Acessibilidade / Reportar erro

Espectros da morte em duas narrativas de Thomas Bernhard: O náufrago e Árvores abatidas - uma provocação

The specter of death in two of Thomas Bernhard’s narratives: The loser and Woodcutters

Resumo

Nos romances do escritor austríaco Thomas Bernhard, a morte de alguém próximo ao narrador serve de motivo para que este inicie o relato de suas memórias. Nossa proposta é verificar como o estatuto da morte configura o espaço literário de duas obras de Bernhard, a saber, O náufrago (1983) e Árvores abatidas - uma provocação (1984). Considerando que, nesses romances, a morte se dá pela via do suicídio, utilizaremos como fundamentação teórica o Seminário 10 - A angústia, livro em que Jacques Lacan aponta o suicídio (ou passagem ao ato) como uma forma encontrada pelo sujeito para sair de uma cena a qual ele não conseguiria mais sustentar pela palavra. Desse modo, abordaremos como o contato com a morte reverbera na subjetividade do narrador, já que a morte também é responsável por seu retorno à Áustria, país de onde ele sempre tentara se desvencilhar.

Palavras-chave:
Thomas Bernhard; narrador; morte; suicídio

Abstract

In the novels of the Austrian writer Thomas Bernhard, the death of someone close to the narrator serves as a motive for him to begin the account of his memories. Our objective is to verify how the statute of death configures the literary space in two of Bernhard’s works, The loser (1983) and Woodcutters (1984). Considering that death occurs through suicide in these novels, it will be used as a theoretical foundation: The Seminar: book X - Anxiety, a book in which Jacques Lacan points to suicide (or passage to the act) as a form found by a subject to leave a scene they could no longer endure through words. Thereby, we will approach how the contact with death reverberates in the narrator’s subjectivity, inasmuch as death also is responsible for his return to Austria, a country from where he has always tried to disentangle himself.

Keywords:
Thomas Bernhard; narrator; death; suicide

Literatura e morte

Considerada um dos maiores enigmas da existência humana, a morte configurou-se, aos poucos, um tabu. Nas sociedades ocidentais, até o final do século XIX, o homem lidava de forma mais tranquila com sua mortalidade sendo que o momento da morte ocorria quase sempre em casa, ao lado de familiares e amigos. Aos poucos, esse acontecimento foi sendo transferido para o espaço hospitalar, onde, inicialmente, havia a tentativa de prolongar a vida do enfermo. Os hospitais e lugares similares passaram então a sediar o evento da morte, retirando-a do campo de visão do espaço privado.

Ao lado da morte tida como “natural”, o suicídio também sempre esteve presente na esfera humana. A depender da época e do contexto social, o conceito de suicídio passou por inúmeras interpretações. Pôr fim à própria vida já foi considerado “má sorte”, um ato profanador ao corpo. Nas sociedades cristãs, o cadáver dos suicidas não recebia a bênção sacerdotal e não era enterrado no mesmo cemitério que os demais. Somente a partir do final do século XIX, começou-se a conjecturar hipóteses que poderiam levar um indivíduo a cometer suicídio. Em 1897, Émile Durkheim publica O suicídio, resultado de uma análise sociológica em que considera o ato uma denúncia individual de uma crise coletiva.

Independentemente do modo em que se dá, a morte funciona como estímulo à imaginação daqueles que permanecem e que passam a criar um mundo simbólico a fim de amenizar o vazio deixado pela existência de outro indivíduo. A literatura sempre teve certo fascínio pela morte, que, ao lado do amor, figura como um de seus temas mais recorrentes. Refletindo acerca dos estreitos laços entre literatura e morte, Edgar Morin assinala:

O espectro da morte vai assombrar a literatura. A morte, até então mais ou menos envolta nos temas mágicos que a exorcizavam, ou contida na participação estética, ou camuflada sob o véu da decência, aparece nua. [...] Obras inteiras, como as de Barrès, Loti, Maeterlink, Mallarmé e Rilke serão marcadas pela obsessão da morte. (Morin 1997Morin, Edgar. O homem e a morte. Tradução de Cleone Augusto Rodrigues. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1997.: 286)

Os romances do escritor austríaco Thomas Bernhard apresentam essa obsessão de indivíduos em torno da morte de pessoas que foram importantes em suas trajetórias. A morte surge sempre como um Leitmotiv, pois é a partir desse acontecimento que os narradores passam a rememorar fatos de suas vidas, justapondo-os com os do falecido. Nas obras de Bernhard, a morte perpassa os espaços, o tempo, os sujeitos e até o ato de narrar. A organização do texto constitui-se, quase sempre, de um grande e emaranhado bloco de frases que tentam representar o fluxo caótico dos pensamentos do narrador, o que confere à forma um aspecto de algo ainda em desenvolvimento. Isso é acentuado por pequenos comentários acerca de uma escrita que ainda vai ocorrer. Imersos em um longo período de bloqueio criativo, é no processo de luto que os narradores bernhardianos encontram a centelha capaz de fazê-los iniciar sua produção escritural. Ao mesmo tempo em que escrevem sobre a morte de alguém, os narradores tentam lidar também com o sentimento de finitude que os invade.

A escrita configura-se, portanto, como um processo de aprendizagem da morte. Sem endereçamento, ela é o espaço em que os narradores refletem sobre a transitoriedade, condição própria da vida. Este artigo versa sobre a instância da morte nos romances O náufrago (1983) e Árvores abatidas - uma provocação (1984), de Thomas Bernhard, enfatizando as relações entre morte e narrador. Destaca-se, também, a morte enquanto elemento responsável por ativar a produção escritural do narrador, indivíduo que se autodenomina escritor, mas que, até então, não lograra sucesso em projetos escriturais anteriores.

A poética da morte

Falecido em 1989, o austríaco Thomas Bernhard é considerado um dos autores mais importantes da literatura de língua alemã do século XX, ao lado de Günter Grass, Heinrich Böll e de expoentes da literatura austríaca, como Elfriede Jelinek e Peter Handke. Uma leitura mais superficial da vasta obra de Bernhard encontrará temas que remetem, obsessivamente, à Áustria. Embora o espaço de suas histórias restrinja-se a esse país, podemos constatar a presença de temáticas universais em camadas mais profundas de significação, temas que vão desde a crítica às origens familiares e o espírito identitário de uma nação até questões que perpassam o imaginário humano, como os sentidos que damos aos eventos traumáticos e ao encontro com a vida diante da morte.

Por volta dos dezesseis anos, Thomas Bernhard inicia sua produção literária publicando poemas e um pequeno conto, “Vor eines Dichters Grab” [“Na tumba de um poeta”], em um jornal de Salzburgo, no começo dos anos 1950. Nessa fase de sua vida, o autor desenvolve pleurisia, doença que o levará a várias internações e que será a causa de sua morte. A doença “é mais que uma temática em seus livros, é fundamento criativo e fonte de inspiração que se reflete na própria linguagem bernhardiana” (goubran apud Bohunovsky 2014Bohunovsky, Ruth. Thomas Bernhard, o artista do exagero - uma introdução. In: Konzett, Matthias (ed.). O artista do exagero: a literatura de Thomas Bernhard. Organização da tradução e introdução de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Ed. UFPR, 2014. p. 13-35: 17). Além de poesia e conto, o autor também escreveu roteiros de cinema, peças de teatro, minidramas, autobiografias e romances.

Os críticos começaram a se interessar pela escrita de Bernhard apenas no começo dos anos 1960, quando foi publicado Frost (1963), seu primeiro romance. A estrutura dessa obra servirá de base para as narrativas futuras: um artista enfermo que vive isolado perto da região dos Alpes. Ademais, outros elementos característicos da prosa bernhardiana já se encontram nesse romance como um narrador masculino que segue, ininterruptamente, um monólogo acerca de temas como arte, vida e morte - “a narrativa sobre a morte é sempre a evidência constante da sobrevivência, uma sobrevivência através de uma escrita grotescamente triunfante e, às vezes, cômica” (Anderson 2014Anderson, Mark M. Fragmentos de um dilúvio: O teatro da prosa de Thomas Bernhard. In: Konzett, Matthias (ed.). O artista do exagero: a literatura de Thomas Bernhard. Organização da tradução e introdução de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Ed. UFPR, 2014. p. 181-202: 185).

Por não se adequarem ao ambiente onde nasceram, os narradores de Bernhard optam, ainda jovens, por se exilarem da Áustria. É a partir de um novo lugar que eles lançam seu olhar para a terra que deixaram. Tendo se frustrado em suas aspirações artísticas, esses narradores elegem seu país de origem como matéria de sua escrita. Contudo, a escritura inicia quando eles são convocados a retornarem após a morte de alguém. Desse modo, podemos dizer que a morte é a causa do retorno à pátria, servindo de fio condutor para que o narrador desenrole os fatos passados que ainda reverberam no presente. Nos textos de Bernhard, portanto,

a morte sempre acontece para um personagem familiar ao narrador, mas não a ele mesmo. Ela arranca o narrador de um bloqueio anterior de escrever e põe em funcionamento uma espécie de máquina automática e denotativa de prosa, que parece funcionar sem a intervenção ativa ou mesmo consciente do narrador. [...] os textos de Bernhard narram o suicídio de outras pessoas, simulando a própria morte do narrador e desencadeando uma tentativa imediata de recontá-la, de modo obsessivo, por meio de fragmentos intermináveis. (Anderson 2014Anderson, Mark M. Fragmentos de um dilúvio: O teatro da prosa de Thomas Bernhard. In: Konzett, Matthias (ed.). O artista do exagero: a literatura de Thomas Bernhard. Organização da tradução e introdução de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Ed. UFPR, 2014. p. 181-202: 184-185)

Tema que interessa para a discussão que pretendemos tratar aqui, a morte traz vida ao narrador, pois ela atua como pulsão capaz de ativar o processo criativo desse sujeito. No caso das duas narrativas que traremos à baila, o suicídio de um amigo é tratado quase como um tema de investigação filosófica. Conforme o narrador discorre acerca de traços da personalidade do suicida, notamos que determinadas características também habitam nesse narrador, levando o leitor a pensar que ele também seria um potencial suicida. Embora o narrador possua uma ideação suicida, pode-se inferir que, no exílio, ele tenha encontrado certo fôlego para continuar ressignificando sua existência. Essa ideia que fica nas entrelinhas é suscitada à medida que são mencionados fatos ocorridos na vida do suicida após o exílio do narrador. Estrutura-se, assim, uma comparação entre a vida daquele que permaneceu no mesmo lugar e daquele que ousou deixá-lo. Entretanto, vale frisar que o narrador pouco informa sobre a nova morada, pois seu foco continua sendo o passado vivido na Áustria.

O suicídio em cena

A psicanálise muitas vezes se debruçou sobre o tema do suicídio. Uma vez que as narrativas aqui estudadas ancoram-se na questão da morte, iniciaremos esta discussão por um artigo clássico de Freud. Publicado em 1917, Luto e melancolia investiga esses dois estados que intitulam o texto, destacando o aspecto natural do primeiro e o caráter enigmático que envolve o segundo.

De acordo com Freud, o luto afeta todos os indivíduos em algum momento da vida e pode ser descrito, via de regra, como “a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc.” (Freud 2010: 128). O luto é um mecanismo de elaboração da perda para que, em um segundo momento, o sujeito possa procurar objetos substitutos que preencham o lugar do que foi perdido.

Quanto à melancolia, Freud a descreve como um desinvestimento profundo no eu e no laço social, um desânimo profundamente doloroso oriundo de uma suspensão de interesse pelo mundo externo. Outro aspecto relevante na análise da melancolia diz respeito à identificação do melancólico com o objeto perdido, ou seja, em que “a sombra do objeto caiu sobre o eu, e a partir de então este pôde ser julgado por uma instância especial como um objeto, o objeto abandonado” (Freud 2010: 133). Na identificação melancólica, o eu é modificado e, ao ser devorado pelo objeto, resta empobrecido.

Nessa linha de pensamento, Freud destaca, na divisão do eu, a inserção do sadismo como possível explicação para o suicídio, posto que o eu “só pode se condenar à morte se puder tratar a si mesmo como um objeto, um objeto a quem seria dirigido forte contingente de ódio e hostilidade” (Edler 2014Edler, Sandra. Luto e melancolia: à sombra do espetáculo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014., p. 36-37). Essa hostilidade volta-se ao próprio eu do sujeito ocasionando uma confusão entre ele e o objeto e, dessa ação sádica, resultaria o ato suicida como forma de destruição do eu pela identificação inconsciente com o objeto.

Do ponto de vista da perda, pode-se dizer que, enquanto no luto há uma procura por tentar ressignificar essa experiência, na melancolia, a perda não possui condições de ser simbolizada, ou seja, o melancólico não consegue efetuar nenhum tipo de cicatrização. A melancolia comporta-se como uma ferida aberta, atraindo energias de investimento de todos os lados, esvaziando “o eu até o completo empobrecimento” (Freud 2010Freud, Sigmund. Luto e melancolia (1917). In: Freud, Sigmund. Obras completas de Sigmund Freud, Vol. 12. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 127-144: 137). A dor constante causada pela ferida não cicatrizada deixa o eu indisponível, impossibilitando-o de investir no amor e nas coisas do mundo. Considerando a conversão do melancólico na sua própria perda, ele se identifica ao nada, a algo sem valor. Disso advém ideias de abandono, desvalorização, empobrecimento e ruína. Na visão do melancólico, ele próprio não possui valor algum.

No Seminário 10 - A angústia, Jacques Lacan opõe-se à ideia de símbolo encontrada no sintoma, amplamente pesquisada por Freud. Uma vez que a expressão sintomática é repetida inúmeras vezes ao longo da história de um sujeito, ela não pode ser reconhecida por sua qualidade simbólica. Essa expressão dá-se por meio de atos: estes sim providos de sentido, pois são considerados no contexto de uma cena.

Dentre as muitas formas de expressão sintomática (atos-falhos, lapsos, inibições etc.), Lacan detém-se no acting out e na passagem ao ato. A distinção proposta por Lacan baseia-se na posição do sujeito em relação à cena do conflito. Enquanto o acting out seria a criação e sustentação da cena, em um nível de demonstração bastante intencional (mesmo sendo inconsciente), a passagem ao ato seria a queda do sujeito para fora da cena, interrompendo seu curso.

Iniciando a distinção entre acting out e passagem ao ato, Lacan destaca que “tudo que é acting out é o oposto da passagem ao ato” (Lacan 2005Lacan, Jacques. Passagem ao ato e acting out. In: Lacan, Jacques. Seminário, livro 10: A angústia (1962-1963). Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 128-145: 136). O acting out seria algo que se mostra na conduta do sujeito e se orienta em direção ao Outro3 3 Em Lacan, o conceito de Outro (“grande Outro”) visa a abarcar as diversas formas pelas quais a palavra nos constitui. O Outro (Autre, em francês), grafado com O maiúsculo, designa, portanto, o lugar da palavra que nos determina, diferentemente de outros, com o minúsculo, que são as pessoas com as quais nos relacionamos, nos identificamos e, por vezes, nos confundimos. Desse modo, o Outro como lugar da palavra possui uma autonomia que faz com que ele não possa reduzir-se ao que os outros (indivíduos comuns) enunciam. , como se o sujeito clamasse por um espectador apto para interpretá-lo. Assim como o sintoma, o acting out demonstra um desejo desconhecido pelo sujeito, sendo, portanto, passível de interpretação. Lacan, entretanto, estabelece uma clara diferenciação entre ambos ao afirmar que “o que a análise descobre no sintoma é que ele não é um apelo ao Outro [...]. O sintoma, por natureza, é gozo” (Lacan 2005: 140).

Segundo Lacan, “o momento da passagem ao ato é o do embaraço maior do sujeito, com o acréscimo comportamental da emoção como distúrbio do movimento” (Lacan 2005: 129). Essa emoção seria responsável por impulsionar o sujeito para fora da cena que ele vinha sustentando. Na passagem ao ato, a saída do sujeito do campo de visão do Outro teria como intenção o desmonte da cena. Dessa forma, pode-se depreender que a passagem ao ato não é endereçada a alguém para que seja decifrada, mas sim a retirada do sujeito da cena diante da impossibilidade de simbolização do afeto. Essa seria a própria estrutura da passagem ao ato. Enquanto forma de passagem ao ato, o suicídio seria a ruptura radical do laço social. O suicídio escancara a estrutura do ato, pois nele foi abandonado o recurso à palavra como possibilidade de simbolização.

Evidentemente que a teorização acerca do ato suicida não se esgota nessa curta explanação. No entanto, as nuances ressaltadas acima dão conta, nesse momento, do tema do suicídio presente nas duas obras das quais trataremos.

O suicídio de Wertheimer em O náufrago

O romance O náufrago (1983) é a tentativa de um narrador anônimo superar a morte de dois amigos, o recém-falecido Wertheimer e o canadense Glenn Gould. Após o funeral de Wertheimer, o narrador recorda fatos que poderiam ter contribuído para o suicídio desse amigo. Wertheimer, Glenn Gould e o narrador conheceram-se há vinte e oito anos no Mozarteum em Salzburgo, quando foram estudar piano com o professor Vladimir Horowitz. Wertheimer e o narrador tinham em mente tornarem-se grandes pianistas. Entretanto, eles desistem da carreira ao verem Glenn executar magistralmente as Variações Goldberg, de Bach: “se não tivesse conhecido Glenn Gould, provavelmente não teria desistido do piano. [...] Quando conhecemos o melhor de todos, temos que desistir” (Bernhard 2006______. O náufrago. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.: 12).

Percebe-se que, desde a juventude, havia certo ar melancólico no semblante dos rapazes, assim como um fascínio pela morte voluntária. Os três cultivavam o hábito de frequentar o Mönschsberg, conhecido como “morro dos suicidas”. Embora o narrador já tivesse visto Glenn no Mozarteum, foi somente no Mönschsberg que eles de fato se conheceram. Nessa primeira conversa, o narrador afirma que estava diante de um homem inteligentíssimo e que, desde esse instante, eles desenvolveram uma amizade espiritual. Em seu texto, o narrador evidencia o fascínio que os suicidas do Mönschsberg lhe despertavam:

Sempre me fascinaram os que se arrebentam no chão da rua, e eu próprio (como, aliás, Wertheimer também) subi várias vezes o Mönschsberg, a pé ou de elevador, com a intenção de me jogar de lá de cima, mas não me joguei (e Wertheimer também não!). Várias vezes cheguei a me colocar em posição para pular (Wertheimer também!), mas, como Wertheimer, não pulei. Dei meia-volta. (Bernhard 2006______. O náufrago. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.: 12)

A partir dessa citação, fica claro que tanto o narrador quanto Wertheimer possuíam certa ideação suicida. O mesmo, entretanto, não é mencionado a respeito de Glenn, que apenas passeava pelo morro. O personagem de Glenn era extremamente focado nos estudos de piano, sendo autodisciplina sua palavra preferida. Ele ensaiava dia e noite em busca da perfeição, sem cometer um único erro, glennialmente, como dizia Wertheimer. Nessa narrativa, o canadense Glenn pode ser visto como o estrangeiro que vem, temporariamente, afastar a ideia de morte que rondava Wertheimer e o narrador, pois seu estilo de vida e amor à música encantava seus amigos austríacos.

Outro aspecto da personalidade inebriante de Glenn é que, segundo o narrador, ele possuía o dom de ver por dentro e de imediato todos que conhecia. Ao captar a essência de Wertheimer e do narrador, Glenn os nomeia, respectivamente, náufrago e filósofo, oferecendo-lhes, inclusive, uma justificativa para assim passar a designá-los:

Glenn sempre se dirigia a Wertheimer com um Meu caro náufrago; [...] ele sempre o chamara apenas de náufrago, e a mim, muito secamente, de filósofo, o que não me incomodava. Para Glenn, Wertheimer, o náufrago, seguia sempre afundando, ininterruptamente; de mim, achava que eu vivia falando a palavra filósofo, e é provável que com uma regularidade insuportável. (Bernhard 2006______. O náufrago. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.: 18)

Ao mesmo tempo em que essa nomeação marca o (re)nascimento de Wertheimer e do narrador, ela também promove suas sentenças de morte, uma vez que eles parecem incorporar o teor que tais denominações carregam. Depois de abandonarem a música, Wertheimer e o narrador investiram na carreira acadêmica - o primeiro, na escrita de aforismos, o segundo, em filosofia. No entanto, a narrativa carece de informações a respeito de suas carreiras acadêmicas, como, por exemplo, se eles já publicaram alguma coisa. Ao leitor é revelado apenas que ambos escrevem há algum tempo textos em que abordam sua amizade com o mundialmente famoso Glenn Gould. Residindo em Madri, o narrador - que se considera uma testemunha competente da extraordinária existência de Glenn - ocupa-se em escrever um ensaio intitulado Sobre Glenn Gould, que consiste em inúmeros esboços os quais ele destrói e reescreve. Wertheimer dedica-se também à escrita de um texto cujo título é O náufrago, justamente o apelido que ele ganhara de Glenn. Esse texto, composto de milhares de ideias anotadas em pedaços de papel, é constantemente corrigido e, ao final, destruído, restando somente seu título.

Após concluir os estudos no Mozarteum, Wertheimer trancara-se no casarão de Traich, onde mora com a irmã, com quem vive uma relação completamente abusiva. Por mais de duas décadas, Wertheimer tiranizou a irmã, porém ela casou-se com um industrial suíço e mudou-se para a Suíça.

A partida da irmã transformara o pensamento suicida de Wertheimer em um estado constante, e a morte de Glenn intensificara essa decisão. De acordo com Blanchot, “o que há de deliberado no suicídio, essa parte livre e dominadora pela qual nos esforçamos por permanecer nós mesmos, serve sobretudo para nos proteger do que está em jogo nesse evento” (Blanchot 2011: 107). Uma vez que a carreira artística de Glenn chegara ao fim via morte natural, consagrando ainda mais o artista4 4 Vale ressaltar que o canadense Glenn Gould (1932-1982), de fato, existiu, sendo considerado pela crítica especializada um dos melhores pianistas do século XX. Contudo, no romance de Bernhard, a morte de Glenn é performatizada, pois, devido a um derrame, ele cai morto sobre o piano. Na narrativa, esse acontecimento potencializa a genialidade do artista nato em oposição ao fracasso de Wertheimer que culmina em seu suicídio. Segundo fontes biográficas sobre Glenn Gould, ele sofreu sim um derrame, mas veio a falecer dias depois, no hospital. , e que sua irmã o abandonara, Wertheimer não conseguiria mais sustentar a cena que vinha mantendo, ou seja, oprimindo a irmã por não conseguir lidar com a frustração de não ter se tornado um virtuose do piano.

Semanas antes de se matar, Wertheimer comprou um piano desafinado e de marca inferior e convidou ex-colegas do Mozarteum para passar alguns dias em sua casa. O narrador fora convidado, mas preferiu não comparecer, pois não compreendeu a intenção do amigo em convidar pessoas (artistas) as quais ele sempre odiou. A hipótese do empregado Franz, com a qual o narrador concorda, é que Wertheimer havia subornado aquelas pessoas para que permanecessem em sua casa ouvindo-o tocar piano:

Segundo Franz, Wertheimer se pôs a tocar Bach sem parar, a ponto de as pessoas não agüentarem mais e saírem de casa. Quando retornavam, ele começava de novo [...], até que elas voltavam a sair. Talvez quisesse enlouquecê-las com seu piano, o Franz disse, pois mal chegavam, ele se punha a tocar Bach e Händel até elas fugirem, iam para o ar livre e quando voltavam tinham que suportar seu piano novamente. (Bernhard 2006______. O náufrago. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.: 138)

Após esse reencontro com os ex-colegas, Wertheimer viaja para a Suíça e enforca-se a poucos metros da casa da irmã: “um suicídio calculado com grande antecedência, pensei, e não um ato espontâneo de desespero” (Bernhard 2006______. O náufrago. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.: 46). Essa frase que serve também de epígrafe ao romance, além de antecipar o suicídio presente na narrativa, desvela que Wertheimer nunca se desvencilhou de uma ideação suicida. Nessa passagem ao ato, Wertheimer não submerge conforme o significado do epíteto náufrago indica, mas morre enforcado, sem ar, incapaz de recorrer à palavra como forma de simbolizar seus afetos.

Em busca das anotações de Wertheimer, o narrador vai à casa do amigo onde o empregado Franz lhe revela que ajudara o patrão a queimar todos os manuscritos. O romance encerra com a seguinte frase: “Pedi ao Franz que me deixasse sozinho por um tempo no quarto de Wertheimer, e pus para tocar as Variações Goldberg de Glenn, que já tinha visto no toca-discos ainda aberto de Wertheimer” (Bernhard 2006______. O náufrago. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.: 140). Essa cena evidencia toda a sintomática de Wertheimer, pois, em seus últimos momentos, a imagem de Glenn é evocada pelo disco em que o canadense executa sua atualização da referida obra de Bach - responsável por imortalizar sua arte. Diante disso, pode-se inferir que a existência de Wertheimer estava condicionada à de Glenn, uma vez que este fora escolhido como trilha sonora para os instantes que precederam sua morte.

Essa cena é emblemática, pois diz muito acerca da fascinação que Glenn exercia também sobre o narrador, uma vez que ela finaliza seu relato. Se, ao ouvir o disco de Glenn, Wertheimer já tinha em mente o suicídio que praticaria em seguida, esse mesmo evento é o responsável por motivar o narrador a iniciar sua escrita. Logo, ao mesmo tempo em que a música de Glenn serve de fundo para o grand finale de Wertheimer, ela funciona também como possível estímulo ao narrador.

Pode-se dizer que, se o projeto do narrador era escrever um ensaio sobre Glenn, o que se tem, ao final, é, antes de tudo, um relato sobre o naufrágio de Wertheimer. Dessa maneira, o narrador tenta, em certa medida, circunscrever a personalidade de Wertheimer, ao passo que a genialidade de Glenn permanece intraduzível. Glenn paira como o gênio virtuose do piano, porém segue sendo apontado como culpado pelo fracasso do narrador e de Wertheimer. O fato é que a morte dos amigos mobiliza o narrador a contar uma (e também a sua) história, sendo essa a maneira encontrada por ele para lidar com a perda de duas pessoas que marcaram uma época importante de sua vida. A escrita tenta dar conta dessas perdas ao mesmo tempo em que atenua a dor do enlutado.

Após iniciar o relato com três breves parágrafos, a partir do quarto, que se estende até a última página, o que se vê é um jorrar de lembranças escritas à medida que vêm à mente do narrador. Esse modo de organização do relato apontaria para a urgência que o narrador sente em querer dizer tudo, antes que seu próprio tempo se esgote ou que lhe escape a inspiração. O Ensaio sobre Glenn Gould expande-se ao incorporar outros dois personagens, Wertheimer e o próprio narrador, que se deixa apreender nas entrelinhas de seu texto. A morte dos amigos impulsiona o fazer escritural do narrador e emparelha este a Glenn, na condição de artistas que conseguiram realizar sua arte. Wertheimer, no entanto, é referenciado no título do relato, como uma possível alusão a um ato de escrita que ele não conseguiu concluir.

O suicídio de Joana em Árvores abatidas - uma provocação

Publicado em 1984, o romance Árvores abatidas - uma provocação inicia-se com um narrador também anônimo sentado em uma bergère, onde permanecerá boa parte da narrativa, na casa do casal Auersberger, em Viena. Nesse móvel, o narrador reflete acerca dos motivos que o teriam levado a aceitar o convite dos Auersberger para comparecer ao seu jantar artístico, evento em que se reúnem artistas e do qual o narrador fora assíduo frequentador há quase trinta anos, antes de se mudar para Londres.

Em um canto escuro da sala, o narrador observa de longe os convidados sobre os quais tece inúmeros comentários. Muitos desses convidados, em sua maioria artistas de Viena, foram, no passado, amigos do narrador. Todos ali aguardam a chegada do ilustre convidado - um renomado ator do Burgtheater de Viena em cartaz com a peça O pato selvagem, de Henrik Ibsen. Isolado, mas presente, resmungando e, em alguns momentos, cochilando, a posição física do narrador é determinante para o desenrolar da ação, assim como o espaço “bem delimitado e claustrofóbico, esboçado como se fosse uma prisão física e psicológica. O procedimento de se mover constantemente - no tempo, pela linguagem -, porém sem sair do lugar, é um topos da prosa bernhardiana” (Flory 2006Flory, Alexandre Villibor. Sopa de Letras Nazista: a apropriação imediata do real e a mediação pela forma na ficção de Thomas Bernhard. Tese de doutorado. FFLCH/USP, São Paulo, 2006.: 81).

Devido à imobilidade do narrador, o olhar constitui-se como elemento essencial no relato. Logo, parte da narrativa é resultado estrito de seu campo visual. O encadeamento dos fatos não obedece a uma lógica causal, sendo marcado por idas e vindas a lugares e tempos, o que contribui para a instauração do monólogo interior. Uma vez que o texto é constituído por um grande bloco, sem parágrafos, pode-se dividir a narrativa em duas partes, sendo a primeira aquela em que o narrador, camuflado na escuridão, observa os convidados. A segunda inicia-se com a chegada do ator do Burgtheater: aqui se percebe uma mudança de perspectiva, uma vez que o espaço se amplia para a sala de jantar e, em seguida, de música.

A narração do jantar artístico é frequentemente entrecortada por pensamentos do narrador acerca do suicídio de sua amiga Joana, cujo enterro se dera na tarde que antecede o jantar. É no funeral que ocorre o reencontro entre o narrador e o casal Auersberger, resultando no convite para o jantar. Joana e o narrador conheceram-se através dos Auersberger há mais de trinta anos. Para o narrador, o jantar possui um significado que vai além da recepção ao ator do Burgtheater:

A morte da Joana estorvou o casal Auersberger. [...] O ator está certo de que este jantar artístico é para ele, isso basta ao casal Auersberger, que na verdade deu seu jantar artístico mais ainda para a Joana porque ele se realiza no dia do enterro da Joana, pensei sentado na bergère. (Bernhard 1991Bernhard, Thomas. Árvores abatidas - uma provocação. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.: 35)

O texto versa sobre o impacto da morte de Joana sobre o narrador. Mesmo ausente, essa personagem presentifica-se no jantar via memória, logo, Joana é também uma das convidadas daquele evento. Tomando para si o papel de anfitrião, o narrador vai apresentando a amiga morta. Quando ainda morava no interior da Áustria, Joana já sonhava em ser atriz de teatro e bailarina. Nascida Elfriede Slukal, ao se mudar para Viena, ela adota o nome de Joana, seguindo o conselho de um amigo que lhe dissera que o nome Joana era exótico na capital. Mas, para o narrador, “ela errou totalmente, pensei sentado na bergère, também com o nome Joana, Elfriede Slukal não fez carreira, como se vê” (Bernhard 1991Bernhard, Thomas. Árvores abatidas - uma provocação. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.: 23). Na juventude, encantado com a figura de Joana, o narrador escrevia pequenas peças de teatro para dois atores apenas para ele e Joana representarem. Evidencia-se, com isso, que seus primeiros textos foram estimulados por Joana e endereçados a ela, ou seja, a amiga personificaria o ideal de musa que o jovem narrador, aspirante a dramaturgo, cultivava. Joana, portanto, é quem desperta o narrador para a arte e a escrita:

O que me excitara não fora a sua aparência, mas seu jeito de falar. E foi o conhecimento e depois a amizade com Joana que simplesmente me levaram a ter contato com a arte e o artístico, depois de tanto tempo de má vontade. Ela e tudo nela para mim era teatro, e seu marido pintava, isso me deixou fascinado, me atraiu desde o começo [...]. (Bernhard 1991Bernhard, Thomas. Árvores abatidas - uma provocação. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.: 34)

Os narradores bernhardianos, quase sempre indivíduos masculinos, praticamente não comentam a respeito de seus relacionamentos amorosos. Contudo, no romance Árvores abatidas, fica sugerido que a proximidade com Joana despertara no narrador uma espécie de amor platônico que se manifestava nas peças que ele escrevia para ela. Conhecendo-a já casada com o pintor Fritz, o narrador novamente compõe uma amizade triangular, aos moldes do que cultivara anteriormente com o casal Auersberger. A relação com Joana se dava, portanto, no nível da arte, no espaço da dramaturgia, onde o narrador criava situações em que apenas eles protagonizavam.

Por ter sido muito próximo de Joana e Fritz, o narrador considera-se testemunha de seu casamento e aponta o divórcio como um possível desencadeador do suicídio da amiga. Na visão do narrador, Joana teria sido uma grande artista - atriz ou bailarina -, se não tivesse se doado excessivamente a Fritz. Era como se todo o talento dela tivesse se deslocado para o marido, que lhe era, no começo, totalmente devotado.

Tendo abandonado o sonho de ser atriz, Joana focara-se no balé e oferecia aulas a preços módicos para artistas iniciantes. Após desistir da pintura, Fritz tornara-se tecelão. O narrador pontua que o sucesso de Fritz devia-se ao charme de Joana, que, por atrair muita gente ao seu redor, “tornou os tapetes do seu tapeceiro, famosos primeiro em Viena, depois na Europa, finalmente também na América” (Bernhard 1991Bernhard, Thomas. Árvores abatidas - uma provocação. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.: 28). E ainda, Joana estimulou “Fritz a subir porque não podia forçar a si mesma a subir, portanto Fritz era o adequado a ter uma fama internacional, e não ela” (Bernhard 1991: 71).

No auge da fama, Fritz pede o divórcio. Segundo o narrador, esse fato fora determinante para o colapso de Joana, que se entregara à bebida. Enquanto a atenção dos convidados do jantar está voltada para o ator do Burgtheater, o narrador recupera a última lembrança que guarda da amiga:

[...] quando eu vi Joana pela última vez na Torre, ela tinha rosto inchado e pernas edemaciadas, [...]. Uma voz embriagada, teria dito qualquer um. Um tapete de parede do seu ex-marido pendendo sobre a cama ainda lembrava a ela que fora feliz um dia, com aquele homem. Sua casa estava cheia de roupa suja e fedor. O gravador que tinha ao lado da cama [...] estava estragado. Tudo coberto de poeira. No chão havia dúzias de garrafas vazias de vinho branco [...]. (Bernhard 1991Bernhard, Thomas. Árvores abatidas - uma provocação. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.: 38)

O fato é que Joana nunca mais se recuperou da separação, mesmo vivendo um novo relacionamento com Friedrich: nome que ela odiava e substituiu por John. Percebe-se, nesse ato, a tentativa de Joana fazer com o namorado o mesmo que fora feito com ela. Joana altera o nome de Friedrich para John, enfatizando que, desse modo, ele teria sucesso em Viena. Certa tarde, ela se despediu de John e viajou para a casa dos pais, onde se matou: “Joana deve ter-se enforcado entre três e quatro horas da manhã, [...], isso informara o médico que aliás cortara com as próprias mãos, segundo dizem, a corda que Joana prendera numa viga do teto sobre a entrada da casa” (Bernhard 1991Bernhard, Thomas. Árvores abatidas - uma provocação. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.: 31).

Ao final do jantar artístico, a senhora Auersberger acompanha o narrador até a porta e este lhe diz: “a Joana teve de morrer, teve de se matar, para que nos encontrássemos de novo” (Bernhard 1991Bernhard, Thomas. Árvores abatidas - uma provocação. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.: 165). Vagando pelo centro da cidade, o narrador decide que, ao chegar em casa, escreverá algo a respeito desse jantar. Separados por um pequeno intervalo de tempo, o enterro de Joana e o jantar dos Auersberger são os fatos que disparam no narrador o ímpeto de realizar seu relato.

A narrativa pode ser compreendida como sendo o produto final dessa escrita que o narrador menciona que ainda virá a realizar. Embora o texto possa causar a impressão de que o leitor acompanha os acontecimentos transcorridos no jantar à medida que eles ocorrem, esse evento, contudo, já está finalizado. Dentro da infinidade de assuntos trazidos à tona pela voz narrativa, esse jantar figura como o evento mais próximo ao presente da narração, seguido pelo enterro de Joana. A morte dessa personagem mobiliza o relato do narrador que encontra, no jantar dos Auersberger, o local perfeito para refletir seu recente estado de luto. É nesse espaço que o narrador recupera não somente suas memórias ao lado de Joana, mas também o tempo em que ambos frequentavam aquele círculo seleto de artistas. Agora morta, Joana volta a inspirar o desejo de escrita do narrador que a evoca novamente como musa, inserindo-a no relato do jantar, onde ninguém menciona seu falecimento, prestando-lhe, assim, uma homenagem póstuma. Destaca-se, também, a mudança de estilo textual do narrador que outrora dramaturgo, agora concentra a ação apenas em sua voz, embora o jantar do qual participa mais como observador seja descrito com certa teatralidade.

O homem diante da morte

Os narradores dos dois romances aqui apresentados conservam certa semelhança no que tange seu contato com a morte. Mergulhados em uma longa crise criativa, eles utilizam-se do suicídio dos amigos para dar início ao relato: que pode ser entendido, em um primeiro momento, como uma tentativa de elaboração do luto. Contudo, esse relato revela também o sucesso do narrador em conseguir não apenas escrever, mas também finalizar o texto, figurando, portanto, na morte do outro, o motivo para se produzir uma escrita.

O luto movimenta o mundo do narrador, solicitando-lhe que interrompa suas atividades cotidianas para deparar-se com o vazio da existência. Nesse momento, o narrador passa a observar o espaço a sua volta e sente que a morte também o contempla, pois “somos olhados pela perda, ou seja, ameaçados de perder tudo e de perder a nós mesmos” (Didi-Huberman 1998Didi-Huberman, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1998.: 85). Desse modo, recorrendo às memórias, o narrador tenta preencher a lacuna deixada pelo morto. Ao mesmo tempo em que o relato cria um lugar para a ausência, ele ganha também certa urgência, uma vez que o narrador adquire consciência de sua própria finitude. Estabelece-se, portanto, um jogo de vida e morte, no qual o narrador traz de novo à cena o amigo morto, presentificando-o em sua escritura.

De acordo com Blanchot, “o escritor é então aquele que escreve para morrer e é aquele que recebe o seu poder de escrever de uma relação antecipada com a morte” (Blanchot 2011: 96). Percebe-se tanto em O náufrago quanto em Árvores abatidas que o narrador possuía e ainda possui, no presente da narrativa, certo fascínio pelo indivíduo recém-falecido. Tal fato emparelha narrador e suicida, em uma espécie de relação especular, uma vez que ambos parecem experimentar traços semelhantes de dor e melancolia. A concretização da passagem ao ato eleva o suicida a protagonista do relato, mas, ao mesmo tempo, indica que o narrador certamente não sucumbiu devido ao fato de ter se exilado e continuar perseguindo a ideia de um fazer artístico. O futuro do narrador permanece incerto, pois o leitor sabe apenas que, diferentemente daquele que se matou, o narrador realizou-se em sua busca artística enquanto autor do relato, podendo ou não ter também se matado em seguida, o que seria plenamente verossímil ao espaço literário de Bernhard.

Esses dois romances encenam manifestações da dor e da melancolia, da perda como estímulo à escrita e à narração, cuja presença é constante na literatura contemporânea. É por meio da escrita que se busca estabelecer sentido em meio a um tempo que se dispersou, criando-se, assim, uma narrativa da dor, em que a construção de uma história é resultado do trabalho laborioso da memória e da linguagem. Na obra de Bernhard, é possível vislumbrar os desdobramentos da pós-modernidade literária e artística que “cria espaços em que a dor é, não excluída, não travestizada nem espectralizada, mas serenamente convocada” (Barrento 2006Barrento, João. Receituário da dor para uso pós-moderno. In: ______. O arco da palavra: ensaios. São Paulo: Escrituras, 2006. p. 11-18: 18). Em seus relatos, os narradores aqui apresentados sentem-se convocados a homenagear os amigos mortos, utilizando esse espaço para também refletir acerca de suas próprias questões existenciais. A escrita figura, portanto, como um espaço de elaboração da perda e dos complexos que permeiam a vida do enlutado.

Referências bibliográficas

  • Anderson, Mark M. Fragmentos de um dilúvio: O teatro da prosa de Thomas Bernhard. In: Konzett, Matthias (ed.). O artista do exagero: a literatura de Thomas Bernhard. Organização da tradução e introdução de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Ed. UFPR, 2014. p. 181-202
  • Barrento, João. Receituário da dor para uso pós-moderno. In: ______. O arco da palavra: ensaios. São Paulo: Escrituras, 2006. p. 11-18
  • Bernhard, Thomas. Árvores abatidas - uma provocação. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
  • ______. O náufrago. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • Blanchot, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
  • Bohunovsky, Ruth. Thomas Bernhard, o artista do exagero - uma introdução. In: Konzett, Matthias (ed.). O artista do exagero: a literatura de Thomas Bernhard. Organização da tradução e introdução de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Ed. UFPR, 2014. p. 13-35
  • Didi-Huberman, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1998.
  • Edler, Sandra. Luto e melancolia: à sombra do espetáculo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
  • Flory, Alexandre Villibor. Sopa de Letras Nazista: a apropriação imediata do real e a mediação pela forma na ficção de Thomas Bernhard. Tese de doutorado. FFLCH/USP, São Paulo, 2006.
  • Freud, Sigmund. Luto e melancolia (1917). In: Freud, Sigmund. Obras completas de Sigmund Freud, Vol. 12. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 127-144
  • Lacan, Jacques. Passagem ao ato e acting out. In: Lacan, Jacques. Seminário, livro 10: A angústia (1962-1963). Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 128-145
  • Morin, Edgar. O homem e a morte. Tradução de Cleone Augusto Rodrigues. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1997.
  • 3
    Em Lacan, o conceito de Outro (“grande Outro”) visa a abarcar as diversas formas pelas quais a palavra nos constitui. O Outro (Autre, em francês), grafado com O maiúsculo, designa, portanto, o lugar da palavra que nos determina, diferentemente de outros, com o minúsculo, que são as pessoas com as quais nos relacionamos, nos identificamos e, por vezes, nos confundimos. Desse modo, o Outro como lugar da palavra possui uma autonomia que faz com que ele não possa reduzir-se ao que os outros (indivíduos comuns) enunciam.
  • 4
    Vale ressaltar que o canadense Glenn Gould (1932-1982), de fato, existiu, sendo considerado pela crítica especializada um dos melhores pianistas do século XX. Contudo, no romance de Bernhard, a morte de Glenn é performatizada, pois, devido a um derrame, ele cai morto sobre o piano. Na narrativa, esse acontecimento potencializa a genialidade do artista nato em oposição ao fracasso de Wertheimer que culmina em seu suicídio. Segundo fontes biográficas sobre Glenn Gould, ele sofreu sim um derrame, mas veio a falecer dias depois, no hospital.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2018
  • Aceito
    24 Ago 2018
Universidade de São Paulo | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas | Departamento de Letras Modernas | Área de Lingua e Literatura Alemã Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 - Cidade Universitária, CEP: 05508-900 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: pandaemonium.germanicum@usp.br