrante de pessoas cultivando ou de outras que não estivessem executando tal atividade, mas que eram apreendidas como suspeitas; recolha de sementes de maconha; produto pronto para o consumo; laudo toxicológico da substância vegetal e laudo de incineração de plantas erradicadas. Ainda havia outros bens que consistiam na materialidade das provas contra o acusado, como a apreensão de armas, de motores de sucção de água.
Os agentes de segurança pública também participavam na construção da denúncia quando ocorria a inquirição das testemunhas - etapa em que elas eram ouvidas para fundamentar o relatório do Delegado. Em seis dos sete processos analisados, as testemunhas de acusação eram compostas somente por agentes da própria polícia que atuaram no caso. Nesses processos, as provas produzidas por agentes de polícia, na condição de testemunha acusatória, eram utilizadas integralmente na formalização do texto acusatório. Essa prática é longeva e continua compondo parte da dinâmica da construção dos processos penais no Brasil. Jesus (2020), ao analisar processos criminais de tráfico de drogas, aponta que a narrativa policial é interpretada como verdade nos inquéritos e julgamentos. Afirma que, nas provas levadas em conta por juízes ao proferirem sentenças de condenação ou absolvição de pessoas acusadas da prática, aquelas produzidas por policiais são as decisivas. No limite, declara, são os policiais que definem o veredito.
Quando as diligências eram supostamente bem-sucedidas e resultavam em prisão em flagrante, o suspeito era diretamente responsabilizado pela plantação. Para tal, bastava estar na propriedade no momento da batida policial, conforme pode ser observado em três casos (II, V e VI). Uma vez presos em flagrante, os suspeitos eram encaminhados para a cadeia do município, onde permaneciam. Possivelmente, por conta disso, era comum a fuga de trabalhadores quando a polícia se aproximava dos plantios. Em três dos casos (II, IV e VII), as propriedades estavam vazias.
Em relação a essas práticas policiais, o contexto da ditadura civil-militar, período em que as palavras de agentes da lei não eram contestadas facilmente, os abusos policiais eram corriqueiros. Nesse sentido, não se descarta a possibilidade de acusação de pessoas pela prática de cultivo, sem ter participação. Tal inferência é apreendida a partir dos próprios processos. Os acusados do caso III, por exemplo, afirmaram que não fugiram do local ao avistar a polícia, ao contrário, naquele momento estavam caçando. Em outros casos, os acusados disseram que não conheciam nem a propriedade citada nem as testemunhas, logo as acusações eram infundadas. Outra questão relevante eram denúncias de maus-tratos infligidos por policiais, e relatadas pelos acusados em diferentes fases dos processos, como o salientado pelo acusado do caso II.
O caso V reflete um pouco do cenário. Em agosto de 1987 a polícia realizou uma batida em uma propriedade, onde encontrou 224.093 pés de maconha além de produto pronto. Na propriedade estava apenas um casal de idosos, que, interrogados sobre o plantio, declararam que não participavam diretamente do cultivo, apenas cediam suas terras para os seus três filhos cultivarem em troca de uma participação nos lucros. Os filhos contavam ainda com a ajuda de quatro empregados. O casal foi preso em flagrante e levado à cadeia, onde cumpriu prisão preventiva. Após quarenta dias de detenção, por intermédio de um advogado particular, obteve o benefício de liberdade condicional. O advogado alegou que a prisão impediu o andamento dos trâmites processuais, incluindo a audiência de instrução e julgamento programada para 29 de setembro de 1987, à qual eles não compareceram devido à permanência na detenção. A defesa argumentava sobre o excesso de prazo na formação da culpa e, sob essas condições, considerava a prisão ilegal, pleiteando a concessão de liberdade provisória.
Os filhos, que teriam fugido com a chegada da polícia, foram qualificados e indiciados e passaram a responder a processo. No decorrer do processo, as denúncias e as provas que havia contra os filhos se transformam. Em interrogatório, dois negaram participação e mesmo conhecimento sobre o plantio e afirmaram que seus pais visitavam aquela propriedade de seis em seis meses e que nela eram produzidas culturas lícitas, como feijão, milho, algodão, palma e rebanho bovino. A investigação não foi adiante.
Diante disso, infere-se que a principal ação da Comarca de Belém de São Francisco era a destruição dos plantios e encontrar supostos culpados pelas plantações, independentemente do nível de envolvimento do suspeito com o plantio ou com a propriedade da terra. No caso VI, por exemplo, o preso em flagrante era mão de obra contratada para cuidar da plantação. Quando não havia flagrante (casos II, IV e VII), a Justiça abria um processo de investigação para descobrir os responsáveis pela propriedade e cultivo. Ainda assim, nos processos analisados, os únicos presos foram aqueles decorrentes de flagrante.
Independentemente do grau de participação - proprietário da terra, mão de obra assalariada ou dono do plantio -, todos os denunciados que se tornaram réus foram tipificados apenas no artigo 12 da lei n. 6.368/76, que estabelecia pena de reclusão, de três a quinze anos, além de multas preestabelecidas aos denunciados. Dentro desse arcabouço, os agricultores denunciados poderiam enfrentar uma pena de três a quinze anos de reclusão. Caberia ao legislador estipular a pena entre o mínimo e o máximo punitivo. A lei também não fazia distinção entre financiadores e executores.
A lei n. 6.368/76, em seu artigo 12, ao tipificar o crime de tráfico de drogas, não estabeleceu distinção, para efeitos de penalidade, entre as diversas condutas dos indivíduos envolvidos no tráfico ou no processo de plantio. No contexto dos processos examinados, a Justiça de Belém de São Francisco não compreendia os agricultores como traficantes ou como quadrilhas, alegações que seriam congruentes com a referida lei. Além disso, todos os processos analisados não alcançaram a conclusão das fases processuais determinadas pela própria lei, permanecendo inconclusos em diferentes estágios por mais de duas décadas, conforme evidenciado na tabela 1.
O “tempo da justiça” é um tema discutido em vários estudos. Adorno e Passinato (2007), por exemplo, exploraram a morosidade no julgamento de crimes como o linchamento e os homicídios, que ocorreram no Estado de São Paulo, entre 1980 e 1989, mesmo período desta análise. Para os casos de linchamento - 28 casos -, a pesquisa constatou que os processos excederam a morosidade legal e em 70% deles ocorreu uma “morosidade necessária”, em torno de 52 meses para que os casos fossem concluídos. Já para os casos de homicídios - 297 deles -, constatou-se que 83,49% foram julgados em até 24 meses. Se, por um lado, a quantidade de casos analisados pelos autores acima é maior do que a quantidade de processos produzidos pela Comarca de Belém de São Francisco, por outro lado, a morosidade não inviabilizou o julgamento dos réus, como ocorreu com os processos dos agricultores de maconha.
Até certo ponto, isso se deu porque a Comarca de Belém de São Francisco não realizava os trâmites burocráticos dentro dos prazos estabelecidos no capítulo IV da lei 6.368/76. Tal argumento era ressaltado pelos advogados de defesa ou pela defensoria pública para solicitar habeas corpus aos acusados presos em flagrante. No caso VI, a defesa argumentava que seu cliente estava preso de maneira indevida, uma vez que o artigo 22 da lei estipulava que, “recebidos os autos em Juízo, será aberta - via Ministério Público para, no prazo de 3 (três) dias, oferecer denúncia, arrolar testemunha até no máximo de 5 (cinco) dias e requerer as diligências que entender necessárias”. Contudo, o acusado estava preso havia 56 dias sem que a denúncia fosse apresentada. Logo, os prazos estabelecidos em lei não foram cumpridos e a prisão se tornava ilegal. Esses casos também reforçam uma prática comum e antiga da Justiça brasileira, além da já citada morosidade, e que vem sendo contestada mais veementemente nos últimos anos: o excesso e pouca transparência do uso da prisão preventiva nos processos por tráfico de drogas.
Com argumentos diferentes, o advogado do caso V e o defensor público do caso VI também utilizaram o excesso de prazo na formalização de culpa para solicitar habeas corpus. Para tal, as defesas usaram citações jurisprudenciais de processos que tramitavam em comarcas da cidade de São Paulo. Tais processos sustentavam que a lei n. 6.368/76 estabeleceu prazos rigorosos para a realização dos atos procedimentais, de forma que o processo deveria ser encerrado com sentença no prazo total de 38 dias. Com tais argumentos, esses defensores utilizaram a própria lei 6.368/76 para conseguir a liberdade provisória dos acusados. Assim, se, de um lado, a legislação antidrogas brasileira estava em sintonia com as tratativas internacionais que exigiam punições duras aos transgressores, por outro lado, no caso dos cultivos ilícitos há significativa morosidade em sua aplicação efetiva. De certa maneira, essa demora pode estar atrelada ao próprio modo como os integrantes da Justiça compreendiam a dinâmica social da região em que os cultivos se localizam.
Ao analisar as notícias do Diário de Pernambuco produzidas entre 1940 e 1980, Rosa (2019) e Rosa e Fraga (2023) identificaram que os pequenos produtores de maconha eram vistos pelos delegados de polícia responsáveis pelas operações de combate aos plantios como “matutos”. Quando a polícia chegava às roças, encontrava agricultores pobres e inofensivos, meros instrumentos nas mãos de traficantes que lhes ofereciam dinheiro. Essa interpretação em relação a esses pequenos produtores pode ser apreendida nos próprios autos processuais. No processo de 1977, examinado por Moreira (2007, p. 155), o promotor de justiça de Cabrobó replicou na denúncia o texto do delegado da PF encarregado das operações de repressão na região, o qual reiterava essa ideia:
Eles são os matutos, são aqueles que oram dia a dia para que a chuva venha trazer uma melhor colheita. São eles - que, temos certeza, não sabem o mal que traz a maconha. […]. Nos perguntamos qual o motivo que leva um agricultor a plantar maconha. A resposta quase sempre se nos afigura a mesma: a ignorância e a fome. - Del Wladimir Cutarelli (Moreira, 2007.p. 155).
De certa forma, os argumentos formulados entre 1940 e 1970 permearam os processos da década de 1980, nos quais o advogado de defesa, os defensores públicos e os próprios acusados utilizavam as dificuldades financeiras como justificativa para o envolvimento com os cultivos. O acusado do caso II afirmou que viu nesta agricultura uma forma de melhorar de vida, pois pretendia vender ao preço de Cr$ 10.000,000 o quilo. Justificativa similar à do casal de idosos preso em flagrante (caso V). Já o acusado do caso VII afirmou que cedeu uma área de sua propriedade com a condição de receber 15% da produção e que consentiu porque pretendia investir o dinheiro na compra de um motor de sucção de água para ser utilizado no plantio de cebola. Essas declarações apontam para uma prática comum em plantios ilícitos em várias partes do mundo, qual seja, a utilização de cultivo ilegal para gerar recursos para cultivos legais, nomeada de cultivo de compensação (Fraga e Iulianelli, 2011). Nesse sentido, cinco dos sete casos foram atendidos por defensores públicos, o que muitas vezes é compreendido como proxis de renda, devido à incapacidade de suportar os custos de um advogado particular (Adorno, 1995).
Por fim, vale destacar que o encerramento desses casos só ocorreu duas décadas depois. Seis dos sete casos foram concluídos pelo mesmo juiz, que reconhecia o longo interstício entre o recebimento da denúncia e o julgamento, ou seja, um lapso temporal suficientemente grande para a extinção da pretensão punitiva do Estado. Isso porque as prescrições relativas ao primeiro dos delitos capitulados nas denúncias analisadas se deram há no mínimo vinte anos e, nos termos do artigo 107, IV, 1ª figura c/c artigo 109, I, do Código Penal Pátrio, os delitos que seriam julgados possuíam pena máxima de doze anos. Diante disso, todos os crimes prescreveram. Nesse sentido, o juiz assume um papel fundamental no sistema de Justiça. Ademais, ao já citado de que seis deles foram encerrados pelo mesmo juiz, é possível que somente essa gestão tivesse interesse em encerrar tais casos antigos.
Os processos analisados revelam aspectos relevantes sobre procedimentos do judiciário, da formação e do andamento dos processos sobre incriminação de pessoas envolvidas com os cultivos ilícitos na comarca. O longo tempo percorrido entre o inquérito policial e o fim do processo mostra não somente a impunidade, mas a seletividade da justiça criminal para lidar com essa tipificação criminal. Ao mesmo tempo que mantém pessoas por longo tempo em prisão preventiva sem provas consistentes ou maiores justificativas para a ação, permanece anos sem a conclusão dos processos até sua prescrição. Nesse sentido, em relação aos principais atores públicos, no caso, policiais e juízes, não é exagerado afirmar que ao mesmo tempo em que os primeiros instruem os processos e, por vezes, efetuam ações às margens dos procedimentos legais, os agentes do judiciário atuam no sentido da seletividade penal.
Por fim, vale destacar que a avaliação do fluxo dos processos permitiu identificar falhas operacionais no Sistema de Justiça Criminal, como a morosidade na investigação em algumas etapas do sistema, bem como as correlações entre o tempo de investigação e decisões como oferecimento de denúncias ou arquivamento de procedimentos.
Considerações finais
O artigo analisou sete processos-crime produzidos pela comarca de Belém de São Francisco, entre 1982 e 1989, contra trabalhadores rurais acusados de envolvimento com plantios de maconha. As informações presentes nos registros relacionados à estrutura produtiva do cultivo ilícito na década de 1980 evidenciam a organização e o funcionamento consolidado desse cultivo nesse período. Apesar de, inicialmente, essas situações parecerem recorrentes, tais informações indicam que essa prática agrícola já estava profundamente estabelecida. Isso ajuda a explicar como a região se firmou como produtora capaz de manter sua atividade, mesmo diante dos significativos investimentos do Estado, a partir da década de 1990, com o objetivo de erradicar a planta.
Além disso, o artigo concentrou esforços nos instrumentos formais do fluxo do Sistema de Justiça Criminal, ou seja, analisou os procedimentos e as formalidades relacionados à condução dos processos. Nesse aspecto, a comarca de Belém de São Francisco não conseguia realizar os trâmites burocráticos dentro dos prazos estabelecidos no capítulo IV da Lei 6.368/76. Assim, como a máquina pública não levava os casos adiante, também não avançava no julgamento dos réus. Essa demora processual contribuiu para que os procedimentos permanecessem pendentes por mais de vinte anos.
O judiciário local, todavia, não estava estruturado para acelerar os processos e demonstrar suas funções no bojo da política proibicionista no âmbito da ditadura civil-militar. As ações penais impetradas recaíam sobre pequenos agricultores e não avançavam no sentido de investigar quadrilhas ou grupos organizados local ou nacionalmente em torno da atividade criminal. Nos sete processos analisados, evidencia-se que os acusados não são financiadores de cultivos, mas pessoas que trabalhavam ou se encontravam próximas às plantações no momento da ação policial.
Por fim, conclui-se que a principal ação de combate à agricultura de maconha era a destruição dos plantios e a prisão em flagrante. Embora não seja conclusivo, não é leviano afirmar que os processos não tinham como objetivo o desmantelamento de grupos ou agentes criminosos que agiam no sentido de estruturar a atividade ilícita ou de punir mais veementemente os indivíduos incriminados. No âmbito da política de drogas na época, a punição dos supostos acusados não era prioridade em relação a outras atividades ligadas ao propalado enfrentamento às drogas, como o tráfico urbano. Ademais, não se pode afirmar que as ações baseadas na destruição de cultivos ilícitos causaram impacto no setor produtivo. Embora não tenha sido possível, no âmbito da pesquisa em cujos dados este artigo se baseia, ter acesso às estatísticas de erradicação de plantios dos anos 1980, é de conhecimento que a região a partir dos anos 1990 se consolidou como a maior cultivadora de maconha no Brasil, mesmo no contexto em que a maconha produzida no Paraguai se concretiza como principal mercadoria no mercado nacional de consumo da droga (Fraga e Silva, 2016). De certa forma, esse tipo de ação desempenhava mais uma função política de propaganda de combate a esses cultivos do que propriamente uma ação de extermínio das referidas atividades.
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Leis
Projetos de leis
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. Os dados deste artigo são baseados na pesquisa Cultivos ilícitos erradicados, repressão policial e políticas públicas: um estudo sobre apreensão e plantio de Cannabis, financiado pelo CNPq, a que agradecemos o financiamento da pesquisa aqui apresentada e a Bolsa de Estudos de Pós-doutorado no Exterior (PED), Processo n. 201016/2024-9, que possibilitou condições para a escrita de parte do trabalho.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Set 2024 -
Data do Fascículo
May-Aug 2024
Histórico
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Recebido
15 Mar 2024 -
Aceito
21 Jun 2024